Transexualidade e litigância estratégica em direitos humanos

May 19, 2017 | Autor: Júlia Silva Vidal | Categoria: Human Rights Law, Gender, Transexuality, Direitos Humanos, Direitos Humanos de Travestis e Transexuais
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CAPÍTULO 6 TRANSEXUALIDADE E LITIGÂNCIA ESTRATÉGICA EM DIREITOS HUMANOS Camila Silva Nicácio1 Júlia Silva Vidal2 Sophia Pires Bastos3

RESUMO: Entre as vulnerabilidades e violências de ordens diversas que circundam as experiências travestis e transexuais, a exclusão jurídica se apresenta enquanto uma das mais perversas no ciclo de invisibilização dessas experiências. O impedimento à realização do direito à identidade de gênero, em consonância com parâmetros internacionais e internos de proteção e garantia de direitos humanos, constitui óbice à realização de própria dignidade humana e da cidadania. Contudo, é esse mesmo direito que possui potencial de ser mobilizado como vetor de mudança social, mormente em prol do reconhecimento das identidades de gênero e dos direitos daí decorrentes. Diante disso, a atuação da Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Minas Gerais (Cdh/UFMG) se pauta na mobilização e articulação jurídica com vistas a promover direitos humanos da população transexual de Belo Horizonte. Assim, as atividades de advocacia estratégica em direitos humanos realizadas pela CdH/UFMG circunscrevem desde o âmbito individual de atendimento e judicialização de demandas até a provocação de impactos na esfera coletiva, a exemplo de recomendação ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais sobre a competência da Vara de Registros Públicos para a retificação de gênero e de ingresso como amicus curiae em caso no Supremo Tribunal Federal relativo à necessidade ou não de pessoas transexuais se submeterem à cirurgia de redesignação sexual para terem nome civil e gênero retificados. Palavras-chave: transexualidade; advocacia estratégica; mudança social; Clínica de Direitos Humanos da UFMG. ABSTRACT: Among all sorts of vulnerabilities and violence that surround transvestite and transsexual experiences, the legal exclusion presents itself as one of the most perverse in the cycle of invisibilization against those experiences. Barring the exercise to the right to gender identity, in line with both international and domestic guidelines of protection and promotion of human rights, constitutes an obstacle to the fulfillment of either citizenship or human dignity itself. However, it is this very Law that has the potential of being mobilized as a vector of social change, especially in favor of the recognition of gender identities and its resulting rights. In face of this context, the Human Rights Clinic of the Federal University of Minas Gerais, Brazil (CdH/UFMG) develops activities towards legal mobilization and articulation in order to promote human rights of transsexuals in Belo Horizonte. Therefore, the strategic advocacy for human rights performed by CdH/UFMG comprises from judicializing individual demands of register rectification to impacts in a collective sphere, for instance, presenting a legal opinion to the Tribunal of Justice of Minas Gerais on processual procedures 1

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Professora Adjunta da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Coordenadora da Clínica de Direitos Humanos (CdH) da UFMG. Doutora em Antropologia do Direito pela Université Paris I, Panthéon-Sorbonne. [email protected]. Graduanda em Direito na UFMG. Estagiária da CdH/UFMG e do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (NUH/UFMG). [email protected]. Graduanda em Direito na UFMG. Estagiária da CdH/UFMG. Pesquisadora voluntária do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG). Monitora da graduação do Grupo de Estudos em Direito Internacional dos Direitos Humanos (GEDI-DH/UFMG). [email protected].

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to register rectification for gender change and acting as amicus curiae in the Federal Supreme Court in a case of name and gender recognition without prior submission to sexual reassignment surgery. KEYWORDS: transsexuality; strategic advocacy, social change, Human Rights Clinic of the UFMG.

1. INTRODUÇÃO De todos os delicados temas relativos à vida social mais abrangente, um deles parece, por excelência e pelos desafios que coloca à própria imaginação jurídica, reclamar e merecer a atenção do profissional do direito nos dias de hoje: aquele relativo às experiências da transexualidade. Os dados disponíveis, ainda que relativamente escassos – o que, por si só, já diz muito sobre o lugar que o problema ocupa na agenda das mais variadas instituições –, apontam para um cenário em que a sujeição a estigmas, violências e vulnerabilidades de toda ordem são a tônica na vida da população transexual. Destacamos, aqui, um quadro nacional de extrema precariedade: segundo a ONG Internacional Transgender Europe4, entre janeiro de 2008 e abril de 2016, ocorreram 845 mortes de travestis e transexuais no país. Ainda, uma análise global desses dados permitiu à ONG inferir que o Brasil é responsável por 40% das mortes de pessoas transexuais que aconteceram no mundo desde 2008. No contexto local, a conjuntura é similar. Em pesquisa realizada pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da Universidade Federal de Minas Gerais (Nuh/UFMG) com as travestis e transexuais em prostituição em Belo Horizonte e região metropolitana5, de 141 entrevistadas que foram questionadas sobre já terem sofrido algum tipo de violência física (tapas, pedradas, lesões por arma de fogo etc.), 96,4% delas responderam de forma afirmativa. Quanto aos dados de violência sexual, 46,8% relataram ter sido submetidas a sexo forçado/estupro. Interessa-nos sondar em que medida a violência social, econômica, simbólica, entre outras, soma-se à violência do direito com relação a tal público, mormente no que toca ao não reconhecimento ou ao reconhecimento apenas parcial de seus direitos de cidadania. A questão do direito à identidade de gênero desponta, nesse contexto, como pilar de sustentação de toda e qualquer outra reivindicação por parte do público concernido. Afinal, como encarar, senão como a mais inequívoca violência – uma violência cujo agente, frisa-se, é o direito tal como 4

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Transgender Europe. IDAHOT 2016 – Trans Murder Monitoring Update. Press Release May 12 2016. Disponível em: . Acesso em: out/2016. Disponível em: . Acesso em: out/2016.

