TRANSCRIÇÃO - A Caverna do Diabo: ensaio romântico de Valeriano de Souza. Jornal O Orbe, várias edições, 1884.

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TRANSCRIÇÃO DE FONTE HISTÓRICA

Por Irinéia M. Franco História-UFAL

Folhetim de O Orbe

A Caverna do Diabo Ensaio Romântico Por Valeriano de Souza (1)1 Cap. I A viagem

Estamos em pleno mês de dezembro de 1882. Aborrecido da vida escravizada da cidade empreendi uma viagem de recreio pelo centro da nossa fértil província de Alagoas. O sol estava esplendido. Nas campinas verdejantes notava-se mil variedades de flores que formavam um tapete matizado das mais caprichosas formas. As árvores vertiamse com suas festivas roupagens, mareando aqui, além nenhum ponto sombrio que era verdadeiro Oasis, onde os cansados viajantes se refugiavam dos rigores do sol. Além no meio desse oceano de verdura divisavam-se alguns esqueletos de árvores gigantescas, cuja seiva a mão do tempo havia destruído. Seus longos galhos secos pareciam ameaçar os rebentos novos que as [...]. Mais ao longe, no cimo do esqueleto de uma velha gargaúba divisava-se um pequeno ponto: era um sabiá, o filho das matas brasileiras que rompia os ares com seu mavioso canto, formando concerto com os outros filhos das selvas. Encantado com o canto dos pássaros, com o [...] das folhagens tangidas pelo vento, com o gemido surdo de algum velho tronco, esquecia-me de mim, dos rigores do sol que me tostava a frente e do péssimo cavalo que montava.

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O ORBE, Maceió, domingo, 13 de janeiro de 1884, Ed. 1, p. 2. Biblioteca Nacional, Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx. Data de acesso: 07/11/2012. Em colchetes encontram-se ilegíveis.

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Entregue a esta torrente de pensamentos que assaltam sempre o viajante no meio das estradas desertas, lembrava-me que devia ser de uma maravilha pavorosa as nossas matas antes do machado civilizador ter nela penetrado. Lembrava-me da dor que devia ter o gentio brasileiro se visse estes lugares queridos devastados pelos brancos, suas matas derribadas e seus campos sagrados transformados em povoados, vilas e cidades. Sentia-me indignado com a civilização. A meu ver nada tinha de poético essas matas frondosas derribadas, insultadas e humilhadas por essa locomotiva, cavalo de ferro da civilização moderna. Desejava ser gentio; no meio de minha indignação parecia-me já trincar nos afilados dentes as carnes quentes de malvados brancos, com especialidade os ingleses, profanadores do santuário da criação. Despertado da minha meditação pela voz rouquenha do meu guia ri-me dos desacertos de meu pensamento. Desejar ser gentio era uma coisa engraçada e ainda mais antropófago, querer agasalhar no estômago todo mundo civilizado, só da cabeça de um viajante que monta um cavalo magro! - Foi aqui, murmurava o meu guia; todas as vezes que passo, sinto um medo... - O que temos, senhor Preá? Perguntei: viu por acaso o cano de alguma carabina apontado para a sua pessoa? De certo seu nome não é muito tranquilisador para andar por estes caminhos; mas o senhor é um preá de nova espécie, suponho que nada lhe acontecerá. - Não brinque, senhor Arthur, respondeu o guia: este lugar não é de graça, muita gente valente tem daqui corrido. - Então o que temos, senhor Preá? - Aqui mataram um ladrão. - O que tem isto? - É mal assombrado. - Ah! - Sim, senhor Arthur, eu já dei também minha carreirinha daqui. - Então encontrou-se com a alma do ladrão? - Ou com o diabo, senhor Arthur. - Com o diabo! - Sim. Eu lhe conto como foi o negocio. Foi no mês de junho, numa sexta-feira. Era noite de lua, eu tinha saído de casa com minha carga de farinha bem cedinho para vender em Maceió. A Quitéria, minha mulher, que já sabia que este lugar não é bom, porque um tio dela já daqui correu, me preveniu que chegasse cedo ao Tabuleiro, não passasse esta maldita Mata do Rolo à noite. Eu era valente, senhor Arthur, não fiz caso do que me disse a mulher. 2

Cheguei ao Curralinho ao meio-dia, descansei, soltei o cavalo e só a boquinha da noite montei a carga e toca para dormir no Tabuleiro. Todo caminho fui bem, mas ao chegar a este maldito lugar os cabelos arrepiaram, a terra tremeu e um vulto negro do tamanho daquela sicupira que senhor vê, traz! Saltou em cima do meu pobre melado. Eu não tive medo, puxei da faca e saltei em cima do maldito vulto. Mas, ah! Senhor Arthur, quando o maldito virou-se para mim, deitando fogo pelos olhos, pelas ventas, pela boca e pelos ouvidos e me gritou com medonha: - Preá, Preá eu te levo; - não tive mais animo, deitei a correr para traz e fui cair, sem fala, no Curralinho. Quando tornei, não soube de meu cavalo, por mais que o procurasse nunca o pude encontrar. Supunha que o diabo não contente com a farinha levou também o meu pobre melado. O pobre do Preá tremia como varas verdes e eu ria-me a custa do pobre homem. - Ria-se, ria-se, senhor Arthur, tornou ele: Deus queira que o senhor nunca se encontre com estas coisas. - Ora meu caro Preá, atalhei: isto foi uma peça que algum ladrão de cavalos lhe pregou. O diabo pelo que dizem não precisa de farinha e tão pouco de cavalos. O senhor foi iludido. - Diga o que quiser, senhor Arthur, se o senhor visse não falava assim. Continuei a rir-me e a demonstrar que o bom do Preá havia sido enganado por um ladrão esperto; mas nada o convencia, apoderado de antigos terrores nada respondia. Entregue a meus pensamentos não podia deixar de convir que o meu guia era como a maior parte do povo, supersticioso. O fato sobrenatural que o bom do Preá acaba de contarme com cores tão vivas, era uma verdadeira pasmaceira. Algum industrioso tinha preparado aquela peça e se apossado do cavalo. O medo se apossando de meu guia tinha-lhe feito ver no ladrão o verdadeiro diabo. O ladrão é o diabo que persegue a humanidade. Para o rico não há pior diabo do que o ladrão. É o seu constante pesadelo. Um rato, uma barata que corra, um gato no telhado o faz acordar sobressaltado e perder o sono. Para o pobre o negócio é quase o mesmo; se não tem muito dinheiro, tem, contudo suas pequenas economias, o suor de seu rosto e o pão de seus pobres filhinhos. Ambos têm a vida em perigo, porque o ladrão é sempre assassino. Não contente com o outro rouba também a vida. Para mim não há duvida, se o ladrão não é o próprio diabo, é um parente bem próximo do Satanás.

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Agora que os leitores já conhecem um pouco o lado moral de meu guia vou fazerlhes conhecer seu lado físico. O bom do Preá era sertanejo. Nascera na vila de Simbres, de pais paupérrimos, fora criado como são todos os filhos do centro de nossa província, na mais completa ignorância. Na idade de 15 anos abraçara a profissão de vaqueiro, mais tarde impelido pela fome que devastou o sertão durante o horrível flagelo da seca, veio procurar a vida nas matas. Agregando-se a uma das fazendas da ribeira do Jitituba o bom do Preá casou-se, contando já uma prole de preasinhos. Rastejava o Preá nos seus trinta e cinco anos e graças a seu trabalho gosava de alguma fortuna. Eis a sua completa biografia. Já era meio dia, o sol de dezembro estava insuportável, meu estomago irritado pela falta de alimento fez-me voltar à realidade. Botei o cavalo a galope e pouco depois descobria a pequena povoação de Curralinho. Este lugarejo nada tem de notável. Umas dúzias de casas a maior parte de palha, espalham-se sem ordem por um campo completamente aleijado, formando uma comprida rua. Não se vê ali capela, o povo pouco religioso trata mais do corpo que da alma. O meu guia depois de recolher em uma cocheira os magros cavalos conduziu-me para uma modesta casinha de palha a fim de tomarmos algum alimento. Nada oferecia de notável este hotel da roça. Uma pequena mesa de pinho coberta por uma alva toalha, alguns tamboretes de pau era a única mobília da casa. A dona desta, mulher gorda e de seus 40 anos com alguns traços de antiga beleza recebeu-me com muito agrado, e sabendo de meu guia que eu era um futuro doutor tornouse ainda mais agradável, armou uma rede em que me estirei esperando que o jantar estivesse pronto. O bom do Preá estendeu um couro, fez da cangalha travesseiro e com pouco tempo roncava dormindo a sono solto. (continua) (2)2 Cap. I A viagem

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O ORBE, Maceió, quarta-feira, 16 de janeiro de 1884, Ed. 2, p. 2. Biblioteca Nacional, Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx. Data de acesso: 07/11/2012.

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Eu ao contrario não podia conciliar o sono. A primeira viagem que fazia no interior de nossa província queria encontrar muitas novidades, desejava achar-me envolvido em mil aventuras amorosas, queria enfim passar um natal maravilhoso. Um estudante que vai passar a festa na roça e no fim das férias não se apresenta aos colegas como um verdadeiro D. Juan, não traz em seu livro de lembranças mil anedotas amorosas, não é um estudante digno. Não passa de um paspalhão; merece a vaia dos colegas e ser expulso do grêmio. Eu não queria cair nesta falta. Queria apresentar-me aos colegas como um galo enfezado ou como um verdadeiro estudante de preparatórios, que é o mesmo. Portanto estava alerta. Levantei-me da rede umas duas ou três vezes para ver se descobria nas casas fronteiras algum querubim de saias; mas nada. Procurava anjos e apenas via algumas gordas roceiras. Desanimado das minhas tentativas deitei-me e pouco depois seguia o exemplo do Preá: roncava. Já havia algumas horas que dormia, quando despertei. Uma voz argentina e de uma melodia indefinível feriu-me os ouvidos. Escutei atento. Apenas pode ouvir a seguinte estrofe, fim sem dúvida da cansonata: “Acorda, acorda, mancebo, Vem ouvir minha canção. Vem colher as lindas flores Que tenho no coração. Acorda, acorda, mancebo Vem ouvir minha canção”.

Nada mais ouvi; a voz saia do interior da habitação em que eu estava. Fiquei meditativo; não podia ser aquela cansonata amorosa cantada pela matrona que tão bem me havia recebido. Havia naquela casa um ente que, pela melodia com que cantava, eu julgava ser um anjo de beleza. Não me enganava. Interrogava-me sobre a pessoa que havia pouco com seu canto aguçava minha curiosidade, julgava que o mancebo de que falava bem podia ser eu e me preparava para assaltar o baluarte, quando a dona da casa se apresentou prevenindo-nos que o jantar estava pronto.

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Pouco tempo depois eu e o Preá saboreávamos os guisados que apesar de serem de bacalhau me pareciam magníficos. Findo o jantar a dona da casa nos preveniu que se preparava o café. Momentos depois fazia o café a sua entrada na sala onde estávamos; fiquei surpreso de admiração! Não pelo café, pois julgo que meus leitores não me considerarão tão simplório que me espanto com um bule de café; mas sim pela condutora. Era um anjo. Contava apenas 15 anos, sua tez era morena, mas um moreno claro sombreado com uma pronunciada cor de rosa. Lábios finos e mimosos estavam desafiando um beijo. Os cabelos negros caiam ondulados sobre as espáduas, e algum cachinho mais atrevido e buliçoso ia a furto beijar-lhe o seio todo sedutor. Os dentes alvos a semelhança de prata mostravam-se de continuo no meio de um sorriso feiticeiro. O talhe, mãos e pés eram de uma graça maravilhosa. A languidez dos olhos provou-me que ali se ocultava um vulcão, era a semelhança de cinzas que ocultam brasas, triste de quem botar-lhe o pé, está sem remédio queimado. Não duvidei de que o verso da morena fosse uma alusão, tratei logo de sitiar a praça. Não foi difícil, momentos depois já nos entendíamos magnificamente bem. Tudo corria bem, tratei de demorar a hora da partida. A minha feiticeira moreninha chamava-se Chiquinha. Mostrei-me

apaixonadíssimo,

contei-lhe

mil

novidades

da

praça,

menti

magnificamente bem. Mas não podia durar muito tempo este goso, o maldito do Preá anunciou-me que os cavalos estavam prontos, era forçoso partir. Desejei que os cavalos tivessem o mesmo destino do cavalo do Preá, isto é, que o diabo os levasse; porém não aconteceu assim, desta vez o diabo não precisava de cavalos. Dizendo adeus a Chiquinha e prometendo que breve voltaria, parti. Nada apareceu de notável, às 4 horas da tarde atravessávamos a vila do Muricy. Preocupado com as minhas aventuras não prestei muita atenção a vila; apenas notei que era como todas as vilas de nossa província, sem comercio, portanto pobre. O Preá alegre com um copozinho da brasileira, falava a torto e a direito. - O senhor Arthur tem de passar uma festa soberba, dizia ele; a Cabeça de Porco é muito divertida. Quando o senhor tiver descansado da viagem vá visitar o compadre Solitário. É um bom velho o Alexandre. Chamam compadre Solitário porque ele vive só em uma cabana isolada, cercado de suas plantações, ao pé da serra do Barriga. - É um velho divertido? Perguntei.

