Transformação urbana de uma área histórica: o Bairro Alto. Reabilitação, Identidade, Gentrification.

July 3, 2017 | Autor: Fabiana Pavel | Categoria: Identity (Culture), Gentrification, Reabilitação Urbana
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TRANSFORMAÇÃO URBANA DE UMA ÁREA HISTÓRICA: O BAIRRO ALTO. REABILITAÇÃO, IDENTIDADE E GENTRIFICATION. Doutoramento em Arquitetura Especialização em Conservação e Reabilitação FABIANA PAVEL ORIENTADOR CIENTÍFICO Professora Doutora Arquiteta Isabel Ortins de Simões Raposo CO-ORIENTADOR CIENTÍFICO Professora Doutora Arquiteta Ana Cláudia da Costa Pinho CONSTITUIÇÃO DO JÚRI: Presidente: Doutor José Manuel Pinto Duarte, Professor Catedrático, Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa. Vogais: Doutora Isabel Ortins Simões Raposo, Professora Associada, Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa; Doutor José Manuel Aguiar Portela da Costa, Professor Associado, Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa; Doutora Maria da Graça Índias Cordeiro, Professora Auxiliar com Agregação, ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa; Doutora Cristina Soares Ribeiro Gomes Cavaco, Professora Auxiliar, Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa; Doutor Hélder Alexandre Carita Silvestre, Professor Auxiliar, Escola Superior de Artes Decorativas da Fundação Ricardo Espírito Santo. Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor Documento definitivo Junho 2015

Financiamento:

Imagem da capa: Calçada portuguesa. Foto da autora.

RESUMO A cidade contemporânea apresenta um amplo leque de desafios e contradições. A globalização económica neoliberal tem produzido uma cidade cada vez mais fragmentada e desigual. Estas características observam-se na relação do(s) centro(s) urbano(s) com as periferias, na configuração destas últimas, bem como na transformação em curso nas áreas centrais e históricas. É sobre este último tema que a presente investigação disserta, centrando-se num caso de estudo específico: o Bairro Alto em Lisboa. A revisitação das noções de identidade, gentrification, reabilitação e renovação urbana de áreas centrais históricas, e a reflexão sobre as teorias subjacentes nos dois primeiros capítulos da tese serve de suporte à leitura aqui tecida sobre o Bairro Alto, numa perspectiva histórica, desde a sua origem até à atualidade, no âmbito arquitetónico-urbanístico, das dinâmicas socio-espaciais e das políticas urbanas. Esta abordagem ao mesmo tempo diacrónica e sincrónica, visa entender as transformações urbanas em curso e o seu impacto na identidade do bairro forjada ao longo de séculos, com o objectivo último de contribuir para a sua revalorização. A contextualização histórica da construção espacial e social da identidade do Bairro Alto nos capítulos 3 e 4, serve de enquadramento à análise e reflexão aqui tecidas sobre as políticas e práticas públicas (capítulo 5) e as intervenções privadas recentes e/ou em curso (capítulo 6) no Bairro Alto. Através deste olhar pretendeu-se caraterizar e distinguir as políticas e práticas que visam o reforço da identidade local das que tendem para processos de gentrification. Apesar do grande avanço teórico no âmbito da reabilitação que visa alcançar a sustentabilidade urbana nas dimensões ambiental, económica e social, as forças económicas dominantes e os interesses privados rumam na direção oposta. Para o caso específico do Bairro Alto, esta tese mostra que os interesses económicos dominantes têm vindo a desmantelar o seu carácter espacial, cultural e social e apela a políticas que revalorizem a forte identidade que marca o Bairro Alto desde as suas origens. Palavras-chave: Bairro Alto; identidade; gentrification; reabilitação VS renovação.

ABSTRACT Contemporary cities present a wide range of challenges and contradictions. Neoliberal economic globalisation has resulted in increasingly fragmented, unequal cities. These characteristics are readily observed in centre-periphery relations, in the configuration of suburban areas, as well as in the ongoing transformation of inner city historic areas. The present research is a dissertation on the latter theme, focussing on a specific case study: Lisbon's Bairro Alto area. The first two chapters of this dissertation offer a revisitation of the notions of identity, gentrification, urban rehabilitation and renewal of historic central areas, and a reflection on their underlying theories, serving to ground the interpretation given here of Bairro Alto, from an historical perspective, since its origins to the present day, using urban planning-architectonic, social-space dynamics and urban policies frameworks. This approach, at once diachronic and synchronic, is geared to understanding the urban transformations now underway and their impact on the identity of the neighbourhood, formed through the centuries, with the ultimate aim of contributing to a reappraisal of this identity. The historical contextualisation of the spatial and social construction of Bairro Alto's identity, in chapters 3 and 4, serves to frame the analysis and reflection on public policies and action (chapter 5) and private interventions, recent and/or underway (chapter 6) in Bairro Alto. The aim of this analysis and reflection is to characterise and distinguish policies and action that seek to reinforce local identity from those that tend to processes of gentrification. Despite the great theoretical advances in the field of rehabilitation geared to achieving urban sustainabillity in the environmental, economic and social dimensions, the prevailing economic forces are headed in the opposite direction. In the specific case of Bairro Alto, the present dissertation demonstrates that the prevailing economic interests have been breaking up its spatial, cultural and social character, and calls for policies that reappraise the strong identity that Bairro Alto has shown since its origins. keywords: Bairro Alto; identity; gentrification; rehabilitation vs. renewal.

SOMMARIO

La città contemporanea presenta un’ampia serie di sfide e contraddizioni. La globalizzazione economica neoliberale ha creato una città sempre più frammentata e diseguale. Tali caratteristiche si possono osservare nel rapporto dei centri urbani con le periferie, nell’aspetto di queste ultime, così come nella trasformazione in atto delle zone centrali e storiche. È quest’ultimo argomento che la presente ricerca intende trattare, concentrandosi su un oggetto di studio specifico: il Bairro Alto (Lisbona). La rivisitazione dei concetti di identità, gentrification, riabilitazione e rinnovamento urbano delle zone storiche del centro, e la riflessione sulle teorie relazionate nei primi due capitoli della tesi fungono da base per la lettura qui elaborata in merito al Bairro Alto, in una prospettiva storica, dalla sua nascita fino al giorno d'oggi, nell’ambito architettonico-urbanistico, delle dinamiche socio-spaziali e delle politiche urbane. Questo approccio allo stesso tempo diacronico e sincronico, intende mostrare il significato delle trasformazioni urbane in atto e il loro impatto su quella identità del quartiere plasmata nel corso di secoli, con l’intenzione finale di contribuire alla sua rivalutazione. Porre in un contesto storico la costruzione spaziale e sociale dell’identità del Bairro Alto nei capitoli 3 e 4, serve da cornice all’analisi e alla riflessione qui sviluppata sulle politiche e sulle pratiche pubbliche (capitolo 5) e sugli interventi privati recenti e/o in corso (capitolo 6) nel Bairro Alto. Attraverso questo sguardo si è cercato di descrivere e distinguere le politiche e gli interventi che mirano al rafforzamento dell’identità locale da quelle invece che tendono ad un processo di gentrification. Malgrado il grande sviluppo teorico della riabilitazione per la sostenibilità urbana in ambito ambientale, economico e sociale, le forze economiche predominanti e gli interessi privati si muovono in direzione opposta. Nel caso specifico del Bairro Alto, questa tesi mostra come gli interessi economici prevalenti abbiano smantellato quel suo carattere spaziale, culturale e sociale e sollecita alla realizzazione di interventi che diano nuovamente valore alla forte identità che caratterizza il Bairro Alto fin dalle sue origini.

Parole-chiave: Bairro Alto; identitá; gentrification; riabilitazione VS rinnovamento.

Na página anterior: pormenor de uma montra de alfarrabista na Rua de São Pedro de Alcântara. Foto da autora.

À Isabel Raposo e à Ana Pinho, orientadoras e amigas, por terem exigido, por me terem apoiado, por terem acreditado. Ao meu pai, sem o qual nada poderia ter acontecido, e que confia sempre, mesmo quando não percebe imediatamente as minhas razões (coisa difícil para um químico!). À minha tia e à minha avó, mulheres de armas. À Anabela Couto, amiga e irmã adotiva, conselheira paciente, sempre pronta a ouvir os meus desabafos e a tentar, com todas as forças, tornar lumiosos os dias mais cinzentos. À Anna Fodale, por tudo aquilo que ela sabe, e muito mais…se calhar também por me acordar todas as manhãs (…mas não tenho certeza com relação a isso!). À Loredana Calabrese amiga única, mio muro del pianto, sempre disposta a ouvir e a encher os meus dias de aguarelas, de esperança e de razões para continuar em frente. Um agradecimento muito especial para a minha família adotiva, sem a qual tudo seria muito mais difícil e triste: à D. Rosa e aos seus abraços e conselhos mágicos, e à Cláudia, pela pureza da sua amizade; aos ′Luíses′, homens cuidadosos. Um copo levantado bem alto para o meu maninho Zetho Cunha Gonçalves, pelo apoio constante e verdadeira fraternidade. Ao Romão, do qual tenho muitas saudades; à Leonor Lains, à Teresa Gonçalves, ao Gil de Carvalho, ao Luís Carlos Patraquim, ao Zé Neto, ao Dr. Baltazar Pinto, e a todas as almas em pena que povoam o nosso escritório, nas tardes e noites de conversas, risos e choros que fazem com que a minha vida seja sempre cheia de fome de conhecimento. Ao Mario e à Marina, pais adotivos, encontrados por acaso numa mágica noite lisboeta. E ao Marcial, que ainda amo... Ao João Torres, pela amizade e pelo seu trabalho em prol do Cais de Sodré. Que possa seguir para frente com esta filosofia. À Maria Carlos Loureiro, pela amizade, pelo apoio assíduo, pelas cuidadosas correções. À Laura Fasolino capaz de ser amiga verdadeira e honesta (virtudes muito raras). À Ana Paula Laborinho e ao André Dourado, tesoureiros das memórias. Aos bons amigos da(s) Casa(s) Nostra(s). Ao Achyuta, por me ter ensinado a aproximar-me da paz e da calma, e ao muito que ainda tem para me ensinar. À paz e pureza da ilha da Armona e das pessoas que lá vivem e que acompanharam e facilitaram a realização deste trabalho. À Helena Pinto, Sílvia Jorge, Sílvia Viegas e Vanessa Melo, ótimas colegas mas, acima de tudo, boas amigas. À Júnia, extraordinária amiga e colega. Às pessoas especiais que sempre me esperam de braços abertos em Itália, terra amada, e que estão longe apenas fisicamente. Às minhas raízes: à Roménia e à Itália. À Cindi e à Violetta, aparecidas dos telhados do Bairro, e ao Drake, companheiros de todos os dias. Ao bem-estar das pessoas que tentaram remar contra a realização deste trabalho.

Agradece-se reconhecidamente: Arq.º Artur Fonseca Simões; Arq.ª Branca Neves; Arq.º Emanuele Pezzato; Arq.º Felipe Lopes; Arq.ª Filomena Rego; Arq.ª Gabriela Carvalho; Arq.ª Joana Cintra; Arq.º José Aguiar, Arq.ª Teresa Duarte. Um agradecimento especial às Associações do Bairro Alto, particularmente à Luisa Mangano, Luís Paisana, Victor Silva, Belino Costa e à Irmandade de São Roque, pelo trabalho diário em prol do bairro e pela grande disponibilidade em apoiar a presente pesquisa. Ao Bairro Alto, que eu amo profundamente, e à Carmen, mãe e mentora, que antes de mim o amou. Aos bairristas! “ESTA GENTE Esta gente cujo rosto Às vezes luminoso E outras vezes tosco Ora me lembra escravos Ora me lembra reis Faz renascer meu gosto De luta e de combate Contra o abrute e a cobra O porco e o milhafre Pois a gente que tem O rosto desenhado Por paciência e fome É a gente em quem Um país ocupado Escreve o seu nome E em frente desta gente Ignorada e pisada Como a pedra do chão E mais do que a pedra Humilhada e calcada Meu canto se renova E recomeço a busca De um país liberto De uma vida limpa E de um tempo justo” 1 1

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner – Obra poética. Vol.III. Lisboa: Caminho, 1991. ISBN: 972-21-0278-8. pp.22-23.

Na página anterior: pormenor de montra na Rua da Rosa, Bairro Alto. Foto da autora.

INTRODUÇÃO………………………………………………………………………………..29

1. REVALORIZAÇÃO, IDENTIDADE, GENTRIFICATION E CONDOMÍNIOS FECHADOS.

1.1. A revalorização das áreas centrais………………………………………………...37 1.2. Sobre a noção de identidade. ……………………………………………………...48 1.2.1. Globalização e identidade cultural. ………………………………………..48 1.2.2. A valorização da identidade em áreas centrais e periféricas. …………...57 1.2.2.1. O caso de Alfama em Lisboa: a identidade aliada à reabilitação. ………………………………………………………………………….57 1.2.2.2. O caso do ′edifício′ Corviale em Roma: valorizar a identidade para o interior e para o exterior…………………………………………….59 1.3. A questão da gentrification. ………………………………………………………..67 1.3.1. Para uma definição…………………………………………………………..67 1.3.2. O debate sobre as causas da gentrification. ………………………………71 1.3.3. Aspetos negativos e positivos da gentrification. …………………………76 1.3.4. Políticas públicas e social-mix. …………………………………………….80 1.4. O fenómeno dos condomínios fechados e da segregação residencial…………83 1.4.1. A noção de condomínio fechado……………………………………………83 1.4.2. Do surgimento do fenómeno à atualidade…………………………………85 2. DA CONSERVAÇÃO À REABILITAÇÃO INTEGRADA.

2.1. Os antecedentes…………………………………………………………………….93 2.2. A cidade histórica e o alargamento do conceito de Património…………………99 2.3. A mutação do foco: do objeto ao sujeito………………………………………….106 2.4. O desenvolvimento sustentável…………………………………………………..117 2.5. Os desafios do novo milénio………………………………………………………122 2.5.1. A abordagem ética ao património e à cultura: a diversidade cultural e o turismo sustentável………………………………………………………124 2.5.2. Coesão Territorial e Desenvolvimento Sustentável……………………..131 2.5.3. A atratividade das cidades…………………………………………………137 2.5.4. O desafio para os bairros históricos………………………………………141 2.6. Da teoria a empiria. Algumas considerações…………………………………..144

3. BAIRRO ALTO: CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE ESPACIAL. 3.1. As premissas: Lisboa Manuelina…………………………………………………149 3.2. O Bairro Alto: Morfogénese urbana………………………………………………155 3.3. A cintura de envolvimento do Bairro Alto………………………………………...164 3.4. Os Jardins românticos na periferia do Bairro Alto……………………………...170 3.5. Régua e Esquadro…………………………………………………………………176 4. O BAIRRO ALTO E A CONSTRUÇÃO DA SUA IDENTIDADE: UM ESPAÇO DE MÚLTIPLAS FIGURAÇÕES.

4.1. Toleradas, fadistas e facadas…………………………………………………….187 4.2. Tipógrafos, jornalistas e artistas………………………………………………….198 4.3. Caminhando até ao ′novo′ Bairro Alto…………………………………………...207 4.4. O edificado e a população em números………………….……………………...219 4.4.1. Evolução do parque habitacional…………………………………………222 4.4.2. Regime de ocupação……………………………………………………… 227 4.4.3. Arrendamento: escalão de renda e estado de conservação…………..233 4.4.4. População………………………………………………………………….. 235 4.4.5. Visão cruzada dos dados dos censos…………………………………….237 4.5. O ′reino′ do Bairro Alto e as suas múltiplas figurações………………………….240 5. AS POLÍTICAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA NO BAIRRO ALTO.

5.1. Renovação Urbana: Estudo Parcial e Ante-Plano de Urbanização e Remodelação do Bairro Alto (1949-1952)……………………………………….251 5.2. Reabilitação Urbana: a criação do Gabinete Local do Bairro Alto e Bica ……………………………………………………………………………………….262 5.2.1. Os antecedentes.…………………………………………………………..262 5.2.2. A criação dos Gabinetes Técnicos Locais. ………………………………269 5.2.3. O Gabinete Local do Bairro Alto e Bica. ………………………………….275 5.2.3.1.

Premissas…………………………………………………………..275

5.2.3.2.

Criação e atuação do Gabinete de Reabilitação do Bairro Alto..276

5.2.3.3.

A Direção Municipal de Reabilitação Urbana e o Gabinete Local do Bairro Alto e Bica……………………………………………….284

5.3. O programa ′Lisboa 7ª Colina′…………………………………………………….294 5.4. Políticas e iniciativas municipais em curso………………………………………299 5.5. Renovação VS Reabilitação (Integrada?)…..…………………………………...311

6. DUAS EXPRESSÕES DA INTERVENÇÃO PRIVADA NO BAIRRO ALTO: ALOJAMENTOS TEMPORÁRIOS E CONDOMÍNIOS FECHADOS.

6.1. Alojamentos temporários no Bairro Alto…………………………………………317 6.2. Os condomínios fechados em Lisboa…………………………………………...321 6.2.1. A situação do Príncipe Real……………………………………………… 324 6.2.2. A situação do Bairro Alto………………………………………………... .327 6.3. Um caso paradigmático: O Convento dos Inglesinhos…………………………331 6.3.1. A criação do Colégio de São Pedro e de São Paulo……………….........331 6.3.2. O edifício: da construção aos primórdios do século XX…………………332 6.3.3. A vida do Colégio e a sua relação com a cidade…………………………334 6.3.4. O ′fim′ do Colégio e o novo projeto imobiliário……………………………335 6.4. Algumas considerações .………………………………………………………….340 CONCLUSÕES…………………………………………………………………………….. 345

BIBLIOGRAFIA……………………………………………………………………………..351

ANEXOS

ANEXO I - Quadro das Associações presentes no Bairro Alto, guião de entrevistas e entrevistas aos Presidentes das Associações. ……………………………………………VI ANEXO II - Guião das entrevistas aos técnicos do GL do Bairro Alto e Bica…………………………………………………………………………………………XXVII ANEXO III - Troca de e-mails e listagem dos dados fornecidos pelo INE relativamente às subsecções estatísticas………………………………………………………………..XXXI ANEXO IV - Produção científica e divulgação do conhecimento………………………XLIV ANEXO V – Visitas guiadas ao Bairro Alto no âmbito das Comemorações para os 500 anos do Bairro Alto….…………………………………………………………………….XLVIII ANEXO V – Entrevistas concedidas no âmbito das Comemorações para os 500 anos do Bairro Alto…………………………………………………………………………………….LIV

ÍNDICE DAS FIGURAS: Figura nº1, Vista aérea de Corviale. Fonte: [Em Linha] [Consult. 12 Set. 2010]. Disponível em: www.googlemaps.com..........................................................................60 Figura nº2, Corviale. Fonte: [Em Linha] [Consult. 20 Fevr. 2009]. Disponível em: www.comunediroma.it...................................................................................................60 Figura nº3, ON, Corte transversal. Fonte: GENNARINI SANTORI, PIETROMARCHI, 2006. op. cit., p.95……………………………………………………………………………61 Figura nº4, ON, Pormenor do mapeamento efetuado durante o workshop Microtrasformazioni. Fonte: GENNARINI SANTORI, PIETROMARCHI, 2006. op. cit., p.90……………………………………………………………………………………………..64 Figura nº5, Anónimo, Logo de Llewellyn Park, the first Planned Community in America. [Em Linha] [Consult. 24 Jan. 2014]. Disponível em: https://secure.associationvoice.com/13266...................................................................87 Figura nº6, Anónimo, Ex Teatro de Marcello, depois Palazzo Savelli Orsini, Roma. Fonte: [Em Linha] [Consult. 07 Abr. 2014]. Disponível em: http://www.ilmiolazio.it/itIT/roma/Pagine/teatromarcello.aspx..............................................................................93 Figura nº7, Anónimo, Colonna Traiana, Roma. Fonte: [Em Linha] [Consult. 07 Abr. 2014] Disponível em: http://it.wikipedia.org..............................................................................93 Figuras nº8 e nº9, Anónimo, Bastiões do Castelo de Carcassone, França, antes e depois do restauro efetuado por Viollet-le-Duc (1857-18--). Fonte: [Em Linha] [Consult. 07 Abr. 2014] Disponível em: http://quarantotto.altervista.org/48/scienza.htm...........................95 Figura nº10, CONSELHO DA EUROPA, Do desenvolvimento urbano às primeiras formas de reinvestimento urbano. Fonte: CONSELHO DA EUROPA – Guidance on Urban Rehabilitation. Strasbourg: Council of Europe Publishing, 2005. ISBN 92-8715528-3. p.31. [T.d.A.]………………………………………………………………………..111 Figura nº11, RODRIGUES, Muxarabi e balcão, 1979. Fonte: [Em Linha] [Consult. 20 Jan. 2012]. Disponível em: http://coisasdaarquitetura.wordpress.com........................149 Figura nº12, Duarte de GALVÂO, Paços da Alcaçova, no início do século XVI. Fragmento da iluminura da Crónica de D. Afonso Henriques. 15??, Museu Castro de Guimarães, Cascais....................................................................................................149 Figura nº13, Anónimo, Terreiro do Paço. Faiança, Séc. XVIII (inícios). Museu da Cidade, Lisboa..........................................................................................................................150 Figura nº14, Sebastian MUNSTER, Panorâmica de Lisboa, 1541. Fonte: Cosmographei oder Beschreibung aller Lander Herrschaften, furnemten, Setten, Geschichten,

Gebreuchten, Hantierung, vol. II, Basileia, 1598 (1ª edição datada de 1544). Lisboa: Museu da Cidade.........................................................................................................152 Figura nº15, Esquema das muralhas, principais urbanizações e edifícios na zona oeste da cidade de Lisboa no sec. XVI com base na gravura: George BRAUNIO, Olissippo quae nunc Lisboa, civitates amplissima Lusitaniae, ad Tagum. Totis orientis, et multarum Aphricoeque et Americae emporium nobilissimum, Gravura, Ca.1598, em Orbis Terrarum, Amesterdão, 1598, vol. V............................................................................153 Figura nº16, Gabriel del BARCO, Grande panorama de Lisboa, pormenor, 1700 c.a.. Lisboa: Museu Nacional do Azulejo.............................................................................154 Figura nº17, Planta da zona do Bairro Alto com a indicação das principais estradas, edifícios e fases de urbanização. Sem escala..............................................................156 Figura nº18, Planta do Bairro Alto com a distinção entre casas, palácios e edifícios públicos e eclesiásticos. Sem escala...........................................................................161 Figura nº19, Gabriel del BARCO, Grande panorama de Lisboa, pormenor de coche, 1700 c.a. Lisboa: Museu Nacional do Azulejo..............................................................162 Figura nº20, Anónimo, Largo das Duas Igrejas, antigas Portas de Santa Catarina, Postal, 1925. Em: TAVARES, Marina, 1994, op. cit.................................................................164 Figura nº21, Abel MANTA, Perspectiva da Praça Luís de Camões, 1932. Lisboa: Museu da Cidade....................................................................................................................164 Figura nº22, Planta do Bairro Alto com a indicação da época de construção dos edifícios. Sem escala..................................................................................................................165 Figura nº23, Julio de CASTILHO, Os Casebres do Loreto, fachada sobre a rua directa do Loreto como eram em 1859, 1906, CASTILHO, Lisboa Antiga o Bairro Alto............166 Figura nº24, Julio de CASTILHO, Os Casebres do Loreto, antigo Palácio dos Marqueses de Marialva como eram em 1859. Fachada sobre o Largo das duas Igrejas, 1906, CASTILHO, Lisboa Antiga o Bairro Alto.......................................................................166 Figura nº25, Roque GAMEIRO, Rua de O Século outrora Rua Formosa, s/d, em TAVARES, 1994, op. cit...............................................................................................167 Figura nº26, Norberto de ARAUJO, O Bairro Alto em 1650 (planta reduzida da planta de Tinoco) e o Bairro Alto em 1937...................................................................................177 Figura nº27, Estudo métrico de um troço do Bairro Alto, com a indicação do módulo de base (chão)..................................................................................................................180 Figura nº28, José MALHOA, O Fado, Museu da Cidade de Lisboa/CML...................195

Figura nº29, Tim BORIC, Eléctrico 24, Largo de São Roque, 1978. Fonte: [em linha] [Consult. Set. 3012]. Disponível em: http://biclaranja.blogs.sapo.pt/474157...............196 Figura nº30, Monumento de homenagem a Eduardo Coelho e ao ardina.....................201 Figura nº31, Monumento de homenagem a França Borges.........................................201 Figura nº32, Anónimo, A Redação do ‘Diário de Notícias’ em 1927. Fonte: NETO, Manuel -Bairro Alto: Lisboa República popular; Bairro Alto, o bairro do malhão. Diário de Notícias. (27 Abr. 1995)...............................................................................................203 Figura nº33, Alberto Souza OLIVEIRA, Estudo de conceito para planta teatro e para planta café concerto, planta e cortes. Fonte: OLIVEIRA, Souza Alberto – Teatro do Bairro. Lisboa: Uzina, 2012. Pp.6-7-26........................................................................206 Figura nº34, Anónimo, Zé da Guiné. Fonte: [em linha] [Consult. Set.2013]. Disponivel em: www.facebook.com/ZEDAGUINEfilme.................................................................208 Figura nº35, Miguel Sá MARQUES, Margarida Martins, uma das mais famosas porteiras do Frágil. Fonte: [em linha] [Consult. Set.2013]. Disponível em: http://lisboasos.blogspot.pt/2012/02/margarida-martins-fotografadapor.html............208 Figura nº36, Esquematização das zonas do Bairro Alto preferencialmente frequentadas a noite por grupos específicos......................................................................................211 Figuras nº37e nº38, Rua do Trombeta, demonstração de indignação por parte dos moradores do bairro contra a falta de civismo…………………………………………….213 Figura nº39, ACBA, Travessa da Queimada as 14 horas. Fonte: [Em Linha] [Consul. 10 Set. 2013]. Disponível em: http://bairroalto-comerciantes.blogspot.pt........................215 Figura nº40, ACBA, Travessa do Poço da Cidade as 17:30. Fonte: [Em Linha] [Consul. 10 Set. 2013] Disponível em: http://bairroalto-comerciantes.blogspot.pt.....................215 Figuras nº41 e nº42, ACBA, Cartazes para as Comemorações dos 499 anos do Bairro Alto. Fonte: [Em Linha] [Consul. 10 Set. 2013]. Disponível em: http://diadobairroalto.blogspot.pt/............................................................................... .216 Figura nº43, ATELIÊ SILVADESIGNERS, Logo do BA500. Fonte: Comissão dos 500 anos do Bairro Alto.......................................................................................................217 Figura nº44, BA500, Convite para a visita guiada à Igreja de Santa Catarina. Fonte: Comissão dos 500 anos do Bairro Alto........................................................................217

Figura nº45, Mapa com a indicação das divisões administrativas anteriores à reforma administrativa da cidade 8 de Novembro de 2012, e indicação da área relativa às subsecções estatísticas analisadas……………………………………………………….220 Figura nº46, Planta do Bairro Alto com localização de alguns serviços de aluguer temporário (sem escala). (Fonte: Levantamento efetuado pela autora em Junho e Julho de 2013)………………………………………………………………………………………232 Figura nº47, “Live like a local”. Forma de comercialização da identidade do Bairro Alto……………………………………………………………………………………………241 Figura nº48, Chamarin Imobiliária, Panfleto publicitário do Convento dos Inglesinhos no qual a história do edifício é utilizada como forma de marketing. Fonte: [Em Linha] [Consult. 21 Ag. 2010]. Disponível em: http://www.conventodosinglesinhos.com/pdf/20090312..............................................241 Figura nº49, “Welcome to Bairro Alto’s Outdoor Market” 2014………………………….243 Figura nº50, Ressano GARCIA, Plano Geral de Melhoramentos de Lisboa, 1903. Fonte: LÔBO, Margarida Sousa, 1995. op. cit., p.21……………………………………………..251 Figura nº51, Cristino da SILVA, Estudo Parcial de Urbanização Remodelação do Bairro Alto, plano do estado atual com a indicação dos Monumentos e Edifícios de Interesse Público. (sem escala) Fonte: SILVA, Cristino da, 1949-1951, op. cit…………………...257 Figura nº52, Cristino da SILVA, Corte transversal do ante-palano de Urbanização para o Bairro Alto. (sem escala) Fonte: SILVA, Cristino da, 1949-1951, op. cit……………...258 Figura nº53, Esquema da nova circulação e edifícios, com base: Cristino da, SILVA. Ante-palano de Urbanização para o Bairro Alto. (sem escala) Fonte: SILVA, Cristino da, 1949-1951, op. cit…………………………………………………………………………....259 Figura nº54, Cristino da SILVA, Ante-palano de Urbanização para o Bairro Alto, indicação dos edifícios a expropriar. (sem escala) Fonte: SILVA, Cristino da, 1949-1951, op. cit………………………………………………………………………………………….261 Figura nº55, Levantamento fotográfico do Estudo de Renovação Urbana do Barredo: condições de habitabilidade. Fonte: PINHO, Ana, 2008, op. cit., p. 81.........................264

Figura nº56, Levantamento fotográfico do Estudo de Renovação Urbana do Barredo. Fonte: PAIVA, José, el al., 2006, op. cit., p.42…………………………………………….264

Figuras nº59 e nº60, GRBA, Instalações do GRAB, antes e depois das obras. Fonte: NEVES, Branca (coord.),1989, op. cit., p.24……………………………………………...277

Figuras nº61 e nº62, GRBA, Rua dos Mouros antes e depois obras. Fonte: NEVES, Branca (coord.),1989, op. cit., p.13………………………………………………………...278

Figura nº63 , GRBA, Obras a decorrer ou já decorridas em 1989 na zona de intervenção do GRBA. Fonte: NEVES, Branca (coord.),1989, op. cit., p.14-15……………………...283 Figura nº64, CML, GTLs de Lisboa. Fonte: TOUSSAINT, Michel (dir.) – Bairros Históricos. Lisboa. Jornal dos Arquitectos. ISSN: 0870−1504. nº151. Lisboa: OA, Setembro de 1995. p. 24.…………………………………………………………………...285 Figura nº65, CML, Delimitação da área crítica, aprovada em sessão camarária em 2 de Maio de 1990. Fonte: GLBAB, 1990, [policopiado]……………………………………….288 Figura nº66, GLBAB/CML, Plano de Urbanização do Núcleo Histórico de Bairro Alto e Bica, Carta de Síntese I. Fonte: GLBAB, 1996, op. cit……………………………………290

Figura nº67, CML, Unidade de Intervenção Territorial Centro Histórico. Fonte: [Em Linha] [Consul. 3 Jan. 2015]. Disponível em: http://www.cm-lisboa.pt....................................305

Figura nº68, CML, Área de Reabilitação Urbana. Fonte: CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA – PDM, Regulamento do Plano Diretor Municipal de Lisboa. Lisboa: 2012 (?). [s.

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p.26.

[Em

Linha]

[Consul.

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Jan.

2015]

Disponível

em:

http://www.cm-lisboa.pt...............................................................................................306

Figuras nº69 e 70, THE INDEPENDENTE HOSTEL, Imagens do the independente hostel na rua de São Pedro de Alcântara nº81. Fonte: [Em Linha] [Consult. 6 Maio 2015]. Disponível em: http://www.theindependente.pt/...........................................................318 Figuras nº71 e 72, LISBON COLOUR APPARTMENT, Edifício reabilitado para alojamentos locais, Travessa da Queimada nº44. Fonte: [Em Linha] [Consult. 6 Maio 2015]. Disponível em: www.lisboncolours.pt. ..............................................................320 Figuras nº 73 e 74, Duccio MALAGAMBA, Espaço ajardinado dos Terraços de Bragança. Fonte: [Em Linha] [Consult. 6 Maio 2015]. Disponível em: http://www.ducciomalagamba.com/..............................................................................323 Figuras nº 75 e 76, Anónimo, Piscina e jardim do Condomínio Santa Catarina. Fonte: [Em Linha] [Consult. 6 Maio 2015]. Disponível em: http://www.santacatarina.com.pt/main.html..................................................................323

Figuras nº 77 e 78, Anónimo, Jardim do Palácio Mesquitela. Fonte: [Em Linha] [Consult. 6 Maio 2015]. Disponível em: http://palaciomesquitela.com/.......................................323 Figura nº 79, EastBank, Vista geral do projeto para o Príncipe Real da EastBank. Fonte: [Em Linha] [Consult. 26 Agosto 2014]. Disponível em: http://eastbanc.pt/content/principe-real-project...........................................................325 Figura nº 80, EastBank, Modelo 3D do projeto para o Príncipe Real da EastBank. Fonte: [Em Linha] [Consult. 26 Agosto 2014]. Disponível em: http://eastbanc.pt/content/principe-real-project...........................................................326 Figura nº 81, EastBank, Fachada principal de um dos empreendimentos que fazem parte do projeto para o Príncipe Real da EastBank. Fonte: [Em Linha] [Consult. 26 Agosto 2014]. Disponível em: http://eastbanc.pt/content/principe-realproject..........................................................................................................................328 Figura nº82, EastBank, Publicidade do projeto para o Principe Real da EastBank. Fonte: [Em Linha] [Consult. 26 Agosto 2014]. Disponível em: http://eastbanc.pt/content/principe-real-project........................................................... 326 Figura nº83, Mapa de localização dos condomínios fechados presentes na área do Bairro Alto. Levantamento efetuado pela autora em Agosto de 2014. (sem escala)…328 Figura nº84, RRJ- Arquitectura e Engenharia, Corte transversal do condomínio da Rua da Vinha. Fonte: GONÇALVES, Rui Pinto – Uma Arquitectura como facto urbano: Condomínio da Vinha, Bairro Alto, Lisboa. Arquitectura e Vida. Nº91 (Març. 2008). pp. 20-29. ISSN: 5601073013512……………………………………………………………...329 Figura nº85, RRJ- Arquitectura e Engenharia, Corte transversal do condomínio da Rua da Vinha. Fonte: GONÇALVES, Rui Pinto – Uma Arquitectura como facto urbano: Condomínio da Vinha, Bairro Alto, Lisboa. Arquitectura e Vida. Nº91 (Març. 2008). pp. 20-29. ISSN: 5601073013512……………………………………………………………...330 Figura nº86, Condomínio fechado na Rua da Misericórdia reabilitado pela SCML… 330 Figura nº87, Jardins do Convento dos Inglesinhos. Fonte: PROENÇA, et al., 2007, op. cit……………………………………………………………………………………………...333 Figura nº88, Interior da Igreja do Convento dos Inglesinhos, fotografia tirada durante a representação da peça “Alma Mahler” em 2000. Fonte: [em linha] [retirado a 1 de Março de 2009]. Disponível em: 330http://www.alma-mahler.at.............................................335 Figura nº89, Espaço interior do Convento dos Inglesinhos. Fonte: [em linha] [retirado a 1 Março 2009] disponível em: www.dgemn.pt.............................................................335

Figura nº90, Anónimo, Fachada principal do Convento dos Inglesinhos, ante operam. Fonte: PROENÇA, et al., 2007,op. cit……………………………………………………..338 Figura nº91, Fachada principal atual do Convento dos Inglesinhos ..………………...338 Figuras nº92 e nº93, Largo na rua Luz Soriano………………………………………….338 Figura nº94, Chamartín Imobiliária, Limite do Convento dos Inglesinhos para a Calçada do Cabra, ante operam. Fonte: [em linha] [retirado a 1 de Março de 2009] disponível em: www.conventoinglesinhos.pt.......................................................................................338 Figuras nº95 e nº96, Limite do Convento dos Inglesinhos para a Calçada do Cabra, situação atual………………………………………………………………………………...338 Figura nº97, Chamartín Imobiliária, Muro pré-existente, para a rua Nova do Loureiro. Fonte: [em linha] [retirado a 1 de Março de 2009] disponível em: www.conventoinglesinhos.pt ………………………………………………………………339 Figura nº98, Muro atual do Convento dos Inglesinhos para a Rua Nova do Loureiro…339

ÍNDICE DAS FIGURAS DO ANEXO III: Figura nºI, E-mail enviado ao INE no dia 25 de Fevreiro de 2014……………………XXXIII Figura nºII, E-mail de resposta enviado pelo INE no dia 25 de Fevereiro de 2014………………………………………………………………………………………..XXXV Figura nºIII, E-mail de resposta enviado ao INE no dia 25 de Fevereiro de 2014…XXXVIII Figura nºIV, E-mail de resposta enviado pelo INE no dia 26 de Fevereiro de 2014……………………………………………………………………………………………XL Figura nºV., E-mail enviado ao INE no dia 14 de Fevereiro de 2015………………….XLI Figura nºVI., E-mail enviado pelo INE no dia 16 de Fevereiro de 2015………………XLII

ÍNDICE DAS FIGURAS DO ANEXO V:

Figura nºI, Cartaz de divulgação da visita guiada ao Bairro Alto………………………XLIX Figura nºII, Certificado de realização dos percursos temático sobre Arquitetura e património intitulados ′Passeio pela História do Bairro′..................................................LII

ÍNDICE DAS FIGURAS DO ANEXO VI: Figuras nºI-VI, Patrícia CINTRA – Bairro de Liberdade. Tabu. (4 Out. 2013).pp.35-40…………………………………………………………………………..LV-LXI Figura nºVIII, Joana CARVALHO FERNANDES – Bairro Alto: aqui nasceu a grande urbanização de Lisboa. (01/12/2013). [Em Linha] [Consul. 1 Dec. 2013] Disponível em: http://www.agencialusa.pt...........................................................................................LXII Figura nºIX, Joana, CARVALHO FERNANDES – Bairro Alto: Bairro resistiu a todos os planos urbanísticos que tentaram muda-lo. (01/12/2013). [Em Linha] [Consul. 1 Dec. 2013] Disponível em: http://www.agencialusa.pt........................................................LXIII Figura nºX, Joana CARVALHO FERNANDES, Susana PAULA – Bairro Alto: Há quinhentos anos o bairro de todas as classes. (01/12/2013). [Em Linha] [Consul. 1 Dec. 2013] Disponível em: http://www.agencialusa.pt........................................................LXIV Figura nºXI, Joana CARVALHO FERNANDES – Bairro Alto: aqui Imprensa portuguesa fez da zona sua capital durante 150 anos. (01/12/2013). [Em Linha] [Consul. 1 Dec. 2013] Disponível em: http://www.agencialusa.pt........................................................LXV Figura nºXII, Joana CARVALHO FERNANDES - Bairro Alto: Moradores descrevem zona familiar, segura e bairrista. (01/12/2013). [Em Linha] [Consul. 1 Dec. 2013] Disponível em: http://www.agencialusa.pt.............................................................………………LXVI Figura nºXIII, Susana PAULA – Problemas associados à animação noturna prejudicam mercado imobiliário. (01/12/2013). [Em Linha] [Consul. 1 Dec. 2013] Disponível em: http://www.agencialusa.pt.........................................................................................LXVII Figura nºXIV, Joana CARVALHO FERNANDES – Bairro Alto: Quinhentas velas acesas para cantar os parabéns. (01/12/2013). [Em Linha] [Consul. 1 Dec. 2013] Disponível em: http://www.agencialusa.pt........................................................................................LXVIII

ÍNDICE DOS GRÁFICOS, QUADROS E TABELAS: Quadro nº1, Processos de renovação dos bairros, através da reabilitação ou reconversão de edifícios decadentes ou da construção de edifícios novos em espaços livres. ( X = critério alcançado; O = critério não alcançado). Fonte: CRIEKINGEN M. VAN, DECROLY J.-M, 2003. op. cit. p. 2454. [T.d.A.]……………………………………..69 Quadro nº2, Sumário dos efeitos da gentrification nos bairros. Fonte: ATKINSON, 2004, op. cit., p.112. [T.d.A.]………………………………………………………………………...78 Tabela nº1, Número de casas de toleradas em algumas freguesias de Lisboa em 1841 e 1947. Fonte: José Pais, MACHADO, 2008. op. cit., p.145…………………………….192

Tabela nº2, Variação do nº de edifícios na freguesia da Encarnação, entre os Censos de 2001 e de 2011. (Fonte: INE, Censos 2001, 2011)……………………………………221 Tabela nº3, Variação do nº de edifícios na área do Bairro Alto, segundo os dados das subsecções estatísticas, entre os Censos de 2001 e de 2011. (Fonte: INE, Censos 2001, 2011)………………………………………………………………………………………….221 Tabela nº4, Variação do nº de alojamentos na freguesia da Encarnação, entre os Censos de 2001 e de 2011. (Fonte: INE, Censos 2001, 2011)………………………….221 Gráfico nº1, Edifícios (%) por época de construção, freguesia da Encarnação. (Fonte: INE, Censos 2011)…………………………………………………………………………..222 Gráfico nº2, Edifícios (%) por época de construção, segundo as subsecções estatística da área do Bairro Alto. (Fonte: INE, Censos 2011)……………………………………….223 Gráfico nº3, Necessidade de reparação dos edifícios (%), do município de Lisboa e da freguesia da Encarnação. (Fonte: INE, Censos 2011)…………………………………...223 Tabela nº5, Variação da necessidade de reparações dos edifícios (%), da freguesia da Encarnação, entre 2001 e 2011. (Fonte: INE, Censos 2001, 2011)…………………….224 Tabela nº6, Necessidade de reparações (%), freguesia da Encarnação. (Fonte: INE, Censos 2011)………………………………………………………………………………..224 Gráfico nº 8, Situação dos alojamentos familiares clássicos vagos (%), da freguesia da Encarnação. (Fonte: INE, Censos 2001, 2011) …………………………………………..225 Tabela nº7, Edifícios por estado de conservação (%), e época de construção, freguesia da Encarnação. Fonte: INE, Censos 2001, 2011)………………………………………..226 Tabela nº8, Alojamentos clássicos, ocupado como residência habitual, segundo o estado de conservação dos edifícios, pela entidade proprietária dos alojamentos (%), da freguesia da Encarnação. (Fonte: INE, Censos 2011)…………………………………...226 Gráfico nº4, Alojamentos clássicos de residência habitual (%) segundo o regime de ocupação, da freguesia da Encarnação. (Fonte: INE, Censos 2001, 2011)…………...227 Gráfico nº5, Alojamentos clássicos de residência habitual (%) segundo a entidade proprietária, freguesia da Encarnação. (Fonte: INE, Censos 2001, 2011)……………..228 Tabela nº9, Alojamentos familiares clássicos (%) por freguesia (correspondente à divisão administrativa em vigor no momento da realização dos Censos 2011) e forma de ocupação. (Fonte: INE, Censos 2001, 2011)………………………………………….229 Gráfico nº 6, Alojamentos familiares clássicos (%) por forma de ocupação, da freguesia da Encarnação. (Fonte: INE, Censos 2001, 2011)……………………………………….229

Tabela nº10, Tipologias de serviços para aluguer temporário e nº máximo de hóspedes. (Fonte: Levantamento efetuado pela autora em Junho de 2013)……………………….229 Gráfico nº7, nº de serviços para aluguer temporário e ano de abertura. (Fonte: Levantamento efetuado pela autora no Junho de 2013)………………………..230 Gráfico nº 8, Situação dos alojamentos familiares clássicos vagos (%), da freguesia da Encarnação. (Fonte: INE, Censos 2001, 2011)…………………………………………..233 Grafico nº9, Alojamentos familiares clássicos arrendados de residência habitual por escalão de renda (%), da freguesia da Encarnação. (Fonte: INE, Censos 2001, 2011)………………………………………………………………………………………….234 Tabela nº11, Alojamentos familiares clássicos arrendados de residência habitual por escalão de renda e época de celebração do contrato (%), freguesia da Encarnação. (Fonte: INE, Censos 2011)………………………………………………………………….234 Tabela nº12, Alojamentos clássicos arrendados e subarrendados segundo o escalão de renda, por estado de conservação do edifício (%), freguesia da Encarnação. (Fonte: INE, Censos 2011)…………………………………………………………………………..234 Grafico nº10, População residente na Freguesia da Encarnação. (Fonte: INE, Censos 1970, 1981, 1991, 2001, 2011)……………………………………………………………..235 Tabela nº13, População residente, variação entre 1991-2001 e 2001-2011, e variação dos seus grupos etários 2001-2011, Freguesias do centro de Lisboa, e zona do Bairro Alto segundo as subsecções estatísticas. (Fonte: INE, Censos 2001, 2011)………….236 Tabela nº14, Nacionalidade dos indivíduos (%) nas famílias clássicas por local de residência (Freguesia da Encarnação); censos 2001-2011. (Fonte: INE, Censos 2001, 2011)………………………………………………………………………………………….236 Tabela nº15, Programas de apoio financeiro para a reabilitação de edifícios lançados pelo Estado Português entre 1988 e 2001……………………………………..………….289

ABREVIATURAS E ACRÓNIMOS:

ACBA – Associação dos Comerciantes do Bairro Alto AMBA – Associação dos Moradores do Bairro Alto AML – Área Metropolitana de Lisboa CCRDLVT – Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo CEE – Comunidade Económica Europeia CEMAT – Conferência Europeia de Ministros responsáveis pelo Planeamento Territorial CEU – Conselho Europeu de Urbanistas CF – Condomínio Fechado CIAM – Congresso Internacional de Arquitetura Moderna CMCE – Comité de Ministros do Conselho da Europa CML – Câmara Municipal de Lisboa CPPLRE – Conferência Permanente de Poderes Locais e Regionais da Europa DGEM – Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais DGOT – Direção-Geral do Ordenamento do Território DGPU – Direção-Geral do Planeamento Urbanístico DMCRU – Direção Municipal de Conservação e Reabilitação Urbana DMRU – Direção Municipal de Reabilitação Urbana FERER – Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional GL – Gabinete Local GTL – Gabinete Técnico Local GRBA – Gabinete de Reabilitação do Bairro Alto HML – Hemeroteca Municipal de Lisboa ICOMOS – International Council on Monuments and Sites IGESPAR – Instituto de Gestão do Património Arquitetónico e Arqueológico IHRU – Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana IPPAR – Instituto Português do Património Arquitetónico IPPC – Instituto Português do Património Cultural INE – Instituto Nacional de Estatística LCRJ – Lisboa Club Rio de Janeiro LNEC – Laboratório Nacional de Engenharia Civil ODCE – Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico PACE – Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa PCC – Património Cultural Construído

PDR – Plano de Desenvolvimento Regional PGU – Plano Geral de Urbanização PP – Plano de Pormenor PPP – Parceria Público-Privado PRAUD – Programa de Recuperação de Áreas Degradadas PRID – Programa para a Recuperação de Imóveis Degradados PRU – Programa de Reabilitação Urbana UE – União Europeia RECRIA – Regime Especial de Comparticipação na Recuperação de Imóveis Arrendados RECRIPH – Regime Especial de Comparticipação e Financiamento na Recuperação de Prédios Urbanos em Regime de Propriedade Horizontal REHABITA – Regime de Apoio à Recuperação Habitacional em Áreas Urbanas Antigas UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura UN-HABITAT – Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos SCML – Santa Casa da Misericórdia de Lisboa SEALOT – Secretaria de Estado da Administração Local e de Ordenamento do Território SEC – Secretaria de Estado da Cultura SOLARH – Programa de Solidariedade e Apoio à Recuperação de Habitação

Na página anterior: Rua da Vinha, Bairro Alto. Foto da autora.