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interpretado pelos juristas –, a negligência quanto à dissonância entre os documentos pessoais e a realidade de um indivíduo, ou seja, entre seu registro civil, assim como enquadrado pelas normas vigentes, das quais o recorte pretensamente biológico ainda prepondera, e a própria representação que cada um tem de si mesmo? Como, perguntamos, arrimar reivindicações voltadas ao acesso à saúde, ao mercado de trabalho, ao ir e vir livre e desembaraçado em ambientes sociais diversos, entre outras, se não se reconhece, de saída, a importância do nome como uma das principais formas de expressão de gênero, cuja negação confina transexuais a um sem número de humilhações, constrangimentos e riscos diversos? A possibilidade de retificação não somente do nome, mas igualmente do gênero, impõe-se, desse modo, como condição sine qua non para o exercício, em sua acepção mais plena, de outros direitos. À luz desses primeiros apontamentos, tentaremos construir neste capítulo uma argumentação que desvele o potencial do direito como vetor de mudança social, quando e se mobilizado (2); a atuação da Clínica de Direitos Humanos da UFMG (CdH/UFMG), em conjunto com a Divisão de Assistência Judiciária da UFMG, na judicialização de demandas de retificação de registro e de gênero e na elaboração de recomendação sobre a competência das varas indicadas para tal retificação (3 e 4); assim como a estratégia da CdH/UFMG para intervir, em um âmbito mais abrangente, a título de amicus curiae, em ações tramitando tanto no Supremo Tribunal Federal quanto em instâncias inferiores, relativas ao mesmo tema (5). 2. MUDANÇA SOCIAL, DIREITO E OS CURSOS JURÍDICOS Em produção recente, Jacques Commaille (2015) interroga seus leitores com uma questão que não deixa de desafiar nossa imaginação e convidar à reflexão: para que nos serve o direito? – indaga o sociólogo francês. Sem desconsiderar a querela antiga, central na sociologia jurídica, entre os que apostam, por um lado, no papel “conservador” e, em outro, no papel “progressista” do direito frente à realidade social (SABADELL, 2014, p. 96), o autor pontua a duplicidade de papéis do direito nas sociedades, ao mesmo tempo como seu produto e seu produtor, donde sua importância na demonstração de como tais sociedades funcionam e se transformam (COMMAILLE, 2015, p. 384-385). O direito, nessa perspectiva, é não somente um instrumento de regulação social, mas se presta igualmente como um revelador da sociedade que ele regula, em suas mudanças, contradições, expectativas. Na análise da construção social do direito, Commaille o apreende em sua dualidade, ao apontar para sua função instrumental, consubstanciada

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nos efeitos diretos e concretos da atividade jurídica propriamente dita, e sua dimensão simbólica, reveladora, ao seu turno, do status que a ele se confere em uma determinada cultura. O autor falará, então, de uma “legalidade dual”, em que o direito se inscreve tanto no que diz respeito a uma “referência ou “razão transcendente” (o Direito com ‘D’ maiúsculo, na esteira de Pierre Legendre), quanto no que diz respeito a um “recurso, imanente ao que as sociedades são e aspiram a ser” (COMMAILLE, 2014, p. 90). Perceber a tensão entre tais dimensões não significa apenas conhecer mais e melhor o direito, mas compreender a organização do mundo social e a estruturação do político, globalmente considerado. A tensão a que nos referimos, tomando de empréstimo a obra do sociólogo francês, interessa-nos aqui como quadro analítico para identificarmos e compreendermos em que medida a mobilização do direito, como “recurso imanente da sociedade”, via atuação de novos atores sociais ao reivindicar novos instrumentos e arenas de participação, contribui para as mudanças sociais de que o próprio direito ulteriormente será índice de “referência”. Ao analisarmos a relação entre mudança social e direito, percebemos que existem várias camadas possíveis de observação, destacando-se, por exemplo, a intensidade da mudança, suas esferas de manifestação, bem como seu ritmo (SABADELL, 2014, p. 101 e s.). Interessa-nos chamar atenção para aquilo que nos parece o elemento mais importante na referida relação, qual seja, os agentes das mudanças e sua ação sobre o direito para, ao mobilizá-lo, reivindicar sua efetividade, denunciar abusos ou participar à sua coelaboração. Já se demonstrou (FONSECA; CARDARELLO, 1999) que, no turbilhão, profusão e diversidade das demandas sociais que clamam por reconhecimento, via efetivação ou elaboração de novos direitos, a mobilização da sociedade em seu redor se dá de maneira não isonômica – mesmo desorganizada, quando não fratricida, vide o exemplo das diferentes tendências dos feminismos – em um “grande mercado” de direitos que, saturado, tende a transformar demandas específicas em direitos “dos mais ou menos humanos”. Se é possível considerar a universalidade de algumas necessidades humanas essenciais, assim como demonstrado por Gustin (2010), tais como a sobrevivência, a integração societária, a maximização das competências coletivas e individuais de atividade criativa e a identidade, é igualmente plausível conceber que, quando da efetivação dos direitos, mormente em seu viés concreto, identificado na edição de políticas públicas ou de jurisprudências, tais necessidades tendem a ser traduzidas de modo abstrato e generalizado, sem atingir a particularidade reclamada por públicos específicos. Nesse contexto, a mobilização do direito por variados e múltiplos agentes tende a ter feição

