Transcrição de Três Raps Conscientes: I. “Na faixa de Gaza é assim”

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Transcrição de Três Raps Conscientes Lucas Ferrari, Alexei Michailowsky, Carlos Palombini * Com a música eletroacústica emerge nítido o duplo papel da partitura: função prescritiva, operatória, de bula para o executante; função descritiva, estrutural, de representação para o analista.1 O fato é que ninguém está interessado em refazer a obra, pois ela se encontra plenamente realizada em disco, fita magnética, fita digital, disco compacto, disco rígido ou na nuvem. Todavia sua análise requer uma representação do que, na infinidade de caracteres2 sonoros, seja perceptiva e estruturalmente relevante. Pelo menos até as primeiras décadas do século vinte, na música vocal-instrumental, a partitura de praxe atende satisfatoriamente à dupla função. Eletrônica ou — mais precisamente — eletroacústica, a música Funk Carioca prescinde de partitura. Decorre daí o problema do analista: como entendê-la sem registro representativo da transitoriedade das percepções aurais significativas? À primeira vista, uma partitura tradicional seria um desatino: é da natureza da música eletroacústica não ter seus valores representados na nota, abstração hierárquica de alturas temperadamente préfixadas, de durações submissas à métrica divisiva, e de intensidades aproximadamente relativas — nesta ordem precisa. Todavia, conquanto o Funk Carioca seja música eletroacústica no que diz respeito a seus meios, ele pertence menos à “tradição culta do ocidente” que à gama de manifestações da diáspora africana, sujeito a todo o tipo de mixagens transnacionais e aos processos inerentes de descontextualização e recontextualização. E a tradição tonal, por ser um dos materiais com o qual ele trabalha, à guisa de detrito, possibilita representações parciais através da notação costumeira convenientemente adaptada.                                                                                                                 *  Dedicamos

este trabalho ao MC Orelha, ao Praga, ao MC Smith, ao DJ Byano, ao MC Tovi e ao DJ Diogo de Niterói (hoje, MC Maneirinho). Ver, a esse respeito, Marco Stroppa, “The Analysis of Electronic Music”, Contemporary Music Review, vol. 1, nº 1, 175–180, 1984. 1

Utilizamos o termo caráter aqui com o significado que ele adquire no par valor/caráter do Solfejo do Objeto Sonoro de Pierre Schaeffer (Traité des objets musicaux: essai interdisciplines, Paris, Seuil, 1966). Na definição condensada de Michel Chion, “Os valores são os traços pertinentes, que emergem entre vários objetos organizados numa estrutura, e formam os elementos do discurso musical abstrato propriamente dito; os outros aspectos do objeto, que não são pertinentes na estrutura musical, mas constituem sua substância concreta, sua matéria, agrupam-se sob o nome caráter” (Michel Chion, Guide des objets sonores: Pierre Schaeffer et la recherche musicale, Paris, INA-GRM e Buchet/Chastel, 1983, 70). 2

Estas partituras constituem instrumento de análise cujo intuito não é dignificar a música da ralé através de figurações eruditas, mas inferir relações transculturais. Não se trata de estimular realizações sinfônico-corais de performances que consideramos definitivas e insuperáveis, porque, à imagem da floresta, a música é jovem e cheia de vida.

 

ii

Na Faixa de Gaza É Assim

Gustavo Lopes (Mc Orelha)

Capim Melado, Niterói, Março de 2009

Transcrição: Lucas Ferrari

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