A cidade contemporânea apresenta um amplo leque de desafios e contradições. A globalização económica neoliberal tem produzido uma cidade cada vez mais fragmentada e desigual. Estas características observam-se na relação do(s) centro(s) urbano(s) com as periferias, na configuração destas últimas, mas também na transformação em curso nas áreas centrais e históricas. A presente investigação analisa as políticas e as práticas de reabilitação e renovação urbana de áreas centrais históricas, partindo da discussão dos conceitos e teorias para a abordagem de um estudo de caso específico, o Bairro Alto em Lisboa, de grande interesse tanto do ponto de vista da sua identidade e da sua história, quanto do ponto de vista das práticas de reabilitação e renovação urbana. As teorias recentes da reabilitação urbana, neste caso particular dos núcleos históricos, têm apelado para uma visão integrada da reabilitação urbana e arquitetónica, que associa a sustentabilidade ambiental, a revitalização económica, a coesão social e a defesa do património. Nesta perspetiva o investimento na preservação e valorização do património construído antigo visa contribuir para o reforço da identidade cultural, opondo-se à tendência homogeneizante da globalização. Todavia, no atual contexto de economia neoliberal em que prevalece o interesse do capital privado, a noção de reabilitação tem vindo a ser utilizada na aceção de renovação urbana, servindo os interesses particulares e não os da comunidade. Os processos cada vez mais frequentes de gentrification, de criação de condomínios fechados ou de turistificação massiva de áreas urbanas são exemplo desta mudança de olhar. Tomando como referência as noções de produção do espaço e de direito à cidade advogadas por Lefebvre (1968) e depois por Harvey (2008) esta tese pretende compreender os processos de produção e transformação das áreas centrais históricas para entender as contradições atuais entre os objetivos declarados, as políticas e as práticas de reabilitação e o seu impacte na identidade espacial e social. O objeto de estudo da presente investigação centra-se, deste modo, no impacte das políticas e práticas de reabilitação adotadas em áreas históricas, ao longo do último século e meio, na (des)construção da identidade espacial e social e no surgimento de situações de gentrification. Ambos estes aspetos (construção identitária e gentrification) serão abordados a partir de um olhar arquitetónico e urbanístico, mas tendo subjacente uma visão histórica e sociológica. Escolheu-se como estudo de caso o Bairro Alto, em Lisboa. Este foi o único bairro central do município de Lisboa que, na década de noventa do século XX, viu aumentar a sua população (Censo de 2001) contrariando a tendência de desertificação do centro da cidade. Porém na primeira década do século XXI esta ocorrência inverteu-se, 31

observando-se no Bairro Alto (no seu todo, contanto as suas subsecções estatísticas) uma das maiores perdas de população, entre 2001 e 2011, ao nível dos bairros centrais da cidade (Censo de 2011). O Bairro Alto manteve, desde a sua criação em 1513 (ou 1498 – Carita: 1999) a sua malha urbana, o seu caráter arquitetónico e uma identidade própria forjada, desde as suas origens, por uma população heterogénea. As caraterísticas sociais e físicas do lugar (limites definidos, intimidade e centralidade) favoreceram a construção de uma identidade forte e distinta, caraterizada pela convivência de diferentes classes sociais, delineando-se uma forte relação entre a identidade do lugar e o património construído. Nos últimos anos, embora a Câmara Municipal de Lisboa tenha promovido, nas décadas de oitenta e noventa do século XX, a manutenção da população residente, vários fatores sugerem a tendência no novo milénio para uma desconstrução da identidade histórica do lugar, resultante da progressiva gentrification do bairro associada ao processo em curso de renovação do seu património edificado. Esta

investigação

procura

perceber

as

tendências

de

transformação

socio-espacial do Bairro Alto, identificando atores e intervenções, arquitetónicas e urbanísticas, recentes e distinguindo quais as conducentes à gentrification e quais as que concorrem para a preservação da identidade do lugar e do seu tecido social. Dois grupos de questões nortearam a investigação: o Ao nível geral, quais as atuais políticas e práticas de reabilitação urbana em áreas históricas e qual o seu impacte na geração de processos de gentrification e na (des)construção das identidades locais sociais e espaciais. Quais os problemas e contradições inerentes às tendências recentes? o Ao nível do Bairro Alto, até que ponto as atuais políticas e práticas de reabilitação do Bairro se entrosam com a sua identidade espacial e social forjada ao longo de séculos, quais as transformações que têm despoletado e quais os diferentes pontos de vista sobre elas? Especificamente, pretendeu-se saber quais as ações de reabilitação que têm conduzido a processos acelerados de perca de identidade e de gentrification e as que têm logrado a defesa do tecido social, da identidade do lugar, da permanência dos residentes e o controle da gentrification. Por quem e como umas e outras ações têm sido promovidas, qual o seu peso e impacto e qual o ponto de vista dos moradores? Apesar de existir um grande avanço a nível teórico no âmbito da reabilitação que visa alcançar a sustentabilidade urbana nas dimensões ambiental, económica e social, vários estudos mostram que as forças económicas dominantes e os interesses privados rumam na direção oposta. No caso específico do Bairro Alto, formula-se a hipótese que os interesses económicos dominantes, se não forem travados, podem vir a desmantelar

32

a estrutura física, cultural e social do bairro, perdendo-se a forte identidade que marca o bairro desde as suas origens. Do ponto de vista metodológico, partiu-se da construção de um quadro teórico de referência através da recolha, sistematização e análise crítica de uma bibliografia interdisciplinar. A abordagem é arquitetónica e urbanística, tendo-se privilegiado o olhar sobre a história urbana e arquitetónica que se cruzou com a leitura das práticas e políticas de reabilitação. O estudo da interação entre a identidade e a gentrification, requereu a apropriação de alguns conteúdos de outras disciplinas (sociologia e antropologia) para melhor compreender os interesses, as lógicas e as práticas dos atores presentes no território. Recolheu-se uma ampla documentação iconográfica (cartas, planos, projetos, fotografias) com base na qual se constituíram quadros e mapas dos processos históricos de transformação do bairro, bem como das situações e transformações realizadas ou em curso do edificado e do espaço público. Os processos demográficos e do edificado foram analisados com base na leitura comparada adicional dos Censos de 1970 a 2011. Foi elaborado um corpus de entrevistas semi-estruturadas a alguns dos atores presentes no território. Foram estabelecidos contatos continuados com as Associações do Bairro Alto bem como com os próprios moradores e comerciantes. O facto de a investigadora residir no bairro, apesar dos riscos de subjetividade inerentes, facilitou a sua imersão no terreno de estudo. A ocorrência dos festejos para os 500 anos do Bairro Alto (Dezembro 2013) no período de elaboração da investigação, permitiu restituir parte dos resultados de estudo à população, através de uma série de entrevistas à imprensa bem como de visitas guiadas de acesso livre e gratuito efetuadas pela investigadora a convite da Comissão Executiva dos 500 anos do Bairro Alto (ver Anexos IV e V). O formato da dissertação foi elaborado segundo as normas para a apresentação de dissertações de Doutoramento aprovadas em Conselho Científico da Faculdade de Arquitetura de Lisboa a 12 de maio de 2010. A tese foi estruturada em seis capítulos. No primeiro capítulo, apresenta-se o enquadramento teórico e metodológico, identificando quais as principais tendências da cidade contemporânea e refletindo sobre como a identidade dos lugares pode ser valorizada, através de processos de reabilitação, em prol das comunidades locais. No segundo capítulo, apresenta-se um voo histórico sobre as políticas de reabilitação urbana, com particular atenção ao contexto Europeu e à situação atual. No terceiro capítulo, restitui-se a análise da morfogénese e da identidade espacial do Bairro Alto através do estudo histórico-arquitetónica. No quarto capítulo procede-se à reconstrução da identidade social do Bairro Alto, das suas origens à atualidade, com uma atenção 33

acrescida para a análise da evolução populacional bem como do parque edificado à luz do estudo dos dados apresentados pelos Censos. No quinto capítulo apresenta-se o estudo das políticas da Câmara Municipal de Lisboa (CML) no Bairro Alto desde os finais do século XIX até aos dias de hoje através da análise de algumas intervenções ou propostas de intervenção específicas. O sexto capítulo trata de fazer uma abordagem da promoção habitacional no âmbito das iniciativas privadas. A conclusão faz uma reflexão crítica de síntese sobre o estudo efetuado relativamente ao Bairro Alto, à luz das considerações teóricas tecidas nos dois primeiros capítulos. Apesar do indispensável esforço de distanciamento do observador/investigador do seu terreno, o engajamento, o empenho e o entusiasmo pela problemática e pelo estudo de caso constituíram o motor que estimulou a redação desta investigação.

34

Na página anterior: poste de iluminação no Bairro Alto. Foto da autora.

1.1 A revalorização das áreas centrais.

Observar a cidade, percorrendo as suas ruas e os seus espaços, permite entender muito sobre a sociedade que a produz. Vários autores têm sublinhado esta ligação forte entre o urbano e o social. As escolhas arquitetónicas e urbanísticas têm reflexos na sociedade e nas vidas de cada individuo. O ambiente construído tem, em muitos casos, uma duração maior que as dinâmicas sociais, mas tal não impede que os ambientes sejam transformados em função de novos usos, significados simbólicos (Piccinato, 2004) ou de micro transformações efetuadas pelos habitantes com o fim de melhorar as próprias condições de vida 1. Segundo Barata Salgueiro: “A cidade é produzida e apropriada ao mesmo tempo porque é o quadro de vida das práticas quotidianas, e portanto a vivência social que se faz através do uso do espaço implica sempre a sua transformação em outras realidades” 2. Muito se tem refletido sobre o conceito de ‘cidade ideal’, e algumas utopias foram postas em prática. Se considerarmos a ‘utopia’ moderna expressa na Carta de Atenas de 1933 3, vê-se que mesmo a cidade concebida como espaço para uma sociedade de pares, se tende a transformar em espaço de exclusão (vejam-se, por exemplo, os grandes conjuntos habitacionais do pós-guerra, ou mesmo as cidades criadas de raiz segundo os pressupostos modernistas como Brasília ou Chandigarh). Se a história serve como um instrumento para se perspetivar o futuro e se evitarem os erros do passado, um olhar mais atento e crítico sobre a cidade contemporânea impõe-se, de forma a poderem ser repensados os modos de produção do espaço e o envolvimento do cidadão no processo produtivo. Se o espaço é produto do social, é também produtor do social, como evidenciado nos estudos de Henri Lefebvre (1968). As cidades diferem entre si em número de habitantes, formas, atividades e potencialidades económicas; no entanto, numa mesma cidade é possível identificar muitas noções de cidade, provavelmente tantas “quantos os sujeitos, tantas definições quantos os interesses ou formação dos seus atores” 4. Como nota Teresa Barata Salgueiro (1994), a cidade constitui “um dado social ou socioeconómico” sendo que os citadinos são produtores de bens, de valores e de

1

Esta última questão será mais amplamente tratada no cap. 1.2.2. BARATA SALGUEIRO, Teresa (1) – Repensar a cidade face a novos desafios. Philosophica. ISSN: 0872-4784. nº4. Lisboa: Edições Colibrí, 1994, pp. 69-80. p.72. 3 Carta de Atenas (1933). Conclusões da IV Conferência Internacional de Arquitectura Moderna (CIAM). Atenas, Novembro de 1933. [Em Linha] [Consult. 2 Mai. 2010] Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=233. 4 BARATA SALGUEIRO, Teresa (1), 1994, op. cit., p.70. 2

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consumo, mas é, ao mesmo tempo, uma “forma espacial que serve de suporte às funções inerentes à concentração” 5. A geógrafa portuguesa destaca que a reunião de pessoas díspares potencia a diferenciação e a especialização e permite maiores possibilidades de contacto, mas, ao mesmo tempo, favorece o anonimato e produz uma situação dicotómica: por um lado a cidade como espaço de liberdade e de direitos, e por outro lado a cidade como espaço de exclusão. Com a revolução industrial e com o desenvolvimento tecnológico e dos transportes coletivos, começaram a formar-se aglomerados urbanos cada vez maiores, e a cidade tornou-se quadro de vida para uma percentagem cada vez maior da população. “Para muitos a cidade tornou-se mesmo o mundo, no sentido em que a consciência do mundo é obtida através da do lugar, daquilo que é próximo [...] e assim ela é fonte de realização mas também de problemas” 6. Os fluxos migratórios que trouxeram grandes percentagens de população rural para as cidades traduziram-se numa enorme procura de novos espaços habitacionais. A resposta a esta procura foi dada ora pela densificação dos tecidos preexistentes, em situações muitas vezes de insalubridade agravada, ora pela construção de novos conjuntos residências exteriores às antigas muralhas. Tal situação favoreceu os proprietários fundiários, que viram aumentar o valor dos seus terrenos. O aumento da comercialização da terra traduziu-se na mudança do valor de uso da mesma para o valor de troca (Harvey, 2001). Do ponto de vista político, foi favorecida a conversão dos terrenos de agrícolas para urbanos. Paralelamente, as novas tecnologias permitiram soluções construtivas mais eficazes, ao mesmo tempo que os transportes facultaram uma maior rapidez na construção, tanto em termos de entrega de materiais como na possibilidade de a mãode-obra residir em zonas da periferia e poder chegar mais facilmente ao local de trabalho. Neste contexto, a estrutura social transforma-se: a posição do indivíduo na escala social passa a ser determinada pelos seus bens materiais e não pelo nascimento. A sociedade burguesa, que se expande com a revolução industrial, avalia o estatuto social do indivíduo pelas suas posses. Toda esta situação produz, como refere Barata Salgueiro, uma diferente segregação social:

5 6

Ibidem, p.70. Ibidem, p.73

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“Os mecanismos de apropriação do solo, em que a terra e os alojamentos têm valor de troca, aproximam-se dos da identificação social conduzindo à segregação social do espaço urbano, isto é, constroem-se bairros para burgueses, casas caras em sítios agradáveis, e bairros para operários, residências modestas em áreas menos boas, geograficamente separados. Esta segregação do espaço estende-se às atividades e por isso as cidades vão-se apresentar funcionalmente como um mosaico de áreas distintas” 7. Não se trata, no âmbito desta tese, de (re)traçar a história urbanística da cidade pós-industrial. Interessa, sim, notar como, com o crescimento urbano subsequente ao processo de industrialização e à instalação de uma sociedade de mercado, se começou a perder o interesse pelas anteriores funções urbanas já sem uma imediata utilização económica. Os espaços comuns, os espaços de culto ou os serviços sociais são elementos que não produzem uma riqueza direta, “[h]oje, o triunfo do mercado sem regras já não permite estes ′luxos′“ 8. Também a perceção dos capitalistas sobre a sua responsabilidade na produção do bem-estar urbano se foi alterando, de uma visão liberal para um pensamento paternalista que produziu em Lisboa as vilas operárias ou, no Porto, as Ilhas, nalguns casos com atenção para os aspetos estéticos e arquitetónicos 9. Em Itália, as famílias do capitalismo industrial estiveram fortemente ligadas ao lugar de produção, contribuindo para a sua evolução (caso em Turim da família Agnelli, ou em Milão da família Pirelli). Estes industriais investiram grandes capitais nas suas cidades para o embelezamento urbano, e cuidaram da arquitetura das suas fábricas, dos lugares de venda e da habitação dos seus trabalhadores 10. Este modelo de investimento capitalista nos lugares de produção e habitação alterou-se. Segundo Berdini, “[a]s sociedades líderes da economia mundial já não procuram a qualidade dos lugares [...] cortaram todas as ligações com os lugares reais”11. As mudanças introduzidas na segunda metade do século XX pela tecnologia, pelas alterações nos modos de produção e pela transmissão da informação, levaram a

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BARATA SALGUEITO, Teresa, – A espacialidade no tempo urbano. Penélope. ISSN: 0871-7486. nº7. Lisboa: Cosmos Editora, Abril 1992. pp. 7-25. p.19. 8 BERDINI, Paolo – La città in vendita. Centri storici e mercato senza regole. Roma: Donzelli editore, 2008. ISBN: 978-88-6036-226-1. p.5, [T.d.A.], “[o]ggi [séc. XXI], il trionfo del mercato senza regole non permette più questi ′lussi′“. 9 Como, por exemplo o Bairro Estrela d’Ouro em Lisboa (projeto do Arqº Norte Júnior, 1907), por encomenda de Agapito Serra Fernandes, industrial de confeitaria. 10 Como por exemplo a Rinascente em Roma (Itália). Adriano Olivetti, grande industrial italiano, investiu muitas energias na construção, na cidade de Ivrea (Itália), com a realização dos espaços de trabalho e das habitações para os trabalhadores, e, em 1948, criou o Instituto Nacional de Urbanística. Fonte: SECCHI, Bernardo. La città del ventesimo secolo. Roma: Edizioni Laterza, 2005. ISBN: 88-420-7710-0. 11 BERDINI, Paolo, 2008, op. cit., p.6, [T.d.A.], “[l]e società leader dell’economia mondiale non ricercano piú la qualitá dei luoghi [...] hanno reciso tutti i legami con i luoghi reali”.

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uma reconfiguração do espaço urbano concentrado ditado pela Revolução Industrial. A centralidade “ganhou novos contornos e libertou-se da posição geométrica central, para se avaliar em termos de facilidades de acesso e estacionamento, ou de prestígio” 12. Em 1968, Henri Lefebvre 13, considera a industrialização como motora das transformações ocorridas na sociedade durante o último século e meio. Ao definir a cidade medieval como centro de vida social e política, bem como lugar de acumulação de riqueza e conhecimento, Lefebvre define os conceitos de obra e de produto 14. Na sua abordagem, a obra concorre ao valor de uso, o produto ao valor de troca, conceitos base da teoria marxista. Com o capitalismo concorrencial, e a industrialização, a obra e o valor de uso tendem a perder relevância: “[a] cidade e a realidade urbana dependem do valor de uso. O valor de troca e a generalização da mercadoria produzida pela industrialização tendem a destruir, subordinando-as, a cidade e a realidade urbana”

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. Lefevbre refere

como causa de uma “crise gigantesca” a passagem do capitalismo bancário e comercial, com a sua produção artesanal, para a produção industrial e o capitalismo concorrencial. Esta situação, no seu parecer, tem uma forte influência na forma da cidade, pois “a indústria nascente procura os seus espaços fora da cidade” 16. Interessa sublinhar a convicção de Lefevbre de que a cidade tem intrínseca uma capacidade criativa, a qual se refere a uma comunidade ou coletividade. Existe uma prática social feita de estratégias diferentes e, às vezes, divergentes, mas capaz de se materializar em um espaço urbano em que todos os cidadãos se sentem atores. Segundo a leitura de Francesco Chiodelli: “A tese de Lefevbre é que o destino dos espaços urbanos está ligado à relação entre obra e produto, ou seja entre valor de uso e valor de troca [...] a cidade ao ser si própria (ou seja ao ser cidade-obra) depende, de facto, do valor de uso, ou seja do seu consumir-se improdutivamente para a própria celebração e a de toda a sua população. A cidade obra é uma cidade em que o espaço é subtraído – em termos gerais – da sua subordinação ao mercado e ao lucro, a favor de um surplus 12

BARATA SALGUEIRO, Teresa, 1994, op. cit., p.74. LEFEBVRE, Henri – Il diritto ala cittá. (1ª edição 1968). Firenze: Marsilio editore, 1978. ISBN: 8831700839. 14 Lefebvre entende a ′obra′ como única e insubstituível, porque resultado de um trabalho em que a criatividade é fundamental; enquanto o ′produto′ é resultado de gestos seriais, de um trabalho repetível e perfeitamente reprodutível. (LEFEVRE, Henry, 1968, op. cit.) 15 LEFEBVRE, Henri, 1978, op. cit., p.24, [T.d.A.], “[l]a città e la realtà urbana dipendono dal valore d’uso. Il valore di scambio, la generalizzazione della merce prodotta dall’industrializzazione tendono a distruggere, subordinandosela, la città e la realtà urbana”. 16 LEFEBVRE, Henri, 1978, op. cit., p.25, [T.d.A.], “l’industria nascente tende ad insediarsi fuori dalle città”. Nota-se que Lefebvre sublinha que esta situação não é absoluta, acontecendo alguns casos contrários como o da imprensa (de que se falará mais à frente – cap.4.3 – em relação ao caso de estudo do Bairro Alto). 13

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[...] que produz a afeição coletiva ao urbano, a contribuição compartilhada à sua beleza e ao seu progresso, um sentimento comum de pertença cívica”.

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O espaço possui, nesta ótica, uma lógica própria interna, que não é independente mas é sim produto do social. O espaço é, ao mesmo tempo, produto e produtor. O espaço é, portanto, segundo Lefebvre (1970), elemento chave para o processo de formação do lucro, na cidade ′produto′. Os conceitos de ′valor de uso′ e de ′valor de troca′ são retomados pelo geógrafo marxista David Harvey. O autor sublinha igualmente que o valor de uso do espaço está a tornar-se secundário, ganhando relevância o valor de troca. A mudança marca o processo de urbanização porque “[e]m cada momento as cidades possuem um conjunto de formas herdadas, aquelas que vêm de períodos anteriores, e formas novas, muitas das quais em substituição das anteriores” 18. A cidade é o cenário onde ocorrem as atividades de produção e consumo, e é, ao mesmo tempo, objeto e promotor do processo de acumulação capitalista. Em função do lucro, a cidade torna-se complexa, expande-se e ′periferializa-se′ 19. Como evidencia o geógrafo britânico, os direitos humanos encontram-se hoje (séc. XXI) no centro dos debates internacionais. Todavia, a maioria destas discussões e ideias não colocam em causa o sistema em que elas ocorrem: “[...] não põem realmente em discussão as lógicas do mercado liberal e neoliberal ou os modelos dominantes de legalidade e intervenção estatal. No mundo em que vivemos, os direitos da propriedade privada e da taxa de lucro prevalecem sobre qualquer outro tipo de direito”. 20 A urbanização capitalista foi alimentada pela necessidade de constantes investimentos de capital para criar maior surplus produtivo. A pergunta que Harvey (2008) coloca é para que serve, nesta situação, o aumento de investimentos rentáveis.

17 CHIODELLI, Francesco – La cittadinanza secondo Henri Lefebre: urbana, ativa, a matrice spaziale. [Em Linha] [Consult. 1 Dec. 2012] Disponível em: http://www.academia.edu/1324719/La_cittadinanza_secondo_Henri_Lefebvre_urbana_attiva_a_matrice_s paziale. p.7, [T.d.A.], “La tesi di Lefebvre é che il destino degli spazi urbani sia irrimediabilmente legato al rapporto tra opera e prodotto, ossia tra valore d’uso e valore di scambio […] la città nella pienezza di essere se stessa (ovvero nell’essere città-opera) dipenderebbe, infatti, dal valore d’uso, ossia dal suo consumarsi improduttivamente per la propria celebrazione e quella di tutta la sua cittadinanza. La città opera è una città in cui lo spazio è sottratto – in termini generali – alla sua subordinazione al mercato e al profitto, in nome di un surplus […] che genera l’affezione collettiva all’urbano, il contributo condiviso alla sua bellezza e al suo progresso, un senso di comune appartenenza civica”. 18 BARATA SALGUEIRO, Teresa, 1994, op. cit., p.73. 19 HARVEY, David – A Produção Capitalista do Espaço. (1ª edição 2001). São Paulo: Annablume, 2006. ISBN: 85−7419−496−4. 20 HARVEY, David – The right to the city. New Left Review. ISSN: 0028−6060. nº 58. Londres: New Left Review, Set./Out. 2008. p.1, [T.d.A.], “[…] do nothing to fundamentally challenge hegemonic liberal and neoliberal market logics and neoliberal models of legality and state action. We live in a world, after all, where the rights of private property and the profit rate trump all other notions of rights one can think off”.

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A sua argumentação é que “[a urbanização] desenvolveu um papel muito importante (juntamente com outro fenómenos como as despesas militares) ao absorver o surplus de produção continuamente procurado pelo capital na sua perene procura do lucro” 21. Como resultado desta situação, encontramo-nos perante cidades em que o consumo é o motor principal das ações urbanísticas: “[a] qualidade da vida urbana torna-se numa mercadoria para os que possuem recursos económicos, como a própria cidade num mundo onde o consumismo, o turismo cultural e indústrias baseadas no conhecimento tornaram-se os principais aspetos da economia política urbana”. 22 A consequência é o proliferar de espaços de segregação cultural e económica, como os grandes centros comerciais, os cinemas mutisalas ou as cadeias de espaços em franchising, que afastam a população da realidade urbana, e fazem com que as cidades comecem a parecer-se umas com as outras. A segregação social, neste contexto de ética neoliberal, em que são exaltados o individualismo e a riqueza material, reflete-se também nas áreas urbanas que se tornam cada vez mais divididas e conflituosas. Segundo Harvey “[o]s resultados estão indelevelmente gravados nas formas espaciais das nossas cidades, que cada vez mais se tornam cidades de fragmentos fortificados, de condomínios fechados e espaços públicos privatizados mantidos sob vigilância constante”. 23 Assim, a par da segregação socioeconómica, aumenta a segregação espacial, ao mesmo tempo que a economia neoliberal permite aos interesses privados moldar as cidades para que estas sejam transformadas em captadoras de investimentos, através de grandes projetos 24, de privatizações e de condomínios fechados 25. Neste contexto, os centros históricos ou se encontram em grave estado de degradação ou são objeto de interesses imobiliários. Estes recorrem, de forma muitas vezes deturpada, às noções de reabilitação, regeneração ou requalificação urbana, associando-as, de fato, a práticas de gentrification 26. Em função destes processos, encontramo-nos perante situações de expulsão dos anteriores habitantes de menores recursos, quer seja por via do mercado ou de ação política através de despejos

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HARVEY, David, 2008, op. cit., p. 3, [T.d.A.], “[the urbanization] plays a particulary active role (along with other phenomenon such as military expenditures) in absorving the surplus product that capitalists are perpetually producting in their serch for surplus value”. 22 Ibidem, p. 8, [T.d.A.], “[q]uality of urban life has become a commodity for those with money, as had the city itself in a world where consumerism, tourism, cultural and knowledge-based industries have become major aspects of urban political economy”. 23 Ibidem, p.9, [T.d.A.], “[t]he results are indelibly etched into the spatial forms of our cities, which increasingly become cities of fortified fragments, of gated communities and privatized public spaces kept under constant surveillance”. 24 Veja-se, por exemplo, quanto verificou-se no Brasil para a Copa do Mundo de Futebol 2014. 25 O tema dos condomínios fechados será desenvolvido nos capítulos 1.4 e 6. 26 Estes conceitos serão desenvolvidos no cap. 1.3.

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forçados, com ou sem previsão de realojamento dos antigos habitantes. Esta situação mostra que as problemáticas atuais do centro e da periferia estão fortemente interligadas. Paolo Berdini teoriza o facto de que as cidades perderam a complexidade das funções urbanas clássicas “que as tornou vitais nos séculos anteriores” quando a convivência entre as várias classes sociais “garantia riqueza de relações e beleza” 27. Neste momento, assiste-se, em muitos centros históricos, à expulsão dos seus residentes de classes sociais menos favorecidas (segundo processos de gentrification), despejadas para periferias longínquas, que nada têm a ver com a história de vida das suas famílias e da sua identidade 28. Em 2000, o Congresso dos Poderes Locais e Regionais da Europa (CPLRE) adota a Recomendação 98(2000) sobre Cidades Históricas na Europa 29. Neste documento reconhece-se que as cidades históricas, no início do século XXI, estão a enfrentar grandes desafios, sendo um dos principais a dificuldade que as cidades enfrentam em encontrar um equilíbrio entre preservação histórica e desenvolvimento económico. No final do século XX e início do século XXI, voltaram a surgir projetos cuja escala, altura, materiais e linguagem, afetam negativamente a imagem, o caráter, e por conseguinte, o valor cultural da cidade histórica. Ana Pinho nota como: “A situação assemelha-se à vaga de renovação urbana do pós-guerra, se bem que tenha algumas características distintas. Em primeiro lugar, enquanto anteriormente parte do problema residia em não se reconhecer potencial de desenvolvimento nestas áreas, agora atingiu-se uma situação quase inversa. A importância das áreas centrais para o crescimento económico, seja pela sua atratividade e contributo para a ′venda′ da imagem da cidade, seja por via do turismo, é amplamente reconhecido. A visão da cidade histórica como recurso económico, no entanto, veio obliterar o seu papel como recurso social, cultural e ambiental” 30. Na tentativa de valorizar ′ainda mais′ as áreas históricas através da criação ou reforço de uma ′imagem de marca′, constroem-se edifícios emblemáticos projetados por arquitetos famosos que não se articulam com o lugar. Estas linguagens arquitetónicas contemporâneas de ′autor′ ou ′arquitetura de grife′, repetem-se num número crescente 27

BERDINI, Paolo, 2008, op. cit., p.15, [T.d.A.], “che le ha rese vitali nei secoli precedenti”; “ne garantiva ricchezza di relazioni e bellezza”. 28 Este tema será mais amplamente tratado no cap. 1.3. 29 Cfra. cap. 2. 30 PINHO, Ana Cláudia da Costa − Conceitos e políticas europeias de reabilitação urbana. Análise da experiência portuguesa dos Gabinetes Técnicos Locais. Lisboa: Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, 2009. Tese de Doutoramento. p. 546.

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de cidades, fazendo com que as mesmas se assemelhem cada vez mais. Estes projetos que não dialogam com o lugar, quando inseridos nos centros históricos, afetam toda a área, a qual tem um valor de conjunto. Os objetivos deste tipo de intervenção podem ser a renovação urbana, a demonstração do crescimento económico e da competitividade da cidade, ou ainda o aumento da atratividade do lugar. A atração do turismo faz uso também da descoberta da história como componente da cidade contemporânea, que pode ser inserida nas estratégias de comunicação: “[…] tanto mais penetrantes na cidade contemporânea quanto redutivas a um único significado dominante, que vai obscurecer toda a riqueza dos outros possíveis significados que lá se podem individualizar. Esta diminuição resulta completamente evidente quando é tocado o tema da identidade do lugar […]” 31. O uso e difusão da história através do turismo é hoje relevante. Piccinato alerta para o facto de que o turismo considerado hoje ′cultural′ tem na verdade origens antigas: existiu antigamente uma elite de jovens cultos e abastados, para os quais o grand tour era parte fundamental para uma boa instrução. A difusão da educação e o desenvolvimento económico do último século produziram “[...] a afirmação do turismo cultural numa medida que se tem demonstrado cada vez mais relevante” 32. O aumento da procura do turismo cultural, as maiores facilidades em termos de transportes, juntamente com um marketing cada vez mais elaborado 33, tornaram o turismo cultural num fenómeno de massas. Esta situação provoca grandes expectativas em termos de desenvolvimento económico, mas coloca também a questão dos recursos a afetar à conservação e revitalização dos centros históricos. Contudo, “[n]a comparação entre a cidade histórica e a indústria turística è [...] a segunda a dirigir o jogo” 34. Na maioria dos casos, as cidades, por causa da pressão exercida pela indústria turística, transformam-se em imagens estereotipadas, ou têm de se adequar ao mercado internacional. Esta situação “[...] não leva apenas à difusão de

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PICCINATO, Giorgio, 2002, op. cit., p.71, [T.d.A.], “[…] tanto piú pervasive nella città contemporanea quanto riduttive ad un significato dominante, che viene a oscurare tutta la ricchezza degli altri possibili significati che vi si possono individuare. Questa diminuzione è del tutto evidente quando si tocca il tema dell’identità del luogo […]”. 32 PICCINATO, Giorgio, 2008, op. cit., p.75, [T.d.A.], “[...] l’affermarsi del turismo culturale in una misura sempre più rilevante”. 33 Viagens low cost, pacotes ′tudo incluído′, entre outros. 34 PICCINATO, Giorgio, 2008, op. cit., p.77, [T.d.A.], “[n]el confronto tra città storica e industria turistica è […] la seconda a dirigere la partita”.

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um folclore mais ou menos artificial, para uso exclusivo dos turistas, mas sobretudo a um desenvolvimento e uma mudança patológica dos serviços comerciais e culturais” 35. A globalização da economia manifesta-se também através do turismo, trazendo lucro, mas, ao mesmo tempo, eliminando as identidades locais e transformando os lugares em produtos de consumo para viajantes com pouco tempo e, em muitos casos, com pouco interesse em conhecer a real história dos lugares. As cidades tornam-se assim objetos de consumo. O ′valor de uso′ é substituído pelo ′ valor de troca′ (Harvey). Em termos urbanísticos, esta situação produz vários fenómenos, como a substituição do comércio tradicional ou a construção de numerosos hotéis, aumento dos valores imobiliários 36 e do custo de vida, fatores que, por sua vez, conduzem à saída dos seus habitantes e a um aumento da desertificação dos centros históricos. Paralelamente, a valorização da história do centro da cidade, como fator de marketing, leva também a um crescente interesse imobiliário no sentido da construção de condomínios de luxo. Barata Salgueiro define três produtos para classes médias altas: “[...] condomínios fechados com diversas tipologias e padrões de localização, apartamentos reabilitados na cidade consolidada, e o aumento das moradias, principalmente na coroa suburbana ou periurbana [...]” 37. Os dois primeiros produtos 38 (condomínios fechados e apartamentos reabilitados) estão cada vez mais presentes nos tecidos históricos. Relativamente aos apartamentos reabilitados, em muitos casos trata-se de operações de ′fachadismo′, em que edifícios antigos são completamente esvaziados, deixando apenas a fachada antiga e construindo interiores completamente novos, com todos os confortos dos edifícios modernos. Trata-se, de fato, de operações de renovação e não de reabilitação. A situação dos condomínios fechados, em expansão nos centros históricos 39, remete para algumas questões fundamentais. A primeira é semelhante às operações de ′fachadismo′ e renovação relativas aos apartamentos reabilitados. As outras questões referidas por Barata Salgueiro (1997) são: o incremento de serviços associados ao alojamento, a privatização ou fruição restrita de espaços de atividade coletiva, e a segurança.

35

Ibidem, p.78, [T.d.A.], “[…] non comporta soltanto il diffondersi di un folclore più o meno artificiale, ad uso esclusivo dei turisti, quanto piuttosto uno sviluppo e un cambiamento patologico dei servizi commerciali e culturali”. 36 No cap. 4.4 serão tratados estes temas através da leitura dos dados dos últimos Censos relativamente ao centro da cidade de Lisboa e, em específico, à área do Bairro Alto. 37 BARATA SALGUEIRO, Teresa, − Lisboa, metrópole policêntrica e fragmentada. Finisterra, Revista Portuguesa de Geografia. ISSN 0430−5027. XXXII, (63). Lisboa: CEG-UL Lisboa, 1997. pp.179−190. p.186. 38 Este tema será mais amplamente tratado nos capítulos 1.4 e 6. 39 Cfra cap.1.4.

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O incremento dos serviços conexos com o alojamento mostra a direção do mercado para a lógica do consumo: juntamente com a casa e a localização, é vendido também um “sinal de estatuto social” e “a necessidade constante de encontrar produtos novos expressa-se no alargamento dos serviços que compõem o ′pacote residencial′ [...] A privatização dos espaços tradicionalmente colectivos decorre das mesmas lógicas de consumo e fragmentação do espaço [...]” 40. O termo ′fechado′ associado ao ′condomínio′ 41 remete para o conceito de uma propriedade coletiva restrita, em que o controlo do acesso ao conjunto é fundamental. Isso expressa a necessidade de “[...] se fechar entre iguais como defesa dos estranhos que são vistos como uma ameaça numa sociedade que se fragmenta e dessolidariza” 42. Esta situação leva a considerar a preponderância do ′medo′ na sociedade e na cidade contemporâneas: “[o] medo, na sociedade pós-moderna, condiciona o mercado imobiliário e este, por sua vez, influi no uso e na forma da cidade”

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. A cidade ganha

duas formas de residência: a marginal (em parte autoproduzida) e a da classe média emergente. Tudo isto leva ao fenómeno da não livre circulação: existe, por um lado, a cidade dos ricos, por outro, a cidade dos pobres. Este fenómeno é particularmente evidente nas grandes metrópoles do hemisfério Sul, mas não é inexistente nas metrópoles do Norte, onde a situação é apenas menos visível 44. Harvey (2008) sublinha que um dos principais traços da absorção do surplus produtivo é que “[...] implicou ataques repetidos de re-estruturação urbana através de ′destruição criativa′ [...]” 45. Esta dinâmica está associada a discriminações de classe, sendo, na maioria dos casos, as pessoas de poucos recursos económicos alvo de despejos forçados, ou semi-forçados, em prol de re-estruturações urbanas. Esta situação leva ao aumento da periferização, que decorre também de ações fiscais, da alteração do valor do arrendamento, em favor da especulação fundiária e imobiliária.

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BARATA SALGUEIRO, Teresa, op. cit., 1997, p.187. No contexto deste trabalho foca-se a constituição destes complexos nos centros históricos, mas a sua emergência ocorre em toda a cidade. 42 Ibidem, p.186. 43 PICCINATO, Giorgio, 2008, op. cit., p. 92, [T.d.A.], “[l]a paura, nela città post-moderna, condiziona il mercato imobiliarie e questo, a sua volta, influisce sull’uso e la forma dela città”. 44 Um projeto da Faculdade de Arquitetura de Roma3 (Itália) no âmbito da disciplina ′laboratorio di arti civiche′ do Prof. Francesco Careri, produziu, em 2007, uma enorme discussão na imprensa nacional italiana. O objetivo foi o de aproximar os estudantes do fenómeno da transformação das margens do rio Tevere, que se tornou, nos últimos anos, num habitat de esconderijos e micro-favelas, onde muitos italianos, imigrados e etnias roma encontraram um espaço de estar. Esta situação, de grande escala, era até então praticamente desconhecida (ou escondida). A investigação efetuada pelos estudantes da Faculdade de Arquitectura trouxe o caso até à opinião pública, denunciando que estas situações de degradação, de insalubridade, de autoconstrução, não pertencem apenas aos países do hemisfério Sul, mas existem também no Ocidente. Fonte: http://www.articiviche.net/ 45 HARVEY, David, 2008, op. cit., p.9, [T.d.A.], “[...] it has entailed repeated bouts of urban restructuring through ′creative destructions′“. 41

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Estes mecanismos tendem a impossibilitar a permanência das faixas da sociedade com menos recursos, acentuando a divisão entre áreas ricas e áreas pobres. Harvey denuncia ainda a apropriação do conceito de direito à cidade pelos interesses privados ou semiprivados, que camuflam a sua acepção emancipadora: “[o] direito à cidade, portanto, é muito mais do que o direito de acesso individual aos recursos que a cidade incorpora: é o direito de nos mudarmos a nós mesmos, mudando a cidade, sendo um direito coletivo” 46. Encontramo-nos, hoje, perante uma metrópole fragmentada do ponto de vista sócio-espacial, em que a cidade perde a sua unidade funcional. Do ponto de vista social “cresce a segmentação não permitindo fazer uma leitura unidimensional nem hierárquica do espaço social” tornando-se necessária “uma leitura multidimensional, como um caleidoscópio” 47. Neste contexto socioeconómico, a escolha do presente estudo é a de centrar a leitura nas problemáticas relativas aos centros históricos, sem descurar a sua relação com as problemáticas das periferias e da cidade contemporânea no seu todo.

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Ibidem, p.1, [T.d.A.], “[t]he right to the city, therefore, far more than a right of individual access to the resources that the city embodies: it is a right to change ourselves by changing the city more after our heart’s desire”. 47 BARATA SALGUEIRO, Teresa, 1997, op. cit., p.190.

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1.2 Sobre a noção de identidade.

Sabe-se hoje que, se na verdade o fenómeno da globalização trouxe fatores importantes para a consciencialização do eu enquanto parte de um todo, também levantou processos de instabilidade, sobretudo para as sociedades menos preparadas para a competitividade própria do mundo contemporâneo. É desse fenómeno imparável, de constante dinâmica e um modus operandi próprio, que se dá conta no presente sub-capítulo. Globalização, identidade, homogeneização, são conceitos que alteram as sociedades, influenciam os povos e determinam mudanças significativas nos espaços sociais e habitacionais.