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- É. Sabe de tudo quanto se passou aqui a muito tempo. Conta a história dos negros e outras muitas. Logo que o senhor quiser lhe mostrarei a Cova da Onça; é onde o velho mora; fica bem perto da Caverna do Diabo. - O que é a caverna do diabo? - É uma furna que está bem ao pé da serra. - Bem, irei visitar ao velho Solitário. Às dez horas da noite chegamos em Cabeça de Porco. Tratei de descansar das fadigas da viagem. Ao amanhecer sai para contemplar a natureza. Aos meus olhos desenhava-se uma paisagem encantadora. Vinha rompendo a aurora. A povoação dominava um terreno cheio de evoluções. A rua principal do povoado formava uma praçazinha quadrangular. Ao longe, no meio de um mar de verdura, via-se aqui, ali, algumas casinhas que pela distancia pareciam pequenos pontos brancos. A neblina impelida pelos primeiros raios do sol deixava pouco a pouco descobertos os campos, as matas e refugiava-se nas escuras grutas. Ao lado oeste corria o Mandaú em uma campina coberta de verdura. O Preá que havia me visto chegou-se a mim e tocou-me com a mão no ombro. - Olhe, senhor Arthur, disse: vê ao longe aquela nuvem? É a serra do barriga, lá mora o velho, se quiser hoje mesmo lá iremos, é muito perto, uma meia légua apenas. - Tem muito interesse que eu veja o tal compadre Solitário? Inquiri. - Sim. Quero que o senhor se divirta; mesmo hoje eu vou ver a minha roça que é para aquele lado, podemos aproveitar a ocasião. Sem dúvida gosta de caçar? - Sim, é um bom divertimento. - Tenho duas garruchas muito boas, para aqueles lados há muito em que se atirar. Depois do almoço partiremos. Depois do almoço eu e o Preá, preparados para a caça, partimos. Depois de não pequena caminhada chegávamos à casa do compadre Solitário. A habitação apesar de muito pobre, tinha alguma coisa de encantador. Um grande cão nos fez com seus latidos os primeiros comprimentos. Entremos no cercado que rodeava a casinha. O cão continuava a ladrar. Não tardemos em ouvir a voz do velho que gritava: cala-te, Sultão, e ao mesmo tempo se apresentava a porta da casinha. Depois de saudar o velho, o Preá apresentou-me, dizendo ser um moço da praça que tinha ido passar a festa. O velho recebeu-me com agrado.

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Tinha ele não menos de seus 90 anos, mas ainda se mostrava robusto. As barbas brancas e crescidas assim como os cabelos, olhar franco e a honradez de seu caráter davam ao compadre Solitário um aspecto venerando. Fiquei conversando com ele enquanto o Preá ia ver suas lavouras. Tinha o Preá muita razão, o compadre Solitário era a história viva dos tempos passados. O seu isolamento não era só o gosto de viver retirado, havia nisto outro motivo. Tratei, portanto de descobri-lo. Às quatro horas da tarde, depois de uma pequena caçada, voltamos para a povoação. Eu tinha sido feliz em meu passeio, conhecia mais do que todos o velho Solitário, tinha penetrado em um drama que ali se tinha dado. (continua) (3)3 Cap. II O galho seco

Voltemos ao mês de dezembro do ano de 1813. No sítio Galho Seco, propriedade do coronel Antonio Coelho, preparava-se uma grande festa. A maneira porque os escravos trabalhavam, uns a varrer grande extensão do terreiro da casa de vivenda, outros em formar arcos com mato e folhas de palmeiras, mostrava que o coronel esperava um grande personagem. No interior da casa o trabalho não era menos apurado. Algumas escravas achavam-se ocupadas em sacudir a mobília, por as cortinas nas janelas, e colocar os jarros de flores. Na cozinha e sala de jantar o serviço estava bastante animado, via-se que se preparava um grande banquete. Era na verdade os preparos de uma grande festa. O senhor Alfredo, filho do coronel, que estudava na Bahia devia chegar à fazenda de seu pai às 7 horas da noite. Já grande número de cavalheiros tinha seguido para o Muricy a fim de esperar o jovem doutor. O coronel não pudera acompanhar a comitiva, incômodos de saúde o privara de montar a cavalo.

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O ORBE, Maceió, sexta-feira, 18 de janeiro de 1884, Ed. 3, p. 2. Biblioteca Nacional, Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx. Data de acesso: 07/11/2012.

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No momento em que entramos na casa grande, achava-se o coronel em seu gabinete contiguo a sala de visita, sentado em uma cadeira de braços, examinando alguns papeis que estavam espalhados sobre uma linda secretaria de jacarandá. O coronel tinha não menos de sessenta anos de idade. Seu aspecto era um pouco carregado. Alto, rosto oval, cor morena, cabelos grisalhos, barba cerrada e longa que lhe chegava à cintura eram os traços característicos do coronel. Olhos grandes, mas ocultos por duas longas sobrancelhas que vivam sempre contraídas como se ali estivesse sempre animada uma tempestade preste a desencadear-se. Apesar de certos boatos que corriam, o coronel era geralmente estimado. Sua casa era o ponto de reunião dos fazendeiros visinhos. Davam-se ali, pelas festas, grandes banquetes; mas depois de alguns anos tudo tinha desaparecido. Já não se via a antiga alegria, a fazenda Galho Seco tornava-se solitária. Alguns faladores da vizinhança atribuíam isto ao mau gênio da mulher do coronel. Portanto, devia causar grande surpresa os preparativos de festas que se faziam na fazenda, e o grande número de convites que se tinha espalhado pelos lavradores e fazendeiros visinhos. A fazenda Galho Seco fora antigamente uma grande fabrica de açúcar, mas o atual proprietário a tinha transformado em sitio de criação e fazenda de algodão que lhe dava um grande rendimento. Tinha havido uma completa transformação na fazenda logo que dela tomara conta o coronel. Quem tivesse visto a fazenda do Galho Seco no estado antigo teria admirado de ver como estava aformoseada. Ao lado esquerda da antiga casa de moenda cujas ruínas ainda se via elevava-se uma espaçosa casa de tacaniça rodeada de janelas guarnecidas de grades de ferro. Era o paiol e bolandeira da fazenda. A grande roda que se via ao lado direito da bolandeira mostrava que esta era movida por meio d’água. Em frente da bolandeira estava situada a casa grande cercada por um magnífico jardim, defendido por uma cerca a semelhança de grade, tendo no centro um grande portão. No cimo de uma pequena elevação via-se a pequena capela da invocação de Nossa Senhora da Soledade. Ao lado da bolandeira corria em linha reta uma rua de pequenas casinhas de palhas; era a senzala dos escravos. Voltemos, porém à casa grande. O coronel parecia estar muito preocupado em examinar os papéis como vimos, quando a porta do gabinete abriu-se e d. Rosa, a mulher do coronel, entrou.

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Contava 52 anos de idade. No rosto alvo e corado via-se ainda traços de uma antiga beleza que a mão do tempo já começava a desfeitear com suas impertinentes rugas. D. Rosa se tinha na conta de fidalga, pretendia ser de uma das mais antigas famílias. Dizia-se bisneta do celebre Diogo Velho, destruidor dos temíveis quilombos dos Palmares. Na sala da casa grande via-se um retrato a óleo representando este celebre personagem. Era de estatura mediana. Pelas maneiras arrebatadas adivinha-se que d. Rosa era de um caráter violento. Nos olhos pequenos e negros via-se que, naquela alma, agasalhavam-se todas as perversidades. O sorriso nunca lhe abandonava os lábios; mas uma pequena contração no canto esquerdo da boca dava-lhe uma expressão tão repugnante que prevenia logo contra ela o observador. - Senhor, disse ela, dirigindo-se ao coronel; é preciso que vosso filho não venha encontrar-vos examinando papelada velha, suponho que não estais fazendo o vosso testamento, porque vejo que gozais boa saúde. D. Rosa dizendo isso se ria desdenhosamente. - De certo, respondeu o coronel; antes não tenho tanto amor à vida; mas meu filho Alfredo, saindo de Maceió hoje pela manhã, só poderá estar aqui às 7 horas da noite; tudo deve estar pronto segundo as minhas ordens; quanto aos negócios internos pertencem-vos. - É verdade, nada falta; muito me custou porque estes malditos escravos não trabalham. A culpa é do senhor, que quer ser muito compassivo; mas comigo o negaceio muda. - Cada um faz o que quer, senhora. Dizei-me: a família do major Porfírio ainda não veio? - Não tarda. Benedicto, disse-me que o encontrou a meia légua daqui, no engenho Barro Branco. Os mais convidados alguns já têm chegado e a família do compadre Alexandre já há muito que chegou. - Bem, logo que tenha guardado estes papeis irei ver os meus convidados. - pela carta que há poucos dias recebestes do Alfredo já está formado? - É verdade. Recebeu o grau de doutor em medicina pela faculdade da Bahia. - Agora deveis aproveitar a ocasião para realizar o casamento dele com uma das filhas do major Porfírio da Queda d’Água. Suponho que isto mesmo já está tratado. - Não dei decisão alguma: o major deseja que se faça este casamento, mas eu aguardei a chegada do rapaz para ver o que se decidia.

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- No meu entender não era preciso a presença de Alfredo para decidir-se esta questão. A moça é uma das mais ricas da vizinhança, portanto convém. A família do major é uma boa família, devia-se ter decidido logo. - Mas eu não julguei que assim podia fazer; se agradar ao rapaz estava feito o negocio, no caso contrario ele também é bastante rico. - É isto o que não aceito, senhor. Alfredo há de casar com a filha do major Porfírio, porque eu quero e não admito o contrário. - Se podeis dispor assim da vontade de vosso filho, fazei o que bem vos aprouver, não quero assumir a responsabilidade de coisa alguma, mas nada de violência, não quero que, como eu, ele seja infeliz. (continua)

(4)4 Cap. II O galho seco

- Será feita a vossa vontade, senhor. D. Rosa saiu lançando um olhar desdenhoso para o coronel. Aquela mulher tinha uma vontade de ferro, não admitia que a sua vontade fosse contrariada. Se assim acontecia, triste de quem provocava a sua cólera sempre mascarada por um sorriso enganador. Sua perversidade era já bem conhecida. Alguns moradores de suas terras que não tinham querido sujeitar-se aos seus caprichos viram-se sem abrigo, porque d. Rosa mandara incendiar suas pobres choupanas, não se importando que as famílias daqueles desgraçados sofressem nas chamas. Acusavam também d. Rosa da morte de alguns escravos. A perversidade com que ela tratava estes filhos da desgraça era espantosa. Não contente em surrar constantemente estes infelizes, os queimava; ou armada de uma vara com um ferrão de carreiro, divertia-se em ferras os pobres negros. Mas naquela casa onde reinava 4

O ORBE, Maceió, domingo, 20 de janeiro de 1884, Ed. 4, p. 2. Biblioteca Nacional, Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx. Data de acesso: 07/11/2012.

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a tirania, havia um anjo de bondade, era Adélia, a filha do coronel. Aquele anjo de bondade muitas vezes arriscava-se às fúrias de d. Rosa só para salvar os pobres escravos do castigo. Na senzala ela era conhecida pelo nome de Anjo da Guarda. No momento em que d. Rosa saia do gabinete do coronel, lançando olhares furiosos, as pobres escravas que encontrava, estava Adélia sentada em um banco de pedra pouco distante da porta que dava entrava para a sala de jantar. Resguardava-se dos ardores do sol uma linda trepadeira que havia formado um bem cortado teto de verdura. Merecia bem o nome que os negros lhe davam em agradecimento de seu coração caritativo. Tinha 15 anos. Era um anjo. Sua tez alva e macia fazia sem duvida inveja a faceira trepadeira que desabrocha aos primeiros orvalhos da noite. Seu rosto encantador foi sem duvida modelado da formosa Venus de Praxiteles. Os olhos mostravam uma expressão tão suave que a semelhança do espelho deixava ver toda candura daquela alma inocente, talhe esbelto e sedutor parecia o junquilho que meigamente beija as águas do rio. Um fino travesseiro de cetim em que se via um lindo bordado em um alvo esguião de linho estava pousado ao colo de Adélia. Seus lindos e rosados dedinhos moviam a agulha de uma maneira maravilhosa. D. Adélia não estava só, ao seu lado, examinando o finíssimo bordado, estava uma outra linda menina que não contava mais de 16 anos. Era Julia, a afilhada do coronel, a filha do compadre Alexandre. Sua tez era morena. Seu rosto oval e de uma beleza sedutora, fazia lembrar as graciosas camponesas Andaluzas celebradas pelo pincel criador de Maurílio. Seus cabelos crespos, de cor de ébano, ondulavam inquietos beijando um seio perfumoso onde se vão dois cobiçados paninhos. Nos olhos negros, coroados por densas pestanas, untavam-se uns lampejos de impaciência que pouco a pouco se transformavam um uma tão doce melancolia que via-se logo que o buliçoso deus Cupido havia feito com suas ervadas setas aquele coração puro. Seu talhe era estreito e inclinada como estava, parecia a tenra haste da dália, vergada pelo sopro da brisa. - É hoje um dia de festa em nossa casa, Julia, disse Adélia; o mano deve chegar às 7 horas, já são 6, portanto pouco tempo temos de esperar. Olha Julia, estou ansiosa por ver o mano Alfredo; deve estar muito bonito. - É verdade, a festa está boa; meu padrinho tem convidado muita gente, respondeu Julia corando. Olha não vês um grande numero de cavaleiros que descendo alto da sicupira? São convidados que chegam? - Sim, suponho ser a família do major Porfírio da Queda d’Água. Hás de ver a noiva reservada para o mano Alfredo; mamãe assim quer, mas suponho ou estou bem certa que 12

não será a filha do major Porfírio e sim... Olha, o que tens? Estás tão pálida!... Sentes alguma coisa? Julia ao ouvir aquela notícia, aliás, já espalhada pela vizinhança sentira que lhe arrancavam o coração e empalideceu. - Não é nada, Adélia, respondeu; às vezes sinto destes incômodos passageiros, mas não merecem importância. - Estimo muito, Julia, que nada seja. Vamos ao ponto em que estávamos antes de ver a família do major Porfírio que deseja o outro. Era?... - Não me lembro, Adélia, disse Julia, corando de novo. - És bem esquecida! Lembro-me eu. Estava te perguntando se o mano Alfredo é ou não moço bonito. - Não sei, Adélia, parece-me que sim. - Não quero assim, Julia, é ou não bonito o mano Alfredo? - É, respondeu Julia, sacudida por um tremor nervoso e corando ligeiramente. - Muito bem, mas aqui há um segredo, estás mudando de cor a cada instante! Ah! Já sei, é uma recordação da meninice, é o amor. - Não, Adélia. - Para que negas, Julia, bem sei que amas ao mano Alfredo. - Silencio Adélia, este amor deve morrer comigo. Alfredo é um moço rico e formado; talvez já não se lembre da pobre moça da roça. - É engano teu, Julia, vou te provar o contrário; olha, lê esta carta. Adélia tirou do seio uma pequena carta e apresentou-a a Julia. Esta abriu-a tremendo e a medida que lia a carta corava e empalidecia. Afinal levando-a ao coração deixou rolas pelas fazes duas lágrimas. Não eram lágrimas de dor, mas o coração que sorria repleto de alegria. Nos lábios assomava-lhe um sorrido de felicidade. - Bem vês, continuou Adélia, que não tinha razão para estar triste, o mano Alfredo ainda tem ama. Não esqueceu o amor infantil e nem podia esquecer, o primeiro amor é um amor que não morre. - É uma felicidade ligeira, respondeu Julia, dando um suspiro; entre mim e Alfredo há uma barreira enorme. Ele é rico e eu sou pobre. - Não penses nisto, Julia, não é este motivo de desesperar, bem sabes que ele te ama. - É verdade, mas bem sabes que o casamento de Alfredo com a filha do major Porfírio é uma coisa decidida e tua mãe não consentiria nunca que a pobre filha de um lavrador casasse com o doutor Alfredo. 13