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corretiva, para que se assegure o reconhecimento de projetos de vida não necessariamente hegemônicos e que merecem, a esse título, promoção e proteção por parte de um Estado democrático de direito que se assume como tal. A seguir, apresentaremos exemplos de mobilização do direito por parte de agentes sociais – a CdH/UFMG – no que toca às experiências de vida do público transexual, para o qual o direito, seja em sua função instrumental ou simbólica, tem uma dívida patente, notadamente deletéria para o sentido de cuidado e manutenção dos laços sociais. 3. OS ATENDIMENTOS SOCIOJURÍDICOS AO PÚBLICO TRANSEXUAL Como brevemente evocado supra, a discordância entre aparência, jeitos e comportamentos sociais das pessoas transexuais e seus documentos de identificação pessoal torna o nome de registro motivo de constrangimento e sofrimento nas situações em que há a obrigatoriedade de seu uso, dificultando, quando não inviabiliza tout court, o exercício da cidadania em seus diferentes níveis. A hipótese de um acolhimento de pessoa transexual em um posto de saúde, por exemplo, é não somente imagética como também altamente reveladora desse tipo de impasse. No Brasil de hoje, verifica-se a possibilidade de alteração, pela via judicial, do prenome considerado vexatório, isto é, embora a princípio imutável, o nome pode ser alterado em circunstâncias excepcionais, haja vista sua importância como identificador das pessoas em suas relações pessoais. Por analogia, e levando-se em conta o nome social como aquele pelo qual “pessoas transexuais se identificam e preferem ser identificadas, enquanto o seu registro civil não é adequado à sua identidade de gênero”6, aplica-se a esses casos o art. 58 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73), segundo o qual o prenome será definitivo, podendo, contudo, ser substituído por apelidos públicos notórios. À semelhança do nome, o gênero é registrado a partir de uma perspectiva puramente biológica no momento do nascimento, devendo sua retificação igualmente ser considerada para efeitos de promoção da cidadania plena dos indivíduos. Nessa perspectiva e com vistas à efetivação do direito à identidade de gênero para a população travesti e transexual de Belo Horizonte, a CdH/ 6

Cf. Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016, da Presidência da República, que dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais servidores públicos civis e militares em todo o território nacional. Frisa-se que a importância do nome social para a garantia e acesso a direitos vem sendo reconhecida cada vez mais no país, sendo matéria de portarias e decretos internos de inúmeras instituições.

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UFMG se propôs a realizar atendimentos e a judicializar demandas individuais que requeiram tais retificações em conjunto com a Divisão de Assistência Judiciária (DAJ) da Faculdade de Direito da UFMG. Para tais atendimentos, as equipes concernidas são preparadas a se atentarem à particularidade que as demandas requerem, o que implica não somente a utilização adequada do arsenal jurídico necessário à adjudicação dos casos em questão, mas igualmente – e de modo não menos importante – ao cuidado com o tratamento dos e das demandantes. Ademais, é igualmente importante destacar a inserção da propositura de ações individuais na atividade de litigância estratégica realizada pela CdH/ UFMG, uma vez que a fundamentação das petições se pauta em parâmetros internacionais de proteção e promoção aos direitos humanos, de modo a condicionar uma cultura jurídica – não apenas judicial – em torno de tais direitos. 4. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL E DE GÊNERO: COMPETÊNCIA DA VARA DE FAMÍLIA OU DE REGISTROS PÚBLICOS? Como referido no tópico anterior, a atribuição de gênero no momento do nascimento a partir de uma perspectiva puramente biológica e, ao mesmo tempo, a escolha de um nome que seja consoante com a expectativa social em torno do gênero atribuído nem sempre corresponderão à identidade de gênero autopercebida posteriormente. No entanto, embora a retificação da documentação pessoal seja substancial para realização da dignidade humana e mitigação de constrangimentos, na maioria dos casos não há observância a parâmetros de reconhecimento da identidade de gênero e de garantia de direitos humanos para sua concessão. Uma dessas inobservâncias, verificada a partir dos atendimentos supramencionados, é a incoerência do entendimento de ser a ação de retificação de gênero competência da Vara de Família, enquanto que a de nome civil seria da alçada da Vara de Registros Públicos. A análise, ainda que breve, da legislação pertinente ajuda-nos a compreender a natureza do imbróglio a que nos referimos. O art. 54 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73) estabelece, entre outros requisitos, que o assento do nascimento deverá conter o sexo do registrando e seu nome e prenome. Para sua retificação, tal lei dispõe que é necessário ajuizar uma ação nos termos do art. 109: Quem pretender que se restaure, supra ou retifique assentamento no Registro Civil, requererá, em petição fundamentada e instruída com documentos ou com indicação de testemunhas, que o juiz o ordene, ouvido o órgão do Ministério Público e os interessados, no prazo de 5 (cinco) dias, que correrá em cartório.

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Ainda, em Minas Gerais, o estabelecimento de competência das Varas de Família e de Registros Públicos se dá por meio da Lei de Organização e Divisão Judiciárias (LC 59/2001, atualizada pela LC 135/2004), nos seguintes termos: Art. 57 – Compete a Juiz de Vara de Registros Públicos: I – exercer as atribuições jurisdicionais conferidas aos Juízes de Direito pela legislação concernente aos serviços notariais e de registro; II – exercer a incumbência prevista no art. 2º da Lei Federal nº 8.560, de 29 de dezembro de 1992. III – processar e julgar as ações relativas a usucapião. (Inciso acrescentado pelo art. 19 da Lei Complementar nº 135, de 27/6/2014.) (...) Art. 60 – Compete a Juiz de Vara de Família processar e julgar as causas relativas ao estado das pessoas e ao Direito de Família, respeitada a competência do Juiz de Vara da Infância e da Juventude.