1.2.1 Globalização e identidade cultural.

Predomina na atualidade a imagem de um mundo globalizado, em que prevalecem as técnicas, a economia e o mercado, e que é estruturado segundo uma rede de relações que abrange, aparentemente, o globo inteiro. Mas, como alerta Saskia Sassen, a globalização não se refere a todo o planeta, pois “[…] pode ser desconstruída em termos de lugares estratégicos nos quais se materializam os processos e as ligações globais que os voltam a ligar” 48. A extensão e o alcance dos meios de circulação e a comunicação oferecida pelas novas tecnologias requerem condições materiais para a tornar viável e locais onde se materializa a globalização. Emerge,

neste contexto, “uma nova geografia da centralidade e da

marginalidade” 49 que se refere aos lugares centrais dos processos económicos da globalização e a um território amplo deixado à margem desses processos. Milton Santos nota como são criadas “[…] não só as condições do maior lucro possível para os mais fortes, mas, também, as condições para a maior alienação possível para todos. Através do espaço, a mundialização, em sua forma perversa, empobrece e aleija” 50. A competitividade entre as cidades torna-se um fenómeno dominante na contemporaneidade, definindo, na opinião do geógrafo brasileiro, novas formas de

48 SASSEN, Saskia – Una sociologia della globalizazione. Roma: Einaudi, 2008. ISBN 9788806190057. p. 30, [T.d.A.], “[…] puó essere descostruita in termini di siti strateggici nei quali si materializzano i processi e i legami globali che li ricollegano”. 49 Ibidem, p.30, [T.d.A.], “una nova geografia della centralità e della marginalità”. 50 SANTOS, Milton – Técnica, Espaço, Tempo. Globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo: Editora Hucitec, 1994. ISBN: 85-271-0268-4. p. 33.

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guerra, sendo que “[a]s tentativas de construção de um mundo só, sempre conduziram a conflitos, porque se tem buscado unificar e não unir” 51. Deste modo nasce a luta entre “uma organização coerciva e o exercício da espontaneidade” 52 produzindo a ′fragmentação′. No parecer de Milton Santos, o lugar contrapõe-se ao mundo da globalização: “[a] dimensão fragmentada é a tribo – união de homens pelas suas semelhanças – e o lugar – união de homens pela cooperação na diferença. A grande revolta se dá através do espaço, do lugar, ali onde a tribo descobre que não é isolada, nem pode estar só” 53. É assim que o lugar, espaço de esperança, se contrapõe ao global, espaço da falsidade: “[n]estas condições, o que globaliza separa; é o lugar que permite a união” 54. É em relação ao lugar que se processa a interpretação do mundo, sendo que nele o permanente e o real triunfam “sobre o movimento, o passageiro, o imposto de fora”. O espaço local é, deste modo, “[…] um substrato que acolhe o novo, mas resiste às mudanças, guardando o vigor da herança material e cultural” 55. As identidades, quer sejam nacionais ou locais, forjam-se no lugar, e tendem a contrapor-se à globalização a qual, por sua vez, procura influenciar as identidades. Então como definir a(s) identidade(s)? A identidade de matriz cultural está relacionada, como nota Nascimento, com um “[...] conjunto de características que os indivíduos ligados aos grupos escolhem, através de processos minuciosos e contínuos, e que permitem auferir, pelo grupo e por outros, um perfil aparentemente homogéneo, mas que está em permanente construção e hibridação” 56. A noção de hibridação, como refere Cancline, apesar de não ter início no período pós-moderno, constitui uma das suas marcas. Segundo o autor, hibridação refere-se aos “ [...] processos socioculturais nos quais estruturas e práticas discretas, que existem de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” 57. Neste contexto, as fusões podem ocorrer no seio das várias identidades de uma forma não planeada e provocada pela criatividade individual e/ou coletiva.

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Ibidem, p.35. Ibidem, p.35. 53 Ibidem, p. 36. 54 Ibidem, p. 36. 55 Ibidem, p. 37. 56 NASCIMENTO, Ricardo – Das maltas às tribos: identidade, cultura e hibridismo nos grupos de capoeira em Portugal. Em: Colóquio OPJ “Olhares sobre os jovens em Portugal: Saberes, Políticas, Acções” ICS-UL, 2-3 Junho 2011. [Em Linha] [Consul. 1 Dec. 2013] Disponível em: https://fcshunl.academia.edu/RicardoCangaceiro/Textos-e-publica%C3%A7%C3%B5es. p.3 57 CANCLINE, Néstor Garcia – Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 2003. ISBN: 8531403820. p. 20. 52

49

Stuart Hall 58 argumenta que o sujeito da pós-modernidade difere dos anteriores – do iluminismo e sociológico 59, que possuíam identidades unificadas e estáveis, – afirmando-se como ′fragmentado′, não possuindo “uma identidade fixa, essencial ou permanente” 60. A identidade transforma-se hoje continuamente em relação aos sistemas culturais que rodeiam o sujeito: “a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia” 61. Nesta ótica, a globalização tem uma forte influência sobre as identidades culturais, por serem as sociedades modernas sociedades de mudança constante e rápida. Como se relaciona este sujeito fragmentado com as suas identidades? Na sua análise, Stuart Hall refere-se principalmente às identidades nacionais, sublinhando, porém, que estas integram outras identidades 62. O sociólogo inglês considera a nação como sendo não apenas uma entidade política mas também uma “comunidade simbólica” na qual está intrínseco um “sistema de representação cultural” 63. A cultura nacional constrói significados e influencia tanto as ações quanto a conceção que o sujeito tem de si próprio, construindo, desta forma, identidades, sendo a identidade nacional uma “comunidade imaginada”, constituída pelas memórias do passado, pelo desejo de viver em conjunto e pela perpetuação da herança. Apesar de serem representadas como unificadas, as identidades nacionais são compostas por várias outras identidades. Um exemplo é o da representação da identidade nacional como sendo subjacente a um único povo, o que, de facto, não é real, pois as nações modernas são compostas por híbridos culturais. As identidades nacionais são, portanto, compósitas, pelo que, ao discutir-se se “estão sendo deslocadas [é necessário] ter em mente a forma pela qual as culturas nacionais contribuem para ′costurar′ as diferenças numa única identidade” 64. As caraterísticas espaciais e temporais próprias da globalização, que produzem uma compressão do espaço e do tempo, têm um forte impacto nas identidades culturais. 58 HALL, Stuart – A Identidade Cultural na pós-modernidade. (1ª edição 1992). Rio de Janeiro: DP&A, 2006. ISBN: 85-7490-402-3. 59 Hall define o sujeito do iluminismo como sendo aquele sujeito que “estava baseado numa conceção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo ′centro′ consistia num núcleo interior que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia […] O centro essencial do ′eu′ era a identidade de uma pessoa. […] era uma conceção muito ′individualista′ do sujeito e da sua identidade” e afirma que “A noção de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto-suficiente, mas era formado na relação com ′outras pessoas importantes para ele′ […] De acordo com esta visão […] a identidade é formada na ′interação ′ entre o eu e a sociedade”. Ibidem. pp. 10-11. 60 Ibidem, p.12. 61 Ibidem, p.13. 62 O sociólogo inglês foca a sua análise nas identidades nacionais por ser explícito que estas estão a ser afetadas pelo processo de globalização. 63 HALL, Stuart; 2006, op. cit., pp. 48-49. 64 Ibidem, p. 65.

50

O ritmo e o alcance da globalização aumentaram vertiginosamente a partir dos anos setenta do século XX. Esta situação terá causado, como alerta Stuart Hall, três possíveis consequências nas identidades: 1. “As identidades nacionais estão-se desintegrando, como resultado do crescimento da homogeneização cultural e do ′pós-moderno global′. 2. As identidades nacionais e outras identidades ′locais′ ou particularistas estão sendo reforçadas pela resistência à globalização. 3. As identidades nacionais estão em declínio, mas novas identidades – híbridas – estão tomando seu lugar” 65. Stuart Hall parte de três pressupostos: que uma das principais características da globalização é a compressão espaço-tempo; que o tempo e o espaço são “as coordenadas básicas de todos os sistemas de representação”; e que a identidade “está profundamente envolvida no processo de representação” e “está localizada no espaço e no tempo simbólicos”. O autor argumenta que “[…] a moldagem e remoldagem de relações espaço-tempo no interior de diferentes sistemas de representação têm efeitos profundos sobre a forma como as identidades são localizadas e representadas” 66. Neste contexto, as identidades nacionais estão a perder força, a favor de formas identitárias ′abaixo′ ou ′acima′: as identidades locais, regionais e comunitárias estão a tornar-se mais importantes, da mesma forma que estão a nascer ′identidades partilhadas′ entre pessoas distantes no espaço e no tempo. Parece redutor afirmar que as identidades nacionais estão a ser homogeneizadas pela globalização. Constata-se uma tendência para a homogeneização, mas também se observa uma “fascinação com a diferença e com a mercantilização da etnia e da ′alteridade′ ”, bem como um novo interesse para com o local. Hall alerta para o facto de que este ′local′ não deve, porém, ser confundido com as “velhas identidades”, pois é um fenómeno que atua na lógica da globalização e que produz “simultaneamente, novas identificações ′globais′ e novas identificações ′locais′ “ 67. Importa também considerar outros dois fatores relativos à homogeneização das identidades: a globalização é distribuída de forma desigual em todo o globo, e continuam a existir relações desiguais entre o Ocidente e o resto do Mundo relativamente aos padrões culturais que influenciam as ′novas identidades′.

65

Ibidem, p. 69. Ibidem, pp. 69-71. 67 Ibidem, pp. 77-78. 66

51

Apesar da tendência à dissolução de fronteiras, a emergência de uma identidade coerente e integral é muito discutível. Hall sublinha, também, que o fortalecimento de identidades locais pode ter um aspeto negativo, quando é causado por uma reação defensiva por parte quer de grupos dominantes (racismo cultural, fundamentalismo e nacionalismo), quer de grupos minoritários (revival do tradicionalismo cultural, da ortodoxia religiosa, do separatismo político, entre outros). Todavia, a valorização das identidades culturais locais tem também aspetos positivos tanto no seio das comunidades, por favorecer o fortalecimento de laços e sentimentos como os de pertença ou entreajuda, ou como o perdurar das tradições ou ainda no seio do espaço global, por permitir o conhecimento e a aceitação do ′outro′. Como será delineado mais a frente (cap.2), as boas práticas em políticas de reabilitação urbana, a partir da década de noventa do século XX, defendem a diversidade cultural local, considerando-a um meio para compatibilizar as aspirações sociais e económicas das comunidades com os objetivos globais. Maffesoli 68 nota a emergência de um novo paradigma cultural, ligado a uma visão do mundo mais emotivo e dionisíaco, existindo um retorno a alguns valores que se consideravam perdidos. O sociólogo francês afirma existir um afastamento das grandes instituições sociais, ao mesmo tempo que, especialmente nas grandes cidades, as populações tendem a agrupar-se em ′microtribos′, procurando novas formas de solidariedade. O quotidiano das ′tribos′ tem uma dimensão espácio-temporal bem definida (a rua, o bairro, a praça, o dia ou a noite, entre outros). É a partilha de um espaço em comum que permite a enfatização da ação da ′tribo′, bem como a noção de comunidade com a sua ética. É nesta perspetiva que nesta tese se usa a noção de identidade, dando particular atenção à dimensão do ′bairro′. Graça Índia Cordeiro 69 nota como os bairros mais antigos têm o ′privilégio′ de representar a cidade – no caso específico da sua pesquisa, a cidade de Lisboa – tendo a virtualidade de a tipificar e por isso serem considerados ′típicos′. Estes bairros possuem uma caraterística marcante: o sentimento de pertença dos seus residentes que se revela naquilo que é apelidado de ′bairrismo′.

68

MAFFESOLI, Michel – A transfiguração do político. A tribalização do mundo pós-moderno. Lisboa: Instituto Piaget editora, 2002. ISBN: 9789727716876 MAFFESOLI, Michel – O tempo das tribos. O declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. ISBN: 8521803753. 69 CORDEIRO, Graça Índias − Um lugar na cidade: quotidiano, memória e representação no Bairro da Bica. Lisboa: Dom Quixote, 1997. ISBN: 972−20−1410−2.

52

Como se constitui a identidade cultural de um bairro? Firmino da Costa 70 afirma que se verifica “uma espécie de efeito Doppler invertido na estruturação da memória social”, pois “o valor atribuído às obras humanas, o interesse que despertam e mesmo a sua percepção explícita enquanto algo digno de nota, tendem muitas vezes a aumentar com o afastamento histórico” 71. Existe, portanto, um sujeito coletivo que produz memórias partilhadas e formas de identidade cultural, sendo “simultaneamente sujeito e objeto destas memórias sociais e destas representações identitárias” 72. Subsiste a questão de ′quem′ constrói esta memória social: a população residente ou os historiadores. Neste sentido, Firmino da Costa realça a existência de duas teses: a patrimonialista, que defende a existência de uma identidade genuína dos bairros populares; e a da ′manipulação′, que vê a identidade como uma imagem criada ad hoc - no caso específico de Lisboa, pelo Estado Novo. De facto, é importante sublinhar que, independentemente do objetivo ideológico, os referentes mencionados como sendo património genuíno são sempre selecionados, preferindo uns em detrimento de outros. A historiografia tende a criar uma relação privilegiada com uma determinada época ou história urbana. Esta circunstância implica que “[…] o ′senso comum′ contemporâneo é constituído não só por saberes ′em primeira mão′, gerados na experiência da vida prática e do relacionamento social corrente, mas também por formas de conhecimento ′em segunda mão′, provenientes da divulgação social das produções científicas” 73. Outra questão a realçar é o fato de a expressão ′bairro′ não corresponder apenas a uma noção descritiva, mas ser também investida de uma forte carga simbólica. Existe um “efeito de sobreposição desfocada” constituído pela coexistência de duas imagens diferentes que se sobrepõem e se fundem parcialmente. Uma destas imagens é a produzida pelos habitantes do bairro que elaboram referências identitárias em que a relação com o espaço não assume uma configuração em termos patrimonialistas por ser mais importante a visão do bairro como “lugar de experiências partilhadas e de sentimentos de pertença” 74. Firmino da Costa afirma que “[…] a maneira como a população local vê o bairro é […] como um quadro de vida […] como um conjunto muito específico de particularidades

70 COSTA, António Firmino da − Sociedade de Bairro. Dinâmicas Sociais da Identidade Cultural. Oeiras: Celta Editora, 1999. ISBN: 978−972−774−249−3. 71 Ibidem. pp. 26-27. 72 Ibidem. p.29. 73 Ibidem, p.43. 74 Ibidem, p.48.

53

ligadas […] não tanto a passados históricos longínquos, mas sobretudo às caraterísticas do tecido social local contemporâneo” 75. Paralelamente, existem as representações criadas pelos agentes exteriores, visitantes

e/ou

técnicos/historiadores,

que

tendem

a

enfatizar

os

aspetos

patrimonialistas ou, às vezes, a criar estereótipos acerca do bairro e dos seus habitantes. Neste contexto, a visibilidade e a ′visitabilidade′ do bairro tornam-se fatores importantes para a imagem que se cria no exterior. O bairro “visita-se porque é visível (num sentido que apela a esta visita) e torna-se visível (conhecido de um certo modo) através não só de imagens e discursos, mas de práticas localmente realizadas por agentes sociais que ali chegam do exterior” 76. A visibilidade do bairro é parte intrínseca das dinâmicas de identidade cultural forjadas a seu respeito. Segundo Costa, existem muitos tipos de visitantes, dos turistas à população escolar/académica, ligadas à vida noturna ou às festividades. Na maioria dos casos, este tipo de visitas tendem a realçar um aspeto em detrimento de outros, provocando, às vezes, formas de estereotipização. O ′excesso′ de visibilidade, normalmente construída por e para gente do exterior, pode ter repercussões negativas por ofuscar alguns aspetos do bairro e condicionar a própria população residente. Graça Índias Cordeiro alerta para o facto de os bairros “antigos e pobres, designados por populares ou típicos” possuírem “uma pesada herança cultural e ideológica que, contudo, dificulta o seu conhecimento, presente e passado”. Estes bairros têm sido vistos e descritos como lugares de percurso e evasão romântica, facto que produziu “um processo de mitificação e de construção ideológica que tem contribuído para a quase institucionalização de um não conhecimento sobre a sua realidade concreta” 77. As práticas construídas pelas comunidades e grupos locais, para gente do exterior e do interior, podem ter o aspeto positivo de transmitir a verdadeira vida do bairro para o exterior 78. Na sua análise aprofundada relativamente ao bairro de Alfama (Lisboa), Firmino da Costa nota como existe um amplo leque de formas identitárias (ligadas a atividades económicas, ao fado ou às festas e coletividades associativas, entre outras) que se sobrepõem e criam um sentimento de pertença. É o que ele chama de ′sociedade de bairro′, “na qual se geram formas de identidade cultural especificamente assentes nas 75

Ibidem, p.49. Ibidem, p.50 77 CORDEIRO, Graças Índias, 1997, op. cit., pp.22-23. 78 Um exemplo deste tipo de práticas são as Comemorações efetuadas para os 500 anos do Bairro Alto (Lisboa) em 2013. Este tema será mais amplamente tratado no capítulo 4. 76

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relações sociais locais e inscritas no cerne dos padrões culturais que, impregnando de modo constitutivo essas relações sociais, em toda a sua espessura, dela continuamente emergem” 79. Nos bairros tradicionais, existe um forte sentimento de pertença que se traduz e manifesta num conjunto de ações. Em relação à exibição do ′orgulho bairrista′ perante o exterior, persistem, em Lisboa, manifestações peculiares como o fado, as marchas populares ou as festas juninas. Maffesoli 80 nota como o ritual se constitui como um elemento importante do grupo, sendo uma forma de agregação. O ritual, sendo algo de repetitivo, afirma a pertença do sujeito ao grupo, ao mesmo tempo que reafirma a existência do grupo e o projeta como coletividade para o exterior. Mas a ′pertença′ ao bairro não se reduz a estas representações, relativas a um modo de viver em comunidade: morar no bairro não significa obrigatoriamente ser portador de tal identidade. Um outro aspeto que o sociólogo português realça é o facto de a noção de ′identidade cultural′ não implicar homogeneidade social, sendo que no seio de cada comunidade existem hierarquias sociais ou conflitos de interesse No seio das comunidades existem associações locais com grande importância e influência. As ′coletividades′, associações voluntárias com base territorial, representam os bairros. Produzem, no caso de Lisboa – com o apoio financeiro da Câmara e dos comerciantes do bairro – as festas e as marchas populares, publicitando o bairro para o exterior, mas desempenham, também, “[…] um papel fundamental na expressão dum certo bairrismo local, que se exprime na rivalidade produzida por um sentimento de pertença ao seu bairro, exagerado no âmbito dos concursos existentes” 81. Estas associações 82, durante o resto do ano, promovem “[…] outros tipos de sociabilidade de bairro: são sedes de estruturação e afirmação de grupos locais, dinamizam actividades lúdicas e/ou desportivas, constituem-se como interlocutoras privilegiadas com o poder autárquico, apropriam-se e definem elementos importantes da memória colectiva local”. As associações, para além de participarem e favorecerem a vida quotidiana do bairro, “contribuem para a (re)creação de uma identidade de bairro na construção de uma imagem unitária do bairro, para o exterior, no momento do confronto com outros bairros” 83.

79

COSTA, António Firmino da. 1999, op. cit., p.82. MAFFESOLI, Michel, 2006, op. cit., p.25. 81 CORDEIRO, Graças Índias, 1997, op. cit., p.24. 82 No capítulo 4, e no anexo I, serão tratadas no detalhe as coletividades presentes na área de estudo do Bairro Alto. 83 CORDEIRO, Graças Índias, 1997, op. cit., p.24. 80

55

Firmino da Costa explica que, para além da construção exógena da identidade do bairro, a população local é produtora e portadora de uma identidade coletiva, a qual tem dois sentidos diferentes: o É atributo de cada individuo e é uma identidade coletiva por ser um perfil identitário pessoal partilhado por um coletivo de indivíduos; o Faz parte dos padrões culturais da população, e é coletiva porque reporta a algo que é representado como uma entidade coletiva singular: Alfama, a Bica, o Bairro Alto, entre outros. A identidade cultural de um bairro não se refere, portanto, a algo de fixo e imutável. Ao contrário, trata-se de algo que depende: em primeira instância, do observador, seja ele visitante, técnico, historiador ou morador; em segunda instância, do tempo e dos parâmetros que cada momento histórico proporciona. A identidade cultural configura-se como “[…] uma articulação complexa de dinâmicas endógenas e exógenas” ao mesmo tempo que é “factor decisivo da sua constituição enquanto […] sociedade de bairro”. Nesta ótica, o bairro não se constitui apenas como unidade territorial mas principalmente “[…] como quadro social denso e multifacetado e, ainda, como categoria simbólica de referência social identitária, muito em especial para a população local, mas também para o exterior, embora segundo modalidades distintas” 84. Como foi dito anteriormente no âmbito das questões ligadas à globalização e à constituição de novas identidades ou à tentativa ′forçada′ de recuperar supostas identidades ditas tradicionais, a identidade cultural, seja ela nacional, de bairro ou de uma comunidade específica, não representa “[…] uma essência ontológica nem um atributo estático, mas uma construção social, ou melhor, antes de mais, um conjunto de representações simbólicas socialmente construídas, e em permanente processo de reconstrução […]” 85. Neste sentido, um discurso dirigido à defesa das identidades culturais não pretende ser um discurso anacrónico, mas visa sim valorizar as diferenças culturais de cada área, as aspirações das comunidades locais, juntamente com as suas tradições, enquadrando-as na contemporaneidade.

84 85

COSTA, António Firmino da, 1999, op. cit., pp. 492-493. Ibidem, p.496.

56

1.2.2 A valorização da identidade em áreas centrais e periféricas.

Apresentam-se de seguida dois casos representativos da importância da identidade no âmbito da reabilitação: o bairro de Alfama no centro de Lisboa e o bairro Corviale na periferia de Roma. A referência a estas duas áreas de características muito diferentes, ao nível da centralidade geográfica bem como das suas características identitárias pretende evidenciar a existência, na cidade contemporânea, de problemáticas similares no centro e na periferia. O modo como a identidade foi abordada nos dois casos é muito distinta. No caso de Alfama, a forte identidade cultural, coletiva e local, tem sido, em parte, motor do processo de reabilitação. No caso de Corviale, um edifico em banda de habitação social modernista em que a comunidade não tinha consciência de ter forjado uma identidade comum, desenvolveu-se um trabalho com os residentes para consciencialização da sua identidade o que permitiu que se viessem a constituir como uma ′sociedade de bairro′, com maiores possibilidades representativas e de decisão. Estes exemplos ilustram, de forma clara, problemáticas identitárias na cidade contemporânea que no capítulo IV serão aprofundadas num bairro central de Lisboa, o Bairro Alto, caso de estudo desta tese.

1.2.2.1 O caso de Alfama em Lisboa: a identidade aliada à reabilitação.

Não se pretende, neste âmbito, entrar nos pormenores do processo de reabilitação efetuado nas últimas décadas do século XX no bairro de Alfama. Interessa, sim, realçar o papel que neste processo teve a identidade cultural do bairro. Firmino da Costa evidencia como esta “[…] teve uma dupla presença extremamente significativa, enquanto vetor causal e enquanto efeito emergente”. 86 Apesar de a identidade cultural não ter sido o único fator a que se recorreu para desencadear o processo de reabilitação urbana, ela foi entendida como um fator decisivo para a mudança pois, como sublinha Costa, “[…] antes de ser alvo de reconstrução física, o bairro de Alfama foi reconstruído nas representações simbólicas vigentes acerca dele, no local e no exterior, passando a ser visto como, ou a conferir-se-lhe o carácter de, espaço citadino

86

COSTA, António Firmino da. 1999. op. cit.. pp. 417.

57

necessitado e merecedor […] de um tipo específico de intervenção urbanística visando, antes de mais, a recuperação e a requalificação do edificado nele existente” 87. A partir da primeira metade dos anos oitenta do século XX, a representação simbólica de Alfama como bairro a necessitar de ser reabilitado passou a fazer parte das imagens que se tinham do espaço no interior e no exterior. Naquela altura, a degradação física do bairro tinha chegado, por várias razões 88, a um estado crítico. Entre os anos 1983 e 1984 as Assembleias de Freguesia de Santo Estevão e São Miguel 89 aprovaram a constituição de um Gabinete Local para a Recuperação de Alfama (GLRA), e, em 1985, foi criado o Gabinete Técnico Local de Alfama (GTL) 90. Dois tipos de actores colaboraram neste processo: por um lado, autarcas das juntas de freguesia e ativistas das associações locais e, por outro, quadros científicos e técnicos. Neste processo, a identidade de Alfama obteve particular relevância por ter sido abordada pela comunicação social, fazendo com que a questão da necessidade de reabilitar o bairro ganhasse uma dimensão pública. Desde logo existiu vontade de conjugar a recuperação das habitações com a manutenção no lugar da população residente. Para tal conceção, foi de particular importância a presença de um movimento social no seio do próprio bairro. Firmino da Costa nota como, neste âmbito, o conceito de movimento social “[…] pretende remeter, antes de mais, para a emergência de formas não rotineiras de acção colectíva, envolvendo a mobilização de um conjunto de actores sociais em torno de um objectivo ou de uma causa – focando-se, no caso vertente, nas relações entre identidade cultural, reabilitação urbana e desenvolvimento social” 91. Interessa sublinhar, também, a presença de outros atores locais, como proprietários de prédios ou operadores imobiliários, cujos interesses apontavam em outras direções, especificamente para processos de gentrification. Após os primeiros anos de intervenção, criou-se um sentimento crescente de insatisfação com os resultados obtidos (existiu ausência de diálogo direto de alguns

87

Ibidem, p.422. Ibidem, pp. 423-426. 89 Nota-se que, tal como acontece com o Bairro Alto, de que se falará mais adiante, a área conhecida como ′Alfama′ não corresponde a nenhuma divisão administrativa, mas à delimitação de uma área com uma identidade singular. A definição de uma área a ser reabilitada contribuiu para “[…] reforçar estes contornos no mapa cognitivo da identidade alfamista localmente predominante […]”. (COSTA, António Firmino da. 1999, op. cit., pp. 434). 90 O processo de constituição dos GTLs será mais amplamente tratado no cap. 5.2. 91 Ibidem, p.435. 88

58

arquitetos com os habitantes, algumas obras demoraram mais do que o tempo previsto, existindo assim dificuldades com os realojamentos provisórios, entre outros problemas). Desta maneira, o movimento social intensificou-se com a criação, em 1987, de um novo ator coletivo: a Associação do Património e da População de Alfama (APPA). Entre os vários agentes implicados surgiram conflitos e divergências. O que interessa aqui salientar é o facto de que, “[…] ao protagonizarem interactivamente a constituição de Alfama em objecto de reabilitação […], estes actores delimitam […] um novo terreno social de relacionamento recíproco”. 92 No debate a propósito da reabilitação do bairro, os atores envolvidos, sobretudo os atores sociais, reforçavam a ideia de que “Alfama é um objecto de reabilitação” acrescentando-lhe um novo traço identitário e reforçando a identidade de bairro, bem como o entendimento da existência de uma comunidade forte e caraterística. Deste modo “[…] o encadeamento dinâmico de relações entre actores sociais analisado revela-se como um processo identitário”. 93 Neste caso, a reabilitação urbana ancora-se, em grande parte, nos fatores identitários do bairro, ao mesmo tempo que os utiliza, reorganiza e reforça em prol dos bons resultados de todo o processo.

1.2.2.2 O caso do bairro de Corviale em Roma: valorizar a identidade para o interior e para o exterior.

94

Um grupo de artistas, Osservatorio Nomade-Stalker, em estreita interação com os habitantes, realizou um projeto de intervenção no edifício modernista em banda Corviale, edificado na periferia da cidade de Roma (Itália), visando fomentar o apego dos residentes ao lugar e valorizar a sua visibilidade para o exterior, até então considerada negativa. Em 1972, o arquiteto Mario Fiorentino, coordenando uma equipa de 28 arquitetos, projeta um edifício 95 com o comprimento de 980 metros, inspirando-se nas teorias modernistas, especialmente nas de Le Corbusier.

92

Ibidem, p.442. Ibidem, p.443. 94 Este sub-capitulo é uma reelaboração de um texto produzido no âmbito do presente trabalho e apresentado no 54º IFHP World Congress realizado em Porto Alegre, Brasil, de 14 a 17 de Novembro de 2010. PAVEL, Fabiana – Corviale: monstro de cimento ou lugar extraordinário? Em: International Federation for Housing and Planning. World Congress 54º. Porto Alegre, RS, Brasil, 14 a 17 de Novembro de 2010. Bulding Communities for the cities of the future [recurso eletrônico] /54ºIFHP World Congress – Dados Electrônicos- Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010. 1 CD-ROM. 95 Em 1954 o Conselho da Câmara Municipal de Roma95 aprovou alguns pontos do novo PDM95. Uma das questões fundamentais deste novo plano é a lei 167 de 1962, que introduz o Piano per l’Edilizia Economica 93

59

O complexo é constituído por três corpos: o primeiro, com nove pisos de altura mais dois pisos subterrâneos, é dividido no seu interior por galerias que correm pelos dois lados, criando um espaço intermédio para a entrada de luz e, no piso térreo, um pátio (hoje utilizado como lixeira). Ao longo das galerias, que dão acesso às habitações, distribuem-se numerosos espaços comuns. As escadas e os elevadores evidenciam a divisão do edifício em seis lotes, cada um dos quais tem uma sala de condomínio. O quarto andar tinha sido pensado como espaço comercial. Nos pisos subterrâneos distribuem-se os estacionamentos e as caves (Figs nº1 e 2).

Figura nº1, Vista aérea de Corviale. Fonte: GoogleMaps (retirada a 12/09/2010). Figura nº2, Anónimo, Corviale. Fonte: www.comunediroma.it (retirada a 20/02/2009).

A oeste do corpo principal, ao longo de todo o comprimento, corre um segundo volume, de casas em três pisos, com habitações da tipologia galeria, e três grupos de serviços de base. Percursos pedonais sobrelevados, posicionados em correspondência com as cinco praças de entrada, permitem a ligação entre o corpo principal e os serviços de base. A este, um anel viário circunda um espaço que alberga a norte a igreja e um

e Popolare (PEEP), cujo projeto é aprovado em 1964 e prevê 72 planos de zona, para uma população estimada em 712.000 habitantes. A partir dos anos setenta começa a aparecer a nova cidade dos planos de zona e das obras públicas, que faz com que venham a surgir novas periferias na campagna romana (zona agrícola dos arredores de Roma), que se torna, assim, um lugar áspero, onde aparecem grandes volumes de cimento descontextualizados. Paralelamente a este fenómeno, a cidade espontânea, feita de barracas e bairros abusivos, continua o seu desenvolvimento. O crescimento da cidade nunca foi acompanhado por um desenho urbanístico concreto: os novos bairros, ilegais ou abusivos, sempre foram penalizados porque a sua construção não era acompanhada por uma estrutura viária, de meios de transportes públicos e de equipamentos coletivos projetados a priori. Nos novos bairros criados pela lei 167, juntaram-se pessoas das mais variadas proveniências e comportamentos sociais. Este fenómeno dificultou, posteriormente, a regulamentação e a resolução das problemáticas. O plano definitivo foi lançado apenas no dia 18 de Dezembro de 1962 (e aprovado em 1965). Fonte: INSOLERA, Italo – Roma Moderna. Un secolo di storia urbanística 1870-1970. Torino: Enaudi Editore, 2001. ISBN: 88-06-15931-3. VIDOTTO, Vittorio – Roma Contemporanea. Roma: Editori Laterza, 2006. ISBN: 88-420-8133-7.

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parque, a sul campos desportivos, e no centro um centro cívico. Desde o centro cívico parte o terceiro corpo menor, de habitações, direcionado a 45º. O complexo (Fig. nº3) oficialmente oferece 1200 habitações. É inteiramente construído em betão.

Figura nº3, ON, Corte transversal. Fonte: GENNARINI SANTORI, PIETROMARCHI, 2006. op. cit., p.95.

As primeiras habitações foram entregues em Outubro do 1982, quando as obras ainda não haviam sido completamente acabadas, não existia um plano de transportes públicos para a zona, e ainda não existiam os serviços de base. Já nos primeiros meses começaram as ocupações das habitações por parte de cerca de setecentas famílias. No quarto andar o comércio nunca foi instalado, o que fez com que este espaço se tornasse numa zona de tráfico de droga. Este problema foi ′resolvido′ através da ocupação abusiva do espaço por parte de cerca de 68 famílias, que, se por um lado invadiram o andar, por outro lutaram contra as atividades ilícitas e conseguiram conquistar o andar, limpá-lo e transformá-lo num lugar vivível. Com uma forma apenas aparentemente labiríntica, o quarto andar oferece, para além das habitações, espaços comuns e semi-comuns realmente aproveitados pelos habitantes. Ao longo dos anos, as pessoas foram-se apropriando do sítio, transformando-o em lugar, através dum processo de atribuição de significados que não tinha sido programado pela mente do arquiteto. Desde logo, Corviale transformou-se no símbolo da periferia má e perigosa 96 da Itália dos anos oitenta. Provavelmente um dos grandes problemas é o facto de o edifício

96 Objeto privilegiado para a criação de mitos urbanos, conta-se que o Arqt.º Mario Fiorentino, logo depois de ter visto o edifício acabado, suicidou-se, ou que a sua dimensão e a sua implantação nas margens da cidade bloqueiam o vento de poente, fazendo com que Roma não seja arejada durante o verão.

61

nunca ter sido realmente acabado, de as casas terem sido atribuídas antes que houvesse um plano de transportes públicos e de serviços coletivos. Não existindo um condomínio e um administrador, todas as decisões têm de ser tomadas pelo Ater, proprietário do edifício, o que faz com que a resolução de todos os problemas tenha de passar por um complicado sistema burocrático. Corviale é: “[…] maior e mais coerente que qualquer vila, porém não tem um presidente da Câmara; é maior do que qualquer condomínio, porém não tem um administrador[…]”

97

.

Uma das grandes problemáticas de Corviale é ter sido utilizado pela comunicação pública como símbolo da má periferia. Como sublinha Pietromarchi: “Corviale tornou-se um ícone mediático negativo, o lugar de uma insanável distopia, de alguma maneira um caso exemplar de marketing urbano ao revés: símbolo da periferia errada, incarnação do preconceito e do estereótipo, matéria útil para exercícios de moral. Em outras palavras, um lugar-comum” 98. Nos últimos anos falou-se muitas vezes da possibilidade de destrui-lo. Arquitetos como Massimiliano Fuksas e Paolo Portoghesi apoiaram esta tese; num convénio de 2001, organizado pelo Ater, propôs-se esta possibilidade como solução para a difícil e dispendiosa manutenção do edifício; em 2004, Corviale foi inserido pelo Ministério dos Bens Culturais numa lista de ′ecomonstros′ a destruir, embora não abusivo, por ser símbolo de má urbanística 99. Porém, para outros, as numerosas intervenções da comunicação pública e a estereotipação que foi feita, tiveram o condão de aproximar os habitantes e de fazer com que se criasse um sentido de comunidade, orgulhosa de viver num lugar tão reconhecível. O que vai contra a ideia de demolir Corviale, são questões que apenas em parte têm a ver com a estética e a arquitetura, mas sim com o facto de o edifício, ao longo dos anos, ter vindo a ser um organismo vivo, com uma história própria, feita sobretudo de pessoas e dos seus problemas. É nesta linha de pensamento que se insere o projeto Immaginare Corviale (2003-2006), promovido pela Fondazione Adriano Olivetti 100, com o apoio da Câmara

97 ROMITO em GENNARINI SANTORI, Flaminia e PIETROMARCHI, Bartolomeo (coord.) − Osservatorio Nomade, Immaginare Corviale. Milano: Bruno Mondadori, 2006. ISBN: 88−424−9179−9. p.73, [T.d.A.], “[…] piú grande e coerente di una qualsiasi cittadina eppure non há un sindaco; é il pú grande di tutti i condomini eppure non há un amministratore […]”. 98 PIETROMARCHI, em GENNARINI SANTORI, PIETROMARCHI. op. cit. 2006. p.54, [T.d.A.], “Corviale è diventato un ícone mediático negativo, il luogo di una insanabile distopia, a suo modo un caso di marketing urmano a rovescio: simbolo della periferia sbagliata, incarnazione del preconcetto e dello stereotipo, utile matéria di esercizio moraleggiante. In altre parole, un luogo comune”. 99 GENTILE, Cecília. Abbattere Corviale? Fantasie. Repubblica, 15 ottobre 2004. ISSN: 0390-1076. 100 www.fondazioneadrianolivetti.it

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Municipal de Roma 101, e com o trabalho do Osservatorio Nomade – Stalker 102. A colaboração entre estes três atores fez com que Corviale se tenha transformado num laboratório de hipóteses para a cidade contemporânea, no qual a perspetiva artística se tornou crucial para dialogar e, ao mesmo tempo, pôr em causa as hipóteses de futuro até então delineadas. O trabalho do Osservatorio Nomade (ON) baseia-se na ideia de que a aproximação direta ao contexto social e humano é condição essencial para orientar os processos de requalificação urbana. Fundamental, para se chegar a escolhas operativas, é passar por uma fase em que se ′oiça′ o território e as suas histórias, não se limitando em reconhecer as necessidades materiais, mas sim indagando as estruturas sociais e temporais que determinaram a sua identidade. Procurar conhecer a memória coletiva, as histórias de quem habita e de quem teve a possibilidade de se exprimir sobre o destino do lugar, são formas para definir uma identidade diferente que seja capaz de incidir sobre as vidas de quem lá habita e de ativar uma nova relação com a cidade. Conhecer Corviale não é imediato: simples e linear visto pelo exterior revela no seu interior um conjunto de microcosmos e de micro transformações efetuadas pelos próprios habitantes. Oficialmente com 8500 inquilinos, não se sabe ao certo qual seja o número real dos habitantes. Utilizado pela comunicação pública como símbolo de degradação, poucos o conhecem realmente. O Osservatorio Nomade baseou o seu trabalho na ideia de que Corviale não necessita de um projeto vindo de cima, mas sim do conhecimento das vidas reais dos seus habitantes, com as suas expectativas e necessidades, e das micro-transformações como indícios e sugestões para intervir sobre o edifício. Neste sentido, o objetivo de Immaginare Corviale, com todas as ações efetuadas e interligadas entre si, foi o de conhecer e dar a conhecer a verdadeira história do ′monstro de cimento′. Como sublinha Francesco Careri, este monólito de cimento foi-se transformando numa “articulada cartografia de lugares, nomes e pessoas”, em que “a geografia muda dia após dia”, e onde as “micro transformações são táticas de sobrevivência induzidas pelos muitos erros de projeto”

103

.

101 Comune di Roma, Assesorato alle Politiche per le Periferie, per lo Sviluppo Locale, per il Lavoro; Dipartimento XIX - Politiche per lo Sviluppo e il Recupero delle Periferie. 102 www.osservatorionomade.net 103 CARERI em GENNARINI SANTORI, PIETROMARCHI, 2006, op. cit., pp.82-83, [T.d.A.], “articolata cartografia di luoghi, nomi e persone”; “la geografia cambia giorno dopo giorno”; “micro trasformazioni sono tattiche di sopravvivenza indotte dai molti errori progettuali”.

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O Osservatorio Nomade, na sua vontade de descobrir as histórias do edifício e criar uma base de partida para uma nova projetação, começou por se instalar numa habitação de Corviale e organizou uma série de almoços durante os quais foram convidados vários atores da história do edifício, arquitetos, artistas e críticos 104. ′Histórias comuns′ (é este o título do projeto) teve como objetivo recuperar as memórias e as valências positivas de uma identidade de projeto forte, entrevistando in loco quantos contribuíram para a construção do edifício, bem como o lado humano e pessoal da relação de cada um deles com o projeto. Foram organizados vários workshops 105; foi criada uma televisão do bairro, Corviale Network, organizada com e para os habitantes. ON acompanhou o trabalho de vários artistas que procuraram inserir-se no tecido social 106. Em todas as ações procurou-se a colaboração dos habitantes; semanalmente organizaram-se laboratórios de condomínio, durante os quais se discutiam os resultados dos estudos efetuados, e se imaginavam novas formas de gestão.

Figura nº4, ON, Pormenor do mapeamento efetuado durante o workshop Microtrasformazioni. Fonte: GENNARINI SANTORI, PIETROMARCHI, 2006. op. cit.. p.90.

104

Entre os quais assinalamos Stefano Boeri, arquitecto e urbanista; Achille Bonito Oliva, crítico de arte contemporânea; Giorgio Braschi, Giuseppe Cappelli, Gabriele de Giorgi, Romano De Simoni, Franca Ferriti, Roberto Secchi, colaboradores de Mario Fiorentino; Stefano Fiorentino, filho de Mario e autor do projecto de sinalética do edifício; Luigi Petrangeli Papini, dereitor entre o 1967 e o 1981 do Instituto Autónomo Casas Populares (Iacp). 105 Corviale UniverCITY: (K)now! From Libetta to Corviale e Far West Corviale – em colaboração com a Penn State University – Corviale Beach e Microtrasformazioni – em colaboração com a Università degli Studi di Roma3. 106 Por exemplo, o workshop em colaboração com os alunos da escola básica Mazzacurati, organizado pelo músico Mario Ciccioli.

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Um dos erros maiores do projeto original é o não aproveitamento da paisagem. Por isso, seguindo um percurso ideal, ON organizou um primeiro workshop, (K)now! From Libetta to Corviale, que trouxe os estudantes desde a sede do Osservatorio (Viale Libetta) até ao edifício de Fiorentino, atravessando caminhos não convencionais e procurando o skiline de Corviale nos escorços. Corviale Beach foi a aproximação seguinte, na procura de uma relação direta entre o edifício e a paisagem, efetuada no terraço condominial. A cobertura foi identificada como um lugar abandonado, onde poderiam existir um parque ou até uma creche (como na Unité de Habitacion de Marselha). Esta ′barragem de betão armado′ conseguiu dificultar a especulação imobiliária, de certa maneira salvaguardando o campo que se estende para oeste, em direção ao mar. Far west Corviale procurou explorar estes lugares, criando um mapa que foi oferecido aos habitantes de Corviale para que estes pudessem conhecer melhor o território e desfrutá-lo. Começou então a descoberta do interior do edifício, através de quatro seminários (Microtrasformazioni) coordenados por quatro grupos de arquitetos 107 e realizados por estudantes da Università degli Studi di Roma3 (Figura nº4). O objetivo foi o de conhecer a realidade atual do edifício, começando pelas micro-transformações efetuadas pelos habitantes, para poder compreender a apropriação dos espaços do bairro por parte de quem o habita, na tentativa de descobrir a maneira como o edifício, com a sua rigidez arquitetónica, foi livremente transformado para responder aos problemas de um modelo social e habitacional imposto. O resultado deste mapeamento foi a descoberta de uma vida interior muito mais complexa do que a imagem minimal do projeto de base, e da criação de projetos e ideias cuja finalidade foi a de englobar os processos de transformação numa nova forma de gestão 108. Originariamente destinado aos serviços, o quarto andar é hoje inteiramente ocupado por habitações ilegais, representando o lugar de maior experimentação por parte dos habitantes na transformação do espaço. Partindo dos pressupostos criados com o mapeamento da situação atual (resultado do workshop Microtrasformazioni), o

107

M_28 para as galerias; ma0 para o piso térreo e os pátios interiores; ellelab/stalker para o quarto andar; nicole_fvr/2A+P para as hortas. 108 As intuições surgidas durante os workshops foram desenvolvidas nos projetos para o quarto andar (ellelab) e para as hortas (nicole_fvr/2A+P). Escolheram-se estes dois contextos por representarem os lugares de maior transformação do edifício, por oferecerem maiores possibilidades para o projeto, e porque estas soluções poderiam inserir-se nos projetos de requalificação lançados pela Câmara Municipal de Roma: o Contratto di quartiere (aprovado no dia 26 de Abril de 2006. Fonte: www.comune.roma.it) para o quarto andar, e o Programma di recupero urbano (PRU Corviale art. 11 lei 493/93) para as hortas.