Adélia largou a agulha e inclinou por alguns momentos a fronte ao peito. Depois erguendo os olhos para Julia disse: - Não creias, o mano Alfredo não casará nunca com Amélia, a filha do major Porfírio; sei que ele te mano, isto posso te garantir. - És cruel, Adélia, tua mãe não consentirá neste casamento. Se Alfredo não ama Amélia virá por certo amá-la; deve-se confessar que ela é bem bonita. - Descanse, se te certifico que Alfredo nunca casará com Amélia é porque ele a poucos meses me disse isto em uma carta que logo te mostrarei. - Mas... - Silencio, Julia, aí vem minha mãe. D. Rosa aproximou-se do banco onde estavam as duas meninas, dizendo-lhes: - Conversavam com muito calor! Poderei saber de que tratavam? - Nada, minha mãe, disse Adélia, eu discutia com a amiga Julia se devia mudar a posição das palmas deste ramo. - Ah, respondeu d. Rosa secamente; eu julgava que o assunto era diferente, pareciame que Julia levava a mão ao coração como se sentisse alguma dor. - Não, minha madrinha, disse Julia, tratávamos apenas de bordados. - Não quero duvidar, meninas, mas é preciso deixar os bordados porque Alfredo já entrou na porteira da fazenda. Com esta notícia as duas meninas apressaram-se a correr ao pátio da casa para receber Alfredo. Julia sentia um choque imenso que não escapou aos olhares de d. Rosa que com um sorriso nos lábios murmurou – não será como tu pensas. Na porta da casa já estavam todos os convidados a espera do doutor Alfredo que, acompanhado de uns vintes cavaleiros, acabava de chegar. O banquete foi esplendido, dançou-se até que Alfredo, acabrunhado das fadigas do dia recolheu-se ao seu quarto, mas não podia dormir. (continua) (5)5 Cap. II O galho seco

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O ORBE, Maceió, sexta-feira, 25 de janeiro de 1884, Ed. 6, p. 2. Biblioteca Nacional, Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx. Data de acesso: 07/11/2012.

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O espírito desprezando as fadigas do corpo divagava no campo das recordações. Alfredo recordava-se da quadra infantil, quadra que uma vez passada não tornamos encontrar. Alfredo quando criança era de uma natureza diabólica, não era malvadez porque sua lama era tão bela quanto era seu rosto, mas sim eram traquinagens. Era conhecido pelos negros com o nome de – diabinho bom. – Mas nada perdia Alfredo. Era geralmente estimado. Os negros da fazendo em quem sempre recaiam as estripulias de Alfredo ficavam tristes quando por algum motivo d. Rosa o prendia em casa. Reunia os moleques no terreiro da bolandeira, dividindo-os em batalhões e tratavam um profiado combate. Muitas vezes saia Alfredo ferido. D. Rosa queria então castigar severamente os escravos, mas Alfredo opunha-se tenazmente a isso. D. Rosa que muito estimava ao filho cedia aos seus desejos. Recordava-se Alfredo de suas travessuras de meninice e tinha saudades desta quadra querida. Os pensamentos passavam ligeiros até que a imagem de Julia se apresenta sedutora. Alfredo conhecia bem o caráter de sua mãe e temia-se de alguma desgraça. Amava a Julia, mas via erguer-se no horizonte deste amor uma nuvem negra. O casamento com a filha do major Porfírio era uma coisa impossível. A educação tinha mudado o caráter de Alfredo. Não era mais aquela criança travessa, era um homem, conhecia dos deveres da sociedade. A obediência para com os autores de seus dias era para ele um dever sagrado, mas não julgava que pessoa alguma tivesse o direito de tiranizá-lo. Amava a sua liberdade, dera seu coração a Julia, julgava ser ela a sua única felicidade e não admitia que o contrariassem. Pensava no modo porque devia combater as pretensões absurdas de sua mãe. Era uma luta renhida; Alfredo bem conhecia. E quem seria o vencedor? Tudo isso acudia a imaginação do jovem doutor. Durante a pequena soirée com que festejavam sua chegada tivera ele ocasião de estar junto de Julia. O amor que tinha guardado no coração se irradiara com mais força ante o objeto amado. Julia estava encantadora. Nas diversas quadrasinhas que haviam dançado Alfredo sentira o ruído ofegante de seu coração, o tremor de seu torneado braço e o ligeiro vermelho que lhe coloria as faces. Julia o amava. Alfredo não precisava de uma confissão; adivinhava-o. Mas, havia um grande obstáculo; era o preconceito de sua mãe. Alfredo notara a maneira com que sua mãe observava-os, e conhecendo seu caráter bem sabia que nada tinha de animador aquele frio sorriso que lhe frisava os lábios. Levou muito tempo entregue a seus pensamentos e combinando os meios porque devia vencer esses preconceitos que muitas vezes trazem a desgraça de uma família, até que o sono lhe serrou as pálpebras. 15

Cap. III A caçada

Enquanto Alfredo entregue a suas imaginações adormecia, cenas diversas se passavam na casa grande. A sala onde há pouco se ouviam os melodiosos sons do piano, o ruído dos vestidos das belas deidades, o cadencioso bater do pesinho mimoso marcando os compassos das danças, os amorosos sorrisos, os elogios lisonjeiros dos cavaleiros, se não reinava inteiro silencio, já não se ouviam os murmúrios de há pouco. Algumas jovens, entre elas Adélia e Julia cercavam o coronel e o compadre Alexandre que se achavam empenhados em um verdadeiro combate de gamão. Ambos pareciam por em pratica toda prudência e sagacidade, mas quando acontecia qualquer deles cometer um erro era logo acompanhada com uma pequena vaia de sorrisos e palmas. Aquele pequeno tumulto bem depressa cessava. Elas acompanhavam com grande interesse as peripécias do jogo. Não jogavam dinheiro; era um duelo provocado pelo compadre Alexandre. Propôs-lhe o coronel a escolha de um divertimento para o dia seguinte, pois havia marcado aqueles oito dias para ser de festa na fazenda. O dia da missa do galo devia ser dali a três dias, queria o coronel que as festas emendassem. Recusou-se o compadre Alexandre em apresentar o programa de divertimento do dia seguinte e depois de profiada discussão apelaram para o gamão, combinando-se, porém, que o divertimento seria todo novo e de modo que as senhoras pudessem tomar parte. Feitas essas declarações travaram o combate. O compadre Alexandre era um fino jogador de gamão, mas tão distraído ou de uma natureza tão irritada que apesar da grande pericia já havia cometido mil destinos. As moças riam-se das maneiras cômicas com que ele acompanhava seus desacertos. - Olhe, compadre, disse o coronel, era melhor que tivesse aceitado a minha proposta porque estas certo que perdera a partida. - Não importa, respondeu o compadre Alexandre; hei de batalhar até a última hora e se for vencido, então veremos. - A partida está perdida, senhor Alexandre, disse Adélia; renda-se porque estou certa que o papai lhe concederá todas as honras. - Não aceito a proposta, repetiu o compadre Alexandre, batendo com toda a força no tabuleiro com uma pedra; não aceito, porque hei de derrotar o compadre... - Perdeu, perdeu! Gritavam todos. 16

E uma chuva de palmas e risos acolheram os gestos desesperados do compadre Alexandre. Vamos ao programa da festa de amanhã. Todos se reuniram em roda do compadre Alexandre que torcia o cavanhaque em sinal de irritação. - Muito bem, disse ele; perdi a partida, bem podia ter ganho, mas com os diabos, o compadre é um jogador de força, portanto vou propor os divertimentos para amanhã. Escolho a caçada. - Uma caçada, gritou o coronel; o compadre sem dúvida perdeu a razão, ou não se lembra que as moças tem de assistir o divertimento. Quererá o compadre expor as nossas belas convidadas aos rigores de nossas matas? - Não há perigo em nossas jovens assistirem a caçada, até é uma coisa bem possível. O compadre conhece bem estes lugares, sabe que no fim do Carreiro do Viado está o Poço Verde, é ali que se efetuar a caçada. - E como? - Eu lhe explico, compadre. Vou com o meu filho José Pedro e mais alguém que nos quiser acompanhar levantar a caça, os outros cavalheiros acompanhados das senhoras tomarão lugar no montesinho que fica junto, dali gozarão do espetáculo da caça, como se estivessem na galeria de um teatro. Os batedores deverão proceder de maneira que a caça perseguida se vá lançar no poço. - Mas, compadre, repetiu o coronel, qual é a caça, já descobriu alguma batida? - Sim; há uma batida de queixadas, se forem descobertos os queitatús pelos cães, o que é muito provável, então o negócio será magnífico, porque a batida dos animais é justamente pela margem esquerda, ao pé do montesinho que falei; mas se assim não acontecer encontraremos sem duvidas as pacas que estão estragando as mandiocas do sitio das pedras. - Papai, disse Adélia, aceitamos a proposta do senhor Alexandre, tenho muito desejo de assistir a uma caçada, deve ser divertida. Ficou tratado que se precederia a caçada na manhã seguinte, depois do almoço, conforme o programa apresentado pelo compadre Alexandre, que ficou logo nomeado diretor do divertimento e encarregado dos preparos precisos. Deixemos os adeptos da caçada tratarem largamente do assunto, seguimos a alguns personagens principais de nossa narrativa. A lua prateia com seus pálidos raios toda a natureza, as estrelas cintilam como brilhantes engastados no firmamento azul, e a fresca brisa roubando o aroma das flores 17

espalha um delicioso perfume na atmosfera. D. Rosa aproveitando sem duvida o entretenimento dos convidados, travara do braço de d. Amélia e a conduzira para o jardim da casa grande. Aproveitando do direito concedido aos historiadores coloquemo-nos por traz do banco de pedra, protegido pelas latadas do caramanchão e escutemos atentos a conversação destas duas personagens. (continua) (6)6 Cap. III A caçada

- Então, dizia d. Rosa, a menina quer desistir do casamento com meu filho Alfredo apesar de já ter me confessado que muito o ama? - É verdade, d. Rosa, respondeu d. Amélia suspirando; muito amo ao senhor Alfredo; estou certa que seria muita feliz se fosse sua mulher, mas... - Mas, o que, menina? - Ele não me ama. D. Rosa desatou uma risada sarcástica. - Amor, amor! Repetiu ela; estas meninas são todas assim meio doidas, se não são de todo. - Mas d. Rosa, eu hei de casar com um homem que não me tem o mínimo afeto? - Engana-se, menina, Alfredo se não lhe ama, há de amá-la, logo que estejam casados, assim há de acontecer. - Não é possível, Alfredo nunca me amará; o seu coração já não lhe pertence e ama a d. Julia. - A d. Julia! Não vê a menina que eu nunca consentirei que meu filho, um doutor rico, case-se com a filha de um pobre lavrador? Não, juro-lhe que isto não acontecerá. Costumo derrubar as barreiras que encontro no meu caminho. - Mas d. Rosa, lembre-se que ela é sua afilhada, bonita e que o doutor Alfredo a ama. - Não penso em tal, menina, não consentirei que este casamento se efetue e se teimarem tanto... - Dará o seu consentimento, não é, d. Rosa? E breve estará tudo em harmonia. - Ah! Pensa nisto, então engana-se, não é este o meu pensamento. 6

O ORBE, Maceió, domingo, 27 de janeiro de 1884, Ed. 7, p. 2. Biblioteca Nacional, Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx. Data de acesso: 07/11/2012.