Não há dúvidas, portanto, quanto à competência da Vara de Registros Públicos para retificação de nome, que constitui mera informação no registro civil. Similarmente, tal correspondência deveria ser feita em relação à retificação de gênero, pois, como comentado acima, ele também deve constar no assento de nascimento. Não obstante, na grande maioria dos casos, referida retificação é entendida como competência absoluta da Vara de Família, sob a alegação de que o gênero não constituiria mero registro por estar atrelado ao “estado da pessoa”. Sua alteração demandaria modificação ou constituição de novo estado, conquanto a alteração registral apenas prova a situação jurídica do registrando e a torna conhecida por terceiros (MONTEIRO, 1966, p. 87), com base no princípio da publicidade. Assim, a inexatidão do ordenamento jurídico, associada à falta de legislação específica sobre o reconhecimento da identidade de gênero7, dá margens a entendimentos arbitrários sobre qual juízo seria o mais adequado. Thiago Coacci (2012, p. 85) entende ser o silêncio da lei pernicioso justamente “por deixar à mercê da interpretação dos julgadores a existência ou não dos referidos direitos, principalmente por tratar-se de questões extremamente polêmicas em que não há consenso entre os/as muitos/as magistrados/as”. A tensão entre a reivindicação por uma identidade, as lacunas do ordenamento jurídico e a prestação jurisdicional constitui obstáculo à 7

No sentido de implementar um marco normativo de reconhecimento das identidades e das expressões de gênero no Brasil, surge o Projeto de Lei 5.002/13, de autoria do deputado federal Jean Wyllys e da deputada federal Érika Kokay. O Projeto de Lei de Identidade de Gênero, também conhecido como Projeto de Lei João W. Nery, inspirado na legislação argentina, garante o direito de toda pessoa ao reconhecimento de sua identidade de gênero, ao livre desenvolvimento conforme sua identidade de gênero e ao tratamento de acordo com tal identidade, incluindo-se a identificação documental de sua identidade pessoal.

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realização da dignidade humana materializada na consonância entre documentos e realidade pessoais. Com vistas à alteração desse cenário de vulnerabilização no campo jurídico, a Clínica de Direitos Humanos da UFMG trabalha atualmente na elaboração de recomendação ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais, tecendo considerações sobre o porquê de a Vara de Registros Públicos ser a competente para julgar as ações de retificação de gênero (ainda, em conexão com a ação de retificação de registro civil). Em primeiro lugar, o argumento de que gênero não é registral não se sustenta. A indicação do gênero ocorre da mesma forma que, e simultaneamente, à do nome, fazendo-se constar no registro civil; inscrito no registro público, não haveria exigência de retificação que não na Vara de Registros Públicos. Diferentemente das ações que tramitam na Vara de Família, cujas sentenças terão efeito jurídico de alterar a realidade fática (a exemplo da ação de investigação de paternidade), a mudança de gênero de um(a) transexual nada mais é do que o reconhecimento e respaldo jurídico de uma realidade que já ocorre antes mesmo do ingresso com uma ação judicial. Nesse sentido, cita-se: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA – AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL – MODIFICAÇÃO DE PRENOME E SEXO – TRANSEXUALISMO – MERA ADEQUAÇÃO DE SUA ORIENTACAO NO PLANO SOCIAL, EIS QUE JÁ VIVE PUBLICAMENTE COMO MULHER - PEDIDO ESTRITAMENTE REGISTRAL – COMPETÊNCIA PARA PROCESSAR E JULGAR DO JUIZ DA VARA DE REGISTROS PÚBLICOS, ACIDENTES DO TRABALHO E PRECATÓRIAS CÍVEIS DA CAPITAL – CONFLITO PROCEDENTE PARA DECLARAR A COMPETÊNCIA DO D. JUIZ SUSCITADO. (TJPR. 12ª Câmara Cível em Composição Integral – Conflito de Competência 381763-6. Relator: Rafael Augusto Cassetari. Unânime. Julgamento em 28.03.2007). (Grifos nossos)

Ações que versam sobre o estado da pessoa, por sua vez, estão diretamente ligadas à esfera privada do indivíduo, possuindo natureza tal em que deve o Estado intervir ou tutelar em prol da segurança jurídica e do bem-estar social. A tutela das transidentidades, porém, se revela enquanto violação da privacidade e da intimidade pessoal. Não há real chancela de direitos ou busca da manutenção e seguridade da ordem pública, mas ingerência na esfera privada e na definição do que é ser “transexual de verdade”. Isso porque, em diversos julgados que defendem a declinação de competência para ou a competência absoluta da Vara de Família, preocupa-se mais com a repercussão daquela alteração na sociedade do que com a sua imprescindibilidade do ponto de vista do reconhecimento das experiências travestis e transexuais.