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grupo elelab organizou um laboratório de condomínio para envolver os habitantes. Com estes foi concluído o trabalho de mapeamento, instituiu-se um comité dos habitantes, como órgão indispensável e legalmente reconhecido. Elaborou-se então um projeto para o 5.º lote, em colaboração com o comité, para ser proposto como alternativa ao apresentado pelo Ater. A oeste de Corviale estende-se um conjunto de hortas cultivadas e auto-regulamentadas por alguns habitantes. O grupo nicole_fvr/2A+P considerou o existente como um ponto de partida para propor novas utilizações dos espaços verdes. O projeto propõe novos lugares de relações que liguem o cultivo (reestruturado segundo uma lógica comum) a um parque público equipado que, com uma forma orgânica, permita ligar Corviale ao campo. O trabalho do Osservatorio Nomade em Corviale acabou em 2006 e os problemas detetados ficaram por resolver. A Câmara Municipal de Roma aprovou um plano de recuperação de algumas partes do edifício, lançando várias intervenções e concursos públicos 109. Immaginare Corviale distingue-se como uma intervenção que, através do trabalho de campo, procurou encontrar a identidade do lugar, criando uma relação direta, constante e participativa com os habitantes e que demonstra como é possível resgatar os espaços urbanos promovendo a vida em comunidade. Os habitantes (re)descobriram a sua própria identidade, foram acompanhados num processo que os levou a encontrar maneiras para se entenderem entre eles e com a cidade. Corviale Network conseguiu utilizar a televisão para mudar o imaginário negativo que os romanos tinham do bairro, e a comunicação pública, que utilizava Corviale como ícone negativo, em pouco tempo passou a falar dele como de um lugar de experimentação e produção artística. O ′monstro′ a abater transformou-se num exemplo para as periferias.

109

As obras serão financiadas integralmente pelo Ater (quarto andar e sexto lote), ou co-financiadas pelo Ater e pela Câmara Municipal de Roma (requalificação do parque escolar, divisão em condomínios verticais em correspondência com os vãos de escadas).

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1.3 A questão da gentrification.

1.3.1 Para uma definição.

Ao fenómeno de reconversão dos bairros operários de Londres em bairros residenciais para a classe média e média-alta, com expulsão dos antigos residentes, a socióloga britânica Ruth Glass 110, em 1964, chamou de ′gentrification′. O recurso ao sufixo ′gentry′, que se refere à pequena nobreza rural inglesa de finais de oitocentos, visa sublinhar o processo de ′nobilitação′ 111 dos bairros em causa. Dadas as características do fenómeno, o tema despertou, desde logo, o interesse da comunidade científica de diferentes disciplinas (sociologia, geografia, economia e urbanismo). A gentrification refere-se à alteração da posição económica de um lugar do ponto de vista do mercado imobiliário, bem como dos serviços presentes, da sua qualidade física e das características sociais. O processo de gentrification tem sofrido alterações nas suas características em função da situação socioeconómica. Hackworth e Smith 112 distinguem três fases. A primeira, que vai desde 1964 até aos primeiros anos da década de setenta, corresponde à identificação do fenómeno e é caracterizada pela não planificação. Um período de transição antecede a segunda fase nos anos oitenta, denominada ′fase de ancoragem′, em que a gentrification começa a ganhar sistematização. Um novo período de transição acontece nos anos noventa, quando, por causa da recessão económica, o fenómeno torna-se mais fraco. A terceira fase, conhecida como ′gentrification generalizada′, começa a partir da segunda metade dos anos noventa quando o processo de gentrification ganha nova força, tornando-se global. Smith evidencia como, no contexto geral da globalização, se assiste a um novo urbanismo neoliberal, o qual é marcado pela “generalização da gentrification como uma estratégia urbana global” 113. Esta última fase é caracterizada não apenas pela globalização da gentrification, mas também pelo envolvimento das autarquias locais que, em partnership com o capital GLASS, Ruth − London: aspects of change. London: MacGibbon & Kee, 1964. ISBN: 9780043091128. Em muita da literatura portuguesa que se refere a este tema a palavra gentrification é, de fato, traduzida como ′nobilitação′, ′enobrecimento′ ou ′gentrificação′. Ao longo deste estudo escolheu-se utilizar a palavra inglesa por considerar que os termos ′nobilitação′ ou ′enobrecimento′ sugerem uma melhoria qualitativa aportada pelo processo, factor este, que como se verá mais adiante, não é considerado verídico por boa parte dos autores. 112 HACKWORTH J., SMITH N. − The changing state of gentrification. Tijdschrift voor Economische en Sociale Geografie. ISSN: 1467-9663. Vol. 92, Nº 4, pp. 464-477. Wiley Online Library : 2001. 113 SMITH, Neil − New Globalism, New Urbanism: Gentrification as Global Urban Strategy. Antipode. ISSN: 1467-8330. Vol.34. On line: [s.n.] 2002. pp.427–450. p. 436, [T.d.A.], “generalization of gentrification as a global urban strategy”. 110 111

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privado, favorecem projetos de intervenção urbana que assentam na gentrification. Neste período emerge uma das características específicas da gentrification generalizada: os projetos são realizados por grandes investimentos financeiros, pelo que o capital global ganha espaço de ação à escala local. Para além da globalização, da entrada do capital global e do envolvimento do setor público, esta última fase do fenómeno de gentrification apresenta também uma característica arquitetónica ligada ao contexto económico. A transformação dos bairros históricos em áreas residenciais para classes médias e médias-altas é acompanhada pela criação de serviços de consumo, como lojas, restaurantes ou serviços culturais, que produzem uma grande alteração na paisagem urbana. A literatura relativa ao tema é ampla, e muito se tem discutido sobre vários aspetos do fenómeno, como, por exemplo, a pertinência do termo gentrification para entender os processos no século XXI, sendo que a definição original não tem em conta as transformações urbanas e económicas que ocorreram aceleradamente desde a década de sessenta. Como sublinha Slater 114, nos mais de cinquenta 115 anos que nos separam da definição de Ruth Glass, a economia, a cultura e a paisagem urbana sofreram grandes variações. Por isso “[...] já não faz sentido focalizar nesta versão restringida do processo, e insistir que a gentrification deve permanecer perfeitamente fiel a todos os detalhes empíricos da sua definição geográfica e histórica” 116. Na opinião do autor, o que, na definição de Glass, permanece válido e caracterizador do processo é a mudança da classe social dos residentes, mas esta mudança já não se refere apenas à substituição dos antigos por novos residentes de maiores recursos, mas também à conceção ex-novo de espaços pensados para a seleção e exclusão dos residentes, afastando as classes menos favorecidas. Existem várias formas e processos de gentrification, que variam em função das características locais e dos atores presentes. Todavia parece redutor efetuar uma classificação das diferentes formas de gentrification. O modelo de interpretação mais amplamente utilizado é o modelo em estados, ou níveis de desenvolvimento. Segundo este modelo, a gentrification evolui segundo uma sucessão de fases até chegar à

114

SLATER, Tom – The Eviction of Critical Perspectives from Gentrification Research. International Journal of Urban and Regional Research. ISSN: 1468-2427. Vol.30, nº4. On line: Joint editors andBlackwell Publishing, 2006. pp.737-756. 115 Slater se refere a “over forty years” [“mais de quarenta anos” T.d.A.] sendo que o texto foi escrito em 2006. Op. cit. p.744. 116 Ibidem, p. 744, [T.d.A.], “[...] it make no sense to focus on this narrow version of the process anymore, and to insist that gentrification must remain faithful to the fine empirical details of her geographically and historically contingent definition”.

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maturidade. A primeira fase é a da sweet equity gentrification, na qual a principal diferença entre velhos e novos moradores é o nível cultural. Progressivamente, o processo amadurece com a entrada das imobiliárias, que utilizam e comercializam os interesses dos primeiros gentryfiers, vendendo um ′novo produto′ aos grupos com idênticos interesses, estéticos e culturais, e um elevado poder económico. Criekiengen e Decroly 117 consideraram este modelo redutor, por englobar num único conceito vários processos de renovação urbana. Identificaram, assim, quatro processos diferentes: gentrification, marginal gentrification, upgrading e incumbent upgrading. Esta classificação é efetuada segundo cinco critérios (Quadro nº1) e parte do pressuposto que para que a gentrification se verifique, devem coexistir todos os critérios definidos, considerando que um bairro se converte de degradado a espaço reservado às classes com altos recursos económicos.

SITUAÇÃO INICIAL Bairro degradado e empobrecido GENTRIFICATION MARGINAL GENTRIFICATION UGRADING INCUMBENT UPGRADING

TRANSFORMAÇÃO

RESULTADO

Melhoria do estatuto social

Substituição da população

Bairro “nobre”

X X

Melhores condições do ambiente construído X X

X X

X X

X O

O X

X X

X O

X O

X O

Quadro nº1, Processos de renovação dos bairros, através da reabilitação ou reconversão de edifícios decadentes ou da construção de edifícios novos em espaços livres. ( X = critério alcançado; O = critério não alcançado). Fonte: CRIEKINGEN M. VAN, DECROLY J.-M, 2003. op. cit. p. 2454. [T.d.A.]

Os processos de upgrading e de incumbent upgrading, em que o primeiro se refere a bairros para a classe média e o segundo a bairros populares, implicam a restruturação do edificado, sem mudanças substanciais do ponto de vista da população residente. A marginal gentrification refere-se aos bairros de origem popular em elevado estado de degradação, que iniciam o processo de gentrification sofrendo todas as transformações, sem chegarem a transformar-se num bairro exclusivamente para classe alta. Este processo tinha sido identificado nos anos noventa por Rose, e refere-se à entrada de “[u]ma parte da nova classe média, altamente qualificada, mas com pequena taxa de emprego ou ganhando pouco, e que procura espaços em bairros no

117

CRIEKINGEN M. VAN, DECROLY J.M - Revisiting the diversity of gentrification: neighborhood renewal process in Brussels and Montreal. Urban studies. ISSN: 1360-063X. Vol. 40, N. 12. On Line: Urban Studies Urban Limited, 2003. pp. 2451-2468.

69

centro da cidade - como inquilinos particulares ou em setores sem fins lucrativos ou como co-proprietários de apartamentos baratos” 118. Embora este processo possa ser comparado à fase da sweat equity gentrification, os autores referidos consideram tratar-se de uma fase à parte. Os marginal gentryfiers correspondem à parte de população jovem, com elevado perfil cultural, que ainda se encontra numa fase económica instável. A restruturação demográfica não se verifica neste caso com a substituição por gentryfiers de elevado poder económico, mas sim por novos marginal gentrifiers. Este processo reflete a situação atual de grande parte da população jovem, que abandona a casa dos pais e passa por um período de instabilidade laboral, durante o qual não consegue avaliar a sua própria capacidade económica a longo prazo. Durante um tempo mais ou menos longo, este segmento da população vive em condições residenciais específicas, por exemplo de partilha da casa. Na opinião de outros autores (Shaw, 2005), o modelo de análise da gentrification por estados permanece válido, considerando-o como um continuum ao longo do qual um bairro se gentrifica, não tendo necessariamente de percorrer todos os estados até à última fase. Less 119 identifica, com referência à cidade global (Sassen, 1997), um novo processo de gentrification que denomina de super-gentrification. Neste caso, recorrendo ao modelo dos estados, depois da substituição dos marginal gentryfiers pelos gentryfiers de elevado poder económico, o processo não se interrompe, sendo os gentryfiers substituídos por novos residentes, os super-gentryfiers. Estes últimos pertencem a uma elite global, com um poder económico muito alto, interessados em viver, normalmente por tempo determinado, em cidades como Londres, Nova Iorque ou nas capitais nacionais,

onde,

normalmente,

ocupam

cargos

elevados

em

companhias

multinacionais. Não é indispensável, para a instalação dos super-gentryfiers, a passagem pelos dois estados anteriores, sendo possível a tomada de posse dum bairro degradado por uma ou mais imobiliárias que efetuem uma renovação destinada diretamente a satisfazer as necessidades dos super-gentryfiers 120.

118

ROSE, 1996, citado em: CRIEKINGEN M. VAN, DECROLY J.M, 2003. op. cit., p.2454, [T.d.A.], “[...] fractions of the new middle class who were highly educated but only tenuously employed or modestly earning professionals, and who sought out niches in innercity neighbourhoods—as renters in the private or non-profit sector, or… as coowners of modestly priced apartment units”. 119 LEES, Loretta - Super-gentrification: the case of Brooklyn Height, New York City. Urban Studies. ISSN: 1360-063X.Vol. 40, nº 12. On line: Urban Studies Urban Limited, 2003. pp. 2487-2509. 120 Esta situação será mais amplamente tratada no cap.6, com relação ao caso do Príncipe Real em Lisboa.

70

Partindo da perceção de Slater 121, de que o que resta hoje válido na definição original criada por Glass é a substituição ou o deslocamento da antiga população, verifica-se a existência de um outro processo, que a autora do presente trabalho chamará de turistic gentrification. Observa-se em muitas cidades a presença de um fenómeno de gentrification associado ao turismo de massa. Alguns dos bairros centrais são reabilitados, em certos casos passando pela primeira fase na qual os antigos residentes são em parte substituídos pelos marginal gentryfiers, sendo progressivamente alvo de um forte interesse imobiliário. Estes lugares são transformados em espaços destinados prevalentemente ao turismo, com a criação de estruturas como hotéis ou hostels, lojas de design ligadas ao artesanato local, e espaços de restauração. Este fenómeno está a verificar-se amplamente no centro de Lisboa, onde: “[...] todo o centro histórico está [...] a ser transformado num ′gueto′ do turismo de massas. O planeamento e construção de hotéis não para. A entrega de todo o património pombalino às imobiliárias, exclusivamente para habitação de luxo, está já vitoriosamente [...] a aumentar os preços. Há promessas de que muitos reformados do Norte da Europa se instalem [...]. As poucas famílias locais que se instalaram nos ′bairros históricos′ são agora obrigadas a transformarem as suas habitações num gigantesco negócio de estadias temporárias, simultaneamente tentando escapar ao barulho e lixo permanentes [...] que estão a tornar Lisboa inabitável. Está assim garantida a transformação de toda a Lisboa, não em cidade apropriada e vivida pelos residentes locais com identidade própria, mas sim em produto de consumo efémero e temporário, palco globalizado pronto a ser devorado pelo turismo de massas” 122.

1.3.2 O debate sobre as causas da gentrification. O debate em torno da gentrification centra-se em grande parte na identificação das suas causas. Podem-se destacar duas grandes perspetivas teóricas antagónicas sobre o tema: a primeira, cujo principal autor é Neil Smith, segue a teoria marxista; a segunda, que tem como principal autor David Ley, tem por base o pensamento liberal. Estas duas abordagens distinguem-se em primeiro lugar pelo foco da análise: para a linha de pensamento marxista, o foco principal reside na análise económica e na luta

121

SLATER, 2006, op. cit. ROSA DE CARVALHO, António Sérgio – O “bezerro” de ouro. O Público. (22 de maio de 2014). ISSN: 0872-1548. 122

71

pela produção e uso do espaço, enquanto para a linha de pensamento liberal, o foco situa-se na ação de indivíduos de maiores recursos que procuram satisfazer os seus próprios interesses de cultura e consumo. Mais do que a oposição das duas linhas de pensamento interessa aqui destacar a relevância dada a cada um dos fatores. Para Neil Smith a gentrification tem por base a desigualdade social e do desenvolvimento urbano e a luta pela ocupação do espaço. Trata-se de uma abordagem marxista socioeconómica, que analisa o processo de desvalorização do capital no centro da cidade. A teoria de Smith baseia-se na relação entre o valor do imóvel e o valor do solo. Para a teoria neoclássica, estes valores são considerados compósitos – o valor do solo compreende tanto o valor do solo não edificado quanto a renda futura; o valor do imóvel compreende também o valor do solo. Smith considera necessário distinguir quatro conceitos: o valor do imóvel, o seu preço de mercado, a renda do solo capitalizado e a renda potencial do solo. Na teoria smithiana, o que está na base do processo de gentrification é o lucro sobre o investimento efetuado, e por isso o que se torna decisivo é o custo de produção. É identificado o conceito de house value (valor da habitação) como valor que se altera no tempo, diminuindo ou aumentando em função da desvalorização ou valorização do imóvel, resultante do seu uso ou da revalorização devido ao acréscimo de algum valor. O valor da habitação entendido como a quantidade de força de trabalho necessária para a produzir não coincide, pois, com o seu valor de mercado, que, na abordagem neoclássica, é determinado pela lei da oferta e da procura. A renda do solo capitalizada corresponde à quantidade de lucro que o proprietário obtém em função do atual uso do solo. A renda potencial do solo é representada pela renda que se poderia obter com outro uso do mesmo com maior valor de mercado. O preço de venda do imóvel será o somatório do valor da habitação e da renda do solo capitalizada. Após a construção dos imóveis, num primeiro tempo, a renda do solo tem tendência a aumentar, ao mesmo tempo que o valor dos imóveis, de forma mais lenta, tende a diminuir por causa do seu uso; o preço de venda tende, portanto, a aumentar. Com o passar do tempo, o valor dos imóveis sofre uma desvalorização maior, resultante das novas condições de produção, ou do uso dos edifícios. Torna-se então necessária a reabilitação dos edifícios. Assim, Smith estabelece uma diferença entre apartamentos habitados pelos proprietários e apartamentos arrendados. No primeiro caso, as melhorias serão efetuadas pelos residentes-proprietários e a situação permanecerá mais ou menos estável. No caso de bairros que já tenham sofrido vários ciclos de utilização, pode passar a prevalecer o arrendamento. Nesta situação, o declínio e a deterioração física dos edifícios podem ser tais que os proprietários não consideram 72

vantajoso efetuar obras de reabilitação. Nestes casos, o valor das habitações diminui, juntamente com o valor do terreno capitalizado, mas, em contrapartida, o valor potencial do solo aumenta. Forma-se deste modo, aquilo a que Smith chama de rent-gap, que o autor considera como a causa principal da gentrification. Para o autor é esta rent-gap, diferença entre o valor atual e o valor potencial do imóvel, que determina a existência, ou não, de potenciais lucros no investimento na área. Os atores presentes nesta fase do processo são as empresas imobiliárias, ou os próprios proprietários, que, após um processo de reabilitação, vendem ou alugam os apartamentos a novos residentes com maior capacidade económica. Na opinião de Smith, a gentrification é assim produto de uma mudança social, espacial e económica: “O ponto crucial sobre a gentrification é que envolve não apenas uma mudança social, mas também, na escala de bairro, uma mudança física do parque habitacional e uma mudança económica no comércio de terrenos e habitações. Imigrantes de classe média-alta de um bairro degradado não se mudam para favelas; eles tentam modificar o existente ou mudam-se para edifícios já reabilitados

ou

recém-construídos

e

isso,

inevitavelmente

envolve

um

investimento substancial de capital para a gentrification de bairros, junto com a mudança social” 123. A análise efetuada por Smith centra-se na explicação do processo económico e das suas determinantes causais, não aprofundando a compreensão das motivações e comportamentos dos vários agentes do processo e especificamente dos gentryfiers. É sobre este grupo que Ley centra a sua teoria, não relevando as estruturas económicas que determinam os seus comportamentos. Ley pretende compreender as mudanças na esfera sócio-cultural na era pós-industrial, especificamente, a substituição dos antigos valores (confiança no progresso, centralidade do trabalho, importância da família, entre outros) por uma nova perspetiva centrada na estética e no consumo. O surgimento de uma nova elite – a ′classe criativa′ como a nomeou Richard Florida 124 – relacionada com a mudança da estrutura clássica da família, favoreceu o aparecimento de novos estilos de vida. É o 123

SMITH, Neil – Gentrification and the Rent Gap. Annals of the Association of American Geographers. ISSN: 1467-8306. Vol. 77, nº3. London: Taylor & Francis, 1987. pp.462-465. p.463, [T.d.A.], “The crucial point about gentrification is that it involves not only a social change but also, at the neighborhood scale, a physical change in the housing stock and an economic change in the land and housing markets. [...] Uppermiddle-class immigrants to a run-down neighborhood do not move into slums; they fix them up or they move into buildings already fixed up or newly built, and this inevitably involves substantial capital investment in gentryfying neighborhoods along with social change”. 124 FLORIDA, Richard – L’ascesa dela Nuova Classa Creativa. Milano: Mondadori Editori, 2003. ISBN: 88−04−51806−5.

73

centro da cidade a oferecer novas e maiores atrações ambientais e culturais que permite a satisfação dos novos desejos estéticos e de consumo, relacionados com valores diferentes dos da sociedade tradicional. O processo de gentrification está atualmente em grande parte relacionado com a necessidade de responder às necessidades desta nova classe. Segundo Ley, o papel desenvolvido pelos artistas e pelos representantes de esferas ′não convencionais′ da sociedade (como, por exemplo, a população gay) é fundamental na primeira fase da gentrification, reforçando a ideia de que esta representa um processo de reação aos valores tradicionais. Ley afirma que: “A população que segue os artistas não entra em campo casualmente, mas em uma sucessão que é trazida pela proximidade à disposição estética e à competência cultural do artista. A apropriação estética do lugar, com a sua valorização do centro e do exterior, apela para outros profissionais, sobretudo aqueles que têm maior capital cultural do que capital econômico e que compartilham parte da antipatia do artista para o comércio e as convenções. Assim como os artistas, eles são indiferentes aos encantos da vida suburbana e estendem-se a uma topografia alternativa de significados através do espaço da metrópole”

125

Na perspetiva de Ley, o processo de gentrification inicia, portanto, com um primeiro interesse por uma determinada área da parte de uma população com elevado nível cultural, mas baixo poder económico. Com o tempo “[...] profissionais sociais e culturais e pré-profissionais são os primeiros sucessores dos artistas, incluindo produtores culturais como intelectuais e estudantes, jornalistas e outros profissionais da média, e educadores, que são seguidos por profissionais com maior capital económico, como advogados e médicos e, finalmente, por empresários e capitalistas. Ao longo do processo, com o aumentar dos rendimentos os preços dos imóveis aumentam, podendo a gentrification vir a representar um reinvestimento significativo no mercado imobiliário do centro da cidade”

125

126

.

LEY, David – Artists, Aestheticisation and the Field of Gentrification. Urban Studies. ISSN: 0042-0980. Vol.40, nº12. Londres: Carfax Publishing, Novembro 2003. pp. 2527-2544. p. 2540, [T.d.A.], “The population that follows artists does not enter the field haphazardly, but in a succession that is shaped by their proximity to the aesthetic disposition and cultural competency of the artist. The aesthetic appropriation of place, with its valuation of the commonplace and off-centre, appeals to other professionals, particularly those who are also higher in cultural capital than in economic capital and who share something of the artist’s antipathy towards commerce and convention. Like the artists, they are indifferent to the charms of suburban life and have stretched an alternate topography of meaning across the space of the metropolis”. 126 Ibidem. p. 2540, [T.d.A.], “[...] social and cultural professionals and pre-professionals are early successors to artists, including such cultural producers as intellectuals and students, journalists and other media

74

Segundo esta abordagem, a gentrification é produto da contínua procura, por parte de uma franja da sociedade, da diferenciação cultural e de estatuto social. Isso permite de alguma forma entender porque nem todos os representantes da classe média e média-alta se transformem em gentryfiers. Por um lado, como sublinha Smith, a gentrification altera não apenas os aspetos sociais e culturais, mas também as características estruturais do edificado, implicando um forte investimento de capital. Mas, ao mesmo tempo, a gentrification depende do interesse dos gentryfiers, como afirma Lay. Atkinson nota que “[...] os imperativos económico e cultural centrais em cada teoria tem sido muitas vezes interpretados como um sinal de incompatibilidade mútua [...]” 127, enquanto a integração das duas teorias permite uma compreensão e entendimento mais completo do fenómeno. Em relação às causas da gentrification, há que sublinhar outro debate entre a tese da cidade emancipadora (Lees, 2000) e a da cidade revanchista 128 (Smith, 1996). Na primeira abordagem, o centro da cidade e os bairros alvo de gentrification representam um espaço de emancipação. A diversidade cultural existente e a presença de uma nova classe média, menos conformista, são vistas como geradoras de tolerância. Esta tese – tal como a que vê no binómio procura/oferta a identificação das causas da gentrification – põe em primeiro plano os desejos da nova classe média, a que Florida chama de ′classe criativa′, e que traz uma transformação dos valores, das normas e dos costumes. Florida divide estes novos valores em três grandes categorias: individualidade; meritocracia; diversidade e abertura. Mas, como o autor afirma, “[…] se a classe criativa favorece a abertura e a diversidade, é sempre uma diversidade elitista circunscrita às pessoas criativas com um elevado nível de instrução” 129.

workers, and educators, to be followed by professionals with greater economic capital such as lawyers and medical practitioners, and finally by business people and capitalists. All the while, disposable income and property prices rise, with gentrification eventually representing significant reinvestment in the inner-city housing market”. 127 ATKINSON, Rowald - Introduction: Misunderstood Saviour or Vengeful Wrecker? The Many Meanings and Problems of Gentrification. Urban Studies. ISSN: 0042-0980. Vol. 40, nº12. Londres: Carfax Publishing, Novembro 2003. pp. 2343-2350. p. 2344, [T.d.A.], “[...] the implied economic and cultural imperatives central to each theory have often been interpreted as a sign of mutual exclusivity [...]”. 128 O termo ′revanchismo′ tem origem na palavra francesa revanche (vingança) e refere-se a um grupo de burgueses rebeldes, que atuaram em França em finais de 1800, que se opunham à Segunda Republica, à decadência da monarquia e, sobretudo, à Cumuna de Paris que tinha possibilitado a tomada de poder por parte da classe trabalhadora. Com o tempo, alarga o seu significado passando a descrever uma manifestação política da vontade de recuperar as perdas territoriais sofridas por um país. A política revanchista está, normalmente, associada a pensamentos nacionalistas contrários à presença de uma determinada etnia no interior dos confins de um País. Na teoria smithiana, a ′cidade revanchista′ refere-se à distribuição urbana criada pelo sistema político. Especificamente, no atual período neoliberal o revanchismo é caracterizado por um discurso de vingança contra algumas minorias (classe trabalhadora, gay e lésbicas, feministas e imigrantes) consideradas como ′inimigos públicos′ da elite política burguesa. 129 FLORIDA, Richard, 2003, op. cit., p. 116.

75

De facto, a celebração da diversidade cultural e da liberdade de expressão põe em primeiro plano os desejos apenas de uma parte da sociedade, sem considerar os desejos dos non-gentryfiers. A teoria da cidade revanchista parte desta consideração e “[...] vê na gentrification uma espécie de vingança efetuada através do espaço pelas classes médias que se reapropriam das áreas urbanas centrais que tinham sido roubadas pela working-class” 130. Para explicar o conceito de cidade revanchista, Smith 131 compara a situação atual com a da colonização do Oeste da América do Norte nos séculos XVIII e XIX, quando os povos indígenas foram alvo de um processo de integração através da criação do imaginário de uma terra virgem a conquistar. Da mesma maneira, na visão de Smith, a gentrification, apoiada pelas políticas públicas e pelos media, é um instrumento de ′conquista′ do território. Trata-se de alimentar o imaginário referente aos bairros pobres e perigosos a ′conquistar′, com a justificação de criar melhores condições económicas e sociais para toda a cidade. Um exemplo aportado por Smith desta última situação é a política ′zero tolerance′ aplicada pela administração de Rudolph Giuliani (1994-2001), com o auxílio do Departamento de Polícia, na cidade de Nova Iorque.

1.3.3 Aspetos negativos e positivos da gentrification.

A discussão em torno da gentrification aqui apresentada tem subjacentes visões dicotómicas. De facto, o processo pode ser visto de diferentes ângulos e pontos de vista: visando entender as causas ou priorizando a compreensão dos comportamentos de quem atua ou de quem é sujeito. A avaliação mais positiva ou negativa depende de como se posiciona o observador, não sendo portanto independente da ideologia do investigador. O mesmo fenómeno pode ser interpretado de forma diferente em função do olhar e do ângulo de visão. Por exemplo, o aumento do valor das rendas será visto pelos proprietários de forma positiva, pois estes verão aumentar o seu rendimento, enquanto os arrendatários verão o aumento das rendas de forma negativa, pois o acesso à habitação será para estes dificultado.

130

SALERNO, Irene - La gentrification come strumento per la rivitalizzazione economica e sociale delle aree urbane: il Raval di Barcellona e il Centro Storico di Genova. Genova:Faculdade de Economia. 2010. Tese de Doutoramento. p. 33, [T.d.A.], “[...] vede nella gentrification una sorta di vendetta spazializzata dele classi medie che si riappropriano dele aree urbane centrali precedentemente derubate dalla working-class”. 131 SMITH, Neil − The new urban frontiers: gentrification and the revanchist city. London: Routledge, 1996. ISBN: 978-0415132558.

76

Com o intuito de avaliar o impacte da gentrification, Rowland Atkinson 132 elaborou uma revisão meticulosa da literatura anglófona relativa ao tema 133. No Quadro nº2 são sintetizados os efeitos positivos e negativos da gentrification. Atkinson refere que o custo associado à gentrification mais analisado na literatura é o relativo ao processo de ′deslocamento′ da população originalmente residente. Este fenómeno pode depender de fatores diferentes, e pode ser mais ou menos voluntário. Na maioria da literatura sobre o tema, a expulsão da população é relacionada sobretudo com movimentos involuntários, resultantes de condicionalismos económicos e sociais: “os fatores relacionados a estes movimentos involuntários podem estar relacionados tanto com imperativos económicos quanto sociais”

134

. Do ponto de vista económico, o

deslocamento é imputável à incapacidade financeira dos antigos residentes para suportar o aumento dos valores das rendas; do ponto de vista social, o deslocamento pode ter a ver com manutenção de redes de solidariedade: “os moradores, descobrindo que os amigos e a família foram expulsos de um local, podem decidir acompanhar as suas redes sociais para manter o apoio que elas oferecem” 135. Neste segundo caso, o deslocamento está relacionado com a mudança da identidade do lugar e a perda do sentido de comunidade, e o sentimento de perda é considerado como um dos custos maiores da gentrification. Coloca-se a possibilidade de conter o fenómeno de deslocamento pelas autoridades públicas através de uma regulamentação do processo ou da construção (ou recuperação) de edifícios com intervenção pública nas áreas onde o setor privado tenha iniciado a especulação. Slater (2006) e Atkinson (2004) notam que existe uma dificuldade metodológica em quantificar o problema de deslocamento, fator que dificulta a existência de soluções eficazes por parte das autoridades públicas. A quantificação do fenómeno é, de facto, difícil, por não ser possível distinguir entre o deslocamento coagido e os deslocamentos voluntários. Os dois autores apontam para uma situação de quase invisibilidade do fenómeno por não haver dados estatísticos precisos, fator que conduz a uma ausência de políticas para combater o deslocamento. Slater afirma

132 ATKINSON, Rowald – The evidence on the impact of gentrification: new lessons for the urban renaissance? International Journal of Housing Policy. ISSN: 1473-3269. Nº4. Online: Taylor & Francis, Abril de 2004. pp. 107-131. 133 A revisão efetuada por Atkinson abrange 118 estudos, em língua inglesa, sobre o tema da gentrification, produzidos entre 1964 e 2002, excluindo artigos jornalísticos, críticas literárias, e estudos sobre a gentrification em áreas rurais. Do ponto de vista geográfico, os estudos escolhidos dividem-se desta forma: UK, 32; Europa, 6; América do Norte, 74; Austrália, 5; Internacionais, 1. Os dados aqui referidos são explicitados por Atkinson no texto citado na nota anterior, pp.109-110. 134 ATKINSON, Rowald, 2004. op. cit., p.111, [T.d.A.], “the drivers of such involuntary moves may be related to both economic and social imperatives”. 135 Ibidem, p.111, [T.d.A.], “residents, finding that friends and family have been priced out of a location, may follow their social networks to mantain the support that they offer”.

77

que “num contexto neoliberal de políticas públicas construídas na base da ′confiabilidade′ (i.e. quantitativo), a não existência de números para o fenómeno do deslocamento significa a não existência de políticas para o abordar. É como se o deslocamento não existisse”. 136. Os autores apontam para a necessidade de melhorar as metodologias quantitativas de análise do fenómeno.

EFEITOS POSITIVOS

EFEITOS NEGATIVOS − Ressentimento e conflito no comunidade.

− Estabilização de uma área em declínio. − Incremento do valor da propriedade. − Diminuição do número de habitações desabitadas. − Incremento municipais.

do

valor

devido

− Encorajamento e maior ulteriores investimentos. − Redução do incontrolado.

às

viabilidade

desenvolvimento

taxas para

suburbano

da

− Diminuição da acessibilidade à habitação. − Aumento descontrolado dos preços das habitações por causa de ações especulativas. − Aumento dos sem-abrigo. − Aumento da despesa pública local pela pressão exercida pela classe média. − Deslocamento do comércio e da indústria. − Aumento dos custos e mudanças fornecimento de serviços locais.

no

− Perda da diversidade social (passagem da heterogeneidade social aos guetos para ricos).

− Aumento do social-mix.

− Aumento do crime.

− Diminuição da criminalidade. − Reabilitação dos imóveis, financiamentos públicos.

seio

com

ou

sem

− Menor utilização dos espaços e diminuição da população. − Desenraizamento dos residentes originais por causa do aumento dos preços de mercado. − Desenraizamento e pressão por parte da procura de habitação nas áreas mais pobres nos arredores. − Custos psicológicos causados pelo desenraizamento.

Quadro nº2, Sumário dos efeitos da gentrification nos bairros. Fonte: ATKINSON, 2004, op. cit., p.112. [T.d.A.]

É impossível negar a existência do deslocamento associado à gentrification. Slater 137 sugere que, em boa parte da literatura mais recente, o fenómeno de deslocamento foi ignorado ou, por sua vez, ′evicted′ (′despejado′). Muitos estudos preferem analisar as escolhas residenciais e de estilos de vida dos novos moradores, e

136

SLATER, Tom, 2006, op. cit., p.748, [T.d.A.], “[i]n the noliberal context of public policy being constructed on a ′reliable′ (i.e. quantitative) evidence base, no number on displacement means no policy to adress it. It [is] almost as if displacement didn’t exist”. 137 Ibidem. p.746.

78

olham para os antigos moradores apenas na ótica das suas ′diferenças′ em relação aos gentryfiers 138. Como mostra o Quadro nº2, o deslocamento está associado a vários dos aspetos negativos da gentrification: diminuição do acesso à habitação, normalmente em função da especulação que causa o aumento dos preços do mercado imobiliário; mudança e incremento dos preços dos serviços locais; saída das atividades terciárias anteriormente presentes na área; desagregação das redes sociais que constituíam a comunidade local e consequente perda ou transformação da identidade do lugar; stress para os antigos residentes, com possibilidade de criação de conflitos internos. O principal impacto positivo atribuído à gentrification é a reabilitação física dos edifícios, mais relevante nos casos em que o bairro em causa é um bairro histórico. Os processos de regeneração associados à gentrification podem ser consequência de políticas e financiamentos públicos ou da iniciativa privada, normalmente gerando uma imagem mais cuidada do bairro. As metodologias de regeneração e as suas justificações são criticadas por vários autores. Smith considera que a regeneração está ao serviço da gentrification: “A apropriação estratégica e a generalização da gentrification como um meio de competição interurbana mundial encontram a sua expressão mais desenvolvida no conceito de ′regeneração urbana′. [...] Encarada como regeneração, a gentrification é assim apresentada como uma estratégia ambiental positiva e necessária” 139. Do ponto de vista estritamente físico, muitas operações de regeneração de edifícios são, de facto, operações de renovação, em que um edifício inteiro é completamente transformado no seu interior, conservando apenas a fachada, para responder às novas necessidades do mercado. Outros estudos evidenciam outros aspetos positivos da gentrification, na ótica economicista, como: aumento do valor das propriedades; aumento das taxas camarárias a favor das autarquias públicas; melhoramento dos serviços locais (em função das necessidades dos novos residentes). Outro factor analisado é relativo ao crime, que é visto segundo perspetivas antagónicas. Alguns autores consideram que o crime diminui após o processo de gentrification, dada a menor presença de pessoas

138

Cfra cap 1.3.2. SMITH, Neill, 2002. op. cit. pp443-445, [T.d.A.], “The strategic appropriation and generalization of gentrification as a means of global interurban competition finds its most developed expression in the language of “urban regeneration” [...] Enveloped as regeneration, gentrification is thus recast as a positive and necessary environmental strategy”. 139

79

vulneráveis ou em condições marginais; outros autores e outros estudos notam que pode existir um aumento do crime por a nova população ser um alvo mais ′interessante′ para os criminosos. A avaliação positiva ou negativa da gentrification, depende pois da perspetiva do stakeholder e/ou da interpretação e ideologia do pesquisador. Atkinson sintetiza os dois pontos de vista desta forma: o Os que consideram que a gentrification tem sobretudo aspectos positivos, consideram que “[e]mbora a gentrification seja um problema, é um problema menor se comparado com o problema do aumento do declínio e abandono do centro da cidade”; o Os que consideram que a gentrification tem sobretudo aspectos negativos explicam-no por uma perspectiva crítica do capitalismo: “[a] gentrification tem sido

um

processo

destrutivo

e

divisionista

que

foi

auxiliado

pelo

desinvestimento de capital em detrimento dos grupos mais pobres presentes nas cidades”140.

1.3.4 Políticas públicas e social-mix.

Nos últimos anos, o processo de gentrification tem estado relacionado não apenas com a iniciativa privada, mas também com a atuação de políticas públicas. Para enfatizar o papel desenvolvido como promotor de processos de gentrification pelo setor público, Cameron e Coafee 141 consideram a “positive gentrification”, como um instrumento de requalificação das áreas urbanas. Os dois autores apontam para o facto de, a partir de finais dos anos noventa do século XX, a gentrification se ter transformado num instrumento para dar ′nova vida′ aos centros das cidades, através do recurso à arte e à cultura. Afirmam que “[...] a ligação entre arte e gentrification [...] tem sido amplamente utilizada nas políticas públicas como instrumento de regeneração física e

140

ATKINSON, Rowald – Does gentrification help or harm urban neighbourhood? An assessment of the evidence-base in the context of the new urban agenda. ESCR Centre for Neighbourhood Research Paper 5, 2002. [s.n] [s.ISSN] p. 7, [T.d.A.], “[e]ven if gentrification is a problem it is small compared to the issue of urban decline and abandonment of inner city”; “[g]entrification have been a desctrutive and divisive process that has been aided by capital disinvestment to the detriment of poorer groups in cities”. 141 CAMERON, Stuart; COAFEE, Jon - Art, gentrification and regeneration: from artist to pioneer to public art. European Journal of Housing Policy. ISSN: 1461-6718. Vol. 5, nº 1. On Line: Taylor & Francis Group, 2005. pp. 39-58.

80

económica das cidades em declínio, e as duas são frequentemente associadas numa relação de dependência mútua” 142. A gentrification é assim vista, por alguns, como um instrumento para reforçar o renascimento do centro da cidade, promovendo a constituição de áreas urbanas caracterizadas por um social-mix favorável à presença de uma forte diversidade cultural. É nesta ótica que se insere a teoria da classe criativa de Florida, mencionada no ponto anterior, que põe a tónica no crescimento económico e na competitividade interurbana, favorecidos pelos ′talentos′ que operam nos setores criativos e que, por sua vez, são atraídos pelos bairros alvo de gentrification. Nas situações em que a área onde se desenvolve o processo é caracterizada inicialmente por problemáticas sociais, a gentrification apresenta uma vantagem peculiar: a eliminação (ou o deslocamento) da degradação, possibilitando um maior controlo da área por parte do poder público. Na opinião de Uitermark, o objetivo deste tipo de política é “o estabelecimento de um sistema multifacetado de controle em detrimento dos bairros capaz de tornar esses lugares mais fáceis de gerir e que reduza o peso que constituem para uma estratégia de crescimento nacional orientada para a cidade” 143. Esta posição insere-se na visão neoliberal da questão urbana denunciada por Smith. Segundo este autor, “[a] globalização emergente da gentrification, como das próprias cidades, representa a vitória de certos interesses económicos e sociais em detrimento de outros, uma reafirmação do pressuposto económico (neoliberal) sobre a trajetória de gentrification” 144. O objetivo das áreas de social-mix é o de reduzir a concentração espacial da pobreza, da degradação ou da exclusão social, mas, de facto, esta forma de atuar não elimina os problemas, pode quando muito relocalizá-los. É por isso que Less 145 define estas ações públicas como ′políticas cosméticas′, por aflorarem o problema apenas à superfície, sem procurar aprofundar e resolver as causas. Segundo a investigadora, embora durante décadas se tenha demonstrado que os processos de gentrification causam desigualdade e segregação social, os mesmos são hoje relacionados no

142 Ibidem, p. 46, [T.d.A.], “[...] the linkage of art and gentrification [...] have been extensively used in public policy as instruments of physical and economic regeneration of declining cities, and the two are often associated in a relationship of mutual dependence”. 143 UITEMARK, em SALERNO, 2010, op. cit., p.40, [T.d.A.], “[t]he establishment of a multifaced system of control in disadvantages neighbouhoods that would make these places easier to manage and that would reduce the burden they formed for a city-oriented national growth strategy”. 144 SMITH, Neil, 2002, op. cit., p.446, [T.d.A.], “[t]he emerging globalization of gentrification, like that of cities themselves, represents the victory of certain economic and social interests over others, a reassertion of (neoliberal) economic assumption over the trajectory of gentrification”. 145 LEES, Loretta - Gentrification and Social Mixing: toward an inclusive urban renaissance? Urban Studies. ISSN: 1360-063X. Vol. 45, nº. 12, On Line: Urban Studies Urban Limited, 2008. pp. 2449-2470.

81

discurso dominante com o conceito de social-mix e os supostos efeitos benéficos que este deveria aportar. Tem-se generalizado a ideia de que a presença numa mesma área de população socialmente heterogénea contribui para a constituição de uma comunidade mais coesa. Neste sentido, a gentrification, através da introdução de novos modelos sociais por parte de novos habitantes, deveria trazer mudanças positivas na vida dos antigos moradores. Os benefícios adquiridos pelo facto de se morar ao lado de representantes de uma classe social com níveis culturais e económicos mais elevados deveriam ser relacionados com o aumento da quantidade e qualidade dos serviços e com a possibilidade de conhecer modelos comportamentais diferentes. Contudo, o aumento dos serviços está, normalmente, associado a um aumento dos preços, fator que reduz o acesso de parte da população, e não é certo que os novos serviços respondam às necessidades dos antigos residentes. De facto, o resultado deste tipo de política aponta mais para a presença polarizada de dois grupos sócio-económicos distintos. Davidson 146 sublinha como os gentrifiers e os antigos residentes fazem parte de dois mundos distintos que nem sempre se cruzam, e, em muitos casos, os gentrifyers estabelecem-se em edifícios restaurados e transformados em condomínios fechados, que não favorecem a integração com a comunidade. A presença numa mesma área de indivíduos social, cultural e economicamente diferentes pode levar à indiferença mútua ou pode chegar a criar conflitos. A influência recíproca entre pessoas de classes diferentes é desejável, mas deveria ser pensada com base num sistema que favoreça a troca e a existência de uma estrutura comunitária, caso contrário a parte da população menos favorecida será gradualmente expulsa. Alguns autores defendem a valorização da identidade dos lugares e das comunidades locais, em contraposição à uma sociedade de consumo com hábitos e padrões de consumo homogeneizados sendo que “[n]um mundo mais pequeno, mais semelhante, é na rica diversidade das pessoas e do seu conhecimento que reside ainda a maior vantagem dos lugares” 147.

146 147

82

DAVIDSON em LESS, Loretta, 2008. op. cit., p.2459. BARATA SALGUEIRO, Teresa, 1994. op. cit., p.79.