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- E o que quer fazer, d. Rosa? - Fazer desaparecer esta miserável do meu caminho. - Fazer desaparecer! Como? - Veja que a menina é muito simples, quando alguma coisa nos incomoda arredamos de nossa vista este objeto incomodativo, mas se o que nos incomoda nos persegue é uma criatura então mandamos para um lugar de onde ainda não houve quem voltasse. - Não compreendo o que d. Rosa quer dizer, não sei qual seja o lugar, de onde não se possa voltar, só se é... - O céu ou o inferno, porque quem morre não volta. D. Amélia tomada de admiração e pavor tremia. Amava Alfredo, dava a vida para ser sua espaçosa, mas naquele coração cheio de candura não se podia agasalhar tão infames projetos. Apesar do egoísmo peculiar do belo sexo, ela reconhecia que Julia era uma linda menina. No seu ver seria feliz o homem que a tivesse por esposa. Não podia compreender como d. Rosa, a madrinha de Julia, tivesse tão negro projeto contra ela. Todos estes pensamentos passavam de momento na imaginação de d. Amélia. Curvou um instante a fronte e depois encarando d. Rosa com esta energia própria das filhas das selvas disse: - Não consinto que se sacrifique tão linda menina. Amo o seu filho, d. Rosa, mas não é assim que quero ver coroado o meu amor. Não aceitaria nunca a mão de homem que eu veja suja do sangue de uma inocente criatura, porque em d. Julia amar a Alfredo não é por isso culpada. Abafarei em meu coração este infeliz amor. Não trate mais d. Rosa deste casamento porque eu não o aceitarei, seria uma amiga dedicada e nada mais. D. Amélia cortejou friamente a sua interlocutora, deu um passo para retirar-se, d. Rosa porém a deteve. - Não julgue, menina, que o que eu acabei de dizer era verdade, disse: quis apenas conhecer da pureza de seu coração, vejo que tem tão bela alma como é belo seu rosto. Perdoe-me o susto que lhe causei. E levantando-se do banco de pedra abraçou, rindo-se a d. Amélia. - A menina deve estar cansada, continuou: recolha-se, eu fico ainda por algum tempo contemplando a natureza; não pense mais em nossa conversa, foi uma brincadeira. Adeus. D. Rosa acompanhou d. Amélia até a porta e logo que ela entrou voltou para o lugar em que estivera. - Tola! Disse, falando em meia voz: não há o que ver estas meninas de agora, são umas tontas; se não fosse ser o major Porfírio o mais rico fazendeiro destes lugares, por certo eu não consentiria no casamento de meu filho com a tal Amélia. Só por falar em morte 19

tremia como se tivesse visto o diabo. Felizmente julgo que ela se convenceu que era brincadeira minha, senão talvez botasse tudo a gaita essa mulher... Não importa se a minha afilhada entendeu que se devia meter na família, enganou-se porque não consentirei. Quero ter a mão as pessoas que preciso; se o negocio continuar assim, se a tal minha afilhada não tomar juízo, então é preciso mandá-la para o outro mundo. O pior será para ela, tenho dinheiro, nada me acontecerá. Mas a quem hei de empregar nesta empresa? Nos negros da fazenda não vejo um só com quem eu possa contar, são uns miseráveis, deitarão tudo a perder, só se... Já sei, tenho o que preciso, mandarei chamar os dois irmãos Francisco Giboia e João Pau-Santo, são bons rapazes, já tem me prestado alguns serviços, não duvidarão em pregar a faca na rapariga e atirá-la no Mandaú, dar-lhes-ei algum dinheiro e estará acabado o negocio. Mas diabo como hei de falar com os tais rapazes, moram na Imperatriz e não tenho uma pessoa de confiança para os chamar. São conhecidos como assassinos e isto poderá causar desconfianças. Ora adeus, mando dizer aos rapazes que tenho uma empreitada para eles, logo que cheguem tratarei do negocio e para enganar mando-os preparar terreno para plantação, tendo este trabalho ficarão ocultos por alguns dias na Caverna do diabo, para não causar desconfiança, e logo que façam desaparecer a rapariga, raspam-se a noite para não serem vistos e estará o negócio arranjado. E esta! Entregue a meus cálculos falava, e se estivesse alguém no jardim estava tudo perdido. Felizmente a estas horas todos estão recolhidos e eu vou fazer o mesmo, preciso de descanso para melhor combinar os meus cálculos. Dizendo isto d. Rosa dirigiu-se para casa, fechando em seguida a porta. Apenas havia desaparecido um vulto negro saiu de traz das ramagens do caramanchão em que ela estivera a pouco. Saindo do circulo descrito pela sombra das ramagens deixou que a lua batesse-lhe em cheio no rosto. Era Leopoldo, um escravo do coronel. Contava 45 anos de idade, mas a robustez de seus músculos e a ausência de cabelos brancos fazia diminuir-lhe a idade. A tez preta, o rosto um pouco disforme e o achatamento muito pronunciado do nariz fazia ver nele a raça africana. Na verdade Leopoldo era africano. Chegara menino na fazenda do coronel e graças a sua energia e bom comportamento granjeara a amizade de seu senhor. Gosava Leopoldo de algumas regalias era uma espécie de feitor na fazenda. Estimava muito o coronel, amava como se fossem seus filhos Alfredo e Adélia, mas tinha aversão de morte a d. Rosa. O muito desumano com que d. Rosa tratava aos seus companheiros de escravidão agravava cada vez mais o ódio que ele lhe votava. O preto Leopoldo não era como a maior parte dos africanos, estúpido, ao 20

contrario era dotado de grande inteligência. Por uma grande força de vontade muito comum das pessoas inteligentes, aprendera a ler e a escrever com os seus senhores moços Adélia e Alfredo. Por esta superioridade e por seu bom coração era ele estimado e respeitado por seus companheiros. Leopoldo ouvira tudo quanto d. Rosa, julgando estar só, havia dito. Não tinha o preto por costume andar no jardim da casa grande à noite; logo ao anoitecer retirava-se com seus companheiros para a senzala, depois de dar conta a seu senhor dos trabalhos do dia. Mas neste dia, feriado na fazenda, contudo se Leopoldo não tivesse alguma razão de certo não estaria aquelas horas no jardim. A chegada do seu senhor moço Alfredo foi a causa disto. Leopoldo tinha visto chegar o seu querido senhor moço, mas não lhe tinha podido falar. Cercado dos amigos de sua família Alfredo apenas saudara com a mão a Leopoldo que se achava no terreiro. Não ficando contente porque queria abraçar o seu bom senhor moço, Leopoldo tinha passado para o jardim enquanto dançavam, julgando que ali teria ocasião de falar com Alfredo. (continua) (7)7 Cap. III A caçada

Esperara muito tempo. Na casa grande toda iluminada ouviam-se as harmoniosas notas da musica. Dançava-se. Leopoldo sentou-se no banco do caramanchão e esperou. Pouco depois cessaram as quadrilhas, apenas um murmúrio de vozes e risos interrompia o silencio da noite. Leopoldo já havia algum tempo que olhava para a porta que dava saída para o jardim, esperando ver sair a cada instante o seu bom senhor moço Alfredo, quando a porta abriu-se e deu passagem a duas pessoas que se dirigiam para o caramanchão, onde ele estava. Não era Alfredo, era duas mulheres. A lua dando em cheio sobre elas fez com que Leopoldo conhecesse numa delas a terrível d. Rosa; e para não ser surpreendido aquelas horas no jardim ocultou-se por traz das latadas do caramanchão e ouviu todos projetos de sua senhora velha. No seu ver d. Amélia era digna de seu senhor moço Alfredo. Dotado de inteligência avaliou em um momento o bom coração de Amélia. Aquela menina 7

O ORBE, Maceió, domingo, 10 de fevereiro de 1884, Ed. 13, p. 2. Biblioteca Nacional, Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx. Data de acesso: 07/11/2012.

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recusando os infames projetos de D. Rosa tinha sem saber granjeado a simpatia de Leopoldo. Seguro de que não era visto o preto encaminhou-se para a cerca, saltou-a e dirigiu-se para a senzala. Como obstar que D. Rosa pusesse em pratica os seus negros projetos? Era esta a pergunta que Leopoldo fazia a si próprio. Dirigir-se a seu senhor velho, contar-lhe o que havia ouvida, era uma imprudência. Não só duvidaria por falta de provas, como chamaria a si o ódio de todos, até mesmo de seus senhores moços que de certo não lhe perdoariam. Leopoldo era experiente, conheceu que sempre sairia de pior, por tanto julgou conveniente calar-se. Travaria um combate esganiçado com D. Rosa contanto que Julia fosse salva do perigo que estava ameaçada e Alfredo não tivesse o mínimo desgosto. Era um combate de morte, ele bem o sabia, mas julgava-se seguro. D. Rosa não sabia que ele lhe havia surpreendido os planos. Julgava-se um inimigo poderoso porque era um inimigo desconhecido, combatia na sombra, portanto seus golpes seriam seguros. Para captar a confiança de D. Rosa, Leopoldo tinha seus planos. Precisava ser ele o enviado para chamar os cúmplices de Rosa, isto era o seu principal plano de batalha. Sabia que era estimado na casa grande, seria, pois fácil de enganar a D. Rosa. Por este lado estava Leopoldo descansado. Em vez de entrar em sua casa que ficava no princípio da senzala, dirigiu-se Leopoldo para outra extremidade e entrou em uma casa, de onde se saião os desconcertados sons da musica dos africanos; ali dançava-se. Aproveitando os negros a licença concedida por seu senhor velho batucavam, festejando a chegada do senhor moço. Leopoldo, chegando à porta, demorou-se, parecia meditar um pouco. Convém notar que o preto, apesar de ser considerado como chefe naquela espécie de pagode, poucas vezes ali ia. Mas naquela noite, apesar de não ter em vista ir à casa de Santa Bárbara, como chamavam os negros, fora obrigado a isto. Leopoldo sabia que por si só não poderia aparar os golpes que deviam cair sobre a cabeça de Julia; era preciso ter uma policia ativa que o ajudasse, era o que ia procurar. Sabia o ódio que os companheiros de escravidão tinham de d. Rosa e o amor que os mesmos votavam a Alfredo; era, portanto em seus companheiros que podia encontrar o que precisava. Esperou ainda um pouco, até que o batuque cessou. A entrada de Leopoldo causou viva sensação, uma chuva de palmas e gritos onde predominara o dialeto africano foi a saudação de sua chegada. Leopoldo rindo-se fazia festa com todos, depois tomando um aspecto grave disse: - É preciso nos reunir em conselho, tenho coisa de muito interesse que tratar, as mulheres fiquem na sala enquanto os homens se reúnem na furna do Casumbi. - É já, Leopoldo? Pergunta o velho tocador de adufo. 22

- Sim, sem demora, bem sabem que só negócio me faria vir interrompê-los. Momentos depois estava reunido o conselho. O que os negros apelidavam de furna do Casumbi era a sala onde se reunia o conselho dos africanos sempre que era preciso tratar de um assunto grave. Penetremos, pois na furna para assistir ao conselho dos negros. A sala espaçosa, podia facilmente comportar trinta pessoas. A mobília consistia em um tamborete forrado de pele de raposa sobre um estrado em frente da porta da sala e três grandes bancos de pau encostados às paredes. No inicio da sala sobre uma estreita e comprida mesa coberta por uma alva toalha viam-se diversos objetos, como fossem pedras, rosários de conchas, mariscos e contas dentro de pequenos pratos, colocados de forma que despertavam logo a atenção. Era a mesa dos feitiços. Leopoldo sentara no tamborete, lugar reservado para o chefe e depois de certificar-se que estavam todos, mandou que um só colocasse na porta meio aberta para evitar algum curioso. - Trata-se de uma coisa grave, disse ele; estou empenhado em um combate em que é preciso viver ou morrer. Não quero por muito tempo ocultar do nosso inimigo, porque não é só por mim que luto, é pela felicidade de todos, é para o bem da fazendo. O nosso inimigo é D. Rosa. - D. Rosa! Bradarão todos. - Sim, meus irmãos, é contra esta mulher maldita que quero vosso auxilio. Bem sabem que chegou o nosso bom senhor moço Alfredo, saiu menino e chegou homem. É escusado dizer quanto devemos a este menino que foi criado nos nossos braços; pois bem, querem casar a força o nosso senhor moço matando a noiva que ele escolheu. Leopoldo fez ver aos seus companheiros a conversa que ouvira no jardim da casa grande, nada ocultando dos projetos de D. Rosa. Os companheiros tremiam de horror. - É preciso, continuou Leopoldo, tratarmos de aparar os golpes que tem de ferir a boa menina Julia. D. Rosa é capaz de tudo, se tenta em fazer desaparecer a menina Julia, não a deixará enquanto não realizar seus infames projetos; nós bem a conhecemos. - Sim, Leopoldo, disse o velho tocador de adufo; esta mulher é o diabo que está cá na fazendo, enquanto ela viver as nossas vidas e de nossos filhos não estarão seguras. Sou do teu parecer, formamos um só corpo para melhor bater esta mulher. - Sim, sim, bradaram todos; manda, Leopoldo, nós obedeceremos. - Silencio. Quero um juramento de fidelidade, é preciso muita cautela para sairmos bem da empresa. 23

Todos se levantaram e colocando a mão sobre a mesa prestaram o juramento de fidelidade, obediência e segredo. Pouco depois continuava o samba interrompido. Leopoldo não se demorou, precisava de descanso para melhor concertar seu plano de ataque. Caminhando para a casa pairava-lhe nos lábios um sorriso de satisfação. Contava com a vitoria, julgava-se forte, tinha o que precisava. Soavam 7 horas do relógio da casa grande quando Alfredo despertou. Ao levantar-se lhe foi comunicado do programa daquele dia. Alfredo estimou a lembrança do senhor Alexandre, passar algumas horas em companhia de Julia, longe dos olhares indagadores de sua mãe era uma felicidade para ele, foi, portanto com satisfação que soube da projetada caçada, para depois do almoço. O compadre Alexandre não se descuidara; logo pela manhã tratou dos preparativos da caçada. Mandou seu filho José Pedro à casa ver os cães e mais pretextos para a caçada. Foi conduzido por alguns escravos do coronel para o sitio onde a companhia devia assistir a morte dos animais que por ventura fossem descobertos pelos caçadores, sestas contendo frutas, vinhos e outros viveres para um lauto lunch, que ali devia ter lugar; porque a caçada só devia terminar às 4 horas da tarde. De nada esquecera-se o compadre Alexandre, queria por ser o encarregado que aquela festa contra os filhos das selvas fosse brilhante. Às 9 horas, depois do almoço, estava a companhia em caminho. Quatro carros puxados a bois conduziam as moças e os homens montados em possantes cavalos fechavam a comitiva. (continua)

(8)8 Cap. III A caçada

Uma hora depois estavam todos no lugar designado. O lugar era de uma perspectiva magnífica. À direita elevava-se soberba a grande serra do barriga; ao sul ficava o montículo 8

O ORBE, Maceió, quarta-feira, 13 de fevereiro de 1884, Ed. 14, p. 2. Biblioteca Nacional, Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx. Data de acesso: 07/11/2012.