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Nesse sentido, a mitigação da autonomia e do direito à identidade de gênero contribui ao reiterar uma concepção patologizante da transexualidade, segundo a qual a autodeterminação deve ser relativizada e tutelada em prol da segurança jurídica; este sendo o segundo viés argumentativo pró-Vara de Família. Presumidamente, a retificação na Vara de Registros Públicos ocorreria de forma mais fácil, não apenas favorecendo seu pleito com fins ilícitos, a exemplo de fraude em contratos e casamento por erro, mas também permitindo que o(a) demandante se arrependesse no futuro. Em contrapartida, o aparato da Vara de Família, com oferecimento de suporte psicológico e de assistência social, constituiria obstáculo a pretensões ilícitas. Tais concepções se conectam por um aspecto temporal, vez que se pautam em resultados hipotéticos em um tempo futuro e incerto. Isso provoca um efeito inequívoco: o deslocamento do objetivo central de se reconhecer a identidade de gênero reivindicada naquele momento pelo(a) requente transexual, para uma ocorrência futura cuja certeza é apresentada como inquestionável (LIMA, 2015, p. 141), mas que não o é. Uma decisão-chave para o entendimento do cerne da possibilidade de lesão a terceiros é: Um terceiro, de boa-fé, levado pela aparência física de um operado, ou mesmo pelo amor, poderá chegar ao casamento. Realizado o ato sob o aspecto legal, no momento da consumação, ou até mesmo quando buscar a constituição de prole, esse terceiro descobre a verdade. O casamento foi contraído com pessoa do mesmo sexo. Quem induziu essa pessoa a erro? Foi apenas o operado? Penso que não. De qualquer forma, está aí um caso clássico de prejuízo a terceiro. Ainda que obtenha a anulação do casamento, sob o aspecto moral, sob o aspecto psíquico, essa pessoa sofrerá consequências, que podem ser indeléveis. Imaginem os senhores como essa pessoa enfrentará o convívio de seus circunstantes. (TJMG. 4ª Câmara Civel. Embargos Infringentes nº 1.0000.00.2960763/001. Relator: Almeida Melo. Julgamento em 22/04/2004, publicação em 08/06/2004)

Dessa forma, verifica-se que não há fundamento jurídico a tal restrição de direitos, e sim uma fundamentação baseada em mitos sociais, discriminatórios e reprodutores de normatividades de gênero consideradas “normais/aceitáveis”. Em elucidação analógica, criticam Roger Rios e Alice Risadori a sustentação de que mulheres transexuais não deveriam utilizar banheiros femininos devido ao suposto risco que elas representariam às demais usuárias, em relação ao RE 845.779/SC, julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 20158: 8

O recurso versa sobre o direito de pessoas transexuais serem tratadas conforme sua identidade de gênero diante do caso de uma transexual proibida de utilizar o banheiro feminino em um shopping center em Florianópolis, SC.

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Ainda no território do medo, também não se sustentaria apelar para a precaução diante de quem falsamente se fizesse passar por transexual feminina objetivando adentrar nas instalações sanitárias. Sem mencionar a ausência de registros de tal prática, uma medida dessa espécie violaria duplamente o direito de igualdade. A um, por ser superinclusiva, por alcançar injustamente pessoas transexuais sem qualquer relação com aqueles a quem a medida se destina. A dois, por ser subinclusiva, por deixar de fora outras situações em que outros expedientes similares poderiam ser utilizados, tais como a utilização de vestimentas típicas que dificultem a identificação, como hábitos religiosos ou étnicos. Ausente fundamento racional no risco à segurança como fundamento para a proibição de utilização dos banheiros, convence menos ainda a invocação de constrangimento por parte das demais usuárias. Em sociedades plurais e democráticas, o incômodo ou constrangimento alheio não autorizam a restrição de direitos fundamentais de terceiros, desde que não ocorra prejuízo relevante aos demais. [...]. (LOPES apud RIOS; RISADORI, 2015, p. 214). (Grifos nossos)

A retificação de gênero na Vara de Registros Públicos, por sua vez, não apenas é necessária do ponto de vista da efetivação de direitos, como também o é do ponto de vista processual. Nesse ponto, cumpre ressaltar as obrigações derivadas da ratificação da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH)9 ou Pacto de San José da Costa Rica, integrada ao direito interno por meio do Decreto 678/92. Seu art. 25.1, que versa sobre o direito humano à proteção judicial, estabelece que: Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.

Já o art. 2º do Pacto de San José prevê, expressamente, a obrigação dos Estados-Parte da CADH de adotarem medidas internas de adequação do ordenamento jurídico – e das práticas jurídicas estatais – às disposições da Convenção. O denominado “controle de convencionalidade” se relaciona, portanto, com alterações administrativas, legislativas, judiciárias ou de qualquer natureza que se harmonizem com a CADH e, por conseguinte, que promovam os direitos humanos em consonância com parâmetros internacionais de tutela. 9

No que se refere a tratados internacionais sobre direitos humanos, cabe ressaltar que o § 3º do art. 5º da Constituição da República os iguala às emendas constitucionais, quando tenham sido aprovados, nas duas casas do Congresso, em dois turnos, segundo o quórum de três quintos dos seus membros. Ainda, o Supremo Tribunal Federal já entendeu, em sede do julgamento conjunto dos Recursos Extraordinários nº 349.703-1 e 466.343-1 e dos Habeas Corpus 87.585 e 92.566, pelo status supralegal dos tratados de Direitos Humanos que não cumpram com o requisito do § 3º, art. 5º, de modo que eles se encontrariam hierarquicamente acima da legislação infraconstitucional.