1.4 O fenómeno dos condomínios fechados e da segregação residencial.

Na atualidade, a transformação urbana desenvolve-se em duas direções: por um lado na expansão periférica, por outro na renovação da cidade consolidada. Paralelamente à exurbanização para fora da coroa suburbana de uma série de atividades, assiste-se a uma tendência de recentralização de atividades de direção e controlo e de habitação para classes média a alta. Em particular, as áreas centrais tendem a ser renovadas e revalorizadas para habitação de estratos das classes média, média-alta e alta que procuram “novos estilos de vida [que] privilegiam o acesso a serviços diversificados e de qualidade, seja no domínio do comércio, da restauração, do teatro, da música, das exposições ou de outras actividades lúdicas” 148. Neste contexto, destacam-se: a reabilitação ou regeneração de sítios antigos, o reaproveitamento de áreas subocupadas e a renovação pontual de edifícios ou áreas centrais. Se em alguns casos a reabilitação de edifícios ou bairros visa a manutenção da população e a melhoria da qualidade de vida dos habitantes, na maioria dos casos atuais as operações chamadas de ′reabilitação′, em geral promovidas pelo setor privado, constituem de facto processos de renovação de edifícios ou áreas específicas com o objetivo de criar habitação de luxo e provocam processos de gentrification. O pico deste fenómeno é a transformação de edifícios, ou conjuntos de edifícios, em condomínios fechados. Sendo os condomínios fechados (ou de luxo) um produto imobiliário em ampla expansão nas cidades contemporâneas que eclodem nas cidades europeias e marcam parte das transformações em curso no bairro analisado no âmbito desta investigação, interessa recapitular as suas caraterísticas peculiares e alguns dos seus marcos históricos.

1.4.1 A noção de condomínio fechado.

O condomínio fechado, ou privado, constitui-se, segundo o modelo interpretativo proposto por Rita Raposo, como um produto imobiliário ou “uma forma residencial potencialmente distinta de outras formas previamente existentes” 149. Não se tratando de

148

BARATA SALGUEIRO, Teresa (2) – Novos produtos imobiliários e reestruturação urbana. Finisterra, Revista Portuguesa de Geografia. ISSN 0430−5027. XXIX, (57). Lisboa: CEG-UL Lisboa, 1994. P. 80. 149 RAPOSO, Rita – Condomínios fechados: palavras e leis. Em: IV Congresso Português de Sociologia, Coimbra, 17-19 de Abril, 2000. [Em Linha] [Consul. 1 Dec. 2013] Disponível em: http://www.aps.pt/cms/docs_prv/docs/DPR462df422f1b59_1.PDF. p.1.

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um produto “óbvio ou transparente” 150 por apresentar características não uniformes e uma diversidade de sub-produtos ao nível do mercado imobiliário, convém definir, antes de delinear a sua história, alguns conceitos relacionados com o fenómeno, para melhor o entender. Antes de mais importa sublinhar que a noção jurídica de ′condomínio′ se aplica a qualquer conjunto habitacional regulado segundo o regime de propriedade horizontal. Todavia, no âmbito do mercado imobiliário a palavra remete, por menção ou omissão, para certos tipos de empreendimentos imobiliários. Especificamente, refere-se a um edifício, ou conjunto de edifícios, que incluem uma série de serviços comuns, como parques ajardinados, piscina, ginásio, court de ténis, entre outros. A diferença principal entre as habitações ′convencionais′ e as unidades em ′condomínios′ está na oferta do amenity package 151 incluído ou não. De acordo com a mesma autora, a utilização do adjetivo ′privado′ é uma redundância, pois qualquer condomínio é, por regra, privado. A sua utilização “parece corresponder à segregação da propriedade privada, como se no caso vertente ela fosse ainda mais privada do que é normal, conferindo direitos mais alargados e de maior alcance do que o formato existente para todos os outros casos” 152. O termo ′privado′ surge como o correspondente físico do termo ′fechado′. Como sublinha Raposo, “em ambos os casos o que domina é a imagem da separação entre o que é bem público e bem privado, entre o que é exclusivo só de alguns e o resto que é do resto” 153. A imagem dominante quando se fala de condomínios fechados ou privados remete para um edifício, ou conjunto de edifícios, delimitado por grades ou muros altos e cujo perímetro é controlado por câmaras de vigilância e segurança, condicionando o acesso para o interior. O fenómeno dos condomínios fechados corresponde, portanto, a um produto residencial que pode incluir diferentes soluções: edifícios isolados ou conjuntos de edifícios de apartamentos; conjuntos de edifícios do tipo moradia, isoladas ou geminadas; conjuntos mistos que incluem os dois tipos anteriores. Estas soluções, para corresponderem à forma do condomínio fechado, devem possuir simultaneamente as seguintes caraterísticas:

150

Ibidem, p.2. “Amenity Package: Frills [arrebiques, floreados]. E.g., trees. An Amenity Package is that collection of all nonessential and not readabily justifiable elements in a development which, it is hoped, if sold creatively enough, can be transformed from an obvious drag on earnings into an inducement for a tenant to pay more rent than he might do otherwise” (Garreau, 1992, Edge City, Nova Iorque, Anchor Books, pp. 443). Em: RAPOSO, 2000, op. cit. p3. 152 Ibidem, p.3. 153 Ibidem, p.3. 151

84

o Possuem amenidades, em número e tipo variável; o São impermeáveis e controlados através de perímetros e recursos de controlo de acesso e/ou circulação; o Possuem alguma forma de auto-governo, que pode ser a administração de condomínio ou associações de proprietários 154. Raposo 155 faz referência a três classes de condomínios fechados. A primeira, de dimensões médias, refere-se a um ou mais edifícios de apartamentos, que ocupam áreas inferiores ou iguais a 5 ha, podem oferecer jardins ou piscinas, mas não oferecem equipamentos comuns de maior dimensão como campos de golfe ou courts de ténis. A segunda, mais pequena, é composta por conjuntos de menos de 50 moradias, que podem ter ou não jardins ou piscinas. A terceira classe, a de maiores dimensões, caracteriza-se pela maior variedade de equipamentos que contêm, pelo maior número de fogos e pela multiplicidade de opções habitacionais.

1.4.2 Do surgimento do fenómeno à atualidade.

A imagem das cidades medievais amuralhadas pode aparentemente invocar a atual imagem dos condomínios fechados. Todavia, como evidencia Rita Raposo 156, trata-se de duas realidades completamente distintas, resultantes de processos de produção muito distintos, que se assemelham apenas na existência de uma barreira física, e/ou controlo visual, que impede a entrada a pessoas ′não desejadas′. Ao nível dos seus habitantes, por exemplo, na cidade medieval, a comunidade residente era fundamentalmente heterogénea, e em estreita articulação com as populações além muralha, enquanto nos condomínios fechados a comunidade residente é representada por uma elite específica, que não se articula com a população exterior. Segundo a leitura proposta por Rita Raposo “[…] a modernidade e a sua nova estrutura social trouxeram a urgência da separação física de diferentes grupos sociais” 157. A origem dos condomínios fechados remonta às praças residenciais inglesas da primeira metade do século XVIII (em Londres: Hanover Square, 1713; St. James’s Square, 1726; entre outras), e aos subúrbios criados pela e para a classe burguesa do

154

RAPOSO, Rita, 2001, op. cit., nota nº7, p.4. RAPOSO, Rita − Condomínios fechados em Lisboa: paradigma e paisagem. Análise Social. ISSN 0003-2573. vol. XLIII (1.º). Lisboa: Publicação do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2008. pp. 109-131. 156 RAPOSO, Rita, 2008, op. cit.. 157 Ibidem, p.120. 155

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século XIX. Segundo Robert Fishman 158, o subúrbio deve ser considerado um epifenómeno da modernidade de oitocentos, ao mesmo título que o motor a vapor no âmbito dos transportes. Trata-se de uma transformação radical que envolve a sociedade burguesa desde os seus alicerces, pois, segundo o mesmo autor: “O subúrbio pode-nos dizer mais sobre a cultura que construiu as fábricas e os arranha-céus do que estes próprios edifícios. E além disso foi produto arquétipo da classe média, provavelmente a transformação mais radical da relação entre a residência e a cidade na história da arquitetura doméstica” 159. A suburbanização está, assim, ligada ao desaparecimento da economia mercantil que assentava na ligação estreita entre o lugar da atividade de trabalho e a vida doméstica, condição da cidade pré-moderna. Até ao século XVIII a urbe era caracterizada por uma forte mistura social. Segundo Federico Mento, “A sociedade inglesa [de setecentos] podia ser considerada um monólito parecido com um sistema de castas, em que a distância social era tão profunda que a burguesia não sentia a necessidade de colocar uma distância física que obstruísse o contacto com o resto da sociedade” 160. No virar do século XVIII, na sequência das grandes mudanças demográficas e socioeconómicas trazidas pela revolução industrial que alteraram profundamente a estrutura urbana, começou a afirmar-se, no seio do pensamento burguês, a ideia de que a distinção das classes operárias requeria a criação de um distanciamento físico. Se na segunda metade de setecentos a classe burguesa já tinha incorporado os modelos residenciais, até então próprios da aristocracia, como é o caso da villa de veraneio. Segundo Fishman, a passagem deste modelo de villa de estadia temporária para espaço de residência permanente surgiu quando a elite burguesa decidiu criar o seu próprio modelo de vida, baseado na centralidade do núcleo familiar e no afastamento da cidade consolidada. É ainda Fishman a relatar como a primeira experiência completa de subúrbio romântico planeado anglo-americano é representada por Park Village East e Park

FISHMAN, Robert − Bourgeois Utopias: The Rise and Fall of Suburbia. Nova Iorque: Basic Books, 1987. ISBN: 978-0465007479. 159 Ibidem, p.3, [T.d.A.], “[…] the suburbia might tell us more about the culture that built the factories and skyscrapers than these edifices themselves can. For suburbia too was an archetypal middle-class invention, perhaps the most radical rethinking of the relation between residence and the city in the history of domestic arquitecture”. 160 MENTO, Federico – La città forteza. pp.63-116. Em: BARBERI, Paolo (coord.) È successo qualcosa alla città. Manuale di antropologia urbana. Roma: Donzelli editore, 2010. ISBN: 978-88-6036-462-3. p. 64, [T.d.A.], “La societá inglese [de seicentos] poteva essere considerata a tutti gli effetti un monolite al pari di un sistema di caste, la distanza sociale era tanto profonda che la borghesia non sentiva la necessitá di porre una distanza física che ostacolasse il contatto com il resto della societá”. 158

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Village West, projetados por John Nash entre 1823 e 1834 na periferia de Londres. Nesta experiência Nash reuniu os elementos do estilo suburbano que tinham sido experimentados de forma dispersa até então, e deu-lhes uma unidade formal, criando uma fórmula repetível, um produto imobiliário 161. A fórmula do subúrbio romântico planeado, anglo-americano repetiu-se, desde o final da década de 1830 em Inglaterra, especialmente nas zonas (por exemplo Manchester) onde era maior a presença do proletariado urbano industrial, do qual a burguesia estava cada vez mais desejosa de se afastar de forma clara e distintiva. A assimilação americana do modelo residencial inglês remonta à segunda metade de 1800. Fishman considera que o primeiro núcleo suburbano que nos EUA engloba plenamente o modelo inglês terá sido Llewellyn Park (Fig. nº5), fundado em 1857 por Llewellyn Solomon Haskel e projetado pelo arquiteto Alexander Jackson Davis, numa área de cerca 1600 hectares, com um parque natural extenso e a uma distância curta da cidade de Nova Iorque. É interessante notar que no projeto da área foram tomadas algumas medidas, como o tamanho dos lotes ou a proibição de instalar atividades de trabalho, com o propósito de favorecer a transformação do sítio numa das áreas mais desejadas pela classe burguesa, que podia suportar os custos dos lotes, bem como o transporte quotidiano para Manhattan.

Figura nº5, Anónimo, Logo de Llewellyn Park, the first Planned Community in America. [Em Linha] [Consult. 24 Jan. 2014]. Disponível em: https://secure.associationvoice.com/13266.

Os Estadas Unidos constituem o primeiro exemplo de proliferação dos atuais condomínios fechados. Segundo a leitura proposta por Pereira (et al.) 162, o processo de

161

FISHMAN, Robert, 1987, op. cit., p.70. PEREIRA, Ricardo Garcia; HEITOR, Teresa, RAPOSO, Rita − Condomínios Fechados: Forma e Contexto. A experiência do concelho de Cascais. Em: 1ª Conferência da Rede Portuguesa de Morfologia Urbana. Porto, Portugal, 8 de Junho de 2011. [Em Linha] [Consul. 1 Dec. 2013] Disponível em: http://pnum.fe.up.pt/pt/index.php/conferencias. p.4. 162

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formação do tecido urbano nos EUA é desde cedo dominado pela iniciativa privada, a qual é favorecida pelo Governo. Terá sido nas primeiras décadas do século XX que começou a construção (em várias formas) dos condomínios fechados. É interessante referenciar, seguindo Mento 163, a utilização do modelo da cidade jardim pelos grandes grupos imobiliários americanos. Para estes empresários, a utopia socialista de Howard inclusa no modelo da cidade jardim é esvaziada da sua dimensão ideológica, para criar a matriz segundo a qual se formaram os modelos residenciais da classe branca americana. De acordo com Mento: “Os grandes grupos imobiliários, cientes das importantes receitas ligadas à economia de escala das garden city, apagaram rapidamente a propriedade coletiva do solo, teorizada por Howard, substituindo-a pela propriedade individual que favorecia os investidores privados e os construtores à custa da planificação pública governamental” 164. Mento evidencia três fatores que conduziram, nos anos vinte do século XX, à explosão do processo de segregação socio-espacial na América do Norte: o crescimento da indústria bélica; o decrescimento dos fluxos migratórios vindos da Europa; e o aumento demográfico endógeno, especialmente da minoria afroamericana. Os afroamericanos começaram, nesta época, a abandonar as áreas agrícolas para se dirigir para as grandes cidades. Paralelamente, uma parte desta população terá conseguido aceder a um melhor sistema salarial, tendo, por conseguinte, procurado sair do gueto. O nacimento de associações de proprietários das classes abastadas brancas surgiu como um instrumento para limitar a aquisição de imóveis fora do gueto por parte dos afroamericanos. Neste contexto era utilizada a ideia de que a presencia de núcleos familiares não caucásicos causaria a perca dos valores imobiliários: “[…] o mecanismo montado pelos real estate operava inculcando o pânico e levando os residentes a crer que a presencia de um núcleo familiar afroamericano o não caucásico teria causado uma perca substancial dos valores imobiliários e a consequente transformação da área num sítio habitado prevalentemente por minorias não desejáveis” 165.

163

MENTO, Federico, 2010, op. cit., p.77. Ibidem, p.77, [T.d.A.], “I grandi gruppi imobiliari, ben consapevoli degli alti introiti legati alle economie di scala delle garden city, cancellarono frettolosamente la proprietà collettiva del suolo, prevista da Howard, sostituendola com la proprietà individuale che favoriva affaristi privati e costruttori a scapito della pianificazione pubblica governativa”. 165 Ibidem, p.78, [T.d.A.], “[…] il mecanismo congegnato dai real estate operava instalando il panico e facendo credere ai residenti che la presenza di un núcleo familiare afroamericano o non caucásico avrebbe 164

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Foram assim favorecidos os novos contextos suburbanos, lugares onde se prometia a distância dos conflitos de raça, da pobreza e do crime e onde era conservada a ′integridade do estilo de vida′. Este modelo habitacional teve o seu auge, nos anos cinquenta do século passado, voltando a afirmar-se nos anos oitenta 166 do mesmo século. O fenómeno suburbano que se desenvolveu nos Estados Unidos representa, por conseguinte, o desejo de ′defesa′ e de constituição de uma comunidade na qual a dimensão familiar é o fator chave para proporcionar o sentimento de proteção e segurança que se encontra na base das áreas residenciais fechadas. Paralelamente, o sentimento de ′segurança′ proporcionado pelos condomínios fechados abrange diferentes aspetos: físico, por serem áreas muradas e vigiadas; social, por proporcionarem uma homogeneidade social dos residentes; económico, por se apresentarem como um produto imobiliário economicamente mais estável 167. O modelo de condomínio fechado foi, especialmente a partir dos anos oitenta do século XX, com a eclosão do sistema neoliberal, amplamente exportado para o resto do mundo, especialmente para os países do hemisfério Sul, onde é maior a diferenciação social e a extensão da pobreza e, em consequência, o medo da violência e a vontade das classes abastadas de viver num lugar ′seguro′. No caso do Brasil, por exemplo, as comunidades fechadas representam um fenómeno imobiliário de grande sucesso, nas grandes metrópoles e não só, como modelo habitacional ′protetor′ contra os problemas de ordem social e de violência urbana. Aqui, os condomínios fechados proliferam desde o centro até a periferia, nas formas mais variadas, desde grandes edifícios em altura a unidades habitacionais unifamiliares. Podem ter grandes dimensões, albergar milhares de pessoas, ter muitos equipamentos e/ou serviços, ou serem de dimensões mais reduzidas e distinguirem-se das restantes unidades habitacionais apenas pela presença de muros e de videovigilância. Podem ser construídos de raiz para servir a classe média-alta, ou podem ser fruto do fecho de algumas vias como método de prevenção de pequenas comunidades em bairros mais pobres 168.

causato una perdita considerevole dei valori immobiliari e la conseguente trasformazione in un sito abitato prevalentemente da minoranze indesiderabili”. 166 PEREIRA, et al., 2011, op. cit., p.2. 167 Ibidem, p.3. 168 Ibidem, p.3.

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Segundo a leitura proposta por Rita Raposo 169, terão sido os condomínios fechados brasileiros a inspirar a produção desta tipologia residencial em Portugal, onde o fenómeno se começou a manifestar a partir da década de 1980. Em Portugal o fenómeno não surge, como no caso americano, pelo “intuito de criar comunidades de habitantes, ou com o domínio de uma ideologia ′privativista′ no sector imobiliário” ou, como no caso brasileiro, como “reação à violência urbana” 170. Segundo a leitura proposta por Pereira (et al.), apesar de estas razões não serem completamente inexistentes no caso português, não são dominantes. O modelo do condomínio fechado em Portugal oferece as vantagens inerentes ao seu modelo urbanístico, tais como “a diminuição dos encargos financeiros para as autarquias, ou a valorização das suas envolventes por contágio, mas sem consistirem em fundamentações tão fortes que justifiquem o fenómeno” 171. O estilo de vida proposto em termos de marketing para os condomínios fechados com as suas características de luxo, distinção, qualidade e segurança, constitui o motor principal do sucesso deste tipo residencial em Portugal.

169

RAPOSO, Rita, 2008, op. cit., p 123. PEREIRA, et al., 2011, op. cit., p.5. 171 Ibidem, p.5. 170

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Na página anterior: pormenor de montra na Rua da Rosa, Bairro Alto. Foto da autora.

2.1 Os antecedentes.

O significado do conceito de ′restauro′ como “ato crítico finalizado à conservação dos testemunhos materiais com valor de civilidade” 1 tem origem na primeira metade do século XIX. É nesta altura que o património construído começa a ser analisado também em função das ações efetuadas sobre ele ao longo do tempo. Até então, as obras arquitetónicas eram alvo de contínuas reutilizações, mesmo se estas implicassem funções (Fig.6) ou uma atribuição de significados 2 (Fig.7) diferentes dos originais, ou era utilizados como caves de materiais para novas construções. Era atribuída maior importância ao uso do que aos valores histórico-artísticos que caracterizavam o material.

Figura nº6, Ex Teatro de Marcello, depois Palazzo Savelli Orsini, Roma. Fonte: [Em Linha] [Consult. 07 Abr. 2014]. Disponível em: http://www.ilmiolazio.it/it-IT/roma/Pagine/teatromarcello.aspx. Figura nº7, Colonna Traiana, Roma. Fonte: [Em Linha] [Consult. 07 Abr. 2014]. Disponível em: http://it.wikipedia.org.

O restauro, tal como é entendido na época moderna, surge com o Iluminismo; embora no Renascimento se começasse a dar importância ao valor documental dos monumentos, as intervenções eram efetuadas de acordo com os paradigmas arquitetónicos e os meios técnicos próprios da altura.

1

NIGLIO, Olimpia – Restauro dell’architettura in Europa trai il XIX ed il XX secolo. Teorie e Protagonisti. Conferência apresentada na Tokyo University – Campus Komaba, 19 de Junho de 2013. p.3, [T.d.A.], “atto critico finalizzato alla conservazione delle testimonianze materiali aventi valore di civiltà”. 2 Em Itália, especialmente em Roma, o Estado do Vaticano utilizou os monumentos do Império Romano retirando os símbolos pagãos e acrescentando outros com significados eclesiásticos, ligados ao poder papal.

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Na primeira metade de Setecentos, na sequência de importantes descobertas como as de Ercolano (1738) e Pompeia (1743) na Itália, ganha espaço a ciência da conservação ligada, sobretudo, à arqueologia. Paralelamente, os tratados de Vitruvio, Sebastiano Serlio, Jacopo Barozzi da Vignola contribuíram para a redescoberta da arquitetura clássica. Em Inglaterra foi fundada, em 1717, a Society of Antiquaries, e o interesse pelas antiguidades promoveu a realização dos Grands Tours, com destino sobretudo à Itália e Grécia 3. Nesta mesma altura, as teorias de Johann Joachim Winckelmann (1717-1768), considerado o fundador da moderna história da arte, favoreceram, graças a numerosos estudos arqueológicos conduzidos em Itália, especialmente em Roma, a criação de algumas leis emanadas pelo estado pontifício, como il Chirografo di Pio VII (1802) e o Editto del Cardinale Pacca (1820), que obrigavam a um maior respeito pelas antiguidades da época clássica e proibiam a sua venda e destruição. Em França é publicado, em 1794, um decreto para a conservação dos monumentos danificados durante a Revolução de 1789, marcando o início da moderna conceção de restauro dos monumentos, a partir da qual se ampliam os conceitos de património e da sua conservação. No princípio do século XIX surgem algumas divergências em torno das metodologias a aplicar na conservação: durante o domínio napoleónico de Roma (1797-1815) foram efetuadas intervenções de restauro baseadas numa cultura ′científica′ 4. Estas intervenções eram diferentes das efetuadas segundo o restauro ′estilístico′ que se estava a desenvolver na mesma época em França, e cujo principal ideólogo foi Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc (1814-1879) (Figs 8 e 9) 5. O restauro estilístico ignorava completamente a passagem do tempo no monumento, procurando alcançar uma ideal, e inexistente, ′unidade estilística′. A sua influência manter-se-á até à primeira metade do século XX. Diametralmente oposta era a posição de John Ruskin (1819-1900) que teve, em Inglaterra, um papel fundamental nas discussões sobre o restauro. A sua visão

3

Fonte: SETTE, Maria Piera – Il Restauro in Architettura. Torino: UTET Libreria, 2001. ISBN: 8877506997. Um exemplo são as intervenções de Raffaele Stern (1818-21) e depois de Giuseppe Valadier (1822-24) no Arco de Tito (Roma), que foi alvo de operações de integração, utilizando materiais diferentes dos originais e com formas neutras, com o fim de tornar legível a intervenção no monumento e possibilitar a leitura da ação do tempo sobre ele. Fonte: SETTE, Maria Piera, 2001, op. cit.. 5 A filosofia na base do restauro estilístico previa a depuração do monumento, eliminando tudo o que não se considerava fazer parte da construção original, ao mesmo tempo que previa reconstruções miméticas de partes em falta, bem como a construção de partes novas, no estilo ′original′. Propunha-se também a destruição das envolventes das edificações, separando as arquiteturas consideradas ′dignas de restauro′ do tecido envolvente. Os materiais utilizados eram os tradicionais, juntamente com tecnologias modernas como o ferro ou o cimento; o que era considerado importante eram as formas, e não a originalidade dos materiais. 4

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′romântica′ propunha intervenções apenas estruturais nos monumentos, deixando visível a natural ação do tempo 6.

Figuras nº8 e 9, Anónimo, Bastiões do Castelo de Carcassone, França, antes e depois do restauro efetuado por Viollet-le-Duc (1857-18--). Fonte: [Em Linha] [Consult. 07 Abr. 2014]. Disponível em: http://quarantotto.altervista.org/48/scienza.htm.

A procura de fundamentos históricos, estéticos e científicos mais rigorosos será marcada pelos contributos dos italianos Camillo Boito (1839-1914), Gustavo Giovannoni (1873-1947) e Cesare Brandi (1906-1988). Em Itália, as teorias de Camillo Boito inspiraram a redação de dois importantes documentos: o decreto del ministro Giuseppe Fiorelli para o restauro dos edifícios monumentais de 1882, e a Risoluzione de 1883. O primeiro sublinhava a importância de estudos prévios sobre o monumento, para permitir o conhecimento da sua história, bem como do seu carácter histórico-estilístico e dos materiais utilizados, documentando os danos presentes e respeitando o carácter estilístico da obra. O documento votado em 1883 no IV Congresso degli Ingegneri e Architetti di Roma, conhecido também como a Risoluzione, é considerado a Primeira Carta Italiana da Conservação. Este documento reconhece a importância da conservação dos monumentos históricos como essencial para transmitir a história dos povos e delineia alguns pontos de ação, que visam: limitar ao máximo as intervenções sobre o monumento; a distinção das intervenções com a utilização de materiais diferentes; a conservação das intervenções de todas as épocas anteriores no monumento; a redação de material documental relativo a todas as fases de intervenção. As indicações delineadas na Risoluzione de 1883 são extremamente inovadoras, comparadas com os métodos de atuação até então vigentes. A partir dela surgiram as

6 Na sua opinião, o restauro estilístico era uma ação arbitrária, que danificava os monumentos, falsificando-os. A melhor prática seria a da manutenção que, se executada corretamente, favorece a desaceleração da degradação dos monumentos. Fonte: SETTE, Maria Piera, 2001, op. cit..

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teorias do restauro e as metodologias de intervenção que caracterizaram a cultura italiana e influenciaram a cultura Europeia da primeira metade de Novecentos. As teorias de Boito trouxeram o restauro ′filológico′ ou ′científico′, que defendia o conhecimento de todas as partes do monumento para se ter consciência do ato do restauro, garantindo a conservação do edifício. Como observa Olimpia Niglio, a partir deste momento “[c]onsolida-se a opinião segundo a qual todas as intervenções têm que ser precedidas por um conhecimento analítico do objeto efetuado através da utilização de documentos históricos e qualquer meio capaz de determinar com objetividade e sinceridade as características da obra. De facto nasce a consciência da relação reciproca existente entre conhecimento e restauro” 7. Será Gustavo Giovannoni (1873-1947) a prosseguir a teorização e a prática do restauro científico, codificado na Carta de Atenas 8 de 1931 9, dita ′do Restauro′ para a distinguir da Carta de Atenas do Urbanismo de 1933 10. Trata-se do primeiro documento internacional de referência para os processos de conservação patrimonial e pode ser resumida nos pontos seguintes: o Princípios gerais: constata-se que na Europa existe uma tendência geral para abandonar os ditames do restauro estilístico, preferindo uma manutenção regular e permanente. No caso em que o restauro seja indispensável, recomenda-se o respeito pela obra histórica e artística sem banir nenhum estilo; o Administração e Legislação dos Monumentos Históricos: relativamente à proteção dos monumentos, privilegia-se o direito da coletividade perante o da propriedade privada; o Valorização dos Monumentos: na construção de edifícios novos, especialmente se se situam na vizinhança de monumentos antigos, recomenda-se o respeito pelo carácter e fisionomia das cidades. A envolvente dos monumentos deve

7

NIGLIO, Olimpia, 2013, op. cit., p21, [T.d.A.], “[s]i consolida l’opinione secondo la quale ogni intervento deve essere preceduto da una conoscenza analitica dell’oggetto svolta attraverso l’apporto delle fonti storiche e di ogni mezzo in grado di determinare con obbiettività e sincerità le caratteristiche dell’opera. In realtà nasce la consapevolezza del reciproco rapporto che esiste tra conoscenza e restauro”. 8 Carta de Atenas (1931). Conclusões da Conferência Internacional de Atenas sobre o Restauro dos Monumentos. Serviço Internacional de Museus, Atenas, 21 a 30 de Outubro de 1931. [Em Linha] [Consult. 2 Mai. 2010] Disponível em: http://www.igespar.pt/media/uploads/cc/CartadeAtenas.pdf. 9 No mesmo ano de 1931, publica-se em Itália a primeira Carta del Restauro, substituída em 1972 por uma nova que reflete as teorias de Cesare Brandi e que se encontra ainda hoje em vigor. 10 Carta de Atenas (1933). Conclusões da IV Conferência Internacional de Arquitectura Moderna (CIAM). Atenas, Novembro de 1933. [Em Linha] [Consult. 2 Mai. 2010] Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=233.

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ser alvo de cuidados particulares, bem como alguns conjuntos e perspetivas considerados de grande relevância; o Materiais de restauro: é aprovado o uso ′sensato′ dos recursos da técnica moderna e especifica-se que os elementos resistentes devem ser dissimulados para não alterar o carácter e o aspeto do edifício; o Degradações dos monumentos: constata-se que os monumentos do mundo inteiro estão ameaçados pelos agentes atmosféricos provocados pela vida moderna. Para além das precauções e soluções já encontradas no âmbito da conservação da estatuária monumental, o conhecimento atual não permite formular regras gerais. Recomenda-se a colaboração com os representantes das ciências físicas, químicas e naturais; ao Conselho Internacional de Museus recomenda-se que se mantenha atento aos trabalhos empreendidos em cada país sobre a matéria; o Técnica de conservação: em relação às ruínas, impõe-se uma conservação escrupulosa, aplicando a anastilose 11, e, no caso de ser necessária a colocação de materiais novos, estes deverão ser identificáveis. No caso da impossibilidade de conservar ruínas trazidas à luz durante uma escavação, estas deverão ser novamente enterradas no mesmo sítio, após terem sido efetuados levantamentos rigorosos. Em relação aos outros monumentos, antes de qualquer consolidação ou restauro parcial aconselha-se a análise escrupulosa das patologias presentes; o Conservação

dos

monumentos

e

colaboração

internacional:

devem

incentivar-se: 1) a cooperação técnica e moral entre os Estados; 2) o papel da educação no respeito dos monumentos; 3) a criação de uma documentação internacional. Um dos aspetos mais relevantes é a preocupação pelo respeito pelo carácter e fisionomia das cidades. Assiste-se a uma gradual assunção da cidade histórica como um novo e vasto campo de atuação da conservação. A elevação do espaço da cidade histórica a ′património urbano′ é um conceito muito recente, que se desenvolveu, como descreve Françoise Choay na sua obra ′Alegoria do Património′ (1992), entre meados do século XIX até à Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em momentos e espaço distintos. Estes coincidem com três fases históricas principais, que a autora francesa

Anastilose (do grego ἀναστήλωσις ′re-edificação′, derivado de ἀναστηλόω ′re-edificar′) é a técnica de restauro com a qual se recolocam juntos, peça a peça, os elementos originais de uma construção destruída. 11

97

chama memóriale, historique e historiale, nascidas no berço de três culturas diferentes, e com três protagonistas, Ruskyn em Inglaterra, Sitte na Austria e Giovannoni em Itália.

98

2.2 A cidade histórica e o alargamento do conceito de Património.

O italiano Gustavo Giovannoni propôs algumas teorias que visavam integrar a cidade histórica no quadro mais amplo da cidade. Para Giovannoni, a arquitetura considerada menor era ela própria, no seu conjunto, um ′monumento′: a cidade histórica, com a sua estrutura, morfologia e paisagem constitui um Património Urbano que deve ser protegido por uma legislação adequada e deve ser alvo de ações de restauro. O arquiteto italiano anteviu o “processo de desintegração a que iriam ser submetidas as cidades tradicionais – [adivinhou], cinquenta anos antes, o ′desurbanismo′ dos nossos dias” reclamando “a instauração para os antigos núcleos históricos de valores de uso atuais através da sua inserção em novas teias de organização territorial′ 12. Colocando condições extremamente precisas, Giovannoni defendia que o papel da cidade histórica podia ser compatível e complementar das novas urbanísticas. Na sua visão propunha: o Substituir a ideia da centralidade única dos centros históricos, por um sistema urbanístico polinuclear; o Fazer corresponder os usos atribuídos aos tecidos históricos às características específicas da sua arquitetura, evitando-se operações de renovação cadastral; o Favorecer as funções presentes nos tecidos históricos tirando partido da sua riqueza morfo-tipológica e das suas vocações tradicionais; o Favorecer operações de ′diradamento′, no sentido de demolições cirúrgicas de construções obsoletas, com uma lógica oposta aos ′esventramentos′, tendo como objetivo favorecer uma melhoria ambiental que crie espaços para a introdução de equipamentos importantes para a vida contemporânea; o Preferir às operações de esventramento a salvaguarda dos tecidos históricos e dos monumentos, garantindo o restauro e preservando o contexto 13. As primeiras propostas teóricas de Giovannoni no âmbito do urbanismo são dos anos vinte e trinta do século XX. No seu texto ′Vecchie cittá ed edilizia nuova′, publicado em 1931, é reconhecido, pela primeira vez, “[...] um valor intrínseco aos tecidos antigos constituídos por arquitetura modesta, tornando-os merecedores de serem conservados” ao mesmo tempo que a sua preservação “[...] não é vista de uma

PAIVA, José, AGUIAR, José, PINHO, Ana − Guia Técnico de Reabilitação Habitacional. Lisboa: Instituto Nacional de Habitação, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, 2006. II Volumes. Vol. I, p.12. 13 Ibidem. 12

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perspetiva estritamente conservacionista, mas é integrada pela primeira vez na escala mais alargada do planeamento urbano” 14. As ideias precursoras de Giovannoni só foram reconhecidas e divulgadas na segunda metade de novecentos. No segundo quartel do século XX, os tecidos antigos eram considerados pelos arquitetos modernos como insalubres e obsoletos. Privilegiavam-se as ideias higienistas do movimento moderno expressas na Carta de Atenas do Urbanismo de 1933, defendendo-se uma cidade nova e funcional em detrimento da antiga. Como nota Ana Pinho 15, embora no artigo 65 da Carta de 1933 se diga que os valores arquitetónicos patrimoniais devem ser salvaguardados, os artigos seguintes (66,67,68) fundamentam a prática da renovação 16, que será amplamente aplicada nos anos da Reconstrução que se seguem ao término da Segunda Guerra Mundial (1945). As cidades europeias que haviam sido palco da Guerra encontravam-se em situação muito precária. Os numerosos bombardeamentos efetuados em cidades consideradas pontos estratégicos tinham causado destruições massivas, sendo urgente a construção de muitas novas habitações. Para responder a esta situação: “[...] privilegiou-se a demolição das áreas urbanas semi-destruídas e a rápida urbanização de novas áreas periféricas, desencadeando uma renovação urbana e uma reconstrução baseadas em profundas

alterações funcionais

e

morfo-tipológicas, traduzidas na produção de uma enorme quantidade de novas zonas habitacionais, geralmente com níveis bastante baixos de qualidade de projecto, construtiva e ambiental” 17. Tendo como referência teórica os princípios expressos pela Carta de Atenas do Urbanismo, nesta época defendia-se a modernidade e princípios higienistas de tal forma restritivos que quase não possibilitavam a realização de restauros urbanos. Durante este período, as estratégias dirigidas à salvaguarda do património arquitetónico e urbano “[...] podem classificar-se como restritivas, culturalmente muito selectivas e marginais. Nos novos planos de urbanização, muitas vezes colocaram-se as ′áreas históricas′ literalmente de quarentena, delimitando-as como um ′zoológico arquitetónico′ ao qual as novas expansões viram costas, enquanto, outras vezes, PINHO, Ana Cláudia da Costa − Conceitos e políticas europeias de reabilitação urbana. Análise da experiência portuguesa dos Gabinetes Técnicos Locais. Lisboa: Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, 2009. Tese de Doutoramento. p. 31 15 Ibidem, p.34. 16 Entende-se por renovação urbana a “substituição da tipologia urbana preexistente – alterando drasticamente o traçado e a morfologia urbana e demolindo os edifícios que lhes pertenciam – substituindo-a por soluções novas e modernas de desenho do espaço urbano, com correspondentes soluções tipológicas”. PAIVA, José, et al., 2006, op. cit., p.18. 17 PAIVA, José, et al., 2006, op. cit., p. 10. 14

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estas áreas são esventradas com avenidas desproporcionadas, típicas das operações de ′renovamento viário′ [...]” 18. Durante a década de cinquenta generalizam-se as operações de renovação urbana, quase sempre associadas a processos de realojamento nas periferias das populações (normalmente de estratos económicos mais carenciados). As operações de renovação traduzem-se numa alteração profunda do tecido urbano, com uma mudança que abrange três dimensões: o “Dimensão morfo-tipológica: acção sobre a forma da cidade mediante a alteração da morfologia urbana e da tipologia, da linguagem e da escala dos edifícios”; o “Dimensão funcional: introdução de novas funções no tecido urbano (geralmente actividades economicamente fortes do sector terciário ou habitação de luxo) e desaparecimento das funções tradicionais”; o “Dimensão social: substituição do tecido social existente (habitantes, trabalhadores, visitantes, etc.) por outros com rendimentos, instrução e modos de vida diferentes, adaptados às novas funções da área” 19. As operações de renovação estão geralmente associadas a processos de gentrification 20 frequentes durante a segunda metade do século XX. Tendencialmente, nas cidades europeias, ao longo deste período, muitas famílias foram impelidas, por pressão do mercado, a abandonar o centro da cidade para habitar nas construções sociais que se estavam a multiplicar na periferia. Estas famílias, se por um lado ganharam uma habitação mais moderna, por outro, foram afastadas do centro, passando a ter dificuldades de deslocação e perdendo importantes laços sociais e identitários. Ao mesmo tempo, neste processo, os centros históricos foram perdendo a diversidade do tecido social e económico que os caracterizavam. No período pós-guerra, assiste-se, na Europa, a uma marcada involução demográfica, ao surgimento de preocupações ecológicas e ambientais, e ao início de uma alteração de modelos produtivos e sociais acompanhada de crises económicas e culturais, que se traduzem na emergência da revisão crítica dos princípios do urbanismo moderno. Já no primeiro Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM) pós-guerra (1947) 21 houve uma rotura em relação às convicções anteriores, 18

Ibidem, p.11. PINHO, Ana, 2009, op. cit., p.37. 20 Cfra. Cap. 1.2. 21 VI CIAM, Bridgewater, Inglaterra, 1947. 19

101

preferindo-se ao espaço abstrato e geométrico o espaço ligado à experiência do sujeito. Começa-se a perceber que o modelo da cidade moderna, que reduzia o ordenamento do território a índices e variáveis para o controlo do uso do solo, produzia maior facilidade e rapidez de edificação e de circulação mas, ao mesmo tempo, favorecia a fragmentação da cidade e a sua descaracterização formal. As operações de renovação urbana também estavam a produzir graves descontinuidades no tecido urbano. Começa a surgir uma maior perceção da complexidade do fenómeno urbano, para a qual foi fundamental o contributo da sociologia urbana. De facto, é hoje claro que “[...] a satisfação residencial e o uso efectivo dos espaços públicos de uma cidade pela sua população processam-se em função de múltiplos factores [...] não só o modo como se planeia e constrói a cidade influencia o seu uso e a sua vivência, como qualquer alteração no tecido existente tem repercussões que ultrapassam o domínio físico, e que podem afectar de forma determinante e irreversível a estrutura social, cultural, funcional e económica desse mesmo território” 22.

A escola italiana da conservação, especialmente as teorias de Cesare Brandi, começava a influenciar o pensamento europeu. No final da primeira metade de oitocentos, com Roberto Pane (1897-1987), o pensamento evoluiu em direção ao ′restauro crítico′; sucessivamente, Renato Bonelli (1911-2004) aprofundou o conceito no âmbito específico do restauro arquitetónico. Segundo os princípios do restauro crítico, as intervenções deviam dar clareza à compreensão da obra de arte, com todas as estratificações presentes. Este critério era válido tanto para monumentos como para a cidade e os centros históricos. Os princípios do restauro crítico refletiram-se na Carta de Veneza sobre a Conservação e o Restauro de Monumentos e Sítios, que consagrou o alargamento do conceito de património. A Carta foi elaborada em consequência das resoluções tomadas pelo II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos, organizado em Veneza em 1964, durante o qual foi fundado o ICOMOS (International Council on Monuments and Sites) 23.

22

PINHO, Ana, 2009, op. cit., p.42. ICOMOS é uma organização não-governamental global que luta pela conservação e proteção dos sítios que são património cultural. Promove a aplicação da teoria, dos métodos e técnicas cientificas à conservação do património arquitetónico e arqueológico. É uma rede de especialistas de diferentes disciplinas que contribuem para o aperfeiçoamento e melhoria da preservação do património, das técnicas e das normas para a salvaguarda do património cultural (edifícios, cidades históricas, paisagens culturais e sítios arqueológicos). 23O

102

Este documento, realçando o fato de ser responsabilidade coletiva proteger os monumentos e mantê-los com a sua riqueza e a sua autenticidade, por estes serem património comum a perpetuar para as gerações futuras, define os seguintes aspetos: o Considera-se monumento histórico tanto a criação arquitetónica isolada quanto sítios rurais ou urbanos testemunhos de circunstâncias significativas, estendendo-se esta noção a obras modestas que tenham adquirido significado cultural; o A conservação e o restauro dos monumentos necessitam da colaboração de todas as ciências e as técnicas que possam contribuir para o estudo e salvaguarda do património arquitetónico; o A manutenção permanente dos monumentos deve ser o primeiro ato, e é favorecida pela adaptação do monumento a uma função útil para a sociedade, desde que esta alteração não modifique a disposição e decoração dos edifícios; o A conservação de um monumento implica a conservação da sua envolvente; o O restauro deve ser uma operação de caráter excecional, sempre precedido e acompanhado por estudos arqueológicos e históricos. A reconstituição deve ser um ato efetuado apenas em casos indispensáveis. Devem preferir-se os materiais e as técnicas tradicionais; o uso de técnicas modernas deve ser feito só quando estritamente necessário e apenas quando a sua eficácia tenha sido comprovada por dados científicos e garantida pela experiência; o A unidade de estilo não é um objetivo a alcançar, pois devem ser respeitados os contributos de todas as épocas; o Os sítios monumentais devem ser salvaguardados, e os princípios dos trabalhos de conservação e restauro devem ser os mesmos dos enunciados para os monumentos isolados; o Os trabalhos de escavação devem ser executados em conformidade com a “Recomendação Definidora dos Princípios Internacionais a Aplicar em matéria de Escavações Arqueológicas” adotada pela UNESCO em 1956. Deve ser excluído qualquer trabalho de reconstrução, sendo aceite apenas a anastilose; o Todos os trabalhos de conservação, restauro e escavação deverão ser acompanhados por uma documentação precisa de todas as fases da obra. Esta documentação deverá ser constituída por relatórios técnicos, fotografias, desenhos e mapas, e deverá ser guardada nos arquivos de um organismo público e colocada à disposição das pessoas que a quiserem consultar.

103

Muitos dos aspetos expressos na Carta de Veneza representam um importante avanço disciplinar, e dão indicações fundamentais para uma nova metodologia de trabalho que visa o máximo respeito pelo monumento, por exemplo recomendando intervenções mínimas e o retomar de técnicas tradicionais. De fundamental importância é o alargamento do conceito de monumento histórico, que passa a abranger “não só a criação arquitectónica isolada” mas também “o sítio rural ou urbano” bem como “as obras modestas que adquiram com o tempo um significado cultural” 24. Todavia, como sublinhado em PAIVA, José, et al. 25, se a Carta de Veneza representa um grande avanço conceptual englobando o património urbano no conceito de património a preservar, apenas um artigo, o nº14 26, é dedicado às metodologias a usar para os trabalhos de restauro e conservação dos sítios históricos, metodologias estas indicadas, de forma demasiado vaga, como devendo ser idênticas às enunciadas para o restauro e conservação de monumentos. Será só mais tarde 27, com a publicação, em 1987, da Carta Internacional para a Salvaguarda das Cidades Históricas 28, que se reforça e especifica de forma mais completa o que se encontra enunciado no Artigo nº14 da Carta de Veneza relativamente aos princípios a aplicar nos trabalhos de restauro e conservação dos sítios históricos. A Carta de 1987 sublinha a ideia segundo a qual “[...] todas as cidades do mundo são expressões materiais da diversidade das sociedades através da História e, por este facto, todas elas são históricas”. As cidades, grandes e pequenas, e os centros ou bairros históricos, com a sua envolvente natural ou construída “[...] para além da sua qualidade de documento histórico, exprimem os valores próprios das civilizações urbanas tradicionais [...]” e estão “[...] ameaçadas de degradação, de desagregação e mesmo de destruição [...]”. Foi para fazer face a esta ameaça a que estão sujeitos os lugares históricos e que “[...] provoca perdas irreversíveis de carácter cultural e social, e mesmo económico”, que o ICOMOS completou a Carta de Veneza com a Carta de 1987, visando, desta forma, definir princípios, objetivos, métodos e instrumentos de ação para “[...]