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escolhido pelo compadre Alexandre para os espectadores da caçada, entre a serra e o montículo ficava o poço verde, era ali que os filhos das selvas, acocados pelos cães e batedores deviam se precipitar, ao noroeste do lago, principiando de suas margens ostentava-se uma floresta virgem, na margem esquerda do lago bem ao pé do montículo passava o carreiro do viado que se perdia na floresta. Ao longe se divisava um magnífico horizonte cortado de uma cadeia de montanha que se perdia além. Enquanto a comitiva tomava a vontade lugares debaixo das frondosas arvores que povoavam o montículo, dirigia-se o compadre Alexandre acompanhado de seu filho José Pedro, o preto Leopoldo e outros para as matas levantar a caça. O coronel e Alfredo não quiseram tomar parte nas fadigas da caçada, não por não serem amadores do divertimento e sim porque não lhe consentia sua avançada idade e incômodos de saúde, e outro preferia estar junto de sua adorada Julia. Já havia decorrido uma hora depois da partida do compadre Alexandre, quando chegou aos ouvidos da comitiva o longínquo ladrar dos cães; estava levantada a caça. O coronel, como caçador velho, sabia muito bem que só dali a três ou quatro horas, depois do animal estar bem cansado é que procuraria o lago para escapar à sanha dos cães, se por acaso não ficasse encovado. Alfredo todo entregue ao amor, não se importava que a caçada durasse todo o dia, para ele era uma felicidade a demora do desfecho da caçada. Acompanhado de sua irmã e Julia deixara o resto da comitiva a sombra do arvoredo e se dirigira para o cume do montículo, não só para contemplar as belezas da natureza, como para dar expansão aos seus sentimentos. - Mano, dizia Adélia, no dia de sua chegada eu e Julia tratávamos a seu respeito, eu aliançava uma coisa, enquanto Julia negava o que eu afirmava. Agora que estamos sós, vamos tratar do assunto, que foi interrompido pela chegada de nossa mãe; mas quero que o mano adivinhe primeiro. - Já adivinhei, tratava-se de minha pessoa, respondeu Alfredo, rindo-se; minha irmã acabou de dizer-me. Não foi assim? - Não brinque, senhor doutor, não é isto o que lhe pergunto. Quero saber qual era o assunto em que entrava o nome de vossa senhoria, é isto o que lhe peço que adivinhe. - Não sei, mana, mas sempre quero pensar que se tratava de amores. Duas meninas belas como a mana e D. Julia, suponho que não poderiam tratar de outra coisa. Quando belezas superiores às rosas que matizam os jardins americanos... - Basta de comparações, meu caro doutor, interrompeu Adélia; era de amores que se tratava, Julia duvidava de seu coração, eu afirmava que ela não tinha razão. 25

- De certo a mana fez bem. Quando se ama, quando este amor é o primeiro que nos feriu, santo e puro, como são os amores juvenis, nunca são lançados ao negro abismo do esquecimento. Amo a D. Julia e juro que este será o meu único amor. Julia ouvia a declaração de Alfredo com o peito ofegante. Era a primeira declaração do amor. Quando ambos crianças corriam pelos campos da fazenda, praticando mil diabruras, este amor não era mais do que afeição. Os anos passavam-se e todas as vezes que Alfredo vinha passar as férias na fazenda parecia que esta afeição se desenvolvia, que uma força estranha os dominava. Este sentimento estranho que pouco a pouco se apoderou dos corações dos dois jovens era o amor. Julia corava de receio e prazer. Não tinha força para fugir do amor de Alfredo, porque seu coração, profundamente ferido, já não se podia dominar. Julgava-se feliz em amar e ser amada, mas já divisava uma série de desgraças que lhe ameaçava o futuro. - Estás ouvindo Julia? Disse Adélia; desta vez deves te confessar vencida, não somente te afirma, é ele próprio quem confessa te amar. - Mas, murmurou Julia, baixando a fronte e corando; este amor é impossível, como Alfredo sinto também que meu coração não é o mesmo, existe nele um sentimento estranho; este sentimento é... - O amor, respondeu Adélia. - Não o nego, disse Julia. - Disseste que era impossível este amor? - Sim, Adélia. - Por quê? - Bem sabes que sou pobre e que minha madrinha se opõe a este casamento. - Não importa, Julia, disse Alfredo; desprezo a riqueza, tenho bastante e nada mais desejo do que a esposa que meu coração já escolheu. - A escolhida já sei, é d. Amélia, disse Julia. - Engana-se, não é D. Amélia, é sim, D. Julia, atalhou Alfredo. - Mas sua mãe?... - Sei, Julia, que minha mãe pretende este casamento, mas é impossível. Julgo que não me obrigarão a fazer o que não quero, e... - Basta, interrompeu Adélia, deixemos ao futuro os acontecimentos, sejam prudentes, espero que tudo sairá como desejamos. Voltemos para onde estão os nossos companheiros, convém que não seja notada nossa ausência.

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Depois de darem uma pequena volta chegaram ao lugar onde se achavam os companheiros. Julia e Adélia tomaram lugar debaixo de uma frondosa ingazeira um pouco afastadas do resto dos companheiros perto de um bosquesinho que se estendia para o poente. A conversação tornou-se animada entre os grupos. O coronel discutia calorosamente com o major Porfírio sobre a caçada que ali devia-se efetuar. Era o coronel de opinião que a caça acocada pelos cães veria de certo lançar-se ao lago para alcançar as matas vizinhas e fazer desaparecer o faro aos cachorros. O major pelo contrario opinava que a caça perseguida não viria lançar-se no lago, e sim atravessariam a serra para o lado oposto. Os outros convidados conversavam sobre assuntos diversos. Somente Alfredo e Amélia estavam pensativos. Não quisera Amélia tomar parte na animação que reinava debaixo daquele ambiente de verdura; um pouco retirada cismava. Apesar de ter dito a D. Rosa que renunciava a mão de Alfredo, o amava. Viu o passeio que Alfredo dera em companhia de Adélia e Julia, e uma espécie de tristeza se tinha apoderado dela. (continua) (9)9 Cap. III A caçada

Amava a Alfredo, daria a vida para ser sua esposa. Alfredo, deixando sua irmã e Julia onde já vimos, lembrava-se do desejo que tinha de ver o lugar onde os negros do celebre quilombo dos Palmares, perseguidos pelas tropas, se haviam despenhado. Quando menino havia visitado muitas vezes estes lugares, mas como tinha pouca idade não prestava atenção ao lugar da catástrofe nem as informações que lhe dava o preto Leopoldo quando o acompanhava. Alfredo entrou em uma estreita vereda atravessando um pequeno regato que murmurava em um leito de pedras, deu alguns passos e parou; estava defronte do acantilado da serra, onde o Zumbi e os seus se haviam despenhado. O lugar tinha alguma coisa de medonha. A serra cortada em declive rápido formava uma profunda grota. Rochas denegridas pelo tempo mostravam suas saliências pontiagudas, a semelhança de crateras de vulcão extinto, Alfredo lia naquelas rochas negras os fatos passados.

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O ORBE, Maceió, sexta-feira, 22 de fevereiro de 1884, Ed. 18, p. 2. Biblioteca Nacional, Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx. Data de acesso: 07/11/2012.

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O solo brasileiro tão cobiçado em seu descobrimento pelos espanhóis, franceses e ingleses devia parte dele cair nos domínios dos industriosos holandeses. Prosperaria o Brasil se permanecesse no domínio holandês? Muitas opiniões existem sobre esta questão. A estada dos holandeses no tempo do grande Nassau marca com prédios de prosperidade nos lugares onde flutuava o pavilhão dos estados gerais. Calabar, o mulato de Porto Calvo, morto e esquartejado pela sanha de Mathias de Albuquerque pensava que o domínio holandês seria uma época de prosperidade para o solo brasileiro. Muitos acusam este infeliz de traidor, mas de certo ele não foi traidor. O homem que pensa no engrandecimento da pátria, que cobre seu nome de ignomínia para a felicidade de seus irmãos e a prosperidade de seu infeliz país não merece o nome de traidor. Calabar foi o primeiro mártir da liberdade. No tempo de Calabar ainda não se podia pensar na independência do império da Santa Cruz. O Brasil estava sentenciado a permanecer por muito tempo no domínio das nações civilizadas da Europa. Datava poucos anos de seu descobrimento, não tinha ilustração, os homens eminentes não haviam aparecido ainda, como sonhar sua independência? No tempo de Calabar só se podia aspirar a mudança de senhorio que melhor tratasse deste pobre país; foi o que Calabar pensou passando-se para o acampamento holandês. Não devemos manchar a memória do ilustre alagoano, do mártir da liberdade com a alcunha de trânsfuga, de traidor. Calabar, como brasileiro aliou-se aos portugueses para repelir os inimigos, porém bem cedo conheceu a política opressora de Portugal. Viu que de algum modo prosperava a capitania de Pernambuco no domínio da Holanda, e julgando que o Brasil seria mais feliz sendo colônia de uma nação tão industriosa, rompeu com os seus antigos aliados e passou-se para os holandeses. Se alguns desatinos cometeu o governo holandês, milhares praticaram os governadores e gabinetes portugueses. É o direito do escravo escolher melhor senhor. Quando Tiradentes, o mártir da independência, derramou seu sangue na praça da Lampadosa, já Calabar havia sido executado e coberto de ignomínia. Amos sofreram pela pátria querida, embora as aparências fossem diversas os fins eram os mesmos. Deixemos cruzarem as opiniões e voltemos aos Palmares. Diversos escravos aproveitando-se da guerra que se ateava entre Portugal e Holanda atiravam o jugo

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da escravidão refugiando-se na serra da Barriga para se guardarem melhor das perseguições dos brancos. Bem depressa o quilombo tomou grandes proporções. Os desertores e criminosos, achando aquele lugar onde poderiam estar ao abrigo da lei, para ali se dirigiam. Em poucos tempos o número elevou-se a perto de 11000 homens. Por muito tempo viveram estes foragidos zombando das forças que contra eles mandava o governo. Já começava a causar este quilombo serio cuidado aos governadores de Pernambuco quando apareceu o mineiro Diogo Velho que mediante algumas concessões encarregou-se da expedição destruidora do quilombo. O Zumbi e os seus, acoçados pela tropa precipitaram-se em uma noite, do despenhadeiro da serra, preferindo a morte ao cativeiro. Todos estes fatos passados acudiam a imaginação de Alfredo quando os latidos dos cães o despertaram. Era chegado o momento em que se devia efetuar a caçada no poço verde. Uma catila de queitatús perseguida pelos cães passou bem perto de Alfredo. Alfredo correu para onde estavam os companheiros. Todos estavam alertas. Quando os queitatús perseguidos pelos cães entravam no carreiro do viado procurando refúgio nas matas vizinhas, rompeu fogo do montículo; seis queitatús cairão mortalmente feridos e o resto embrenhou-se na mata. Na ocasião em que partiam do montículo os tiros que feriram de morte os bravos filhos das selvas, dois gritos agudos se ouviu do lado em que estavam Adélia e Julia. Os caçadores correram para onde estavam as duas jovens e pararam espavoridos. Um espetáculo horrível se oferecia às suas vistas. Adélia e Julia estavam desmaiadas e uma grande cobra cascavel estava no regaço de Adélia prestes a ceifar a vida daqueles dois anjos de beleza. Houve um momento de ansiedade. O coronel hirto e mudo parecia a estátua do pavor. Alfredo e José Pedro precipitaram-se para o nojento réptil, queriam sacrificar-se para salvar aquelas vidas queridas. Atirar ou esmagar a peçonhenta cobra era impossível; só havia um meio de salvar as duas meninas era pegar aquele terrível inimigo antes que tivesse tempo de feri-las. Alfredo e José Pedro conheceram a grandeza do perigo. Mas tudo isto se passara rapidamente. Leopoldo todo empenhado na perseguição dos queitatús passara naquele momento perto das duas jovens quando se dava aquela cena e rápido como um relâmpago se lançara à cascavel e a segura pelo pescoço. A luta foi horrível.

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A cobra atacada tão bruscamente enrolara com seus anéis o corpo de Leopoldo procurando-o ferir. Alfredo e José Pedro acudiram e a cascavel foi esmagada. Mas na ocasião em que Leopoldo agarrava a cascavel que formava o bote para ferir as duas meninas, vira um vulto que rápido se afastava das moitas perto das quais estavam Adélia e Julia. O preto compreendera que aquela cascavel ali não estava, alguém oculto pelas moitas se aproximara e lançara sobre as moças aquele venenoso réptil. No seu pensamento acudira o nome de D. Rosa. Mas quereria D. Rosa sacrificar também sua filha? E quem seria o miserável que se prestara a tão horrível crime? Leopoldo não pudera seguir o miserável que bem depressa se perdera nas profundezas dos matos, mas pensava descobrir a verdade. Deixemos a caçada que tão auspiciosamente havia começado e voltemos à casa grande. Já havia algum tempo que tinham partido os caçadores, quando parou na porta da casa grande, pedindo esmola, um velho e nojento preto africano. No centro do Brasil aparecem muitos destes miseráveis que se intitulam de feiticeiros. Ao ver esta repugnante figura passou no espírito de D. Rosa uma ideia criminosa. Se este negro pudesse com seus feitiços fazer desaparecer Julia... Estes miseráveis têm às vezes grande número de recursos, experimentemos. D. Rosa deu a esmola pedida e começou a interrogar o africano. - Então não és destes lugares? - Não, yaya, venho de muito longe, sou dos sertões da Bahia. - Anda as esmolas? - Sim, yaya, sou velho e não posso mais trabalhar. - É esta a primeira casa em que pedes esmola? (continua)

(10)10 Cap. III A caçada

- Sim, yaya. - Para que queres estas ervas? - É para curar malefício. 10

O ORBE, Maceió, quarta-feira, 27 de fevereiro de 1884, Ed. 20, p. 2. Biblioteca Nacional, Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx. Data de acesso: 07/11/2012.