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Ao que nos interessa, compreendido o direito à identidade de gênero enquanto categoria protegida pela obrigação de respeitar e garantir os direitos estabelecidos pela CADH sem discriminação por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer natureza ou qualquer outra condição social10 (CORTE IDH, 2012), o Brasil tem o dever de alterar seu ordenamento e/ou sua prática jurídica para efetivar tal direito (CORTE IDH, 2006)11. Caso contrário, o país incorrerá em responsabilidade internacional pela inconvencionalidade de suas normas e atos na esfera doméstica. No caso, o julgamento da retificação de gênero pela Vara de Registros Públicos propiciaria a efetivação dos princípios da duração razoável do processo e da economia processual, uma vez que a celeridade processual é menor na Vara de Família, que comporta um número maior e mais complexo de casos. Ter-se-ia, de fato, a garantia do recurso idôneo, simples, rápido e efetivo como disposto no mencionado art. 25, CADH, evitando demoras injustificadas não apenas no exercício do Poder Judiciário, mas também na concretização do direito material. Ademais, partindo-se da reivindicação por um nome que de fato represente a identidade do(a) demandante, tendo em vista o entendimento de que esse instituto se divide entre “de homens e de mulheres”, é possível entender a consequente demanda pela retificação de gênero na mesma ação. O reconhecimento da identidade de gênero, por conseguinte, constitui a causa de pedir de ambas ações; processualmente, cabe a conexão, além de a parte interessada ser a mesma12. As duas ações devem tramitar juntas, na mesma vara, de modo a evitar decisões conflitantes. Entretanto, a sustentação de que a Vara de Família possui competência absoluta quanto à alteração de gênero obsta essa aplicação. Diante de tais considerações, utiliza-se a recomendação ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais enquanto instrumento de advocacia estratégica13, 10 11

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CADH, art. 1.1. Caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile. § 124: “La Corte es consciente que los jueces y tribunales internos están sujetos al imperio de la ley y, por ello, están obligados a aplicar las disposiciones vigentes en el ordenamiento jurídico. Pero cuando un Estado ha ratificado un tratado internacional como la Convención Americana, sus jueces, como parte del aparato del Estado, también están sometidos a ella, lo que les obliga a velar porque los efectos de las disposiciones de la Convención no se vean mermadas por la aplicación de leyes contrarias a su objeto y fin, y que desde un inicio carecen de efectos jurídicos. En otras palabras, el Poder Judicial debe ejercer una especie de “control de convencionalidad” entre las normas jurídicas internas que aplican en los casos concretos y la Convención Americana sobre Derechos Humanos. En esta tarea, el Poder Judicial debe tener en cuenta no solamente el tratado, sino también la interpretación que del mismo ha hecho la Corte Interamericana, intérprete última de la Convención Americana”. Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015). Art. 55. Reputam-se conexas 2 (duas) ou mais ações quando lhes for comum o pedido ou a causa de pedir. Para uma abordagem mais abrangente sobre advocacia estratégica, remetemos o leitor ao artigo “Ferramentas “clínicas” na advocacia estratégica em direitos humanos”, de autoria de Letícia Soares Peixoto Aleixo, Lorena Parreiras Amaral e Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau, na presente obra.

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capaz de alterar a prática jurídica interna com base em parâmetros internacionais de proteção aos direitos humanos e garantir a realização de direitos. 5. A UNIVERSIDADE NA FÁBRICA DAS DECISÕES: A INTERVENÇÃO A TÍTULO DE AMICUS CURIAE Ainda, dentre as atividades de litigância estratégica da Clínica de Direitos Humanos relacionadas à população de transexuais, destaca-se a possibilidade de intervenção como amicus curiae em esferas do judiciário brasileiro. Por sua clareza e simplicidade, adotamos aqui o entendimento de Menetrey (2010), para quem referido instituto se baseia na intervenção espontânea e sistemática de terceiros em casos em que há inequívoca importância jurídica e social, objetivando melhor esclarecimento do juiz da causa. Assim, o amicus curiae, visando possibilitar a participação de organizações da sociedade civil no processo, democratizando-o, encontra previsão no Novo Código de Processo Civil, art. 138, in verbis: Art. 138. O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação. § 1º A intervenção de que trata o caput não implica alteração de competência nem autoriza a interposição de recursos, ressalvadas a oposição de embargos de declaração e a hipótese do § 3º. § 2º Caberá ao juiz ou ao relator, na decisão que solicitar ou admitir a intervenção, definir os poderes do amicus curiae.

Tivemos recentemente (NICÁCIO; VIDAL; VIANA, 2016) a oportunidade de apontar o potencial do referido instituto de contribuir para a promoção, a efetivação e quiçá a criação de direitos humanos fundamentais, vez que, ao intervir no processo objetivando o aperfeiçoamento das decisões judiciais, garante, a um só tempo, tanto a participação e representação cidadã alargada nele, quanto a atenuação do “déficit democrático de atuação do judiciário brasileiro” (BUENO, 2008, p. 137). Já sendo a intervenção como amicus curiae em julgamentos do Supremo Tribunal Federal prática de diversas instituições que promovem direitos de minorias vulnerabilizadas, o Novo Código de Processo Civil inaugura um novo momento processual brasileiro, uma vez que não restringe a possibilidade de utilização do instituto em processos de caráter objetivo14. 14

Conferir, nesse sentido, “Ferramentas “clínicas” na advocacia estratégica em direitos humanos”, de autoria de Letícia Soares Peixoto Aleixo, Lorena Parreiras Amaral e Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau, na presente obra.