24

Carta de Veneza sobre a conservação e o restauro de monumentos e sítios. Veneza 1964. [Em Linha] [Consult. 2 Mai. 2010] Disponível em: http://www.igespar.pt/media/uploads/cc/CartadeVeneza.pdf. Art.1, p.1. 25 PAIVA, José, et al., 2006, op. cit., p. 15. 26 “Os sítios monumentais devem ser objeto de cuidados especiais a fim de salvaguardar a sua sanidade, organização e valorização. Os trabalhos de conservação e de restauro que forem efectuados nos sítios monumentais devem inspirar-se nos princípios enunciados nos artigos precedentes”. Carta de Veneza sobre a conservação e restauro dos monumentos e dos edifícios, 1964, op. cit., Art.14º, p.3. 27 Salienta-se que já em 1976 com a Resolução (76) 28 o CMCE define pela primeira vez o conceito de reabilitação. Este documento será mais amplamente analisado no cap. 2.3. 28 Texto aprovado em Toledo, em reunião que decorreu de 7 a 9 de Setembro de 1987, e ratificado pelo ICOMOS em Washington em Outubro de 1987.

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salvaguardar a qualidade das cidades históricas, favorecer a harmonia da vida individual e social e perpetuar o conjunto de bens, mesmo modestos, que constituem a memória da Humanidade” 29.

29

Carta Internacional para a Salvaguarda das Cidades Históricas. Washington, Outubro de 1987. [Em Linha] [Consult. 2 Mai. 2010] Disponível em: http://www.igespar.pt/media/uploads/cc/CARTAINTERNACIONALPARASALVAGUARDDASCIDADESHIS TORICAS.pdf

105

2.3 A mutação do foco: do objeto ao sujeito.

Se a Carta de Veneza de 1964 teve o condão de alargar o conceito de património do monumento aos sítios, foi em Outubro de 1975 que se consagrou o alargamento dos conceitos na direção da justiça social. Nesta data, como conclusão do Congresso do Património Arquitectónico Europeu 30, foi oficialmente lançada, através da Declaração de Amsterdão 31, a Carta Europeia do Património Arquitectónico. Esta Carta 32 sistematiza, em dez princípios, os fundamentos para uma política de conservação do património arquitetónico europeu: “1º. O património arquitetónico europeu é formado não apenas pelos nossos monumentos mais importantes mas também pelos conjuntos que constituem as nossas cidades antigas e as nossas aldeias com tradições no seu ambiente natural ou construído. 2º. A encarnação do passado no património arquitetónico constitui um ambiente indispensável ao equilíbrio e ao desabrochar do homem. 3º. O património arquitectónico é um capital espiritual, e cultural, económico e social de valor insubstituível. 4º. A estrutura dos conjuntos históricos favorece um equilíbrio harmonioso das sociedades. 5º. O património arquitectónico tem um valor educativo determinante. 6º. Este património está em perigo. 7º. A conservação integrada afasta as ameaças. 8º. A conservação integrada requer o emprego de meios jurídicos, administrativos, financeiros e técnicos. 9º. A participação de todos é indispensável ao sucesso da conservação integrada. 10º. O património arquitectónico é um bem comum do nosso continente”33. Um dos conceitos mais importantes expressos neste documento é o de ′conservação integrada′, que ainda hoje se mantém atual e que junta as teorias relativas ao restauro conservativo à noção de ação integrada, e é entendida como “[...] o

30

Amsterdão 21 a 25 de Outubro de 1975. Declaração de Amsterdão, Congresso do Património Arquitectónico Europeu, Amsterdão, 21 a 25 de Outubro de 1975. Em Linha] [Consult. 2 Mai. 2010] Disponível em: http://www.igespar.pt/ 32 Que tinha sido adotada pelo CMCE em Setembro de 1975 com o estatuto legal de recomendação. 33 Carta Europeia do Património Arquitectónico. Amsterdão, 21 a 25 de Outubro de 1975. [Em Linha] [Consult. 2 Mai. 2010] Disponível em: http://www.igespar.pt 31

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resultado da acção conjugada de técnicas de restauro e da procura das funções apropriadas” 34. Se toma consciência do facto que “[...] os centros degradados das grandes cidades e [...] as aldeias abandonadas [se tornaram] reservas de alojamento barato. O seu restauro deve ser feito num espírito de justiça social e não deve ser acompanhado do êxodo de todos os habitantes de condição modesta. A conservação integrada deve ser, por conseguinte, um dos pressupostos importantes da planificação urbana e regional. Convém notar que esta conservação integrada não é exclusiva de toda a arquitectura contemporânea em conjuntos antigos, mas esta deverá ter em maior consideração o quadro existente, respeitar as proporções, a forma e a disposição dos volumes, bem como os materiais tradicionais”35. A conservação do património arquitetónico é entendida neste documento como um meio para alcançar também princípios sociais por ser um processo que deve ter subjacente um espirito de justiça social e que não deve ser acompanhado pela deslocação dos habitantes de menores recursos económicos 36. Considera-se também que a conservação integrada necessita de meios técnicos, jurídicos e financeiros para ser levada a bom fim 37. Ao mesmo tempo, começa a ser dado valor à participação da população (art. 9º) 38 bem como à importância da reabilitação como meio para economizar recursos e diminuir a produção de resíduos. A Declaração de Amesterdão, lançando oficialmente a Carta Europeia do Património Arquitetónico, reforça “[...] a ideia da necessidade e da urgência de implementar uma política global de proteção e conservação integrada, que abranja cidades históricas, bairros antigos, vilas e aldeias, parques e jardins históricos, e todos os edifícios com valor cultural, do mais prestigiado ao mais humilde, sem esquecer nem os edifícios modernos, nem as áreas envolventes” 39. Um ano depois, em 1976, o Comité de Ministros do Conselho da Europa, através da Resolução (76) 28 40, define o conceito de reabilitação. Visava desta forma “[...]

34

Ibidem, Art.7º, p.3. Ibidem, Art.7º, p.3. 36 Ibidem. 37 Ibidem, Art.8º, p.4. 38 “Se bem que o património arquitetónico seja propriedade de todos, cada uma das suas partes está à mercê de cada um. Aliás, cada geração não dispõe do património arquitetónico se não a título transitório. Ela é responsável pela sua transmissão às gerações futuras. A informação do público deve ser tanto mais desenvolvida quanto os cidadãos têm o direito de participar nas decisões que dizem respeito ao seu quadro de vida”. Ibidem, Art.9º, p.3. 39 PINHO, Ana, 2009, op. cit., p. 68. 40 Resolução (76) 28 sobre a adaptação de leis e regulamentos às exigências da conservação integrada do património arquitetónico. Comité de Ministros do Conselho da Europa. 35

107

orientar os governos dos Estados-membros no modo como proceder à adaptação dos seus sistemas jurídicos e regulamentares às necessidades de uma política nacional de conservação integrada” 41. Embora o documento se refira apenas à reabilitação dos edifícios, realçando a necessidade da existência de programas de intervenção 42 concebidos e dirigidos a áreas territoriais específicas, lança as bases da escala urbana da reabilitação. O conceito de reabilitação é aqui definido pela primeira vez como a forma em que os edifícios antigos são conservados e ao mesmo tempo integrados na vida contemporânea: “[...] a forma pela qual se procede à integração dos monumentos e edifícios antigos – em especial os habitacionais – no ambiente físico da sociedade actual, ′[...] através da renovação e adaptação da sua estrutura interna às necessidades da vida contemporânea, preservando ao mesmo tempo, cuidadosamente, os elementos de interesse cultural′. A reabilitação urbana deve ser realizada segundo os princípios da conservação integrada e constituir um dos aspectos fundamentais a ter em conta no planeamento regional e urbano” 43. Deste modo, passa-se de uma política de conservação e restauro de edifícios pontuais para uma política de conservação integrada 44 dos tecidos urbanos antigos. O recurso à reabilitação urbana deveria permitir combater o declínio físico, social e económico através da adaptação de edifícios e sítios à vida contemporânea, revitalizando-os através da atribuição de novos usos, compatíveis com as suas características arquitetónicas. A reabilitação surge, deste modo, ligada à problemática da cidade histórica, dando particular atenção aos tecidos urbanos mais modestos, e às dimensões sociais – princípio de justiça social; participação da população nas fases do processo – e

41

PINHO, Ana, 2009, op. cit., p. 70. Para realizar a nova política de conservação integrada era indispensável implementar, a nível nacional, um amplo leque de novos instrumentos legislativos e de financiamento, medidas administrativas e campanhas de sensibilização pública. Por isso, a Resolução (79) 28 apresentou indicações relativas aos requisitos legais e regulamentares necessários para uma política nacional de conservação integrada. É estabelecido um modelo de atuação baseado em programas de conservação integrada, a serem lançados pelos governos centrais e concebidos à escala local por equipas técnicas multidisciplinares em contacto com as autoridades locais e com a população residente. “O processo divide-se essencialmente em três etapas: realização de estudos prévios, definição do programa de conservação integrada e implementação. Há três objetivos centrais à atuação: conservar o património arquitectonico (monumentos, grupos de edifícios e sítios); melhorar as condições de vida da população; e assegurar a permanência de grupos mais desfavorecidos”. (PINHO, Ana, 2009, op. cit., p. 73). Embora se considere que a conservação e a reabilitação do património arquitetónico seja da responsabilidade dos proprietários, são criadas medidas de apoio financeiro do Estado aos proprietários privados ou públicos (autarquias locais). 43 PAIVA, José, et al., 2006, op. cit., p. 90. 44 Enquanto a conservação é alcançada através de medidas de salvaguarda, de preservação física, de operações de restauro, a integração é alcançada através da reabilitação. 42

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funcionais dos mesmos, querendo assegurar a permanência da antiga população após as intervenções e começando a ter também atenção aos aspetos de carácter ambiental. Apesar do grande envolvimento das instituições internacionais e nacionais no desenvolvimento de instrumentos concetuais e jurídicos e do impacto destes na proteção e melhoria de alguns tecidos urbanos antigos europeus 45, nas décadas de sessenta e setenta, a maioria das intervenções efetuadas em tecidos construídos foram empreendidas pelo setor privado. Tratou-se, na maioria dos casos, de intervenções com fins lucrativos, isoladas, não integradas no planeamento global da cidade, constituídas por processos de renovação urbana, terciarização, gentrification e desenvolvimento não planeado do turismo. Estas operações tiveram consequências prejudiciais do ponto de vista social. Se por um lado levaram a progressos económicos e melhorias do estado de conservação dos edifícios e espaço público da área, por outro provocaram desertificação noturna, expulsão dos antigos residentes, segregação e exclusão social, conflitos 46. O processo de terciarização provocado pela dinâmica do mercado teve um impacto profundo na alteração dos tecidos históricos, no emprego, nos equipamentos e residências. Pinho evidencia 47 como sendo alguns dos impactos que tiveram maiores consequências nos tecidos antigos: o Emprego - Nas áreas centrais, o crescimento dos serviços aliado ao declínio das atividades industriais, e o não surgimento de novas atividades em substituição da indústria, reduziram as oportunidades de emprego das antigas populações, causando o desemprego dos operários que aqui residiam, que possuíam um perfil e habilitações na maioria dos casos não compatíveis com o setor dos serviços. Este aspeto teve um impacto significativo nas áreas industriais e de habitação operária centrais. o Congestionamento - De uma forma geral, a terciarização gerou uma atividade mais intensa. Esta atividade pode ser benéfica por aumentar a vitalidade, mas, quando ultrapassa certos níveis, torna-se nociva por ser geradora de congestionamento. No caso das áreas urbanas centrais, normalmente a estrutura não é propícia aos meios de transporte modernos e à quantidade de tráfego trazidos pelas novas atividades. Estas condições levaram a uma sobrecarga do sistema urbano e à consequente degradação ambiental,

45

Foi pioneiro, o Plano do centro histórico de Bolonha, Itália, aprovado entre 1969 e 1970. Fonte: CONSELHO DA EUROPA – Guidance on Urban Rehabilitation. Strasbourg: Council of Europe Publishing, 2005. ISBN 92-871-5528-3. 47 PINHO, Ana Cláudia da Costa, 2009, op. cit., pp. 91-93. 46

109

diminuindo a qualidade de vida e tornando as áreas menos apetecíveis para a habitação. o Desertificação noturna - Nos casos em que as funções da área se restringiam às atividades do setor dos serviços, verificavam-se picos de atividades em algumas horas do dia, especialmente em relação aos horários de funcionamento do terciário. Esta situação causava tanto o congestionamento do

tráfego

em

certos

horários,

como

a

desertificação

noturna

e,

consequentemente, o aumento do sentimento de insegurança. o Impactos físicos - A terciarização das áreas centrais nas décadas de sessenta e setenta do século XX foi quase sempre levada a cabo através de processos de renovação urbana, muitas vezes em áreas extensas. Os novos edifícios que vinham a ser construídos possuíam, na maioria dos casos, uma arquitetura em termos de materiais, linguagem e escala extremamente diferente dos que substituíam e das áreas envolventes. Paralelamente, os processos de renovação “tinham importantes consequências: como estes eram muito longos e pesados […] degradavam o ambiente urbano envolvente […] afetando a qualidade de vida das comunidades habitacionais vizinhas, e acelerando muitas vezes os processos de abandono e declínio” 48. o Perda da função habitacional - O uso habitacional não tinha a possibilidade de competir em termos económicos com o terciário, pois os preços do solo tinham aumentado. Esta situação levou à substituição da habitação não apenas pela prática da renovação, mas também pela ocupação de edifícios por parte do terciário. A terciarização de áreas habitacionais levou à alteração das suas funções, pois a perda de população levou também a que alguns serviços de apoio à habitação deixassem de ser viáveis. Os que sobreviveram, tornaram-se ou mais caros ou de menor qualidade, situação esta que, por sua vez, acelerou o êxodo populacional. A terciarização não constituiu o único fator de declínio da habitação e do êxodo da população residente para as periferias. Estes fenómenos resultaram também das políticas públicas adotadas na promoção da habitação social na periferia, bem como das escolhas da população face às alternativas de que dispunham. Na década de setenta do século XX, a opinião pública começou a contestar as operações públicas de promoção de habitação em massa, multiplicando-se os

48

Ibidem, p.90.

110

movimentos sociais de contestação 49 contra as operações de renovação e realojamento forçado. Durante a década de oitenta do século XX, torna-se bem visível o impacte das intervenções de renovação urbana que visavam apenas o lucro e o crescimento económico (Fig. nº10). Em resposta, consolida-se a importância acordada à dimensão urbana das intervenções e alarga-se o âmbito de atuação da reabilitação urbana. A abordagem da reabilitação passa “[...] de um modo de actuar em edifícios ao serviço da política de conservação do património arquitectónico, para um processo de intervenção em áreas urbanas degradadas e em declínio, que integra objectivos e ações em várias áreas setoriais, como instrumento privilegiado de várias políticas – em especial, das políticas de conservação do património urbano, de habitação, do ambiente e de desenvolvimento urbano” 50.

Figura nº10, CONSELHO DA EUROPA, Do desenvolvimento urbano às primeiras formas de reinvestimento urbano. Fonte: CONSELHO DA EUROPA – Guidance on Urban Rehabilitation. Strasbourg: Council of Europe Publishing, 2005. ISBN 92-871-5528-3. p.31. [T.d.A.]

Pinho 51 sublinha os impactes negativos a nível social dos processos de renovação e realojamento forçado, a que contrapõe os aspetos positivos da reabilitação de que aqui retemos:

49

Como exemplo, em Itália, em 1974, assistiu-se a uma greve geral em prol da reabilitação urbana. PINHO, Ana, 2009, op. cit., p. 157. 51 PINHO, Ana, 2009, op. cit., p. 157. 50

111

o O papel da reabilitação urbana como resposta para a crise de habitação; o O papel positivo da reabilitação a nível social, pela contribuição para a conservação das memórias urbanas, para a permanência das populações menos favorecidas nos centros, e para a salvaguarda da identidade dos lugares; o A importância da reabilitação como meio de inclusão social, bem como da participação da população nas fases do processo, para um bom decurso e sucesso a longo prazo das intervenções; o O contributo da reabilitação como alavanca para passar de uma abordagem quantitativa para uma abordagem qualitativa da habitação; o A importância em termos ambientais da reabilitação, por esta permitir economizar recursos; o O papel que a reabilitação tem em termos de promoção do desenvolvimento e da competitividade das áreas urbanas, implicando: o aumento da atratividade da cidade em termos de turismo e de negócios; a criação de emprego pela necessidade de mão-de-obra; a economia a nível de energia, de matérias-primas e de infraestruturas. Entre o 1980 e 1982 o Conselho da Europa promoveu a Campanha Europeia para o Renascimento das Cidades, ao longo da qual foram realizadas numerosas reuniões e cujo objetivo era o de sensibilizar os poderes públicos e a população para a promoção da qualidade de vida nas cidades. A Campanha tinha como foco principal quatro objetivos: a reabilitação dos edifícios habitacionais; a melhoria da qualidade do ambiente urbano; a participação dos cidadãos e a criação de oportunidades sociais e culturais nos centros urbanos. Como ato final deste ano foi organizada em Berlim 52 uma conferência geral que oferece as conclusões 53 retiradas pelas experiências decorridas ao longo da Campanha. Tomando consciência de que as cidades são organismos vivos e complexos, que cada uma delas possui caraterísticas e aspirações próprias mas que existe um consenso entre os Países da Europa para melhorar as cidades com base em princípios comuns, as conclusões da Conferência de Berlim definem dez grandes exigências a satisfazer para alcançar “cidades para viver”.

52 Conferência General Internacional da Campanha Europeia para o Renascimento das Cidades, Berlim Oeste, 8-12 Março de 1982. 53 Conclusões da Conferência General de Berlim (Berlim Oeste, 8-12 de Março 1982). Anexo VII, Conclusões. [Em Linha] [Consult. 2 Mai. 2010] Disponível em: http://ipce.mcu.es/pdfs/1982_Conferencia_Berlin.pdf

112

Os dez princípios expressos em Berlim são: 1. “A importância das cidades na sociedade europeia é inegável e irreversível; 2. A dimensão humana deve ser o factor dominante na gestão e desenvolvimento das cidades; 3. Uma maior participação do público na tomada de decisões constitui-se como uma prioridade urgente nos assuntos da cidade; 4. O papel das autoridades locais no ordenamento urbano tem que ser reforçado; 5. É necessário prever habitações sociais nas cidades; 6. A reabilitação é essencial para que o património construído constitua um recurso fundamental; 7. A melhoria do modo de vida urbano favorece um sentimento de identidade, reestabelece a confiança em si próprios e contribui para a regeneração social e económica; 8. As cidades devem continuar a ser centros de atividade económica; 9. A criação de equipamentos coletivos constitui um elemento essencial para a melhoria da qualidade de vida urbana; 10. A realização destes objetivos exige uma relocalização dos recursos” 54. O que se depreende destas conclusões é o facto de a cidade passar a ser considerada como um meio para conquistar a liberdade e a cultura, que permite multiplicar as possibilidades de ação da sociedade, aumentando os centros de interesse e de informação. Para tal os cidadãos devem ter uma atitude ativa. A cidade é vista não como um conjunto de elementos materiais mas sim como um elemento vivo ao serviço da comunidade. Neste sentido a reabilitação urbana passa a ser encarada não apenas como uma política de proteção do património urbano, mas também como uma forma de aproveitamento do mesmo em prol do desenvolvimento da sociedade. É reforçada a ideia (ponto 3) segundo a qual deve ser promovida a participação da população. Durante o ano dedicado à Campanha Europeia para o Renascimento das Cidades, o CMCE tinha adotado, neste sentido, a Recomendação (81) 18 55 que recomenda exatamente a adoção de uma política de promoção da participação na vida pública local 56.

54

Ibidem. Recomendação (81) 18 do Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre a participação ao nível municipal. 56 A este documento se seguem: Carta Europeia da Autonomia Local, Estrasburgo, 15 de Outubro de 1985; 55

113

Na sequência da Campanha Europeia para o Renascimento das Cidades em 1982 foi lançado um programa sobre política urbana que levou à uma ampla série de resoluções e recomendações 57 adotadas pela CPPLRE e pelo CMCE. Estes documentos abordam assuntos de natureza variada (social, ambiental, económico, cultural) com o intuito de responder aos desafios urbanos. Importa salientar o facto de o amplo leque de aspetos abordados nestes documentos ser o reflexo de uma nova abordagem de encarar as políticas urbanas. Toma-se consciência de que para alcançar a qualidade de vida urbana e o desenvolvimento local é necessária uma abordagem global e integrada de cooperação entre os vários sectores. Com base nas experiências e reflexões que se desenvolveram na década de oitenta, em 1992, a Conferência Permanente de Poderes Locais e Regionais da Europa (CPPLRE) lança a Carta Urbana Europeia 58, em simultâneo com a Declaração Europeia dos Direitos Urbanos. A Carta Urbana Europeia preocupa-se com os aspetos qualitativos do desenvolvimento urbano e da qualidade de vida, neste sentido inicia-se com a ′Declaração Europeia dos Direitos Urbanos′ 59 cuja finalidade é a de estender os direitos humanos ao ambiente urbano. São estabelecidos vinte direitos urbanos, que devem assistir todos os habitantes sem discriminação de algum tipo. Os direitos definidos são: segurança; um ambiente não poluído e saudável; emprego; habitação; mobilidade; saúde; exporte e lazer; cultura; integração multicultural; qualidade da arquitetura e do ambiente físico; harmonização das funções; participação; desenvolvimento económico; desenvolvimento sustentável; serviços e produtos; riquezas e recursos naturais; realização pessoal; colaboração intermunicipal; estruturas e mecanismos financeiros; igualdade.

Resolução 179 (1986) da Conferência Permanente dos Poderes Locais e Regionais da Europa sobre a participação das mulheres na vida democrática regional e local; Carta Europeia sobre a Participação de Jovens na Vida Local e Regional, adotada pela Resolução 237 (1992) da Conferência Permanente dos Poderes Locais e Regionais da Europa. 57 Para uma mais ampla descrição das resoluções e recomendações adotadas remanda-se para: CONSELHO DA EUROPA – Guidance on Urban Rehabilitation. Strasbourg: Council of Europe Publishing, 2005. ISBN 92-871-5528-3. pp.33-36. 58 European Urban Charter e The European Declaration of Urban Rights, adotadas pela Resolution 234 (1992) of the standing Conference of Local and Regional Authorities of Europe on the European Urban Charter. 59 Estes direitos abrangem as múltiplas dimensões da cidade, e se dividem nos pontos seguintes: segurança; ambiente despoluído e saudável; emprego; habitação; Mobilidade; saúde; desporto e lazer; cultura; integração multicultural; arquitetura e ambiente físico de boa qualidade; harmonização de funções; participação; desenvolvimento económico; desenvolvimento sustentável; bens e serviços; recursos e riquezas naturais; realização pessoal; colaboração intermunicipal; mecanismos e estruturas financeiras; igualdade. Fonte: European Urban Charter and The European Declaration of Urban Rights, 1992. op. cit., pp.3-4.

114

A Carta distancia-se dos modelos de cidade anteriores, definindo a imagem da cidade do futuro como sendo uma cidade capaz de alcançar um equilíbrio entre o desenvolvimento e a conservação do património e que seja capaz de conciliar as várias atividades que alberga sem limitar as escolhas a motivações puramente económicas: “Uma cidade ideal é aquela que é bem-sucedida na conciliação dos vários setores e atividades que nela têm lugar (trafego, requisitos ligados à habitação, trabalho e lazer); que salvaguarda os direitos cívicos; que reflete e é recetiva aos estilos de vida e atitudes dos seus habitantes; onde se tem em total consideração todos os que a utilizam, nela trabalham ou efetuam trocas, a visitam, nela procuram entretenimento, cultura, informação, conhecimento, nela estudam. Uma cidade deve ainda atingir um equilíbrio entre desenvolvimento moderno e conservação do património histórico; integrar o novo sem destruir o antigo; apoiar o princípio do desenvolvimento sustentável. Uma cidade sem o seu passado é como um homem sem memória. As pessoas deixam traços das suas vidas, do seu trabalho e da sua história pessoal nas cidades na forma de bairros, edifícios, árvores, igrejas, bibliotecas. Estes constituem o legado coletivo do passado, permitindo às pessoas ter um sentimento de continuidade nas suas vidas contemporâneas e prepararem-se para o futuro. As cidades devem funcionar e ser geridas, com a crença de que os problemas urbanos não podem ser limitados a mecanismos puramente financeiros ou da procura económica, nem por meios tradicionais de urbanismo funcional. Os Municípios devem procurar utilizar métodos extraídos de outras a experiência dos governos nacionais e/ou do setor privado” 60. A Carta Urbana Europeia desenvolve uma série de princípios gerais que, de uma forma global, se opõem ao modelo de cidade proposto pela Carta de Atenas do CIAM de 1933 e integram a reabilitação urbana com o objetivo de qualificar a cidade existente.

60

European Urban Charter and The European Declaration of Urban Rights, 1992. op. cit., p. 11, [T.d.A.], “An ideal city is one which succeeds in reconciling the various sectors and activities that take place (traffic, living working and leisure requirements); which safeguards civic rights; which ensures the best possible living conditions; which reflects and is responsive to the lifestyles and attitudes of its inhabitants; where full account is taken of all those who use it, who work or trade there, who visit it, who seek entertainment, culture, information, knowledge, who study there. A city must also strike a balance between modern development and retention of the historic heritage; integrate the new without destroying the old; support the principle of sustainable development. A town without its past is like a man without memory. People leave traces of their lives and their work and their personal history in cities, in the form of neighbourhoods, buildings, trees, churches, libraries. They constitute the collective legacy of the past, enabling people to feel a sense of continuity in their contemporary lives and prepare for the future. Cities must function and be managed, in the belief that urban problems cannot be limited to purely financial mechanisms or questions, nor by traditional means of functional town planning. Municipalities must seek to use methods drawn from other the experience of national governments and/or the private sector”.

115

É evidente o salto ideológico que se deu nas últimas décadas: a meta passa da conservação e restauro de monumentos para a reabilitação do património urbano com o fim de conciliar a dimensão física da cidade com a sua dimensão humana e social. A procura da coesão social passa a ser um dos objetivos principais das políticas urbanas, ao mesmo tempo que a participação por parte da população nas tomadas de decisão se torna uma das vias essenciais para alcançar os objetivos. Surge uma nova abordagem que pretende responder aos desafios sociais, culturais, económicos e ambientais de forma integrada, através da cooperação entre todos os atores envolvidos. Toma-se consciência do facto que a reabilitação do património arquitetónico não se limita à proteção dos elementos construídos mas desempenha também um papel fundamental no âmbito da coesão social, pois a manutenção do tecido edificado deve ser levada a cabo juntamente com a manutenção e desenvolvimento do tecido social, numa ótica de preservação dos valores culturais e sociais das comunidades envolvidas, bem como da promoção da melhoria das condições de vida da população e do desenvolvimento local. O foco move-se, deste modo, do objeto para o sujeito coletivo.

116

2.4 O desenvolvimento sustentável.

O ano de 1989 sinala um momento de extrema importância na história da Europa: com a queda do muro de Berlim e o colapso dos regimes comunistas, a Europa emerge de um longo período de divisão. Durante a década de noventa do século XX a União Europeia passa de vinte e dois Estados-membros para quarenta e quatro. Neste novo contexto geopolítico, a integração e o desenvolvimento económico tornam-se fatores que facilmente podem por em causa a coesão social e a proteção ambiental. Deste modo a UE vê-se perante a necessidade de readaptar os seus valores implementando estratégias de coesão social; manter os direitos humanos e aplicar princípios democráticos; desenvolver economias sustentáveis; proteger e fortalecer a diversidade paisagística e cultural; apoiar o desenvolvimento e a integração económicos, sociais e ambientais dos novos Estados-membros, preservando, ao mesmo tempo, a diversidade; desenvolver a cooperação entre as diferentes regiões europeias 61. Em resposta à força crescente dos processos de globalização, assiste-se a movimentos endógenos de afirmação das identidades locais e regionais 62. Deste modo, no seio da UE, o desafio para as cidades passa a ser a aplicação dos valores Europeus a nível local “[…] reforçando ao mesmo tempo a atração para os residentes, os turistas e os investidores para a construção de uma identidade cultural da cidade e de atividades endógenas[…]”63. Neste contexto o desenvolvimento sustentável ganha enorme importância. Na Carta Urbana Europeia 64 de 1992 é especificada a necessidade de apoiar o desenvolvimento sustentável. Este conceito surgiu em 1987 e refere-se a um “[...] desenvolvimento que permite a satisfação das necessidades da geração actual, sem comprometer a possibilidade de satisfação das necessidades das gerações vindouras”65.Em 1992 e em 1996, as Nações Unidas organizaram dois eventos fundamentais no âmbito do desenvolvimento sustentável: a Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida também como Cimeira da Terra, no Rio de

61

Fonte: Guidance on Urban Rehabilitation, 2005, op. cit., p.40. Cfra. cap. 1.3. 63 Guidance on Urban Rehabilitation, 2005, op. cit., p.40, [T.d.A.], “[...] while enhancing local attractiveness vis-à-vis residents, tourists and investors by building on a town’s or city’s cultural identity and endogenous assets [...]”. 64 European Urban Charter and The European Declaration of Urban Rights, adoptadas pela Resolution 234(1992) of the Standing Conference of Local and Regional Authorities of Europe on the European Urban Charter. 65 WCED – Relatório Brundtland, citado em: PAIVA, José, et al., 2006, op. cit., p.96. 62

117

Janeiro, de 2 a 3 de Junho de 1992, e a Segunda Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos Habitat II, em Istambul, de 3 a 14 de Junho de 1996. Nestes eventos, foram emitidos alguns documentos de grande relevância. Na Cimeira da Terra foram aprovados: o

A Declaração do Rio 66, na qual os países presentes (179) se comprometeram a seguir alguns princípios que tinham como objetivo a regulamentação dos direitos e responsabilidades de cada Estado na definição das políticas ambientais e de desenvolvimento. A ideia de base da Declaração é que o direito ao desenvolvimento tem de dar uma resposta equilibrada tanto às necessidades ambientais quanto às necessidades de desenvolvimento das populações atuais, tendo sempre presente os direitos das populações vindouras.

o

A Agenda 21 67, um plano de ação global a ser levado a cabo em todas as áreas nas quais a ação humana tem impacto no ambiente.

A Conferência Habitat II, com o objetivo de proporcionar “abrigo adequado para todos” e “desenvolvimento sustentável dos assentamentos num mundo em urbanização” 68, adotou um plano de ação global para o desenvolvimento dos assentamentos humanos. A implementação deste plano de ação exige que sejam tomadas medidas para assegurar os valores de transparência, capacitação e participação. Neste contexto, a reabilitação torna-se prioritária em relação à expansão e à nova construção, passando a integrar o principio de respeitar “[...] a escala, a natureza, o carácter e a capacidade do ambiente físico e do ambiente social do local e limitar o desenvolvimento às capacidades efectivas aí existentes” 69. Este princípio torna-se crucial no âmbito do turismo e da indústria do lazer, atividades em crescimento em toda a Europa. Toma-se consciência que, se por um lado o turismo (especialmente o cultural e o ecológico) representa uma oportunidade de desenvolvimento económico, por outro, esta atividade tende a danificar o valor intrínseco do ambiente natural e construído que

66 Rio Declaration on environment and development: 27 principles of right and responsibilities of nation in the pursuit of development and well-being of people. Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, Rio de Janeiro, 3 e 4 de Junho de 1992. 67 Agenda 21: A comprehensive plan of action for sustainable development in the social, economic and environmental point of view. Conferencia das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, Rio de Janeiro, 3 e 4 de Junho 1992. 68 Agenda Habitat II. Segunda Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos Habitat II, Istambul,3 a 14 Junho de 1996. Retirado de: PINHO, Ana – O papel da reabilitação no planeamento e na políticas urbanas. A visão do Conselho da Europa. Documento realizado no âmbito da iniciativa da Ordem dos Arquitectos “A cidade para o cidadão. O planeamento de pormenor em questão”. Lisboa: [s.n.] Novembro de 2005. 69 PAIVA, José, et al., 2006, op. cit., p. 99.

118

importa salvaguardar. De facto, o turismo de massa e não planificado pode pôr em risco tanto os recursos do território quanto a vida dos habitantes. Deste modo, o CMCE recomenda 70 que se implementem os princípios do turismo sustentável, que se entende como sendo “[...] qualquer forma de desenvolvimento ou atividade turística que respeite o ambiente, assegure a conservação a longo prazo dos recursos naturais e culturais, e seja económica e socialmente compensador e justo” 71. Percebe-se também a existência de uma potencial articulação económica entre reabilitação e turismo, sendo que parte das receitas advindas do segundo podem auxiliar o primeiro, desde que não ponham em causa a reabilitação, o património edificado e o tecido social. Como conclusão do Congresso dos Poderes Locais e Regionais – Estrasburgo, Maio 2000 – é adotada a Resolução 98 (2000) 72 sobre Cidades Históricas na Europa. Este documento reconhece a importância e unicidade do valor cultural das cidades históricas europeias e constata que estas se encontram em perigo por terem de enfrentar grandes desafios no início do terceiro milénio - um dos quais é a procura de equilíbrio entre preservação e desenvolvimento económico. Considerando que a proteção do que foi herdado do passado é um investimento no futuro, a Resolução recomenda às autoridades locais a adoção de intervenções sustentáveis na gestão das cidades históricas, em particular no que diz respeito a: o

Planeamento Urbano;

o

Economia;

o

Sociedade;

o

Finanças, recursos e parcerias;

o

Promoção e publicidade.

Num contexto de crescente globalização e com o alargamento do Conselho da Europa a novos Estados-membros, este Conselho assume a coesão social como uma das suas prioridades. Neste sentido, com a Recomendação (2000)1, encoraja a aplicação dos princípios expressos em Hannover, em 2000, no documento ′Princípios Orientadores para o Desenvolvimento Territorial Sustentável do Continente Europeu′. O objetivo destes princípios é aproximar a Europa de Leste e a Europa Ocidental, e

70

Recomendação R (94) 7 sobre política geral para o desenvolvimento turístico sustentável e amigo do ambiente. Comité de Ministros do Conselho da Europa; Recomendação R (95) 10. Comité de Ministros do Conselho da Europa. 71 PAIVA, José, et al., 2006, op. cit., p. 99. 72 Resolution 98 (2000) on historic towns in Europe. Congress of Local and Regional Authorities in Europe. Strasbourg, 23-25 Maio 2000. [Em Linha] [Consult. 2 Mai. 2010] Disponível em: http://www.minom-icom.net/_old/signud/DOC%20PDF/200000904.pdf.

119

“[...] definir as medidas de uma política de ordenamento do território que permita à população de todos os Estados membros do Conselho da Europa atingir um nível de vida aceitável. Trata-se de um requisito essencial para a estabilização das estruturas democráticas das regiões e municípios europeus [...] assegurar a participação activa de todas as regiões e municípios neste processo de integração e democratização europeias. [...] Estes princípios têm como principal objectivo a harmonização entre as expectativas económicas e sociais em relação ao território e as suas funções ecológicas e culturais, contribuindo assim para um desenvolvimento territorial equilibrado, a longo prazo e em grande escala”73. Os princípios orientadores para o desenvolvimento territorial expressos em Hannover são: I.

Promover a coesão territorial através de um desenvolvimento social e económico mais equilibrado das regiões e de uma maior competitividade;

II.

Incentivar o desenvolvimento gerado pelas funções urbanas e melhorar a relação cidade-campo;

III.

Promover uma acessibilidade mais equilibrada;

IV.

Desenvolver o acesso à informação e ao conhecimento;

V.

Reduzir os danos ambientais;

VI.

Valorizar e proteger os recursos naturais e o património natural;

VII.

Valorizar o património cultural como factor de desenvolvimento;

VIII.

Explorar os recursos energéticos com segurança;

IX.

Incentivar um turismo sustentável e de grande qualidade;

X.

Minimizar o impacto das catástrofes naturais.

No âmbito da Conservação e da Reabilitação, o princípio VII, que se refere à necessidade de valorizar o património cultural como factor de desenvolvimento, define que: “A valorização do património cultural torna as localidades e as regiões mais atractivas para os investidores, os turistas e o público em geral e contribui de forma significativa para o desenvolvimento económico e para o fortalecimento da identidade regional. A política de ordenamento do território deveria contribuir para a gestão integrada do património cultural, concebida como um processo evolutivo de protecção e conservação do património que, simultaneamente, não deixa de 73 CEMAT - Princípios Orientadores para o Desenvolvimento Territorial Sustentável do Continente Europeu, adotadas pela 12ª Conferência Europeia dos Ministros do Ordenamento do Território, Hanôver, 7 e 8 de Setembro 2000. pp.5-6.

120

ter em conta as necessidades da sociedade moderna. Muitos países possuem monumentos e vestígios das mais diversas escolas e tendências artísticas [...]. Não é apenas a conservação do passado que está em jogo, mas também a harmonia e a criatividade na relação espacial entre a arquitectura moderna, o desenho urbano e o património tradicional. [...]” 74. O texto define também medidas de ordenamento do território específicas para diferentes áreas 75, e apela ao reforço da cooperação entre Estados-membros e à participação dos poderes locais. Em conclusão, nesta época deu-se um impulso decisivo para a integração do conceito de desenvolvimento sustentável nas políticas europeias e internacionais. Para contrariar os efeitos negativos gerados pelo processo de globalização económica e cultural a noção de desenvolvimento sustentável ganha terreno, na procura de compatibilizar as aspirações sociais e económicas das comunidades, com a preservação e valorização dos recursos culturais e ambientais. Como afirma Pinho “[…] os conceitos de desenvolvimento sustentável e de exclusão social tiveram origem no reconhecimento das externalidades negativas geradas pela procura unilateral do crescimento económico” 76. O desenvolvimento sustentável passa a integrar não apenas a conciliação do crescimento económico com a proteção do ambiente, mas também objetivos sociais e culturais. Deste modo a reabilitação, juntamente com as políticas de proteção e salvaguarda, ganha uma nova dimensão aproximando as políticas ambientais e as culturais.

74

Ibidem, pp.11-12 Paisagens humanizadas; Áreas urbanas; Zonas rurais; Regiões de montanha; Regiões costeiras e insulares; Eurocorredores; Leitos de cheia e zonas inundáveis; Zonas industriais e militares desativadas; Regiões fronteiriças. 76 PINHO, Ana, 2009, op. cit., p.366. 75

121

2.5 Os desafios do novo milénio.

No início do terceiro milénio, juntamente com a evolução de processos começados nas décadas anteriores, o Conselho da Europa 77 sublinha a presencia de algumas mudanças no seio da sociedade europeia. Dentre estas mudanças realçam-se: o A nível político a adesão de quase todos os países da Europa central e oriental ao Conselho da Europa, implicando este fator a atribuição de uma força maior às cidades e às regiões; o Ao

nível

social

nota-se

o crescimento das

diferenças

económicas

acompanhado pelo perigo crescente por um lado de exclusão de parte da população, por outro do crescimento do poder de outras franjas de população. Esta situação é acompanhada pela diminuição das políticas socias e do aumento do individualismo; o A nível económico destacam-se a globalização, as economias baseadas no setor dos serviços e nas tecnologias da informação, e a preponderância do neoliberalismo; o A nível ambiental apresentam-se dificuldades para conter problemas como a poluição ou a mitigação de desastres, apesar da existência de numerosos acordos internacionais com o fim de promover a gestão sustentável do planeta; o A nível cultural, o aumento dos fluxos migratórios que, se por um lado traz benefícios, por outro pode provocar o aumento da tensão social e de atitudes racistas e, por consequente, o surgimento de conflitos 78. As cidades são o lugar onde estas mudanças são mais evidentes. Para que tais situações não se transformem em obstáculos para o desenvolvimento, o Conselho da Europa propôs-se alcançar metas como uma abordagem ética ao património e à cultura, a coesão territorial e o desenvolvimento sustentável. Com a passagem, alcançada nas décadas anteriores, de uma visão que trabalhava cada tema por si só para uma abordagem multissectorial, a reabilitação tornou-se essencial para cada uma destas temáticas. Neste contexto, em 2005 o Conselho da Europa define a Reabilitação Urbana como sendo: “[…] um processo de revitalização urbana a médio ou longo prazo.

77 78

Guidance on Urban Rehabilitation, 2005, op. cit., p.49. Fonte: Ibidem.

122

É sobretudo um ato político cujo objetivo é o de melhorar componentes do espaço urbano e o bem-estar e a qualidade de vidada das populações. Os seus desafios espaciais e humanos requerem a implementação de políticas locais (por exemplo política de conservação integrada do património, política de coesão e ordenamento territorial, política ambiental e de desenvolvimento sustentável). A reabilitação é assim parte de um projeto/plano de desenvolvimento urbano, exigindo uma abordagem integrada que envolva todas as políticas urbanas” 79. Nesta perspetiva, uma ação de reabilitação adota a conservação integrada do património como meio para melhorar a qualidade do território e, ao mesmo tempo, satisfazer as necessidades das populações nele residente, garantindo o acesso a uma habitação digna para todos; promovendo a coesão social e territorial; contribuindo para o desenvolvimento sustentável; favorecendo o desenvolvimento local e o respeito pela diversidade cultural. A reabilitação visa, em última instância, um maior bem-estar e qualidade de vida para a população. Esta abordagem pretende ser inclusiva e não discriminatória: “[...] interessa os residentes das áreas que precisam de ser reabilitadas e todos os que aí vão para trabalhar, estudar ou relaxar (tempo livre, turismo, turismo de negócios, etc.). É interesse de todos os indivíduos, grupos ou comunidades, independentemente da sua origem cultural, étnica ou religiosa. Favorece qualquer forma de diferença social (económica, racial, ocupacional, geracional), em conformidade com o princípio de não discriminação” 80. Os seus compromissos, do ponto de vista humano, são: o desenvolvimento local; a coesão social; o respeito pela diversidade cultural. Para cumprir tais compromissos, a reabilitação urbana precisa de políticas económicas, sociais e culturais adequadas. A reabilitação urbana “[...] requer uma abordagem multi-sectorial, integrada, coerente e coesa das políticas urbanas” 81. A fim de atingir os seus objetivos, a política de 79

CONSELHO DA EUROPA – Guidance on Urban Rehabilitation. Strasbourg: Council of Europe Publishing, 2005. ISBN 92-871-5528-3. p.75. [T.d.A.], “[…] a medium or long term urban revitalizing or regenerating process. It is above all a political act aimed at improving components of the urban space and improving the whole population’s well-being and quality of life. Its spatial and human challenges require the implementation of local policies (e.g. integrated conservation and heritage policy, spatial cohesion and spatial planning policy, sustainable development and environmental policy). Rehabilitation therefore forms part of an urban project / urban development plan, requiring an integrated approach involving all urban policies”. 80 Ibidem, p.88, [T.d.A.], “[…] concerns the residents of the areas requiring rehabilitation and in addition all who come there to work, study or relax (leisure tourism, business tourism, etc.). It is of relevance to all individuals, groups or communities irrespective of their cultural, ethnic or religious affiliations. It also favors every form of social variety (whether economic, racial, occupational or generational), in-keeping with the principle of non-discrimination”. 81 PAIVA, José, et Al., 2006, op. cit., p. 108.

123

reabilitação urbana deve integrar um conjunto de instrumentos operativos, que o Conselho da Europa sistematiza em sete pontos 82: o

A intervenção de reabilitação como parte integrante da política urbana;

o

Autoridades públicas como motor do processo;

o

Apoio de uma equipa técnica interdisciplinar;

o

Envolvimento da população;

o

Instrumentos legais apropriados;

o

Recursos financeiros disponíveis;

o

O fator tempo.