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- És feiticeiro? - O que eu faço ninguém desmancha. - E nesta cabaça o que trazes? - Uma cascavel, yaya. - Uma cascavel! E para que uma cobra tão venenosa? - Porque sou curador de cobra, yaya. - Ah! Já sei, tiraste o veneno, quebraste-lhe as presas, de sorte que esta cobra já não pode fazer mal; vocês feiticeiros são uns embusteiros. - Não, yaya, a cobra está com todo veneno e as presas não estão quebradas, a mordedura dela em quem não está curado é morte certa. D. Rosa formava um projeto diabólico. Se este miserável me vendesse esta cobra e quisesse fazer o que eu lhe ordenasse, o negocio correria melhor do que eu pensava. Nestas matas há muitas destas cobras e ninguém suspeitaria que eu tomasse parte nisto. Uma mordedura de cobra no mato é uma coisa muito comum. Veremos se consigo o que pretendo. - Então, este animal é ainda muito perigoso? Continuou: - Sim, yaya, afirmou o preto; está com todo o veneno. - Se eu quisesse comprar esta cobra, tu vendias? - Sim, yaya, mas é muito cara. - Se eu te desse vinte mil réis com a condição de fazeres o que eu mandasse, aceitavas? - Sim, yaya, mas vossa mercê não dá tanto dinheiro ao pobre Caçamba. - Quem é Caçamba? - Sou eu, yaya. - Engana-te, disse D. Rosa, mostrando um pouco de dinheiro; mas hás de fazer direito o que eu te ordenar. - Sim, yaya, fale, eu farei tudo quanto yaya quiser, disse o negro, fazendo mil zumbaias. Vinte mil réis paga bem ao pai Caçamba. - Escuta. - Fale, yaya. - A cobra é minha. - Sim, yaya, é sua. - Bem, tu vás lançar esta cobra sobre uma pessoa que está pouco distante daqui. - Mas se me virem?... Ou a pessoa está só? 31

- Ao contrario, tem lá muita gente. Deves proceder de modo que não sejas visto. - Não, yaya, tenho medo; se me pegam... - Não temas, te esconde bem, de modo que não se desconfie que fosses tu... - Onde está a pessoa que a cobra deve morder? - Perto daqui, no montículo que fica junto do poço verde. - No poço verde! - Sim, estão em uma caçada. - Como saberei em quem devo atirar a cobra se não conheço? - É fácil, a pessoa de quem falo é uma moça. - Sim, sobre uma moça. - Uma moça morena que estas horas está no montículo, ao pé do poço verde, assistindo uma caçada. - Mas, yaya, trata-se da morte da moça? - Sim, se souberes lançar a cobra, estará tudo feito. - Sim, yaya, isto fica por minha conta; farei com que sinhazinha fique assanhada e... zás! Em cima da moça. - Quem é sinhazinha? - É a cobra, yaya. - Muito bem. - Mas, yaya... - O que temos? - O dinheiro que yaya me deu é pouco. - E o que queres mais, miserável? - A moça deve morrer? - Já sabes. - E se me pegarem de certo me matarão. - Não quero que sejas visto; não se deve suspeitar que a cobra foi lançada sobre a moça e sim que estava oculta em algum lugar e assanhada com a vizinhança de gente se lançara sobre ela. - Farei tudo quanto yaya diz, mas é preciso mais alguma coisa para o negro velho Caçamba. - Vai, faz tudo de maneira que me agrade, depois dar-te-ei uma molhadura. - Muito bem, yaya, farei tudo. - Escuta. 32

- Diga, yaya. - Se tu me enganares não penses que estarás vivo muito tempo, mando tirar-te o couro. - Caçamba faz tudo, yaya. - Sabes onde é a fonte do Piripiri? - Sei, yaya. - Bem, quando for noite fechada, esperareis por mim neste lugar para te dar o que te prometi. - Sim, yaya. - Anda, vai fazer o que te ordeno e guarda segredo. - Sim, yaya. Os dois miseráveis se apartaram e as ordens de D. Rosa foram como já vimos executadas. Adélia e Julia, graças ao socorro de Leopoldo nada sofreram, apenas desmaiaram por ver tão perto delas um tão nojento e venenoso réptil. O coronel que vira horrorizado o perigo que correra às duas meninas, não sabia de que modo expressasse seu contentamento; apenas dirigindo-se a Leopoldo dissera-lhe: - Prestaste-me um grande serviço, és um escravo fiel, hoje te será entregue a tua carta de liberdade. - Alfredo, Adélia e Julia abraçaram o coronel, agradecendo-lhe o ato que acabara de praticar. Leopoldo confundido com os agradecimentos e elogios e tendo em vista ir ao alcance do vulto que vira desaparecer por entre as moitas, internara-se nas matas. Às quatro horas da tarde estavam todos no salão de jantar da casa grande, comentando as peripécias da caçada e a dedicação de Leopoldo que ainda não aparecera, apesar do coronel já o ter mandando procurar na senzala. Voltemos a Leopoldo. Este, como já vimos, internara-se nas matas. Por muitos tempos procurara o miserável que ele avistara ao longe, mas nada encontrava; já estava desanimado se a prova pela qual podia descobrir se o que havia acontecido no montículo, junto ao povo verde fora uma casualidade, ou se D. Rosa tinha parte naquele atentado, quando descobriu ao pé de uma velha sicupira uma cabaça vazia. (continua) (11)11 11

O ORBE, Maceió, sexta-feira, 29 de fevereiro de 1884, Ed. 21, p. 2. Biblioteca Nacional, Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx. Data de acesso: 07/11/2012.

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Cap. III A caçada

Pela casca que saía da cabaça conheceu Leopoldo que ali estivera por muito tempo uma cobra. Mais adiante viu alguns ramos quebrados de novo e sobre um montão de areia de um formigueiro rastos de uma criatura. Leopoldo examinou-os. Eram uns pés de tamanho disforme. Não havia duvida que por ali passara naquele momento um homem. Leopoldo caminhou mais de mia légua encontrando sempre o rasto do inimigo desconhecido. Chegando ao lugar onde o bosque formava uma espécie de terreiro parou. A terra estava revolvida de fresco, parecia que ali se tinha dado uma grande luta. Por alguns farrapos de uma suja camisa de algodão, uma mochila de pano e um molho de raízes conheceu Leopoldo que não se enganava. O misterioso inimigo que ele procurava tinha-se encontrado com alguém; houvera ali uma grande luta, bem mostrava o espesinhamento do terreno. Quem o teria atacado? Quem sairia vencedor? Leopoldo tentava de todo conhecer o que ali se passara. A noite começava invadir com seu negro manto toda a natureza, quando Leopoldo voltou à senzala. Correra toda a mata, examinara todos os cantos que ele julgara suspeito e nada encontrou. E como saber da verdade? A fortuna o auxiliava. Apenas Leopoldo havia tomado algum alimento, quando a porta de sua casinha abriu-se e entrou o preto pai José, conhecido na fazenda por pai Catumbi. - Deus lhe dê boa noite, Leopoldo, disse nesta linguagem própria dos pretos africanos. - Guarde Deus ao pai Catumbi, respondeu Leopoldo. - Na casa grande muita novidade, Leopoldo liberto, já não é nosso parceiro. O moleque João, filho do Manoel da tia Benvinda foi quem disse na bolandeira. Tudo está contente porque Leopoldo livrou a menina da morte. - Sim, pai Catumbi, livrei sinhá Julia e a menina Adélia da morte. Leopoldo contou toda história que já nós sabemos e concluiu dizendo: - Virei toda mata e apesar de estar bem certo de ter visto um vulto que fugia por entre as moitas, nada pude encontrar. - Ah, Leopoldo! Não me enganei, bem fazia eu em desconfiar do diabo do negro, foi ele sem duvida que fez tudo isto, mandado por... 34

- Que está dizendo, pai Catumbi? Também viu alguma coisa? Perguntou Leopoldo, interrompendo ao preto velho. - Se vi! Muita coisa vi eu, Leopoldo e te vou contar toda história. A coisa foi assim: Já fazia bem tempo que você e os brancos tinham saído para a caçada; eu estava conversando com minha mulher Constancia, sentado no estrado defronte da janela do meu mocambo. Dali eu via bem a porta da casa grande. Fazia já um pedaço de tempo que eu olhava quando vi chegar à porta da casa grande um negro velho, todo esfarrapado e bateu. Julguei ao principio que era algum pobre que pedia esmola, mas depois desconfiei. D. Rosa como você sabe não gosta de negro, contudo parecia muito interessada pelo tal negro velho. Vi D. Rosa dar uma coisa ao tal negro que ficou muito contente pelos gestos que fazia. Desconfiei do tal diabo e esperei que saísse para o seguir. D. Rosa e o negro conversaram ainda por muito tempo, depois o tal bicho encaminhou-se para o lado do poço verde. A minha desconfiança cresceu. Botei o chapéu na cabeça, tomei o facão e o cacete e quis sair, mas não pude, D. Rosa estava ainda na porta, esperei que entrasse e sai, mas já não avistei o diabo do negro. Encontrei o Pedro e o Jorge, contei-lhes a história. Eles me informaram que tinham encontrado o tal negro que se dirigia para a mata da cabotan, perto do poço verde. Convidei a eles para me ajudarem a procurar o tal bicho dizendo-lhes que era ordem sua. Com muito gosto me seguiram, entramos na mata. Ao principio nada encontramos e já estávamos perto do montesinho onde os brancos estavam esperando a caça, quando sentimos que alguém corria para nosso lado. Nos escondemos atrás de um tronco de sicupira e esperamos. Pouco depois apareceu o negro que tinha conversado com D. Rosa. Vinha espantado; sacudiu no chão uma cabaça que trazia e deitou a correr. Nós fizemos o mesmo. O negro sentindo que ia gente atrás dele voava. Chegando perto da gruta da cutia o negro parou; via que não escapava, queria defender-se. Nós nos atiramos sobre ele. Apesar de velho o negro era o diabo. Lançou mão da faca e quis furar Pedro, mas este que é um moleque ligeiro num abrir e fechar de olhos tomou-lhe a faca. Briguemos corpo a corpo, o terreno ficou todo cavado, mas o negro foi amarrado. - Amarrado! Disse Leopoldo. 35

- Sim, está bem amarradinho e guardado na gruta da cotia. - Não perguntasses o que ele andava fazendo? - Perguntei, mas o diabo não quis responder e não quisemos solta-lo sem primeiro falar contigo. Assim foi bom porque eu bem sabia que o diabo não andava fazendo boa coisa. - O pai Catumbi, sem pensar, prestou-me um grande serviço, se o negro escapasse era o diabo. É preciso ia ver o negro e trazê-lo para a caverna do diabo. - Para a caverna do diabo, Leopoldo! - Sim, pai Catumbi. Sei que a tal caverna não é muito bem vista para se andar lá de noite; mas por termos a certeza que lá ninguém nos incomoda é que para lá vamos. - Avise a todos que estiverem no conselho de Santa Bárbara para hoje à meia note na caverna do diabo. Cuidado que o negro não escape. - Sim, Leopoldo, farei o que dizes. Leopoldo contente por saber que estava filado o miserável que tentara contra a vida de Adélia e Julia, dirigira-se para a casa grande a chamado de seu senhor. - Fiz bem, dizia Leopoldo pelo caminho; estou certo que não perdoarão ao tal miserável, será sem duvida sentenciado à morte. Desta vez D. Rosa perdeu a partida; onde quer chegar esta mulher com tanto crime! Fiz bem em convidar os companheiros para se reunirem hoje na caverna do diabo, é preciso punir este miserável que se vendeu a D. Roda. Podia mandar meter-lhe uma bala no couro, mas sempre me repugna derramar sangue. Leopoldo formando seus planos chegara à porta da casa grande. D. Rosa depois da partida do negro ficara esperando os resultados. Se o ladrão do negro, pensava ela, fizer o negocio bem, está destruído o obstáculo, nada mais resta do que fazer o rapaz casar-se. Não haverá suspeita, é um acontecimento muito comum, por mais prevenidos que estejam não julgarão que eu tomei parte nisto, foi uma fatalidade e não um crime. Passavam-se as horas. A impaciência já principiava a apoderar-se de D. Rosa, quando o canto dos carros lhe anunciou a chegada dos caçadores. Era chegada a ocasião de ver se seus planos se tinham realizado. No rosto daquela mulher perversa não se notava o menor indicio de compaixão. Era um coração de pedra num corpo de bronze. Chegou a comitiva. Os semblantes alegres de todos desconcertaram D. Rosa. Não tinha visto ainda D. Julia, mas adivinhava que seus planos tinham falhado. 36

Do peito daquela mulher miserável partiu um gripo medonho que lhe morreu na garganta; apensar uma vermelhidão que lhe cobriu o rosto foi o único indicio da indignação daquela alma, se é que os miseráveis têm alma. Acabava de ver descer do carro D. Julia cheia de graça e beleza. (continua) (12)12 Cap. III A caçada

Miserável negro! Rugia consigo D. Rosa; enganou-me, não fez o que lhe ordenei, hei de vingar, não se engana assim uma mulher como eu. Foram interrompidos os pensamentos de D. Roda com a história da caçada e dos acontecimentos do dia. Serenou-se mais sua cólera, o negro tinha cumprido o mandado. - Foi um pouco desastrado na execução do mandado, mas D. Rosa se reconhecia algo tanto culpada por não ter se explicado bem. Sua filha estivera prestes a ser também vitima de seus planos por serem mal combinados. Se por um lado a intervenção de Leopoldo fizera abortar seus planos, por outro estimava que assim tivesse acontecido. Julgava D. Rosa que alguma coisa lhe pesava na consciência se sua filha fosse também vitima. Falhava-lhe a ocasião, mas em nada alteravalhe o que já havia combinado em seu pensamento. Leopoldo ao chegar à casa grande esperava ver o rosto carregado de D. Rosa, mostrando o desapontamento da derrota, mas sua surpresa foi grande; D. Rosa mostrava-se alegre, agradeceu a dedicação com que ele Leopoldo havia salvo a vida destas duas encantadoras meninas. - Sei que teu senhor, dizia ela, te prometeu a carta de liberdade; aprovo muito sua resolução porque sempre te conheci escravo fiel. - Ora, sinhá, respondeu Leopoldo, nada fiz que merecesse tantos elogios; sacrificava a vida sem pena para salvar sinhá Adélia e sinhá Júlia. - Foi uma ação nobre a que praticaste, Leopoldo, sentiria muito se acontecesse alguma desgraça a estas meninas. Boa ocasião, pensava Leopoldo, devo aproveitar a maré para ver se posso ganhar a confiança desta mulher, nunca a vi tão mansa, portanto tentemos. 12

O ORBE, Maceió, domingo, 2 de março de 1884, Ed. 22, p. 2. Biblioteca Nacional, Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx. Data de acesso: 07/11/2012.