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Dessa maneira, a primeira intervenção realizada pela CdH/UFMG se situou em um processo que, atualmente, se encontra na 2ª Vara de Família da Comarca de Belo Horizonte, em primeira instância15, em que um homem transexual pleiteia a retificação de nome e de gênero, conjuntamente, e sem ter realizado cirurgia de redesignação sexual. Em seguida, a CdH/UFMG elaborará manifestação de amicus curiae em sede do Recurso Extraordinário nº 670.422, recurso que versa justamente sobre a possibilidade ou não de alteração de nome e gênero de transexual sem prévia realização de referida cirurgia. Frisa-se, inclusive, que foi reconhecida a repercussão geral no caso, aduzida pelo ministro relator Dias Toffoli: As matérias suscitadas no recurso extraordinário, relativas à necessidade ou não de cirurgia de transgenitalização para alteração nos assentos do registro civil, o conteúdo jurídico do direito à autodeterminação sexual, bem como a possibilidade jurídica ou não de se utilizar o termo transexual no registro civil, são dotadas de natureza constitucional, uma vez que expõe os limites da convivência entre os direitos fundamentais como os da personalidade, da dignidade da pessoa humana, da intimidade, da saúde, entre outros de um lado, com os princípios da publicidade e da veracidade dos registros públicos de outro. Assim, as questões postas apresentam nítida densidade constitucional e extrapolam os interesses subjetivos das partes, pois, além de alcançarem todo o universo das pessoas que buscam adequar sua identidade de sexo à sua identidade de gênero, também repercutem no seio de toda a sociedade, revelando-se de inegável relevância jurídica e social. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Repercussão Geral no Recurso 670.422. Relator Ministro Dias Toffoli. Julgado em 20/08/2014)

O caso em questão problematiza demandas prementes da população transexual, uma vez que o entendimento de que a pessoa transexual deve, necessariamente, realizar modificações corporais como a hormonização e a cirurgia de redesignação sexual parte de uma concepção patologizante das transidentidades, segundo a qual a modificação do corpo serviria à “cura” da “disforia de gênero”16. Tais alterações devem ser retiradas da centralidade da reivindicação da identidade de gênero em prol de um abandono da “genitalização das identidades”, principalmente enquanto requisito para a efetivação de direitos como a concessão da retificação de documentos. Como explicado por Leonardo Tenório e Marco Aurélio Prado, É interessante pensar que o sofrimento atribuído à suposta incoerência que se designou nos manuais médicos entre o sexo biológico e identidade de gênero da pessoa trans, 15

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Processo nº 5025403-15.2016.8.13.0024 (segredo de justiça). Cabe ressaltar que a competência da Vara de Registros Públicos foi declinada para a Vara de Família após a distribuição do processo, exemplificando o entendimento do Tribunal de Justiça de Minas Gerais sobre o assunto debatido no tópico 4 do presente capítulo. A transexualidade ainda possui classificação de distúrbio psicológico, listado na Classificação Internacional de Doenças (CID10 F54 – Transexualismo), categorizado no grupo de transtornos mentais e comportamentais.

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numa leitura lógica, teria de vir como decorrência da incapacidade da pessoa trans de vivenciar e expressar suas masculinidades e/ou feminilidades em função de seu corpo. Mas na verdade as pessoas já vivenciam formas de masculinidades mesmo tendo um corpo totalmente do sexo considerado “feminino” ou feminilidades mesmo tendo um corpo totalmente do sexo considerado “masculino”. A pessoa já se identifica como detentora de sentimentos intrínsecos de masculinidade ou feminilidade sem nenhuma transformação corporal e mesmo sem reivindicar socialmente o reconhecimento no gênero com o qual se identifica. (TENÓRIO; PRADO, 2016, p. 44)

Nesse sentido, cumpre destacar a abordagem conferida à transexualidade pelo Sistema Único de Saúde que, por meio da Portaria 2.803/13 do Ministério da Saúde, determina e estabelece diretrizes para o denominado “processo transexualizador”. Ao que nos interessa, referida normativa retira a cirurgia da centralidade do processo terapêutico17 e evidencia que esse não é um requerimento obrigatório a todos(as) os(as) transexuais, respeitando, sobretudo, a autonomia do indivíduo. Tal portaria dispõe: Art. 2º São diretrizes de assistência ao usuário(a) com demanda para realização do Processo Transexualizador no SUS: I – integralidade da atenção a transexuais e travestis, não restringindo ou centralizando a meta terapêutica às cirurgias de transgenitalização e demais intervenções somáticas; Parágrafo único. Compreende-se como usuário(a) com demanda para o Processo Transexualizador os transexuais e travestis. (Grifos nossos)

O assunto também já foi tema da I Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça, em 2014, em que se elaboraram os Enunciados 42 e 43: ENUNCIADO N.º 42 Quando comprovado o desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto, resultando numa incongruência entre a identidade determinada pela anatomia de nascimento e a identidade sentida, a cirurgia de transgenitalização é dispensável para a retificação de nome no registro civil. ENUNCIADO N.º 43 É possível a retificação do sexo jurídico sem a realização da cirurgia de transgenitalização. 17

Nesse sentido, Lionço esclarecerá que “A reunião sobre o Processo Transexualizador no SUS, portanto, enfatizou a necessária despatologização da transexualidade como estratégia de promoção da saúde, e afirmou a pluralidade na transexualidade, considerando que a autonomia da pessoa transexual na tomada de decisão sobre as medidas necessárias a uma melhor qualidade de vida seria fundamental para que a atenção à saúde não dispusesse novos mecanismos de controle e normatização sobre as condutas e modos de vida e de subjetivação. As cirurgias, portanto, passaram a ser compreendidas como parte ou não do Processo Transexualizador, e a discussão superou o viés medicalizador e correcional para o foco na garantia do direito à saúde integral”. (LIONÇO, 2009, p. 9).