2.5.1 A abordagem ao património e à cultura: a diversidade cultural e

o turismo sustentável.

Com o propósito de sublinhar os avanços efetuados na política de conservação do património, em particular o “[...] alargamento da conservação integrada do planeamento urbano ao ambiente e da noção de património dos edifícios aos objectos, dos sítios arqueológicos aos museus, do património material ao imaterial de religiões, costumes, língua e música” 83, o Conselho da Europa lançou em 2000 a campanha ′Europa: uma Herança Comum′. De particular relevância é o facto de esta campanha ter intensificado o debate sobre a importância da autenticidade e da diversidade cultural em resposta à globalização e aos conflitos sociais. Estes temas já tinham sido abordados na Conferência de Nara de 1994. Considerando o contexto de globalização e homogeneização, o documento de Nara sublinha o papel da memória coletiva: “Num mundo que está crescentemente sujeito às forças da globalização e da homogeneização, e num mundo onde a procura da identidade cultural por vezes se exprime ligada a um nacionalismo agressivo e à supressão de culturas minoritárias […] a contribuição essencial do conceito de autenticidade na prática da conservação consiste em clarificar e pôr em destaque a memória colectiva da humanidade” 84.

82

CONSELHO DA EUROPA, 2005, op. cit., p.102. Recomendação 1465 (2000) da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa sobre “Europa: uma Herança Comum” – uma Campanha do Conselho da Europa. 84 Conferência sobre Autenticidade no que respeita à Convenção Mundial – Documento de Nara, Japão, 1994. Disponível em: AGUIAR, José – Estudos Cromáticos nas intervenções de conservação em centros 83

124

A diversidade cultural e patrimonial é vista como “[...] uma fonte insubstituível de riqueza espiritual e intelectual para toda a humanidade” 85 e deve ser promovida por ser um aspeto essencial do desenvolvimento humano. É de fundamental importância perceber que não existe apenas uma noção de autenticidade, porque “[t]odos os juízos sobre os valores atribuídos ao património assim como da credibilidade das fontes de informação podem diferir de cultura para cultura, e mesmo no seio da mesma cultura”. Por isso não é “[...] admissível basear juízos de valor e de autenticidade em critérios fixos. Pelo contrário, o respeito devido a todas as culturas exige que cada obra seja considerada e julgada dentro do contexto cultural a que pertence” 86. A Campanha ′Europa: uma herança comum′ parte dos princípios expressos em 1975 durante o ′Ano do Património Arquitectónico′, alargando a noção de conservação integrada, considerando que “[p]lanear, financiar, promover e até pensar sobre património cultural relaciona-se com a nossa abordagem para organizar áreas de política como a social, a económica e a educacional, assim como a do ambiente físico” 87. No âmbito desta Campanha ressalta-se a importância acordada à diversidade e à tolerância “[...] numa altura em que os conflitos em muitos dos países Europeus e do Médio Oriente demonstraram o quanto o património está ligado ao potencial para conflito, e a constatação que a protecção do património reclama partilha de responsabilidades, cooperação e solidariedade” 88. Ainda no âmbito da Campanha de 2000, o Comité de Ministros do Conselho da Europa adotou a Declaração sobre Diversidade Cultural 89, que parte do princípio de que o respeito pela diversidade cultural “[...] é uma condição essencial para a sociedade humana, e que o desenvolvimento de novas tecnologias de informação, a globalização e a evolução das políticas de comércio internacionais têm consequências para essa mesma diversidade” 90. A diversidade cultural tem uma importância acrescida na época contemporânea, dominada pelo mercado global, sendo essencial para permitir a coexistência de diferentes formas de expressão e pensamento.

históricos: Bases para a sua aplicação à realidade portuguesa. Évora: Universidade de Évora, 1999. Tese de Doutoramento. pp.A/9-A/10. 85 Ibidem. 86 Ibidem. 87 Relatório do Comité para a Cultura e Educação da Assembleia Parlamentar sobre Campanha do Conselho da Europa “Europa: uma Herança Comum”, Relatório de Campanha, 17 de Abril de 2000 (Doc. 8729). 88 PINHO, Ana – O papel da reabilitação no planeamento e nas políticas urbanas. A visão do conselho da Europa. Documento realizado no âmbito da iniciativa da ordem dos Arquitetos “A cidade para o cidadão. O planeamento de pormenor em questão”. Lisboa: [s.n.] Novembro de 2005. p.37. 89 Declaração sobre Diversidade Cultural, adotada pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa, a 7 de Dezembro de 2000. 90 Ibidem, p.37.

125

“No novo contexto da globalização, o património cultural pode assumir valores especiais, proporcionando referências e sentimentos de identidade. Esta valorização

das

identidades

locais

pode

tornar-se

factor-chave

no

desenvolvimento da coesão social e do orgulho cívico” 91. Apesar destes esforços, existe de facto uma problemática difícil de resolver relativamente à preservação do património cultural e da diversidade cultural. O património e a cultura têm uma relação profunda com a dimensão económica, e esta circunstância pode pôr em causa o direito de todos os indivíduos e comunidades usufruírem destes bens comuns. O ′perigo′ situa-se nas formas de utilização do património e da cultura como recurso para o desenvolvimento económico. Para compatibilizar os dois aspetos, é fundamental não pôr em causa o valor e a diversidade do património e da cultura. Um dos setores mais ligados à economia cultural e ao património urbano é o do turismo cultural. Por exemplo, o processo de turistic gentrification 92, que será analisado no capítulo 4 relativamente ao caso de estudo do Bairro Alto, é determinado por um processo de utilização do património para alcançar objetivos económicos privados em detrimento da salvaguarda dos interesses da população local. Em 2003, a Comissão Europeia alertou 93 para o facto de ser essencial garantir a sustentabilidade económica, social e ambiental do turismo na Europa e para a ocorrência de existirem, no âmbito do turismo sustentável, desafios ligados tanto aos modelos de consumo quanto aos modos de produção. Em Outubro de 2007, a Comissão aprovou a ′Agenda para um turismo europeu sustentável e competitivo′ 94. Os princípios aqui expressos para alcançar um turismo competitivo e sustentável são: o

“Adotar uma abordagem global e integrada, a fim de se chegar a um turismo equilibrado e que respeite a sociedade e o ambiente.

o

Planificar a longo prazo, velando pelas necessidades tanto das gerações futuras como das gerações atuais.

91

PAIVA, José, et al., 2006, op. cit., p. 103. Cfra. cap. 1.2. 93 Com(2003) 716 final, Comunicação da Commissão ao Conselho, ao Parlamento Europeu, ao Comitté Económico e Social Europeu e ao Commité das Regiões: Orientações de base para a sustentabilidade do turismo europeu. [Em Linha] [Consult. 2 Mai. 2010] Disponível em: http://db.formez.it/FontiNor.nsf/faf9e352d389be8fc1256bb900405812/A06022FEF67E8A3AC1256F9C003 71F37/$file/Comunicazione%202003%20n.716.pdf 94 Com(2007) 621 final, Comunicação da Comissão: Agenda para um turismo europeu sustentável e competitivo. [Em Linha] [Consult. 2 Mai. 2010] Disponível em: http://www.turismodeportugal.pt/Portugu%C3%AAs/turismodeportugal/CooperacaoInternacional/Anexos/C OM_2007_0621_F_PT_ACTE.pdf 92

126

o

Conseguir um bom ritmo de desenvolvimento, ou seja, que respeite as características dos destinos turísticos.

o

Fazer intervir todas as partes interessadas.

o

Utilizar os melhores conhecimentos disponíveis e partilhá-los através da Europa.

o

Minimizar e gerir os riscos, ou seja, evitar, de forma preventiva, qualquer efeito nefasto sobre o ambiente ou a sociedade.

o

Repercutir os efeitos nos custos (o utilizador e o poluidor devem pagar) - os preços deveriam refletir em maior grau os custos para a sociedade das atividades de consumo e de produção.

o

Caso necessário, fixar limites e respeitá-los - é, por vezes, necessário avaliar a capacidade de carga dos destinos turísticos e fixar limites à amplitude do desenvolvimento turístico.

o

Proceder a um controlo permanente - a sustentabilidade necessita de uma vigilância sem interrupção” 95.

O Tratado de Lisboa ou Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), assinado em 2007, reconhece de forma específica a importância do turismo no âmbito da UE. Com o artigo 195 do TFUE 96, a União Europeia propõe promover a competitividade e criar um ambiente favorável para o desenvolvimento das empresas do setor turístico e fomentar a cooperação entre os Estados Membros. Neste caso, também se pode notar o facto de o acento ser colocado no desenvolvimento do turismo e não na conservação do património. Na mesma linha se insere a Comunicação de 2010 ′Europa, primeiro destino turístico do mundo – novo quadro político para o turismo europeu′ 97, que, desde a

95 Síntese da Com(2007) 621 final. [Em Linha] [Consult. 2 Mai. 2010] Disponível em: http://europa.eu/legislation_summaries/enterprise/industry/l10132_pt.htm. 96 “1. A União completa a acção dos Estados-Membros no sector do turismo, nomeadamente através da promoção da competitividade das empresas da União neste sector. Para o efeito, a acção da União tem por objectivos: a) Incentivar a criação de um clima propício ao desenvolvimento das empresas neste sector; b) Fomentar a cooperação entre os Estados-Membros, nomeadamente através do intercâmbio de boas práticas. 2. O Parlamento Europeu e o Conselho, deliberando de acordo com o processo legislativo ordinário, estabelecem as medidas específicas destinadas a completar as acções desenvolvidas nos Estados-Membros para realizar os objectivos enunciados no presente artigo, com exclusão de qualquer harmonização das disposições legislativas e regulamentares dos Estados-Membros” União Europeia. Versões consolidadas do Tratado da União Europeia e do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Luxemburgo: Serviço das Publicações da União Europeia, 2010. ISBN: 978-92-824-2587-9. p.136. 97 Com(2010) 352 final, Comunicação da Comissão: Europa, primeiro destino turístico do mundo – novo quadro político para o turismo europeu. Bruxelas, 30 de Junho de 2010. [Em Linha] [Consult. 2 Ago. 2014] Disponível em:

127

introdução, realça a importância do turismo como “actividade económica essencial” sendo “o seu impacto no crescimento económico e no emprego na Europa […] muito positivo”. Apenas num segundo momento o documento afirma que o turismo é “uma actividade correlacionada com o património cultural e natural, bem como com as tradições e culturas contemporâneas da União Europeia” pelo qual “ilustra de maneira exemplar a necessidade de conciliar o crescimento económico e o desenvolvimento sustentável, prestando-se atenção à sua dimensão ética” 98. O turismo é visto como uma atividade económica de grande importância para a UE por ser gerador de crescimento e emprego e por contribuir para o desenvolvimento económico e social, sendo considerada a terceira atividade socioeconómica mais importante da UE – depois do setor do comércio e distribuição e do da construção. O objetivo principal da política europeia de turismo é “estimular a competitividade do sector, sem esquecer que, a longo prazo, a competitividade está estritamente ligada ao caracter ′sustentável′ do seu modo de desenvolvimento” deste modo é preciso ter em conta as “preocupações de cariz social, de coesão territorial e de proteção e valorização dos patrimónios naturais e culturais” 99 bem como ter atenção ao impacto que o turismo pode ter no âmbito das alterações climáticas. As ações que a UE se propõe para alcançar estes objetivos podem ser reunidas nos quatro eixos seguintes: o

“Estimular a competitividade do sector turístico na Europa;

o

Promover o desenvolvimento de um turismo sustentável, responsável e de qualidade;

o

Consolidar a imagem e a visibilidade da Europa como um conjunto de destinos sustentáveis e de qualidade;

o

Maximizar o potencial das políticas e dos instrumentos financeiros da UE para o desenvolvimento do turismo”100.

http://www.europarl.europa.eu/meetdocs/2009_2014/documents/com/com_com(2010)0352_/com_com(20 10)0352_pt.pdf. 98 Ibidem, p.2. 99 Ibidem, pp.6-7. 100 Ibidem, p.7.

128

Em relação à cultura, cuja importância é realçada também no TFUE 101, em 2007 é proposta uma nova ′Agenda Europeia para a Cultura′ 102, que propõe responder aos desafios da globalização. Com a nova estratégia europeia, pretende-se intensificar a cooperação cultural na UE, centrada numa série de propostas concretas tendentes a realizar um conjunto de objetivos comuns. Define-se um conceito de cultura abrangente, no qual é essencial o papel do diálogo intercultural: “A cultura encontra-se no cerne do desenvolvimento humano e da civilização. Cultura é aquilo que leva as pessoas a ter esperança e a sonhar, estimulando-lhes os sentidos e facultando-lhes novas maneiras de encarar a realidade. É aquilo que congrega as pessoas, suscitando o diálogo e despertando paixões, de uma maneira que une em vez de dividir. A cultura deveria ser vista como um conjunto de traços distintivos espirituais e materiais que caracterizam uma sociedade e um grupo social. Abarca a literatura e as artes, assim como modos de vida, sistemas de valores, tradições e crenças” 103. Os objetivos da nova Agenda europeia para a cultura articulam-se em torno de três prioridades: o “Diversidade cultural e diálogo intercultural; o Dinamização da criatividade no âmbito da Estratégia de Lisboa para o crescimento e o emprego; o Dimensão cultural como elemento vital nas relações internacionais” 104.

101

“Artigo nº 167: 1. A União contribuirá para o desenvolvimento das culturas dos Estados-Membros, respeitando a sua diversidade nacional e regional, e pondo simultaneamente em evidência o património cultural comum. A acção da União tem por objectivo incentivar a cooperação entre Estados-Membros e, se necessário, apoiar e completar a sua acção nos seguintes domínios: o Melhoria do conhecimento e da divulgação da cultura e da história dos povos europeus; o Conservação e salvaguarda do património cultural de importância europeia; o Intercâmbios culturais não comerciais. o Criação artística e literária, incluindo o sector audiovisual. 3. A União e os Estados-Membros incentivarão a cooperação com os países terceiros e as organizações internacionais competentes no domínio da cultura, em especial com o Conselho da Europa. 4. Na sua acção ao abrigo de outras disposições dos Tratados, a União terá em conta os aspectos culturais, a fim de, nomeadamente, respeitar e promover a diversidade das suas culturas. 5. Para contribuir para a realização dos objectivos a que se refere o presente artigo: o O Parlamento Europeu e o Conselho, deliberando de acordo com o processo legislativo ordinário e após consulta do Comité das Regiões, adoptam acções de incentivo, com exclusão de qualquer harmonização das disposições legislativas e regulamentares dos Estados-Membros; o O Conselho adopta, sob proposta da Comissão, recomendações”. Fonte: União Europeia. Versões consolidadas do Tratado da União Europeia e do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Luxemburgo: Serviço das Publicações da União Europeia, 2010. ISBN: 978-92-824-2587-9. Pp.121-122.. 102 Com(2007) 427 final, Comunicação da Comissão sobre uma agenda europeia para a cultura num mundo globalizado. 10 de Maio de 2007. [Em Linha] [Consult. 2 Ago. 2014]. Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/ALL/?uri=CELEX:52007DC0242. 103 Ibidem, p.2. 104 Síntese da Com(2007) 427 final. [Em Linha] [Consult. 2 Ago. 2014]. Disponível em: http://europa.eu/legislation_summaries/culture/l29019_pt.htm.

129

Como definido no capítulo 1.3, as tendências atuais de homogeneização provocadas pelo processo de globalização põem em causa a diversidade cultural, as identidades locais e a própria liberdade do individuo. Neste contexto a promoção da diversidade cultural assume um papel fundamental e a reabilitação urbana é um instrumento para a alcançar. O tema da diversidade cultural e da necessidade da sua salvaguarda assumiu grande importância também a nível das instituições mundiais. Em 2002 a UNESCO adotou a Declaração Universal sobre Diversidade Cultural 105 e, em 2003, a Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial 106. Os objetivos propostos pela UE em matéria de turismo e de cultura estão ligados à estratégia económica da União para a ′Europa 2020′ 107, através da qual a UE visa alcançar “uma economia inteligente, sustentável e inclusiva, que proporcione níveis elevados de emprego, de produtividade e de coesão social” 108. A UE encontra-se num período de transformação resultante de vários fenómenos – globalização, alterações climáticas, envelhecimento da população, entre outros – e enfrenta os resultados da crise financeira de 2008 que colocou em causa os processos sociais e económicos até então realizados. Neste contexto, em 2010 propõem-se uma série de reformas cujo objetivo é o de assegurar o desenvolvimento sustentável da UE até 2020. O papel atribuído ao turismo e à cultura neste âmbito centra-se na sua promoção como catalisadores de criatividade, emprego e crescimento sustentável.

105

UNESCO – Declaração Universal sobre Diversidade Cultural. 2002. [Em Linha] [Consult. 2 Mai. 2010] Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf 106UNESCO – Textos Base: Convenção de 2003 para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial. 2012. [Em Linha] [Consult. 2 Mai. 2010] Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0021/002181/218142por.pdf “Entende-se por “patrimônio cultural imaterial” as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. Para os fins da presente Convenção, será levado em conta apenas o patrimônio cultural imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais de direitos humanos existentes e com os imperativos de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos, e do desenvolvimento sustentável”. p.5. 107 Com(2010) 2010 final, EUROPA 2020. Estratégia para um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo. [Em Linha] [Consult. 2 Ago. 2014] Disponível em: http://www.umic.pt/images/stories/publicacoes3/UE2020_COM_final.pdf 108 Ibidem, p.5.

130

2.5.2 Coesão Territorial e Desenvolvimento Sustentável.

Apesar dos grandes avanços nas teorias e nas práticas realizados na década de noventa do século XX, Pinho 109 sublinha como, no início do novo milénio, se assistiu à coexistência de tendências contraditórias e a um afastamento entre teorias e práticas a nível europeu, e afirma que “[o]s problemas ambientais, sociais e económicos agravaram-se, aumentando e agudizando os problemas das áreas urbanas degradadas e em declínio”. Sendo numerosos os fatores que causaram esta situação – desde as alterações sociais e demográficas, à globalização, à situação económica, entre outros – um fator importante foi “[o] recuo nos compromissos políticos assumidos na década de noventa para com o combate à exclusão social e a promoção activa do desenvolvimento sustentável” 110. No entanto, existem diferenças na forma como foram abordados os vários aspetos do desenvolvimento sustentável. Em relação às questões que se referem à proteção do ambiente, em 2000 assinou-se, em Florença, à primeira Convenção Europeia da Paisagem 111 e, em 2008, o CMLE adotou as diretrizes para a sua implementação através da Recomendação (2008) 3 112. Abordando a paisagem como elemento fundamental para a qualidade de vida das populações, em qualquer parte do território, por contribuir para a formação de culturas locais e representar uma “componente fundamental do património cultural e natural europeu”, a Convenção de 2000 constata que “a paisagem desempenha importantes funções de interesse público, nos campos cultural, ecológico, ambiental e social, e constitui um recurso favorável à actividade económica, cuja protecção, gestão e ordenamento adequados podem contribuir para a criação de emprego” e que as alterações nas técnicas de produção, na gestão do ordenamento do território, do urbanismo – entre outros – e, de uma forma mais geral, as alterações produzidas pela economia mundial “estão em muitos casos a acelerar a transformação das paisagens” 113. Passando a considerar a paisagem como sendo “uma parte do território, tal como é apreendida pelas populações, cujo caracter resulta da acção e da interação de factores naturais e ou humanos” 114, a Convenção Europeia da Paisagem tem por

109

PINHO, Ana, 2009, op. cit., p.717. Ibidem, p.717. 111 Convenção Europeia da Paisagem. Florença, 20 de Outubro de 2000. [Em Linha] [Consult. 2 Mai. 2010] Disponível em: http://www.gddc.pt/siii/docs/dec4-2005.pdf. 112 Recommendation (2008) 3 of the Committee of Ministers to member states on the guidelines for the implementation of the European Landscape Convention. [Em Linha] [Consult. 2 Mai. 2010] Disponível em: http://www.coe.int/t/dg4/cultureheritage/heritage/landscape/versionsorientation/anglais.pdf. 113 Convenção Europeia da Paisagem, 2000. op. cit., pp.1-2. 114 Ibidem, p.2. 110

131

objetivo a promoção da proteção, da gestão e do ordenamento da paisagem, organizando a cooperação europeia neste domínio. A qualidade da paisagem passa a ser considerada como um elemento fundamental para o bem-estar social e individual. Como sublinha Pinho, na “transição entre uma política baseada na proteção de características e partes do território reconhecidas como excepcionais, para uma política direcionada para a qualidade de todo o ambiente da vida quotidiana, quer este seja excepcional, comum ou degradado, a reabilitação urbana emergiu como um instrumento fundamental” 115, passando a ser integrada nas fases de preservação, gestão e ordenamento da paisagem. A dimensão territorial do desenvolvimento sustentável foi trabalhada sobretudo na procura da coesão territorial, “em especial mediante a redução das assimetrias, a promoção do desenvolvimento policêntrico e a criação de redes” 116. A coesão territorial foi incluída em 2007 como um dos grandes objetivos políticos da UE, a par da coesão social e económica, com a assinatura do Tratado de Lisboa. A esta seguiu-se o ′Livro Verde sobre a Coesão Territorial Europeia - Tirar Partido da Diversidade Territorial′, adotado pela Comissão Europeia em Outubro de 2008. Neste segundo documento, é reforçada a importância da coesão territorial por contribuir para alcançar o desenvolvimento harmonioso de todos os territórios da UE, que se constituem como territórios extremamente diversificados entre eles, e por contribuir para dar a possibilidade aos seus habitantes de tirar o melhor partido possível de cada um deles. Nesta linha de pensamento, “[…] a coesão territorial é um factor de conversão da diferença em vantagem, contribuindo, assim, para o desenvolvimento sustentável de toda a UE. Enquanto objectivo a atingir, a coesão territorial está intimamente ligada a temáticas como sejam […] a promoção de cidades sustentáveis e globalmente competitivas, a resolução dos problemas de exclusão social existentes em algumas zonas de certas regiões mas alargadas e em bairros urbanos desfavorecidos, a melhoria do acesso à educação, aos cuidados de saúde e à energia em regiões remotas, e as dificuldades que certas regiões suportam devido à sua geografia específica” 117.

115

PINHO, Ana, 2009, op. cit., p.718. Ibidem, p.718. 117 Livro Verde sobre a Coesão Territorial Europeia - Tirar Partido da Diversidade Territorial, adotado pela Comissão Europeia em Bruxelas a 6 de Outubro de 2008. [Em Linha] [Consult. 2 Mai. 2010] Disponível em: http://www.dgotdu.pt/ue/LivroVerdeTC_pt.pdf. p. 3. 116

132

Pinho alerta para a existência da questão fundamental da intervenção pública “ao nível da coesão territorial e da reabilitação” ser efetuada “com base no argumento que o mercado não dá resposta aos problemas com que se deparam as áreas mais desfavorecidas” que não têm a capacidade de inverter, sem apoios externos, as dinâmicas de declínio. Aliás, as áreas de oportunidade “são as que captam mais investimento do setor privado”. Nesta situação “levanta-se a questão sobre se é ou não legítima a intervenção pública nas áreas mais competitivas” enquanto a dotação de recursos públicos extra para as áreas mais desfavorecidas seria justificada pela existência de “um desequilíbrio instalado que só pode ser contrabalançado pela acção do Estado” 118. O desenvolvimento urbano sustentável veio a assumir uma grande importância no que diz respeito às cidades. No seguimento da Reunião Informal de Ministros sobre Desenvolvimento Urbano e Coesão Territorial de 24 e 25 de Maio de 2007, foram adotados dois documentos: a ′Carta sobre cidades europeias sustentáveis′, ou ′Carta de Leipzig′ 119, e a ′Agenda Territorial para a União Europeia′. As principais recomendações expressas na Carta de Leipzig são: o

Reforçar as abordagens da política de desenvolvimento urbano integrado, sobretudo no que diz respeito à: criação e preservação de espaços públicos de qualidade; modernização das redes de infra-estruturas e melhoria da eficiência energética; políticas ativas em matéria de inovação e educação.

o

Dar uma atenção acrescida às questões relativas aos bairros desfavorecidos no contexto da cidade, perseguindo estratégias para melhorar o ambiente físico, reforçando a economia local e a política local de mercado de trabalho, adotando políticas ativas em matéria de educação e de formação de crianças e jovens, promovendo transportes urbanos eficientes e a preços razoáveis.

Como evidencia Pinho, estas duas mensagens “reforçam a importância dos processos integrados de reabilitação urbana para o desenvolvimento das cidades na actualidade” 120. A Agenda Territorial para a União Europeia constitui-se como um quadro de referência que defende o princípio segundo o qual a dimensão territorial deve ter um

118

PINHO, Ana, 2009, op. cit., pp. 719-720. Carta de Leipzig sobre as Cidades Europeias Sustentáveis , Adoptada na reunião informal dos Ministros responsáveis pelo Desenvolvimento Urbano e Coesão Territorial, em 24 e 25 de Maio de 2007, em Leipzig. [Em Linha] [Consult. 2 Mai. 2010] Disponível em: http://politicadecidades.dgotdu.pt/docs_ref/Documents/Coopera%C3%A7%C3%A3o%20Internacional/Cart a%20de%20Leipzig.pdf 120 PINHO, Ana, 2009, op. cit., p.700. 119

133

papel maior na política de coesão, para que esta possa dar melhores respostas às necessidades territoriais e às oportunidades das diferentes regiões e cidades. Em 2011 realizou-se uma nova Reunião Informal de Ministros sobre Desenvolvimento Urbano e Coesão Territorial, na sequência da qual foi aprovada a ′Agenda Territorial para a União Europeia 2020′, que define seis prioridades territoriais: o “Promover um desenvolvimento territorial policêntrico e equilibrado; o Estimular o desenvolvimento integrado nas cidades no meio rural e em áreas específicas; o Integrar

territorialmente

as

regiões

funcionais

transfronteiriças

e

transnacionais; o Assegurar a competitividade global das regiões baseada em economias locais fortes; o Melhorar a conectividade territorial para os indivíduos, comunidades e empresas; o Gerir e interligar os valores ecológicos paisagísticos e culturais das regiões” 121. A nova Agenda, atualizando a de 2007, enfatiza a importância do local e da adaptação à sua diversidade e preconiza o estímulo a abordagens experimentais na implementação e desenvolvimento da política de coesão territorial. A Agenda liga-se ao Tratado de Lisboa (TFUE) assinado em 2007, com o qual a coesão territorial passou a ter a mesma importância que a coesão económica e a coesão social, e à ′Estratégia Europa 2020′, de 2010. Paralelamente, também a questão da habitação começou a ganhar mais espaço nas políticas da UE. Em Abril de 2006 foi adotada, pelo Intergrupo URBAN-Housing do

121

Territorial Agenda of the European Union 2020 - Towards an Inclusive, Smart and Sustainable Europe of Diverse Regions. Agreed at the Informal Ministerial Meeting of Ministers responsible for Spatial Planning and Territorial Development on 19th May 2011 Gödöllő, Hungary. [Em Linha] [Consult. 2 Jul. 2010] Disponível em: http://www.dgotdu.pt, pp.6-8, [T.d.A.], o “Promote polycentric and balanced territorial development; o Encouraging integrated development in cities, rural and specific regions; o Territorial integration in cross‐border and transnational functional regions; o Ensuring global competitiveness of the regions based on strong local economies; o Improving territorial connectivity for individuals, communities and enterprises; o Managing and connecting ecological, landscape and cultural values of regions”.

134

Parlamento Europeu 122, uma ′Proposta de Carta Europeia para a Habitação′ 123. Um dos objetivos principais do documento foi lançar, a nível europeu, um debate sobre a política de habitação e sobre o papel a desempenhar pela EU nesta matéria. O texto reforça também alguns princípios fundamentais como o direito a uma habitação digna, saudável e a custos acessíveis. Destaca-se, no contexto deste trabalho, a importância atribuída pelo documento ao papel da reabilitação da habitação social, bem como a proposta de encorajar a implementação de medidas para colocar no mercado os fogos devolutos ou desadequados, encorajando a sua reabilitação. A ′Proposta de Carta Europeia para a Habitação′ foi apoiada, no mesmo ano, pelo Comité das Regiões no seu parecer ′Housing And Regional Policy′ 124, que sublinha o facto de o acesso a uma habitação digna para todos ser um pré-requisito fundamental para alcançar maior crescimento e competitividade dentro da UE. O parecer apresenta também uma série de recomendações, entre as quais se destacam, pela relevância no âmbito deste trabalho, as seguintes: o “Dar à habitação uma posição privilegiada em todas as políticas urbanas da UE; o Incluir a reabilitação do património habitacional como linha de ação prioritária na diretiva da UE sobre eficiência energética, promovendo a plena ocupação das habitações existentes e evitando a continuação da expansão urbana; o Incentivar a participação dos cidadãos nos processos de reabilitação, especialmente em bairros degradados onde é muitas vezes necessário recuperar o espírito de comunidade; o Reforçar o reconhecimento do papel das associações de moradores, cuja flexibilidade e relação direta com as comunidades lhes permite fornecer soluções adequadas às necessidades dos residentes;

o Formar a população local nas aptidões necessárias para melhorar as suas áreas habitacionais, criar espaços verdes e aumentar a eficiência energética,

122 “The URBAN Intergroup at the European Parliament is a cross-parties and cross-committees grouping with a horizontal approach to discuss urban related issues. We bring together over 70 MEPs representing most EU Member States, all the political groups at the European Parliament, and working in all the parliamentary committees. We work with nearly 100 partners from local, regional, national and European level that represent the interests of Europe’s town and cities or work in the domain relevant for urban development. […] The URBAN Intergroup (previously “URBAN-Housing”) was set up and is working successfully since 2005 to ensure that urban related problems are reflected in European Parliament’s decisions”. Fonte: [Em Linha] [Consult. 2 Jul. 2013] Disponível em: http://urban-intergroup.eu/about-us/ 123 European Parliament, URBAN-Housing Intergroup- Proposal ofa European Charter for Housing. [Em Linha] [Consult. 2 Jul. 2010]. Disponível em: http://www.iut.nu/EU/Housing%20Charter/HousingCharterENG_040406.pdf 124 Commité of Regions - OPINION of the Committee of the Regions - HOUSING AND REGIONAL POLICY. 68th plenary session 13 and 14 February 2007. CdR 345/2006.

135

com vista não só a auxiliar os bairros em declínio como também a aumentar o emprego” 125.

A Comissão Europeia tem vindo a desenvolver várias ações, que se concluíram em Dezembro de 2013 com a adoção de um pacote legislativo que enquadra a Política de Coesão para o período 2014-2020 126, concebido para impulsionar o crescimento e o emprego nos Países Membros, enquadrando simultaneamente o investimento da UE na Estratégia para o Crescimento e o Emprego ′Europa 2020′. Neste âmbito é dada relevância ao Desenvolvimento Urbano Sustentável Integrado. Considerando que as cidades são o motor da economia europeia e são, ao mesmo tempo, catalisadores de criatividade e inovação, mas representam também os lugares onde mais se acentuam problemas como o desemprego, a segregação e a pobreza, considera-se que as políticas adotadas em relação às áreas urbanas têm uma grande importância no âmbito da UE. Estando as diferentes dimensões da vida urbana – ambientais, económicas, sociais e culturais – interligadas, “o êxito do desenvolvimento urbano apenas poderá ser alcançado através de uma abordagem integrada”. Por estas razões: “[a]s medidas relacionadas com a renovação do espaço físico urbano têm de ser combinadas com medidas que promovam a educação, o desenvolvimento económico, a inclusão social e a proteção do ambiente. Por outro lado, o

125 LNEC, Laboratorio Nacional de Engenharia Civil - Estudo sobre “Habitação, Reabilitação Urbana e Inovação Social no quadro da Política de Coesão pós 2013” Relatório Final. [Em Linha] [Consult. 2 Jul. 2014] Disponível em: www.observatorio.pt/download.php?id=731. p.43. 126 Política de Coesão para o período 2014-2020. [Em Linha] [Consult. 2 Jul. 2014] Disponível em: http://ec.europa.eu/regional_policy/what/future/index_pt.cfm Regulamento (UE) 1303/2013 Do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de dezembro de 2013 que estabelece disposições comuns relativas ao Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional, ao Fundo Social Europeu, ao Fundo de Coesão, ao Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural e ao Fundo Europeu dos Assuntos Marítimos e das Pescas, que estabelece disposições gerais relativas ao Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional, ao Fundo Social Europeu, ao Fundo de Coesão e ao Fundo Europeu dos Assuntos Marítimos e das Pescas, e que revoga o Regulamento (CE) nº 1083/2006 do Conselho. [Em Linha] [Consult. 2 Jul. 2014] Disponível em: http://eur-lex.europa.eu O artigo nº1 deste regulamento define os regulamentos específicos dos Fundos, que são:

o

Regulamento (UE) nº 1301/2013 (“Regulamento FEDER”);

o

Regulamento (UE) nº 1304/2013 (“Regulamento FSE”);

o

Regulamento (UE) nº

o

1300/2013 (“Regulamento FC”)

o

Regulamento (UE) nº 1299/2013 (“Regulamento CTE”);

o

Regulamento (UE) nº 1305/2013 (“Regulamento FEADER”);

o

Um futuro ato jurídico da União que estabelecerá o regime de apoio financeiro à política dos assuntos marítimos e das pescas para o período 2014-2020.

Na sequência destes Regulamentos, durante o ano de 2014 a Comissão Europeia adotou acordos de parceria com todos os Estados Membros, para definir as estratégias para otimizar a utilização dos Fundos Europeus Estruturais e de Investimento da UE em cada país. A 30 de Julho de 2014 foi assinado o acordo de parceria para Portugal 2014-2020.

136

desenvolvimento de parcerias sólidas entre os cidadãos locais, a sociedade civil, a economia local e os vários níveis de governação também é condição prévia” 127. No momento atual as cidades europeias têm de enfrentar desafios como as alterações demográficas, as consequências da estagnação económica em termos de criação de empregos e progresso social, o impacto das alterações climáticas, entre outros. A UE considera de fundamental importância encontrar resposta a tais desafios para concretizar a sociedade inteligente, sustentável e inclusiva prevista na Estratégia Europa 2020. Neste contexto “as propostas da Comissão Europeia para a ′Política de Coesão 2014-2020′

visam

fomentar

políticas

urbanas

integradas

para

melhorar

o

desenvolvimento urbano sustentável tendo em vista o fortalecimento do papel das cidades no contexto da política de coesão” 128.

2.5.3 A atratividade das cidades.

Apesar de se encontrar referenciado, em numerosos documentos, o princípio de que é necessário alcançar um equilíbrio entre os quatro pilares do desenvolvimento sustentável (económico, social, ambiental e cultural), existe a tendência segundo a qual os objetivos económicos são colocados na frente dos outros fatores especialmente, das dimensões social e cultural. Esta situação é particularmente evidente no âmbito da atratividade das cidades, que “tornou-se um dos objectivos centrais das políticas urbanas no início do séc. XXI” 129. Nos últimos anos foram publicados numerosos documentos sobre as cidades, entre os quais se destacam a Nova Carta de Atenas 130 de 2003 e a Carta Urbana Europeia 131 de 2008. Estes documentos, apesar de atribuírem grande importância à qualidade arquitetónica e urbanística das cidades, proporcionam também uma justificação económica para investimentos na qualificação e conservação do património urbano. Esta circunstância não terá trazido apenas oportunidades mas também ameaças, pois “o valor que passou a ser reconhecido às áreas centrais […] levou a um ressurgimento de fortes pressões sobre os centros urbanos” 132.

127

Desenvolvimento Urbano Sustentável. Ficha Informativa. [Em Linha] [Consult. 2 Jul. 2014]. Disponível em: http://ec.europa.eu/regional_policy/sources/docgener/informat/2014/urban_pt.pdf. p.2 128

Ibidem, p.2. PINHO, Ana, 2009, op. cit., p.723. 130 Conselho Europeu de Urbanistas - A Nova Carta de Atenas 2003. A Visão do Conselho Europeu de Urbanistas sobre as Cidades do séc. XXI. Lisboa: Multitipo, Artes Gráficas, Lda, 2003. [s. ISBN]. 131 Resolution 269 (2008) of the Congress of Local and Regional Authorities on European Urban Charter II - Manifesto for a new urbanity. [Em Linha] [Consult. 2 Jul. 2013]. Disponível em: https://wcd.coe.int 132 PINHO, Ana Cláudia da Costa, 2009, op. cit., p.723. 129

137

Em Maio 1998 foi traçada, em Atenas, uma nova Carta do Conselho Europeu de Urbanistas, em substituição da Carta de Atenas assinada, na mesma cidade, em 1933. A Nova Carta, revista e atualizada em Lisboa em 2003, delineia a visão do Conselho sobre as cidades do séc. XXI. A Carta dirige-se aos urbanistas europeus e oferece “uma Visão partilhada e colectiva sobre o futuro das cidades europeias”133. Esta ′visão′ baseia-se na ideia de uma rede de cidades (europeias) que: o

“Conservarão a sua riqueza cultural e a sua diversidade, resultantes da sua longa história;

o

Ficarão ligadas entre si por uma multitude de redes, plenas de conteúdos e de funções úteis;

o

Permanecerão criativas e competitivas, mas procurarão, simultaneamente a complementaridade e a cooperação;

o

Contribuirão de maneira decisiva para o bem-estar dos seus habitantes e, num sentido mais lato, de todos os que as utilizam” 134. Esta ′visão′ é completada por uma reflexão sobre as “principais questões e

desafios que afectam as cidades no princípio do séc. XXI” 135 e pela apresentação de uma série de compromissos considerados necessários para alcançar o que foi delineado na ′visão′ das cidades do século XXI. O objetivo da carta é orientar os urbanistas europeus, considerados especialistas polivalentes

(humanistas,

cientistas,

planeadores

visionários,

gestores

e

administradores urbanos), “[…] nas suas acções, de modo a assegurar maior coerência na construção de uma rede de cidades com pleno significado e a transformar as cidades europeias em cidades conectadas 136, a todos os níveis e em todos os domínios” 137. As cidades do séc. XXI serão então cidades conectadas entre elas, funcionando em rede, com o objetivo de serem competitivas, pois: “[…] as cidades mais bem sucedidas economicamente serão aquelas que souberem capitalizar as suas vantagens competitivas. Dispor de um elevado grau de inter-relação a vários níveis será um grande trunfo. Para uma cidade que procure a conectividade, capitalizar os seus atributos culturais e naturais, gerindo

133 Conselho Europeu de Urbanistas - A Nova Carta de Atenas 2003. A Visão do Conselho Europeu de Urbanistas sobre as Cidades do séc. XXI. Lisboa: Multitipo, Artes Gráficas, Lda, 2003. [s. ISBN]. p. 1. 134 Ibidem, p.1. 135 Ibidem, p.1. 136 Como nota Pinho (2009, op. cit., p.457) a palavra ′connected′ da versão original em inglês da Carta de Atenas de 2003 foi traduzida em português com a palavra ′coerente′. Seguindo o pensamento de Pinho, considera-se que a tradução literária do original inglês (connected = conectada) seja mas fiel ao espirito da Carta. Pelo qual, apesar das citações aqui apresentadas da Nova Carta de Atenas se referirem à versão em língua portuguesa, optou-se por substituir a palavra ′coerente′ pela palavra ′conectada′, e similares. 137 Conselho Europeu de Urbanistas - A Nova Carta de Atenas 2003. 2003, op. cit. p.1.

138

os valores herdados da História, promovendo a sua singularidade e diversidade, tornar-se-á cada vez mais uma vantagem significativa. Pela mesma razão, a oferta de um quadro de vida e de trabalho agradável, são e seguro, aumentará consideravelmente, no futuro, a possibilidade das cidades se manterem atractivas em

resposta

económicas”

às

exigências

crescentes

solicitadas

pelas

actividades

138

.

Relativamente à perspetiva geral apresentada pela Nova Carta de Atenas, na linha de pensamento de Raposo 139, esta sintetiza as críticas e as reflexões surgidas em relação à Carta de 1933, e engloba as novas noções teóricas e práticas surgidas para diminuir os conflitos políticos e sociais que apareceram no seio da economia global. Todavia “inspira-se no que se passa nos países desenvolvidos” e tem por base “[…] uma visão de estabilidade do sistema capitalista e de seu reequilíbrio permanente, que não toma em conta as grandes assimetrias regionais e urbanas, nem

as

enormes

extensões

periurbanas

imersas

em

precariedade,

particularmente expressivas nas grandes cidades do Sul, nem os diferentes interesses, racionalidades, estratégias e práticas dos diversos actores da cidade” 140. Trata-se, portanto, de uma visão eurocêntrica que não considera todo o leque de problemáticas e realidades presentes na ′cidade contemporânea′. A outra Carta de extrema importância adotada na última década é a já referenciada Carta Urbana Europeia II. O Congresso dos Poderes Locais e Regionais da Europa em 2008 decidiu reformular alguns dos princípios enunciados na Carta Urbana Europeia de 1992 141, por considerar necessário completá-los e atualizá-los, em consequência das alterações que se verificaram entre 1992 e 2008, no seio da sociedade, da economia e da cultura. O CPLRE propôs um Manifesto “que reflete uma nova forma de urbanidade que surgiu no início do novo século” 142.

138

Ibidem, p.9. RAPOSO, Isabel (no prelo) - Uma nova carta de Atenas. In: MALHEIROS, Jorge (org.) − Manual de Boas Práticas para uma política do Habitat. (aceite para publicação em Fevereiro 2013), Lisboa, IGOT. p.1. 140 Ibidem, pp.1-2. 141 Com relação à Carta Urbana Europeia de 1992 Cfra. Cap. 1.2.4. Já em 2004 o CPLRE tinha adotado um novo documento, a Carta Urbana Europeia revista, com a Resolution 184 (2004), que não teve grande divulgação na altura e que foi substituído pela Carta Urbana Europeia II em 2008. 142 Resolution 269 (2008) of the Congress of Local and Regional Authorities on European Urban Charter II - Manifesto for a new urbanity. [Em Linha] [Consult. 2 Jul. 2013] Disponível em: https://wcd.coe.int. p.2, [T.d.A.], “which reflects a new form of urbanity that has emerged at the dawn of the new century”. 139

139

Na Carta Urbana Europeia II é dada enfâse às dimensões sociais, culturais e à participação dos cidadãos na vida pública urbana, e assenta nos princípios de: governança, ambiente, economia, coesão social e cultura. Neste documento é atribuída uma grande importância ao desenvolvimento sustentável, bem como à coesão social e territorial, sem as quais o primeiro não pode ser alcançado. É reconhecida a emergência de uma nova crise da habitação, que agravou a subida do preço dos solos e da propriedade nas áreas urbanas. Com uma mensagem otimista, o Manifesto afirma a diversidade das cidades e a diversidade no seio de cada cidade, e sublinha a importância da história, da memória coletiva e da identidade para projetar as cidades no futuro: “Sabemos que as nossas cidades têm uma longa história e que marcaram ao longo dos séculos as nossas culturas. Pensamos que estas raízes no passado e nas nossas memórias coletivas são também um recurso que nos ajuda a projetarmo-nos para o futuro com base em uma forte identidade. Não estamos propondo um modelo único de desenvolvimento urbano. As nossas cidades têm as suas próprias personalidades. Elas são todas diferentes e a sua diversidade é uma oportunidade para a Europa” 143. Apesar desta mensagem otimista, é referenciado também o aumento da pobreza urbana e das disparidades sociais e territoriais associados aos processos de gentrification, ao aparecimento dos condomínios fechados e, por conseguinte, à fragmentação da cidade: “Estamos particularmente alarmados com os processos de disparidade espacial que estão levando à gentrification de certas áreas urbanas, através do aumento incontrolável dos preços da terra nos nossos centros urbanos, juntamente com os fenómenos paralelos de formação de guetos em áreas peri-urbanas e pelo aparecimento em determinados locais de ′condomínios fechados′ que encorajam uma segregação espacial que está a fragmentar as nossas cidades e vilas” 144. Como visto no primeiro capítulo, estes são temas de particular relevância no seio da cidade contemporânea, pois a identidade das cidades e dos bairros, bem como a

143

Ibidem, p.5, [T.d.A.], “We know that our towns and cities have a long history and must be viewed from a long-term perspective of our cultures. We think that these roots in the past and in our collective memories are also an asset that helps us to project ourselves into the future on the basis of a strong identity. We are not proposing a single model of urban development. Our towns and cities have their own personalities. They are all different and their diversity is an opportunity for Europe”. 144 Ibidem, p.5, [T.d.A.], “We are particularly alarmed by spatial disparity processes that are leading to gentrification of certain urban areas, by the uncontrollable rise in land prices in our urban centres and its parallel phenomena of ghetto formation in peri-urban areas and by the appearance in certain places of ′gated communities′ that encourage a spatial segregation which is breaking up our towns and cities”.