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- Eu bem sabia, sinhá, tornou o preto; que vossa mercê ficaria muito triste se a menina Adélia sofresse alguma coisa. - De certo, Leopoldo. - Não tive duvida em me arriscar, sou velho para nada mais presto. - És um bom escravo. - Se morresse, sinhá, só levava uma pena. - Qual era? - De não ver o senhor moço Alfredo casar-se com a sinhá d. Amélia. - Quem te falou neste casamento? - Ora, sinhá, todo mundo sabe. E eu penso que o senhor moço Alfredo só pode casar com uma moça rica e bonita como sinhá d. Amélia. - Ah, pensas assim? D. Rosa olhava atenta para Leopoldo, parecia-lhe que o preto velho falava com franqueza e conhecendo a amizade que ele tinha a Alfredo, bem podia fazer dele o seu auxiliar do que precisava. - Ah, pensas assim? Repetiu ela. - Sim, sinhá. - Pois bem, suponho que isso vai ficar de nenhum efeito. Alfredo talvez queira casar com minha afilhada Julia. - Com D. Julia! Uma moça pobre! Não é possível, sinhá. - Julgas isto? - Sim, sinhá. - E se for verdade estás pronto a me ajudar a desmanchar este casamento? - Estou, sinhá. - Bem, hoje às onze horas me espera no jardim, junto do caramanchão, tenho que te falar sobre isto. D. Rosa retirou-se; o coronel acabava de chamar Leopoldo no seu gabinete. - Leopoldo, disse o coronel, te prometi tua carta de liberdade, já está passada, vou mandá-la para o tabelião, logo que voltes lhe será entregue; portanto já de hoje está livre. Estimarei muito se quiseres ficar na fazenda na qualidade de feitor, porque preciso muito de uma pessoa fiel e só tu me serves. - Ficarei na fazenda, meu senhor, respondeu Leopoldo; era este o meu desejo. - Pois bem, toma conta de todo serviço, és meu feitor. Leopoldo beijou a mão de seu velho senhor e retirou-se. 38

Desta vez, pensava ele, sempre tenho em meu poder o ganho do jogo.

Cap. IV A caverna do diabo

A caverna do diabo era o nome que se dava a uma furna na base da serra do barriga. Existe hoje esta caverna no lugar chamado Jurema. No tempo em que se deram as cenas que narramos não gosava a caverna de boa reputação. Diziam que era a moradia constante do diabo. Se pelo dia alguém se aproximava da caverna era tomado de um terror desconhecido e tentava afastar-se daquele lugar diabólico. Ao anoitecer não havia quem se atrevesse a aproximar-se dela. Alguém afirmava que já havia visto os diabos reunidos em conselho na caverna. Pintavam Lúcifer um negro corpulento de um tamanho desproporcional, com os olhos injetados de fogo, deitando brasas pela boca, tendo dois chifres retorcidos na testa, pés de pato e outras coisas filhas da superstição grosseira de um povo não civilizado. Não eram só os diabos que faziam suas reuniões na caverna, os feiticeiros também lá iam quando queriam invocar os espectros das trevas para seus feitiços. Muitos negros da fazenda do coronel eram mal vistos pela vizinhança, e acusados de terem relações intimas com os diabos. Alguns negros tinham sido vistos dirigirem-se para o lado da caverna e isto bastou para que fossem logo espalhadas as relações deles com os diabos. Sabiam os negros disto e pareciam alimentar esses boatos. A caverna do diabo, guardada como estava pela superstição do povo, era um ponto de refugio para os negros fugitivos. Havia a pouco soado às onze horas no relógio da casa grande, quando apareceu D. Rosa no jardim. Leopoldo não havia faltado, estava em pé junto do caramanchão, esperando a chegada de sua senhora. - Então, disse D. Rosa, aproximando-se, parece-me que tens muito gosto em ver o teu senhor moço casado com a mais rica fazendeira destes lugares? (continua)

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(13)13 Cap. IV A caverna do diabo

- Sim, senhora, tenho vontade, como todos, que chegue o dia das bodas do senhor moço Alfredo com sinhá D. Amélia. - Quem te disse isto? - Todos por cá sabem que o senhor moço Alfredo veio para casar com D. Amélia. - Ah! - Será, sinhá, um dia de pagode para os negros, se sinhá consentir. - Mas, Leopoldo, não sabes que Julia quer ser a mulher de Alfredo? - Não, sinhá, nunca pensei nisto! - Tu és um negro fiel, estás hoje liberto, mas sei que estimas muito o teu senhor moço Alfredo, por isto te pergunto se achas bem este casamento? - Ah, sinhá, eu?... - Sim, tu. - Mas se o senhor moço Alfredo quiser? - Pode-se impedir que isto aconteça. - Mas o senhor velho?... - Não precisamos dele nesse negócio. - E sinhá quer? - Não, farei tudo para impedir que meu filho faça esta loucura. - Então, se não é do gosto da sinhá eu também não acho bom. - E estás pronto a me ajudar, e ser sempre fiel? - Sim, sinhá. - No dia em que Alfredo casar com Amélia dar-te-ei duzentos mil réis. - Duzentos mil réis para Leopoldo, sinhá! - Sim, só quero que sejes fiel e guardes segredo do que vires e ouvires; entendes? - Sim, sinhá, Leopoldo não fala. - Pois bem, tu conheces bem uns rapazes que já uma vez estiveram aqui e que moram na Imperatriz chamados Francisco Giboia e João Pau Santo. - Conheço, sinhá. 13

O ORBE, Maceió, domingo, 9 de março de 1884, Ed. 25, p. 2. Biblioteca Nacional, Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx. Data de acesso: 07/11/2012.

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- Bem, tens de ir lá e trazê-los aqui amanhã, contando que não se note tua ausência nem a chegada deles na fazenda. - Irei amanhã de noite. - Logo que cheguem os conduz para a caverna do diabo e recomenda-lhes que não saiam, para não serem vistos, e depois de amanhã à meia noite traga-os aqui. - Sim, sinhá. - Bem, cumpre o que te disse, muito segredo, entendes? - Entendo, sinhá. Maldito negro! Dizia consigo D. Rosa, encaminhando-se para a porta; não te darei os duzentos mil réis e sim uma bala no couro que é o meio mais seguro de ter bem guardado o meu segredo. Mulher do diabo! Dizia Leopoldo, saindo do jardim; não será como tu pensas. Leopoldo dirigiu-se para a caverna do diabo onde os companheiros o esperavam. Um pavio embebido em cera de abelhas iluminava o recinto da caverna. O seu interior que gosava de tão má reputação nada tinha de horroroso; e se alguma coisa apresentava um cunho de pavoroso era de certo o estranho conselho dos negros que funcionava naquele momento esclarecido pela mortiça luz de tão mesquinho candeeiro. Se algum dos moradores da fazenda se aproximasse da caverna, de certo fugiria espavorido, julgando ter visto uma reunião de diabos. As sombras cercando de todos os lados não deixavam ver o interior da caverna. Mas, como não era a primeira vez que a curiosidade nos tinha levado ali, podemos fazer aos leitores uma rápida descrição. Formava a caverna uma ampla sala, mas de forma irregular, a semelhança de um perfeito polígono octógono irregular. A área deste polígono era alguma coisa obstruída por grandes pedras, mas postas pela natureza com tal arte, que a primeira vista apresentavam o aspecto de um salão mobiliado. As paredes fendidas em diversas partes, apresentavam nas rochas denegridas pelo tempo saliências verdadeiramente fantásticas que para os espíritos fracos passariam por verdadeiras figuras diabólicas dispostas de maneira a tornar medonha aquela habitação infernal. No fundo da caverna notava-se uma abertura em forma de porta que dava entrada para uma segunda caverna; mas esta era tão escura que mesmo a luz de um facho não teria poder de espancar as trevas. Leopoldo sentou em uma das pedras que ornavam o interior da caverna e os outros o imitaram. Foi apresentado o miserável negro que já conhecemos e principiou uma espécie de interrogatório.

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- De onde és? Perguntou Leopoldo; que fazes na fazenda? Qual a razão que te levou a lançar sobre aquelas mocinhas a cobra que devia feri-las? Quem te ordenou isto? - Não tenho dúvida em responder, já que estou em poder de vocês, disse o preto prisioneiro; chamo-me João Caçamba, sou da Bahia. É verdade que estava perto dos caçadores, quando a cobra assaltou as moças de quem tu falas; mas não tenho culpa disto, não fui eu quem lancei a cobra, nas matas tem muitas, bem podia ser que... - Mentes, atalhou Leopoldo; o modo porque fugias prova bem que eras criminoso. Responde. Quem te mandou lançar a cobra sobre as moças? - Não sei. - Não sabes! - Ou por outra não tenho o que te responder, já te disse que não fui eu. - Fosses tu, miserável. - Ah! - Na ocasião em que te pegaram procuraste ferir os teus perseguidores para escapar do castigo. - Não temia castigo porque nada tinha feito. - E porque fugias? - Isto não te importa. - Conheces isto? (Leopoldo mostrou a cabaça onde o negro ocultara a cobra) - Sim, é minha cabaça. - Confessas o crime? - Não tenho crime. - O que trazias nesta cabaça? - Farinha que me deram, sou um pobre negro velho que pede esmola e nada mais. - Mentes, esta cabaça foi por muito tempo a morada de uma cobra, bem se vê pelo cheiro que dela sabe. - E o que tens tu com tudo isto? - Quero saber a verdade. - E serei perdoado? - Talvez. - Pois bem, vou dizer a verdade, fui eu quem sacudiu a cobra. - Quem te mandou fazer isto? - Uma pessoa que se soubesse que estou em poder de vocês, negros miseráveis, mandá-los-ia todos para o inferno, foi a senhora da fazenda, entendes? 42

- Bem, vás ser julgado, se prometes sair imediatamente da fazendo e não tornares mais a ela, talvez te seja perdoado. - Prometo. - Bem, veremos. Depois de longa conferencia os negros deliberaram que fosse conduzido o miserável negro velho para fora da cidade e posto em liberdade. João Caçamba logo que se viu livre em lugar de se afastar da fazenda ocultou-se em uma moita a fim de enganar os seus perseguidores, e logo que estes se ausentaram voltou, e internou-se nas matas da fazenda. - Ah, malditos negros! Canalhas! Resmungava ele; hei de vingar-me, não se brinca assim com o Caçamba, breve os diabos carregarão vocês todos, corja miserável. Conto a D. Rosa o que se passou e o diabo há de ter dó do couro dos negros. Mas oh! Diabo, se yaya não acreditar que eu fiz o serviço? Nada, ela bem devia ter sabido, se não fosse o malvado do negro que me estava interrogando, todo soberbo, na caverna do diabo, o negocio tinha corrido bem, portanto não foi culpa minha. O que eu quero é o dinheiro que ainda me deve. Safa! O negocio não foi de caçoada, escapei de boa rascada. Se os diabos quisessem eu lá ficavam enterrado na caverna do diabo. Bem empregado o nome, é um lugar dos trezentos. Não eu que fosse lá. (continua) (14) – publicado em ordem numérica invertida14

Cap. IV A caverna do diabo

Vamos, Caçamba, prosseguia ele, estica as pernas para ver se chegas a tempo na fonte do Piripiri, já está muito perto, fica por detrás do sitio da casa grande por onde vás chegar lá bem depressa sem precisar atravessar a fazenda, portanto livre da canalha dos negros. Fazendo esta reflexão chegou o João Caçamba ao pé da fonte do Piripiri. Não tinha pessoa alguma; D. Rosa ali não estava. Eu bem sabia, resmungou o negro, o galo já canta a muito tempo, duas horas da madrugada, yaya não podia estar aqui. 14

O ORBE, Maceió, quarta-feira, 19 de março de 1884, Ed. 29, p. 2. Biblioteca Nacional, Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx. Data de acesso: 07/11/2012.