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Em resumo, transexuais podem querer ou não se submeter a modificações corporais do tipo cirúrgica18 em consonância com o gênero identificado, como conclui Maria Berenice Dias: A cirurgia não pode ser um critério para alteração do registro civil. Ela é consequência da vontade, advinda da experiência pessoal de cada transexual, do nível do conhecimento médico, da disposição em enfrentar uma cirurgia arriscada, enfim, de fatores de ordem pessoal e tecnológica, que não pode ser um limitador à obtenção da tutela jurídica, sob pena de afrontar-se o direito à saúde. (2012, p. 187)

Podem-se determinar, portanto, cumpridos os requisitos19 quanto à matéria – relevância social, especificidade do tema e repercussão social da controvérsia – para ingresso como amicus curiae nos termos do art. 138, CPC, além da representatividade adequada da CdH/UFMG para tanto. Vale ressaltar que o pretendido ingresso como “amigo da corte” no citado RE 670.422 será realizado em conjunto com o Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (Nuh/UFMG) e a Divisão de Assistência Judiciária (DAJ/UFMG), organizações universitárias que têm, a exemplo da CdH/UFMG, o trabalho voltado à promoção de direitos humanos. Pontua-se, por fim, que o trabalho em rede, assim como pretendido, constitui a escolha epistemológica e metodológica mais adequada, pois que assume a realidade de uma situação complexa, carente de abordagem no mínimo interdisciplinar e interinstitucional para que os desafios sejam aos poucos enfrentados. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao considerarmos o direito, assim como nos propõe Commaille (2014, p. 159), como um “espelho excepcional das transformações sociais e políticas das sociedades, bem como uma das chaves para compreender a significação das mesmas”, tenderíamos a fazer na contemporaneidade brasileira um balanço ao mesmo tempo melancólico e animador. Se, por um lado, observam-se mitos e preconceitos a atravancar a prática judiciária e, em última instância, comprometer o acesso à justiça de parcelas largamente marginalizadas da população, haja vista o público de que tratamos na presente 18

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Destaca-se, ainda, que homens e mulheres transexuais fazem uso indiscriminado de hormônios desde tenra idade, a fim de construir seu corpo e experiência com o gênero reivindicado. É o que o Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT atestou recentemente em pesquisa intitulada “Direitos e Violências na experiência de travestis e transexuais em prostituição em Belo Horizonte e região metropolitana”. Os dados e análises produzidas indicam que 92,9% faziam uso de hormônio no momento da pesquisa, 64,12% das entrevistadas começou a fazer uso dessa medicação entre 10 e 17 anos, e apenas 2% obtiveram informações sobre o uso a partir do sistema de saúde. Ainda que alternativos, entendemos estarem presentes os três.

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reflexão, por outro lado, assinala-se e identifica-se de mais a mais a pressão de grupos para uma mobilização do direito que leve em conta a necessidade não só de efetividade do que já se encontra garantido, como da edição do novo, do direito que vem. Este, em um Estado plural e democrático, deve ser tendencialmente mais aberto e permeável a vivências múltiplas, não hegemônicas, dissidentes. O exemplo aqui trazido de mobilização do direito via metodologia clínica inscreve-se naquilo que se convencionou chamar de “uso militante do direito” (LOCHACK, 2016) e deixa augurar de mudanças jurídicas e sociais que impactem não somente os diretamente concernidos por uma demanda específica como toda a extensão do tecido social em que eles se inserem. Tais mudanças, vistas do “espelho” e levada em conta a relação de dualidade entre o que se produz e o que é produzido na vida social, implicam uma nova visão de mundo, que, por sua vez, reclama uma visão renovada do direito. Esta, ao seu turno, supõe o desenvolvimento de novas maneiras de estudá-lo e abordá-lo, para o que a experiência recente das clínicas jurídicas no Brasil, ao alinhar pesquisa, ensino e extensão, pode trazer uma importante contribuição. REFERÊNCIAS BUENO, Cássio Scarpinella. Quatro perguntas e quatro respostas sobre o amicus curiae. Revista da Escola Nacional de Magistratura, v. 2, n. 5, abr. 2008, p. 132-138. COACCI, Thiago. A transexualidade no/pelo Judiciário Mineiro: um estudo dos julgados do TJMG correlatos à transexualidade no período de 2008 a 2010. Revista Três Pontos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012, p. 81-92. COMMAILLE, Jacques. À quoi nous sert le droit? Paris: Gallimard, Folio Essais. 2015. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Relação de Enunciados aprovados pela plenária da I Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça em 15 de Maio de 2014. São Paulo, SP. Disponível em: . Acesso em: out/2016. Corte IDH. Caso Almonacid Arellano y otros vs. Chile. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Custas. Sentencia de 26 de septiembre de 2006. Serie C, n. 154. Corte IDH. Caso de Karen Atala Riffo e hijas vs. Chile. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de febrero de 2012. Serie C, n. 239. DIAS, Maria Berenice. União homoafetiva: o preconceito & a Justiça. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 5. ed., 2012. FONSECA, Cláudia; CARDARELLO, Andrea. Direitos dos mais ou menos humanos. Horizontes Antropológicos. Ano 5, n. 10, maio/1999. pp. 83-121. GUSTIN, Miracy B. S. Reflexões sobre os direitos humanos e fundamentais na atualidade: transversalidade dos direitos, pluralismo jurídico e transconstitucionalismo. In: SALIBA, Aziz Tuffi; ALMEIDA, Gregório Assagra de; GOMES JR, Luiz Manoel (org.) Direitos Fundamentais e a função do Estado nos planos internos e internacional. Vol. 2. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2010. LIMA, Luiza Ferreira. A “verdade” produzida nos autos: uma análise de decisões judiciais sobre retificação de registro civil de pessoas transexuais em Tribunais brasileiros. 2015. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. Disponível em: . Acesso em: ago./2016.

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