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Negros dos diabos, eu me vingarei. Mas vejamos se por aqui andou alguém. A terra é mole, fica bem o rasto. E Caçamba tirou do bolso da calça um rolo de pavio embebido em resina, um isqueiro e ascendeu o pavio. Com tal auxilio Caçamba podia examinar tudo a vontade. Mas por mais que procurasse nada via, ali não tinha andado pessoa alguma. Então Caçamba sentou-se em uma pedra e esperou. Coisa estranha! Resmungava ele, não ter o menor indicio de que por aqui tivesse estado gente! Yaya que ficou tão certa de vir logo que fosse noite e não veio! Quem sabe se ainda virá? Entretanto... esperemos. Talvez estivesse ocupada e não pudesse vir, sempre é bom esperar. O cúmplice de D. Rosa tinha que esperar por muito tempo; ela não podia aparecer. Mulher de recursos queria fazer desaparecer aquela testemunha que lhe podia causar sérios embaraços; queria subtrair-se da paga prometida e apoderar-se da importância já paga, e o melhor meio era ocultar-se de seu cúmplice até que lhe chegassem os auxiliares que esperava. O miserável velho, pensava ela, não se atreverá a aparecer na fazenda, e minha ausência ainda mais amedrontará este miserável. Com esperança da molhadura prometida, não se afastará da fazenda, enquanto não a tiver em seu poder. Depois de amanhã à noite terei visto os rapazes, e então o velho ficará bem molhado. Desaparecendo este, tratei de fazer o mesmo com o ladrão do Leopoldo. Não confio nesta corja de negros, todos eles são péssimos. Fica melhor guardado o segredo entre três que entre cinco. E depois quem sabe?... se eu julgar conveniente, serei a única depositaria dele. E os lábios da mulher perversa entreabriram-se, deixando passar um riso medonho. Chegou a noite em que D. Rosa devia conferenciar com os dois auxiliares que mandara vir na Imperatriz. Já havia soada a meia noite. Reinava inteiro silencio. Todos dormiam. Apenas chegara à hora esperada, D. Rosa que estava sentada em uma larga poltrona na sala de jantar, levantou-se, abriu a gaveta de uma pequena mesa e tirou um objeto; era uma pequena pistola de dois canos que guardou no bolso do vestido, deixando ver neste tempo o cabo de um punhal que estava oculto por baixo do casado. É preciso ser prevenida, murmurou ela; este danado negro velho me tem dado algum cuidado, não se deve confiar muito nesta casta de gente, quando se julga com direito é insolente. Mas hoje mesmo ficarei livre deste cuidado.

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Quanto trabalho tenho tido!... mas ficarei vingada. Consentir que a filha deste maldito compadre, a quem odeio com todas as forças pertença a minha família... nunca. Foi ele que revelou ao coronel que a morte do João Gato tinha sido obra minha, acusou-me de ter mandado incendiar as casas dos moradores, e desde então voto-lhe um ódio de morte. Ele não adivinha, sei guardar os ódios até o dia da vingança. Já deve estar Leopoldo e os rapazes a minha espera no jardim. É preciso ficar hoje mesmo livre do velho, do resto tratarei depois. Dizendo isto D. Rosa dirigiu-se para o jardim. Leopoldo e as pessoas que ela esperava já estavam. - Vocês são rapazes de confiança, disse D. Rosa se aproximando; fizeram bem, preciso muito de vocês. - Fomos chamados e a sinhá dona bem sabe que estamos sempre prontos para a servir. - Bem, eu sabia disto, portanto os mandei chamar porque preciso muito de vocês. Enquanto eu converso com os rapazes, continuou ela, dirigindo-se a Leopoldo; vai para a porta da sala de jantar, se ouvires ou vires alguma coisa, vem logo avisar-me. - Sim, sinhá, respondeu Leopoldo. E dirigiu-se para o lugar designado por D. Rosa. Desconfia! Pensava o preto; quer ocultar parte de seus planos, mas Leopoldo não é criança, não cairá no laço; vamos ver como se pode filar alguma coisa. Logo que Leopoldo chegou à porta da casa sentou-se, para enganar, sem duvida, os olhos de D. Rosa, e depois arrastando-se a semelhança de serpente, conseguiu aproximar das latadas do caramanchão, e ouvir toda a conversação de d. Rosa com os seus cúmplices. - Trata-se de ganhar dinheiro, dizia ela; suponho que vocês não são rapazes escrupulosos, tendo dinheiro farão tudo quanto se mandar. - Decerto, sinhá dona, respondeu Francisco Giboia; queremos dinheiro, mata-se, rouba-se... que jeito? É preciso ganhar a vida. - Bem sei que vocês são bons rapazes, sabem muito bem compreender o mundo. - E de que se trata, qual é o serviço que temos que fazer, e quanto se paga? Perguntou João Pau Santo. - Três ou quatro facadas, se não forem precisas mais, contanto que cada uma seja certeira. - Três ou quatro mortes! Disse Francisco Giboia. - Sem duvida, paga-se bem. 45

- Não gosto de trabalhar sem ajuste; replicou João Pau Santo. - Vamos ao ajuste, respondeu D. Rosa. - Quantos mortos? Perguntou Francisco Giboia. - Três ou quatro. - Não serve assim, disse João Pau Santo; queremos numero certo. - Por ora três. - Bem, conforme a morte, conforme a paga. - Dois negros. - Bem, dez mil réis cada um, serve? - Serve. - O terceiro... - Uma moça. - Uma moça! Disseram todos. - Sim, de que estão admirados? Perguntou D. Rosa. - De nada, sinhá dona! Por esta paga-se mais. - Sem duvida. - Vinte mil réis, serve? - Se o negocio correr bem que não se possa desconfiar qual fim que ela teve, darei cinquenta. - Cinquenta! - De certo, não falto com o que prometo. - Bem, vamos aos nomes das pessoas que entram na salga. - A primeira é um negro velho que não sei do nome, mas vocês o encontrarão amanhã ao cair da noite, na fonte do Piripiri. - Bem. - Quero este ladrão bem morto, e para evitar alguma suspeita atirem-no ao Mundaú, com uma pedra no pescoço. - Deixa estar que ele fica seguro. - Assim espero. - O segundo? - Leopoldo o negro que os conduziu aqui. - Leopoldo!

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- Sem dúvida deve haver segredo, e muito segredo neste negocio, e como pode este danado Leopoldo dar com a língua nos dentes, é bom que morra, porque os mortos não falam. - Sinhá dona tem razão, morra o tal Leopoldo por causa das duvidas. (continua) (15) – publicado em ordem numérica invertida15

Cap. IV A caverna do diabo

- Mas como Leopoldo ainda nos pode servir será ele o último. Entendem? - Entendemos. - Quanto ao primeiro, logo que vocês tenham acabado com ele, vejam que deve trazes nos bolsos vinte mil réis, que eu darei a vocês se andarem bem no negocio. - Fique a sinhá dona certa de que faremos tudo bem. - A terceira é Julia, filha do Alexandre. - Do compadre de sinhá dona! - Sim. - Deve morrer também? - De certo. - Como? - Boa pergunta! Vocês parecem ter perdido parte da disposição antiga. Matem como quiserem, à faca, enforcada, afogada, contanto que nunca se venha a saber qual o fim que ele teve. Isto eu já disse e torno a prevenir. Pago bem, mas quero também o serviço bem feito. - Bem, sinhá dona, estamos de acordo. Amanhã damos principio ao serviço. - Vão, trabalhem bem que não se hão de arrepender, bem me conhecem. - Fica por nossa conta. - Precisam de dinheiro? - Ah, sinhá dona, estamos sem um vintém.

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O ORBE, Maceió, quarta-feira, 16 de abril de 1884, Ed. 41, p. 2. Biblioteca Nacional, Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx. Data de acesso: 07/11/2012.

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- Tomem dez mil réis por conta. Recolham-se em algum lugar bem oculto, perto da fazenda, não quero que sejam vistos. Amanhã logo que acabem com o velho apareçam aqui. Muito cuidado. - Sim, sinhá dona. D. Rosa afastou-se daqueles dois miseráveis e dirigiu-se para casa. Leopoldo a tinha precedido. Estava assentado no batente da porta. - Tudo vai bem, Leopoldo, disse D. Rosa; tratei com os rapazes de certos negócios de que precisamos para obstar que aquele negocio se realize. Podes ir para casa, já são horas de descanso. Leopoldo dirigiu-se para casa murmurando; perdes teu tempo, mulher do diabo, não cairão nas mãos dos teus cúmplices, tão miseráveis como tu, nenhum dos três. O diabo do negro velho era bem digno de ter a paga que lhe destinam, mas infelizmente está longe. Tratemos de aparar os golpes. Podia enviar logo estes diabos para o inferno, mas quero primeiro caçoar de D. Rosa e de seus ajudantes, já que tiveram a lembrança de me sentenciarem à morte. Leopoldo dirigiu-se para casa de Santa Bárbara. Ia conferenciar com os companheiros. Os miseráveis cúmplices de D. Rosa estavam contentíssimos, era para eles uma fortuna. Queriam dinheiro ainda que fosse à custa de sangue. Ainda hoje temos o pesar de ver que o centro de nossa província continua no mesmo estado. Faltos de ilustração, levando uma vida toda cheia de peripécias sanguinolentas não conhecem os filhos do sertão outra lei, senão a do trabuco, para desafronta de seus ódios e dos ódios alheios contanto que um punhado de dinheiro pague aquele crime. Deixemos, porém os cúmplices de D. Rosa se deleitarem à custa do sangue humano e voltemos ao preto João Caçamba. Oculto nas matas das imediações da fazenda, não perdia João Caçamba uma só noite que não visitasse a fonte do Piripiri; mas D. Rosa não aparecia. Caçamba começava a se inquietar. Teria sido descoberta a trama? Ou d. Rosa se ocultava para não pagar o que prometera? Eis o que pensava João Caçamba. Se qualquer das duas hipóteses fosse verdadeira ele estava mal perto da fazenda. Mas que fazer! Queria receber o que lhe fora prometido, portanto estava disposto a esperar. Ir à fazenda, procurar D. Rosa, era coisa que não passava pelo espírito de Caçamba, e se alguma vez pensava nisto, a lembrança da caverna do diabo o fazia desistir do propósito.

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Ser visto na fazenda pelos negros, quando estes o julgavam distante, era o mesmo que se expor a uma morte certa. Não. Caçamba tinha por lei – quem espera sempre alcança. Na noite em que devia ser assassinado pelos cúmplices de D. Rosa, dirigiu-se Caçamba, já noite fechada, para a fonte do Piripiri. - Já é tarde, murmurou ele, mas talvez yaya se lembre hoje do pobre Caçamba, é bom esperar. Caçamba procurou uma pedra para assentar-se, mas neste momento sentiu-se inesperadamente agarrado por dois homens. Deitá-lo ao chão e amarrá-lo foi obra de momento. Caçamba não procurou livrar-se de seus agressores, a fina ponta de uma faca posta na garganta obrigou-o a ficar quieto. Os cúmplices de D. Rosa não se esqueceram de examinar a vitima. Os vinte mil reis ainda estavam intactos. - Então, Francisco, disse João, já temos os cobres, o maldito do negro está seguro, vou pregar-lhe a faca e lançá-lo ao rio. O negocio é num momento. - Homem, espera um pouco, respondeu o outro; acho melhor conduzi-lo para a beira do rio, porque assim ficamos livres de carregar este maldito. - Na verdade, lembraste bem, descemos com ele e aproveitamos a ocasião, de tomar um caldo na Imperatriz. A canja do Zé da Venda é excelente. - Larga os pés deste pobre diabo e passa-lhe com a corda um laço no pescoço, porque se quiser gritar, apertamos-lhe o laço e está pronta a coisa. Caluda, diabo, se gritas ou corres, morrerás. Caminha! Os três miseráveis embrenharam-se na mata. Leopoldo havia assistido toda a cena, oculto na mata, vira os cúmplices de D. Rosa apoderarem-se do velho Caçamba e desaparecerem com ele. Tomou o caminho da fazendo murmurando entre os dentes: os miseráveis por si se destroçam. Este maldito negro bem merecia a sorte que o espera. Chegando a entrada do povoado os cúmplices de D. Rosa pararam. Conduziram a vitima para a margem do Mundaú. A noite estava bastante escura. - Bem, João, disse Francisco, fica com o preso, enquanto eu vou à venda ver um pouco de cana. - Não, podemos deixar o negócio feito. Pregar a faca e atirar este danado negro no rio é obra de um momento. - Bem, é melhor, mãos à obra. Ouviu-se um grito fraco e o baque de um corpo no rio. 49

- Está acabado este pobre diabo, resmungou João; deve sentir hoje muito frio, mas quem mandou ele se meter em negócios que não lhe pertenciam? Não é preciso ficarmos aqui, vamos tomar um pouco da cana, porque a noite está fria, é preciso esquentar. Os dois assassinos dirigiram-se para uma taverna próxima. Deixemo-los, pois banquetearem-se com o produto de um crime e voltemos ao lugar do assassinato. O negro Caçamba não morrera. A faca do assassino desviara-se fazendo uma ferida perigosa, mas não mortal. O grito dado por ele e a queda de um corpo na água chamara a atenção de alguns pescadores. No momento em que os dois miseráveis retiravam-se para a taverna, chegavam os pescadores que ouviram o grito dado no teatro do crime. - Foi aqui, José, disse um deles; ouvi bem que o grito saiu deste lugar. - Mas nada vejo, Francisco, sem duvida algum gaiato para nos pregar alguma peça... - Não, homem, parece que a terra está aqui tinta. Tens fósforos? - Tenho. - Risca um, vamos ver o que é isto, sinto aqui um cheiro de sangue... - Homem, na verdade é sangue mesmo. Olha. - Não resta dúvida, mataram alguém. Acende o facho. (continua)

[até onde se sabe não foram mais publicados capítulos deste folhetim]

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