140

história e as memórias coletivas devem ser salvaguardadas dos fenómenos de gentrification e da tendência cada vez maior para a fragmentação.

2.5.4 O desafio para os bairros históricos.

Considerando a relação recíproca existente entre a decadência do tecido urbano e a do tecido social, encontra-se, subjacente a muitos dos documento do Conselho da Europa até aqui analisados a ideia de que apoiar a reabilitação dos centros históricos é um meio para reduzir os problemas sociais e melhorar o bem-estar das populações. Torna-se cada vez mais evidente a necessidade de interligar políticas, técnicas, pessoas, cultura, meio ambiente e economia, sendo que a reabilitação urbana assenta em processos complexos que devem ser identificados e analisados antes de empreender ações voltadas para a melhoria dos centros históricos. A UNESCO sublinha a importância dos centros históricos afirmando que “[o]s bairros históricos simbolizam as cidades: eles forjam a identidade e qualidade de vida urbana cultural; eles direcionam o desenvolvimento moderno da área”. 145. É ainda a UNESCO a alertar para a necessidade de conciliar a conservação e a proteção da herança urbana com o desenvolvimento económico e, ao mesmo tempo, dar resposta às necessidades dos residentes: “A preservação dos edifícios antigos não pode ser dissociada das pessoas que vivem nos bairros históricos e que lhe dão significado. Numerosas experiencias provaram que atribuir aos edifícios um valor de relíquia causa a expulsão de famílias de baixa renda e mantém aqueles que não contribuem para a sua preservação: traz declínio e impede à história do distrito de ser transmitida” 146. A revitalização dos bairros históricos deve assim assentar em projetos locais, suportados em e integrados com projetos à escala da cidade no seu todo, para favorecer

UNESCO (2) − Historic district for all: a social and human approach for sustainable revitalization. Brochure designed for local authorities. Paris: UNESCO, 2008. [s. ISBN]. p.1, [T. d. A.], “Historic districts symbolize cities: they forge the cultural identity and quality of urban life; they direct the modern development of the área”. 146 UNESCO (2) − Historic district for all: a social and human approach for sustainable revitalization. Brochure designed for local authorities. Paris: UNESCO, 2008. [s. ISBN]. p.2, [T.d.A.], “The preservation of old buildings cannot be dissociated from the people living in the historic districts and who give them meaning. Numerous experiments have proved that giving buildings a shrine-like quality drives out low-income families and keeps in those who do not contribute to their preservation: it brings about a decline and prevents the district’s history from being passed on”. 145

141

a constituição de redes de colaboração entre as diferentes partes da cidade, ao fim, também, de contrariar a tendência para a fragmentação da mesma. O aumento exponencial da população urbana tem um impacte direto nos centros históricos.

Como



foi

visto,

este

impacte

pode

variar

entre

uma

revalorização/renovação elitista das áreas através de processos de gentrification e situações de abandono e degrado. É compreensível que os processos de reabilitação dos centros históricos produzam um interesse acrescido por parte de novos residentes e novas atividades económicas e um aumento dos valores das rendas. Neste sentido são necessárias políticas públicas que amenizem os efeitos negativos causados no seio das populações locais, especialmente nas de mais parcos recursos económicos. Yves Cabannes alerta para as insidias a evitar neste tipo de processos, assim aconselhando quantos operam na área: “Os processos de revitalização dos bairros históricos podem melhorar as condições de vida dos habitantes e aumentar o valor do patrimônio se certas armadilhas são evitadas: o Não expulsem a população local (moradores e comerciantes tradicionais); o Não destruam as ocupações tradicionais; o Não contribuam para o desmembramento das redes de laços sociais; o Não suprimiam o comércio existente; o Não convertam habitação em celeiros para os comerciantes itinerantes; o Não isolem o bairro histórico dos restantes da cidade; o Não preservem os edifícios, sem o envolvimento dos habitantes e refletir sobre o impacto no resto da cidade; o Não desenvolvam o turismo como única atividade” 147. Ao longo do presente capítulo já foi colocada a tónica nas teorias relativas ao turismo sustentável. Constituindo um aspeto de grande relevo no âmbito do caso de estudo da presente investigação, o Bairro Alto, acentua-se aqui o facto de que na sequência do rápido crescimento do turismo cultural, as cidades e, no específico, os

147

Yves Cabannes, em: UNESCO (2), 2008, op. cit., p.4, [T.d.A.], “Revitalization processes of historic districts can improve inhabitants’ living conditions and enhance the value of the heritage if certain pitfalls are avoided: o Do not evict the local population (residents and traditional merchants); o Do not destroy traditional occupations; o Do not contribute to the break-up of urban social links; o Do not suppress existing trade; o Do not convert housing into storehouses for itinerant merchants; o Do not isolate the historic district from the rest of the city; o Do not preserve the buildings without the involvement of the inhabitants and reflect on the impact on the rest of the city; o Do not develop tourism as the sole activity”.

142

bairros históricos, serem alvo de um interesse cada vez maior por parte do fenómeno do turismo. Este especto pode impulsionar a economia da área e, no caso de parte das receitas serem direcionadas para a reabilitação, melhorar as condições ambientais dos residentes. Todavia, o turismo de massa e não controlado pode produzir efeitos negativos irreversíveis no ambiente, no património construído e na vida dos residentes, pelo qual são necessárias ações que coloquem o desenvolvimento económico ao serviço da sociedade e do seu património, e não o contrário. Um outro aspeto para o qual a UNESCO sugere o investimento por parte dos técnicos envolvidos nos processos de reabilitação é o de promover ações de sensibilização e sobretudo de participação no seio das populações envolvidas e de todos os atores presentes no território. Este tipo de ação pode facilitar o trabalho dos próprios técnicos mas, sobretudo, possibilitar respostas mais diretas e concretas às aspirações do território e dos residentes, bem como uma maior aceitação por parte destes dos processos a implementar.

143

2.6 Da teoria a empiria. Algumas considerações.

A teoria de intervenção no património antigo caracterizada inicialmente por uma preocupação com a conservação operada em edifícios notáveis passou para uma abordagem mais abrangente e integrada ao nível da reabilitação urbana de aglomerados humanos, alterando-se os objetivos, os objetos e os meios. Passa-se do objeto singular ao complexo urbano e ambiental, que engloba não só as dimensões físicas, mas também culturais, sociais e humanas; passa-se da realização de trabalhos técnicos de conservação a um processo complexo que engloba numerosos atores e instrumentos legais e financeiros. O conceito de reabilitação surgiu nos anos sessenta do século XX como um instrumento da política de conservação integrada, passando a ser, ao longo das últimas décadas, englobado nas várias políticas urbanas. A reabilitação passou a conciliar a dimensão física da cidade com a dimensão humana e social da mesma, e passou a ser pensada como um instrumento para alcançar a justiça social, a salvaguarda da diversidade cultural bem como a coesão social, territorial e económica. Porém, em contexto de economia neoliberal dominante, e como sublinhado na Carta Urbana Europeia II 148, fenómenos como a gentrification, a criação de guetos, a fragmentação da cidade e os processos de disparidade espacial e social estão cada vez mais presentes nas cidades contemporâneas. Apesar da inclusão cada vez mais clara da dimensão social e humanista na noção de reabilitação e do alargamento do seu campo de ação, nota-se a existência de um conflito entre os interesses do património e da diversidade cultural e social por um lado, e os interesses da economia capitalista por outro. Frequentemente as noções de reabilitação do património e da cultura são utilizadas como instrumentos de marketing e crescimento económico, invés de privilegiar a coesão socio-territorial. Um exemplo deste fenómeno é o turismo. Apesar dos discursos e de algumas práticas direcionadas para um turismo sustentável, verifica-se cada vez mais a presença de um turismo de massa que põe em causa o património físico, cultural e social de partes inteiras das cidades. Os processos de gentrification nomeadamente os derivados da criação de condomínios fechados, para os quais também alerta a Carta Urbana Europeia II 149, são

148

Resolution 269 (2008) of the Congress of Local and Regional Authorities on European Urban Charter II - Manifesto for a new urbanity. [Em Linha] [Consult. 2 Jul. 2013] Disponível em: https://wcd.coe.int. 149 Ibidem.

144

fenómenos movidos pelas lógicas do mercado, no âmbito dos quais os conceitos de património ou cultura são utilizados como instrumento de marketing, e que levam a ações de transformação urbana mascaradas de reabilitação que assentam, de facto, em processos de renovação. Em síntese, sublinha-se a evolução das teorias de conservação e o avanço progressista da visão da reabilitação numa ótica de valorização do património para todos, de salvaguarda da diversidade cultural e de um desenvolvimento sustentável que não comprometa os direitos das gerações futuras. Todavia, observa-se um hiato entre, por um lado, este posicionamento teórico, com repercussões em algumas ações relevantes mas pontuais, e, por outro, as actuais dinâmicas económicas dominantes e as transformações urbanas daí resultantes que convertem as ações apelidadas de reabilitação em processos de facto de renovação e gentrification. Com esta desestruturação acelerada do património material e imaterial, construído ao longo de séculos compromete-se o desenvolvimento sustentável e coeso, socioeconómico e ambiental, presente e das gerações vindouras. É nesta perspetiva que se abordam nos próximos capítulos a génese e a transformação urbana do Bairro Alto.

145

146

Na página anterior: Azulejos. Foto de Anna FODALE.

3.1 As premissas: Lisboa Manuelina.

Assolada por constantes focos de epidemias e pestes, a Lisboa do último quartel do século XV era uma cidade de ruas estreitas e becos de tradição islâmica. Algumas destas ruas eram tão estreitas que impediam a passagem de uma besta de carga. Muitas das casas apresentavam grandes balcões 1 (Fig. nº 11), que dificultavam a circulação. A capital do reino mostrava-se incapaz de seguir o passo das transformações sociais e económicas em curso. Para responder a esta situação iniciam-se, em 1498 e em 1513, dois grandes programas de reordenamento urbano 2. O de 1498 visa uma restruturação funcional da cidade medieval, enquanto o de 1513 visa dotar a capital do jovem império marítimo de um conjunto de grandes equipamentos administrativos e comerciais. O programa, que se inicia em 1498, prevê a realização de obras de reordenamento do centro da cidade, nos chafarizes, ruas e portas, entendidos não como elementos pontuais mas sim como elementos tipológicos da estrutura urbana. Paralelamente a estas obras, D. Manuel decide abandonar o velho Paço da Alcáçova (Fig. nº 12), para estabelecer residência no novo Paço da Ribeira, nas margens do Tejo (Fig. nº 13).

Figura nº 11, RODRIGUES, Muxarabi e balcão, 1979. Fonte: [Em Linha] [Consult. 20 Jan. 2012]. Disponível em: http://coisasdaarquitetura.wordpress.com. Figura nº 12, Duarte de GALVÂO, Paços da Alcaçova, no início do século XVI. Fragmento da iluminura da Crónica de D. Afonso Henriques. 15??, Museu Castro de Guimarães, Cascais.

1

Os vãos destes balcões de estrutura em madeira eram preenchidos por uma espécie de gelosia, de raiz islâmica na tradição do muxarabi. Muitas vezes, apoiavam-se diretamente sobre a rua, assentes sobre fortes prumos, e podiam ocupar 1/3 da largura da rua. Causavam graves problemas de circulação e favoreciam a propagação dos incêndios. Estas estruturas desapareceram completamente da cidade de Lisboa, na sequencia das legislações manuelinas do século XVI. 2 Estes programas enquadram-se no âmbito da reforma da administração pública e da legislação que se iniciaram no princípio do reinado de D. Manuel (1495-1521), Entre 1496 e 1498, com o processo de justificaçam da moeda (carta régia de 25/06/1498), é iniciada a uniformização de todos os pesos e medidas. Ver-se-á mais a frente como a uniformização das medidas se irá refletir na urbanística e na arquitetura.

149

A instalação da corte junto ao rio altera profundamente a estrutura urbana, física e simbólica da cidade. Para sua residência, D. Manuel prefere instalar-se no ponto vital do novo comércio, em vez de permanecer no castelo medieval. O Paço da Ribeira e o Terreiro do Paço, terraço que se abre sobre o rio, tornam-se o centro da vida da corte 3. O reordenamento da cidade será desenvolvido a partir deste núcleo e ao longo das margens do Tejo.

Figura nº 13, Anónimo, Terreiro do Paço. Faiança, Séc. XVIII (inícios). Museu da Cidade, Lisboa.

Em 1513, como referido, inicia-se uma nova fase de reorganização da cidade. Enquanto o primeiro programa (1498) se tinha concentrado na restruturação urbana do centro da cidade, o segundo visa criar uma nova imagem da cidade como capital do império. Nesta ótica, são realizadas obras no Paço da Ribeira, ao qual se acrescentam dois pisos, ganhando nova monumentalidade. Paralelamente, são construídos grandes edifícios de apoio ao comércio e à administração do Império: Alfândega Nova, Armazéns Reais, Casa dos Contos, Paço da Madeira e Tercenas da Porta da Cruz. Criam-se suportes legislativos para regular a construção. Em 1499, no Livro de Posturas Antigas da Câmara de Lisboa são registadas as “Posturas sobre os Carpemteiros pedreiros E aprendizes e braçeiros,/ E cal telha tijolo e tojo,/ E madeira e pregadura” 4 que regulam a atividade construtiva na sua globalidade. As ações deste regimento são especialmente importantes por ordenarem os parâmetros de qualidade para os materiais de construção e uma rigorosa normalização para as regras de construção. “É com a indicação das medidas das peças de madeira para construção que se evidencia uma preocupação em

estabelecer

métricas uniformizadas

e

FRANÇA, José−Augusto − Lisboa: Urbanismo e Arquitectura. Lisboa: ed. Livros Horizonte, 1997. ISBN: 972−24−0998−0. pp.15-22. 4 CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA - Livro das Posturas Antigas. Lisboa. Câmara Municipal de Lisboa: 1974. [s.ISBN]. pp. 228-239. 3

150

proporcionais […]. Estas medidas - 12,15, 20, 24 e 30 palmos - relacionam-se com a altura do pé-direito, largura e profundidade do lote, que encontramos tanto no regimento da Ribeira como em documentação de contratos de obra e aforramento, e ainda na actual estrutura-base dos mais antigos edifícios do Bairro Alto”. 5 As cartas régias de 1499 e de 1502 6 regulam a construção de balcões, determinando ditames relevantes para a imagem da cidade. Enquanto a primeira carta proíbe a construção de novos balcões e sacadas, a segunda ordena a demolição de todos os existentes no prazo máximo de seis meses. Esta segunda determinação é de particular importância, sendo que os balcões estavam diretamente ligados à própria estrutura da fachada e à tipologia do edifício medieval com andares em consola. “A sua proibição [dos balcões] equivalia à negação dum tipo de edifício e à necessidade de definição duma nova tipologia. Neste sentido o segundo alvará de 10 de Agosto [1502] […] adquire um particular significado urbanístico […] [o novo alvará] toma como modelo arquitectónico as grandes obras que se vinham a realizar em Lisboa”. 7 É assim estabelecido um conjunto de regras para a renovação das fachadas, em que são permitidos os balcões que não passassem de dois palmos. Esta determinação terá continuidade nas varandas de sacada, imagem-chave de todo o processo urbano do Bairro Alto e da arquitetura lisboeta. No intuito de colmatar a falta de habitação, procuram-se terrenos para urbanização no interior da cidade. A 26 de Dezembro de 1500 é assinada por D. Manuel uma carta que ordena “[…] que se cortem e que se derribem todos os olivais de muros adentro […]” 8 procedendo ao loteamento destes terrenos para construção de casas. Os proprietários eram indemnizados após avaliação dos seus bens, existindo um certo desafogo financeiro, advindo da riqueza proveniente do Oriente, bem como da vontade política em colocar os interesses da cidade acima de qualquer interesse particular. Parte das urbanizações que seguem à carta régia de 1500 advêm de uma importante tendência de desenvolvimento da cidade para ocidente, que se observava desde o século XIV. Durante o reinado de D. Dinis (1279-1325), a cidade de Lisboa assistiu a um acontecimento decisivo para a sua evolução: a construção de uma nova muralha ligando a colina de São Jorge à de São Francisco. Paralelamente, a zona da CARITA, Helder − Lisboa Manuelina e a formação de modelos urbanísticos da época moderna (1495−1521). Lisboa: Livros Horizonte, 1999. ISBN: 972−24−1080−6. p.84. 6 A.C.M. Lx – Livro dos Reis – D. Manuel I, Livro 1º: Doc.38 (LX.17-6-1499), doc. 70 (Lx., 3-4-1502), doc.75 (Lx., 3-4-1502), doc.82 (Lx., 10-8-1502). Em: CARITA, Helder, 1999. op. cit., p.17. 7 CARITA, Helder, 1999. op. cit., p.87. 8 AN/TT – Chancelaria de D. Manuel. Livro I da Estremadura, fl.160 (alvará de 26 de Dezembro de 1500). Ap. Doc. n.º10. Em: CARITA, Helder, 1999. op. cit., p.18. 5

151

Baixa foi alvo de uma reformulação e dinamização como centro económico, administrativo e portuário da cidade, ao mesmo tempo que a Rua Nova 9 é prolongada para ocidente.

Figura nº 14, Sebastian MUNSTER, Panorâmica de Lisboa, 1541. Fonte: Cosmographei oder Beschreibung aller Lander Herrschaften, furnemten, Setten, Geschichten, Gebreuchten, Hantierung, vol. II, Basileia, 1598 (1ª edição datada de 1544) [s.n.]. Lisboa: Museu da Cidade.

Tanto a nova muralha como o prolongamento da Rua Nova “[…] marcam um grande eixo de desenvolvimento da cidade para ocidente ao longo das margens do Tejo, princípio que marcará o urbanismo lisboeta durante largos séculos”. 10 No seguimento desta linha de desenvolvimento urbano, em 1373-1375, durante o reinado de D. Fernando, foi construída uma nova linha de muralhas: a cerca fernandina, que passa a englobar uma nova área, a ocidente da antiga muralha, determinando novas dinâmicas urbanas. Durante o reinado de D. João I (1385-1433), implementar-se-ão as obras urbanísticas decorrentes da construção da cerca fernandina. No século XIV, a zona ocidental da cidade, a partir das atuais Rua do Carmo e Rua Nova do Almada, foi-se progressivamente urbanizando. A muralha, e em particular as Portas de Santa Catarina

9

A Rua Nova situava-se sensivelmente na zona da atual Rua dos Bacalhoeiros. CARITA, Helder, 1999, op. cit., p.31.

10

152

(atual Largo das Duas Igrejas), favorecem o desenvolvimento desta área. É aqui que nasce, seguindo um programa de iniciativa régia, a Vila Nova de Santa Catarina. Na urbanização desta área salientam-se dois factos importantes da história do urbanismo lisboeta: a realização de uma operação urbanística de larga escala, por ação conjunta do poder real e do poder concelhio, e a estruturação de um traçado urbano de grelha em espinha. A planta da Vila Nova desenvolve-se segundo um modelo de ′rua direita-travessa′, sendo formada por um eixo central e uma sequência de travessas perpendiculares. Neste modelo a ′rua direita′ indica o sentido de direção e o eixo de desenvolvimento urbano, enquanto as travessas perpendiculares ao eixo principal se submetem hierarquicamente a ele 11.

Figura nº 15, Esquema das muralhas, principais urbanizações e edifícios na zona oeste da cidade de Lisboa no sec. XVI com base na gravura: George BRAUNIO, Olissippo quae nunc Lisboa, civitates amplissima Lusitaniae, ad Tagum. Totis orientis, et multarum Aphricoeque et Americae emporium nobilissimum, Gravura, ca.1598, em Orbis Terrarum, Amesterdão, 1598, vol. V.

Na sequência do crescimento da cidade para ocidente e em resultado do programa de reordenamento de Lisboa de 1498-99, em 1501 e 1502 D. Manuel assina um conjunto de doações ao longo da rua direita de Cata-que-Farás 12, a famílias da alta aristocracia, armadores e altos funcionários do Estado. Esta área desenvolve-se segundo o modelo de ′rua direita-travessa′, com um conjunto de quarteirões

11 12

CARITA, Helder, 1999. op. cit., pp. 41-46. Esta área corresponde sensivelmente a uma parte do atual Caís de Sodré.

153

retangulares, com travessas perpendiculares a uma via central paralela ao rio (Figs nº15 e 16). Paralelamente aos quarteirões de Cata-que-farás e na continuidade do alvará de 26 de Dezembro de 1500, que ordena a urbanização das áreas de olivais existentes dentro do perímetro das muralhas, nasce a Vila da Oliveira ou do Olival, cujos primeiros aforamentos começam logo em 1502. Esta urbanização desenvolve-se numa área afastada do centro da cidade mas em continuação da expansão para ocidente, a partir das cercas dos frades Trinos e dos frades Carmelitas, na zona entre os atuais Largo do Carmo, Calçada do Duque e Rua da Misericórdia. Trata-se de uma pequena urbanização estruturada em três ruas paralelas que correm ao longo das curvas de nível, cujas características ao nível do alinhamento das ruas, ausência de balcões e da construção em pedra e cal, são exemplo das medidas urbanas sistematizadas no princípio do século XVI. De acordo com Hélder Carita: “A importância urbanística de Vila Nova de Oliveira reside sobretudo em se apresentar como uma experiência moderna que, em paralelo com o programa de reordenamento das ruas do centro da cidade deste período, permite-nos contextualizar a génese duma outra intervenção urbanística: o Bairro Alto”. 13

Figura nº 16, Gabriel del BARCO, Grande panorama de Lisboa, pormenor, 1700 c.a.. Lisboa: Museu Nacional do Azulejo.

13

CARITA, Helder, 1999, op. cit., p.95

154

3.2 O Bairro Alto: morfogénese urbana.

A Lisboa de finais de quatrocentos é uma cidade em contínuo crescimento demográfico: gentes dos ofícios do mar, pilotos, cartógrafos e marinheiros mal se continham dentro da cerca fernandina. A cidade procura responder às suas novas exigências de capital do império marítimo e alarga os seus limites. Seguindo a tendência de crescimento para poente (iniciada no reinado de D. Dinis), encontra um lugar privilegiado para a sua expansão na zona limítrofe à cerca fernandina, onde existia uma vasta propriedade, posse de Guedelha Palançano, médico e astrólogo judeu no reinado de D. Afonso V. Esta propriedade estava dividida em duas herdades, a da Boa-Vista, a sul da Estrada de Santos (atuais Ruas Camões - Combro - Poço dos Negros), até ao Tejo, e a das Portas de Santa Catarina, a norte da Estrada de Santos e contornada pela Estrada dos Moinhos de Vento e de Campolide (atuais Ruas Dom Pedro V - Escola Politécnica) até à Cotovia (atual Praça do Príncipe Real) (Fig.17). Como refere Helder Carita: “Será a existência destes vastos domínios na posse duma só pessoa, que permitirá no séc. XVI, uma das mais vastas operações imobiliárias da história da cidade e uma visão de conjunto no ordenamento desta zona”. 14 Com a morte de Guedelha Palançano estes vastos terrenos são herdados pela sua viúva, Dona Judia, a qual, em 1487, os afora a Filipe Gonçalves 15 e, em 1498, os vende a Luís de Atouguia. A historiografia tem apresentado como data de início da urbanização da Vila Nova de Andrade a 15 de Dezembro de 1513, baseando-se na publicação de Mário Saa sobre As Origens do Bairro Alto de Lisboa 16. Todavia, Helder Carita, no seu estudo sobre a Lisboa Manuelina, baseando-se em alguns testamentos 17 da família Atouguia, encontrados no Arquivo da Misericórdia de Lisboa, repensa as origens urbanas do Bairro Alto, demonstrando a existência de um documento de 1498 em que é autorizada a abertura de uma rua. Embora não exista uma referência explícita ao local desta nova rua, Helder Carita supõe que a mesma seja paralela ao “caminho para Cata-que-Farás” (atual Rua do Alecrim), por ser mais perto da zona ribeirinha.

14

CARITA, Helder, 1990, op. cit., p. 19. A Filipe Gonçalves sucedeu a filha Francisca Cordovil que casou com Bartolomeu de Andrade, e é neste momento que a família Andrade entra na história do Bairro Alto. 16 SAA, Mário - Origens do Bairro-Alto de Lisboa. Lisboa: Centro Tip. Colonial, 1929. [s. ISBN] 17 Arquivo da Misericórdia – Testamentos, maço 4, Doc.6. Em: CARITA, Helder, 1999, op. cit., pp. 102-103. 15

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Figura nº 17, Planta da zona do Bairro Alto com a indicação das principais estradas, edifícios e fases de urbanização. Sem escala 18. 18 Publicado em: PAVEL, Fabiana − Architecture and society in Bairro Alto. Prostitutes, artists and stabbings; palazzi, streets and alleys. Em: MARQUES, Lénia; RICHARDS, Greg (coord.); Creative Districts Around the World. Celebrating the 500th anniversary of Bairro Alto. Breda: NHTV, 2014. pp.9-16. ISBN: 978-90-819011-3-0.

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Entre os testamentos referidos, destaca-se ainda um contrato datado de Dezembro de 1513, entre Bartolomeu de Andrade e Luís Álvares de Atouguia, de aforramento da Vila Nova de Andrade. O ano de 1513 não marca, portanto, o início da urbanização, mas sim “[…] uma segunda fase em que a zona se apresentava já como uma entidade urbana autónoma” 19. É interessante sublinhar também o facto de as duas datas, de 1498 e 1513, coincidirem com os dois momentos das grandes reformas promovidas pela Câmara Real. Grandes olisiponenses, desde Júlio de Castilho 20, têm-se debruçado sobre as genealogias das famílias Andrade e Atouguia na tentativa de entender as ligações entre as mesmas, as suas herdades e as divisões de propriedades e os direitos de aforramento da Vila Nova de Andrade. As notícias perdem-se no tempo, não tendo sido ainda compreendido quando e como acabaram os direitos destas famílias sobre as antigas Herdades da Boa-Vista e das Portas de Santa Catarina. Não interessa, no âmbito deste estudo, resolver este dilema histórico, mas sim entender as fases de construção da área e perceber quais os princípios geradores daquela que é considerada como a primeira grande urbanização da cidade de Lisboa. Com este propósito parece interessante referir alguns dados que Mário Saa descreve relativamente às condições de sub-aforramento presentes nos contratos da segunda fase de urbanização (1513). A análise destes documentos remete imediatamente para as reformas manuelinas e os seus princípios geradores. “[…] e todos pagavam galinhas e reais; − e eram pilotos, carpinteiros, calafates, mestres de nãos… As condições eram: empregarem pelo menos metade do chão na construção duma casa de pedra e cal, sobradada, com madeira e pregadura, e com a multa de vinte cruzados d’oiro no caso de a não fazerem dentro de três anos. […] Foi do actual Calhariz até ao Tejo a zona primeira a ser aforada. Afluía um cardume de gente d’oficio dos bairros populares […] que em breve cedia o passo a gente d’algo e cedendo-lhes os contratos; e eram agora escudeiros, estribeiros e cavaleiros fidalgos a darem o seu dinheiro e as suas galinhas. Quando as dimensões não vinham expressas o chão era considerado superfície certa, e assim tomavam, por exemplo, chão e meio”. 21 No texto de Mário Saa, encontram-se alguns elementos de particular interesse. Vê-se como no princípio da urbanização, que se pode situar essencialmente na zona a

19

CARITA, Helder, 1999, op. cit., p. 104. CASTILHO, Júlio de - Lisboa Antiga, O Bairro Alto. 5 Vol., 3ºedição (1ºedição 1906). Lisboa: Oficinas gráficas da CML, 1954-1966. [s. ISBN] 21 SAA, Mário. 1929, op.cit., p.10. 20

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sul da Estrada de Santos 22 até ao Tejo (embora se encontrem já referenciadas as Ruas do Norte e da Barroca, a norte da Estrada de Santos), os sub-aforradores são gentes ligadas aos ofícios do mar e de origem popular. Só num segundo momento aparece uma população de maiores recursos. Um outro elemento importante diz respeito às modalidades de construção, em pedra e cal com madeira e pregadura, em seguimento da postura régia de 1499, que foi anteriormente referida, e ainda a menção à medida do 'chão' ou 'chão e meio' como medida base dos lotes, que possibilitou a criação de uma malha urbana definida e uniforme. Sublinha-se ainda a decisão de impor um prazo de construção de três anos, após os quais o sub-aforrador deveria pagar uma multa caso não tivesse acabado o edifício. Esta medida favoreceu a rápida urbanização da área, assim dando resposta à procura de novas edificações. A primeira fase de urbanização, que se inicia em 1498, desenvolveu-se polarizada pelos dois focos das Portas de Santa Catarina, importante entrada na cidade, e 'Cata-que-Farás', imediatamente junto das muralhas e ao longo da 'Estrada de Cata-que-Farás'. A partir de 1513 (II fase) a urbanização polariza-se à volta das Portas de Santa Catarina em direção da Estrada de Santos, para poente, não se afastando muito da Estrada. A terceira fase de urbanização da Vila Nova de Andrade inicia-se em 1553, quando, com o seu progressivo crescimento, a parte alta se autonomiza, com a alteração do seu centro de gravidade para o Alto de São Roque, onde se estabelecem os Padres da Companhia de Jesus. A área passa assim a ser chamada de Bairro Alto de São Roque. Em 1553, os Jesuítas tomam conta da já existente ermida de São Roque. Esta fora mandada construir por D. Manuel em 1506 após o surto de uma grande epidemia de peste que obrigou à construção de um novo cemitério. O espaço ocupado hoje pela Santa Casa da Misericórdia e pelo Largo Trindade Coelho corresponde sensivelmente ao desaparecido cemitério, ao lado do qual tinha sido erguida uma Ermida dedicada a São Roque, padroeiro contra as pestes. É nesta Ermida que foi fundada a Irmandade da Misericórdia de São Roque 23. A criação da Irmandade de São Roque prende-se com a vinda da Relíquia do braço de São Roque, solicitada pelo rei D. Manuel às autoridades da República de Veneza, em 1505, para ajuda na libertação de Lisboa dos grandes surtos de peste.

22

Atual Calçada do Combro- Rua do Loreto. Ligada à Irmandade da Misericórdia de Lisboa, fundada na Capela da Terra Santa, da Sé Patriarcal, a 15 de Agosto de 1498. 23

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“Podes adivinhar, integrando-te no espírito da época, a pompa da solene procissão quando chegou a relíquia, e depois as romagens piedosas dos reis, dos príncipes, dos nobres, dos fidalgos, dos burgueses, do povo. Até que S. Roque tentou os Padres da Companhia de Jesus, em tempos já de D. João III, seu protetor. Em 1553, os jesuítas tomaram conta da Ermida e da pequena Casa que já se lhe encostava. O sítio que estava em moda – aristocratizou-se”. 24 Em 1555 os padres jesuítas lançaram a construção dum novo templo, concluído em 1580: a atual Igreja de São Roque, a qual, embora tenha sofrido alterações posteriores, se mantém no seu conjunto fiel à primeira construção. A chegada dos jesuítas a São Roque traz um novo prestígio à área, que “[…] começou a tentar os nobres, os burgueses e endinheirados da Índia”. 25 Carita refere que os padres jesuítas abriram na Casa Professa de São Roque uma congregação para nobres bem como uma para oficiais mecânicos “[…] estabelecendo uma hegemonia no Bairro que se estendeu intencionalmente, da nobreza ao povo” 26. A influência que os jesuítas tiveram na educação da aristocracia “[…] terá sido um factor determinante na divulgação duma arquitectura racionalista de linhas maneiristas sólidas e depuradas” 27. Os pressupostos modernistas do traçado do Bairro Alto adaptavam-se perfeitamente ao espírito da Companhia de Jesus. É evidente, nesta nova fase de urbanização, a vontade de estabelecer uma continuidade com as primeiras construções. É todavia interessante notar que os quarteirões que se desenvolvem a norte da Travessa da Queimada, embora mantenham a mesma malha retangular, a mesma métrica de loteamento e estrutura hierárquica entre ruas e travessas, são organizados no sentido transversal. Estes quarteirões não são perpendiculares ao Tejo mas sim ao novo polo organizador: a Igreja de São Roque. Esta orientação da malha urbana adaptava-se aos terrenos já aforados, ao mesmo tempo que estabelecia uma maior abertura na direção de São Roque. As ruas principais que corriam no sentido norte-sul mantiveram contudo a mesma relação com o rio. Esta fase de urbanização desenvolve-se nos terrenos mais próximos à Casa Professa da Companhia de Jesus, terminando a norte, na zona onde foi sucessivamente construído o Convento de São Pedro de Alcântara e funcionando a Rua da Rosa como “[…] fronteira com a zona mais afastada de São Roque, e como divisão de propriedades

24 ARAÚJO, Norberto de − Peregrinações em Lisboa. XV Vol. 2ªedição (1ª edição 1937) Lisboa: Veja, 1993. ISBN: 972−699−338−5. p. 84. 25 ARAÚJO, Norberto de, 1999, op.cit., p. 84. 26 CARITA, Helder - Bairro Alto. Tipologias e Modos Arquitectónicos. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1990. [s. ISBN]. p.27. 27 Ibidem, p. 27.

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nas partilhas da família Andrade”. 28 A parte do Bairro Alto entre a Rua da Rosa e a Rua Formosa (atual Rua de O Século) teve desde o princípio um caráter mais rural, com pequenas casas e hortas, caráter que mantém até hoje. O Bairro foi desde o início marcado por uma forte diferença social entre os seus moradores. Aos primeiros aforadores do século XVI, marinheiros e artífices, vieram juntar-se mercadores, clérigos, burgueses e aristocratas. A partir do século XVI, algumas das famílias da alta nobreza 29 instalam-se no Bairro Alto de São Roque. “Caso raro em toda a cidade, os palácios e grandes casas senhoriais confinaram-se ao loteamento inicial sem criar irregularidades, becos ou pátios. Os palácios submetem-se tanto aos quarteirões como às próprias cérceas dos edifícios, criando um corpo solidário entre arquitectura erudita e vernácula”. 30 Na planta apresentada na Fig. nº 18 distinguem-se os palácios, as casas e os edifícios públicos e religiosos que chegaram até aos nossos dias. A planta evidencia o facto de os palácios serem espalhados por toda a área do bairro, não havendo portanto uma distinção entre zonas mas sim uma profunda heterogeneidade na instalação de casas mais humildes ao lado dos palácios da nobreza. É interessante notar como a introdução do coche (Fig. nº 19) nos finais do século XVI, que se tornou o transporte comum para toda a aristocracia e burguesia, contribuiu para confirmar os pressupostos urbanísticos e a modernidade da urbanização do Bairro. Ao contrário do resto da cidade, formada essencialmente por ruas estreitas, becos e escadinhas, a malha regular e a largura das ruas do Bairro Alto possibilitavam a utilização da viatura. A modernidade do traçado, com a sua estrutura viária e as boas condições de limpeza e arejamento, terá favorecido a instalação de grandes famílias na área.

28

Ibidem, p. 28. Entre os quais: os Duques de Bragança ou os Condes de Vimoso, os Costa (Soure), os Melos (Ficalho), os Mendoza (Marim-Olhão) e, não menos importantes, os Carvalho (Pombal), que estabeleceram a sua morada na rua Formosa (atual rua de O Século). Nomes que ainda hoje encontramos na toponímia do bairro ou em algumas das suas edificações mais importantes. 30CARITA, Helder, 1990, op. cit., p.29. 29

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Figura nº 18, Planta do Bairro Alto com a distinção entre casas, palácios e edifícios públicos e eclesiásticos. Sem escala.

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Figura nº 19, Gabriel del BARCO, Grande panorama de Lisboa, pormenor de coche, 1700 c.a. Lisboa: Museu Nacional do Azulejo.

Com a subida ao trono, em 1706, de D. João V, começam, por vontade do monarca, uma série de novas intervenções por toda a cidade 31. Este momento de euforia levou também à construção de novos palácios dos fidalgos da Corte em toda a cidade. José-Augusto França refere que “[…] duas casas nobres marcaram […] especial relevo neste período: a casa Ludovice, em São Pedro de Alcântara (1747) [e] a de Lazaro Leitão na Junqueira (1734 – C. Mardel?)”. 32 O mesmo autor refere também, no Bairro Alto, o palácio dos Tauroca, que deveria ser “[…] de grande porte e 'novidade'“ 33, bem como o palácio Olhão no Combro. Estes factos revelam a importância que a área tinha vindo a ganhar na cidade de Lisboa. No geral, pode-se afirmar que a malha ortogonal proposta para os primeiros quarteirões da Vila Nova de Andrade foi replicada por toda a área. São Roque veio a polarizar todo o conjunto e as zonas mais afastadas – Rua Formosa e Cotovia (atuais Ruas de O Século e da Escola Politécnica) – que coincidiam então com os limites da cidade – constituíram-se como os limites poente do bairro. É nestas fronteiras que se situam também a quinta dos Condes de Soure, bem como a cércea do Convento dos Caetanos e o Convento dos Cardais, lugares semi-urbanos que estabelecem uma transição entre a cidade e as zonas mais rurais 34. No dia 1 de Novembro de 1755 Lisboa é devastada por um gigantesco terramoto, seguido de maremoto e de um incêndio que dura vários dias. A notícia do desastre espalha-se por toda a Europa, enquanto a cidade é abandonada pelos seus habitantes e hordas de bandidos se dedicam ao saque. “[…] dirigiam-se [Cândido e o Doutor Pangloss] a pé para Lisboa […] Mal puseram pé na cidade […] sentem a terra tremer-lhe debaixo dos pés; o mar ergue-se em

31 Ampliação do Paço da Ribeira e da capela real (Capela de D. Manuel); Igreja, Convento e Palácio de Mafra; Teatro da Ópera junto do Paço da Ribeira; instalação da capela de São João Baptista em São Roque encomendada ao arquiteto italiano Vanvitelli; Aqueduto das Águas Livres; entre outras. 32 FRANÇA, José-Augusto, 1997, op. cit., p.27. 33 Ibidem, p.27. 34 CARITA, Helder, 1990, op. cit., pp.51-56.

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cachão no porto e desfaz os navios que estavam ancorados; turbilhões de chamas e de cinzas cobrem as ruas e as praças públicas; as casas desabam, os telhados caem e os alicerces dispersam-se. Trinta mil habitantes são esmagados sob as ruínas.[…] - Isto é o fim do mundo! exclamava Cândido. O marinheiro corre imediatamente para o meio das ruínas, afronta a morte para encontrar dinheiro, encontra-o, rouba-o, embriaga-se e, depois de ter cozido a bebedeira, compra os favores da primeira mulher de boa vontade que lhe aparece nas ruínas das casas destruídas e no meio dos mortos e moribundos”. 35 Foi sobretudo o incêndio que se seguiu ao Terramoto que causou a maioria dos danos na cidade. O Bairro Alto, porém, escapa em grande parte ao desastre: arderam, sobretudo, edifícios na zona mais próxima da atual Praça Camões, na Rua da Misericórdia e em pequenos troços das Travessas da Espera, dos Fiéis de Deus, Poço da Cidade e Queimada 36. “A boa construção dos edifícios do bairro em grossas paredes de alvenaria e a sua baixa altura” 37 terão sido os fatores que contribuíram para o bom estado em que o Bairro Alto ficou após o sismo. A maioria dos edifícios apresentava, porém, fissuras, rachas e partes destruídas, levando à necessidade de obras de restauro. Ainda hoje parte dos edifícios se mantêm com os primeiros e segundos andares da época. O Terramoto não teve grandes repercussões no tecido urbano interior do bairro, e as obras que se seguiram não quebraram o seu traçado ortogonal. Mas as grandes obras Pombalinas alteraram significativamente as ruas da Misericórdia, Camões e Formosa (Século), vindo a criar novas relações do bairro com a cidade, redefinindo os seus limites e criando uma cintura de envolvimento.

VOLTAIRE – Cândido. (1ª edição 1759). Lisboa: Publicações Europa−América, 1973. ISBN: 821.133.1-31. p. 20. 36 CARITA, Helder, 1990, op. cit., p.30. 37 Ibidem, p.31. 35

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3.3 A cintura de envolvimento do Bairro Alto.

Após o Terramoto, a maioria da aristocracia retirou-se para as suas quintas nos arredores de Lisboa, deixando ao abandono as suas casas ou alugando-as a gente de poucos recursos. No século XIX vários desses palácios em ruínas foram expropriados pela Câmara de Lisboa e demolidos. Porém, nos limites do Bairro (atuais Rua da Misericórdia, Rua de S. Pedro de Alcântara, Praça do Príncipe Real, Rua de O Século e Calçada do Combro), em virtude das obras realizadas na segunda metade do século XVIII e século XIX, não se observa o mesmo fenómeno, vindo estes limites a autonomizar-se, ganhando uma vivência burguesa. O Terramoto não afetou gravemente o Bairro Alto, mas, como já foi referido, as obras pombalinas efetuadas redefiniram os limites do Bairro criando, através da sua monumentalidade, uma fronteira com a cidade. É assim que o Bairro Alto se separa definitivamente da zona das Chagas, destruída pelo incêndio e totalmente reconstruída, que passa a ser o local privilegiado da média e alta burguesia. A afirmação dos limites entre o Bairro Alto e o resto da cidade foi factor fundamental para a preservação da malha ortogonal do Bairro e, sobretudo, da identidade peculiar que este foi mantendo ao longo dos séculos. Dada a importância destas fronteiras para a formação da atual identidade da área, faz-se seguidamente uma breve promenade à volta do Bairro Alto para identificar e traçar a história de alguns elementos espaciais característicos. A entrada em São Roque e no Bairro Alto, a partir do interior da cidade, era feita antigamente atravessando as chamadas ′Portas de Santa Catarina′, abertas na muralha fernandina. Demolidas em 1707, as Portas de Santa Catarina deram lugar ao atual ′Largo do Loreto′ ou ′das duas Igrejas′ (Fig.nº 20).

Figura nº20, Anónimo, Largo das Duas Igrejas, antigas Portas de Santa Catarina, Postal, 1925. Em: TAVARES, Marina, 1994, op. cit. Figura nº21, Abel MANTA, Perspectiva da Praça Luís de Camões, 1932. Lisboa: Museu da Cidade.

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Figura nº 22, Planta do Bairro Alto com a indicação da época de construção dos edifícios. Sem escala.

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“O velho Largo do Loreto seiscentista era dos mais bizarros quadros de Lisboa da crónica velha; desde que a área se desafogou nos dois séculos seguintes, mesmo depois do Terramoto, o Largo das Duas Igrejas tornou-se, caprichosamente, um pitoresco sítio de trânsito e de estadia, animado e vivo, passagem obrigatória por tudo quanto Cidade, antes do romantismo, tinha de grácil, de distinto e de popular ao mesmo tempo: caminho de S. Roque e do Bairro Alto”. 38 Saindo das Portas de Santa Catarina encontrava-se a Estrada de Santos ou da Horta Návia, que constituía um dos caminhos principais da Lisboa medieval, levando até Santos e daí até Belém, e a estrada dos Moinhos de Vento ou da Cotovia, que conduzia até São Roque e ao alto da Cotovia. Estas velhas estradas de acesso à cidade medieval, inicialmente de caráter rural, com o crescimento urbano transformaram-se em importantes eixos de desenvolvimento. A Praça Luís de Camões (Fig. nº 21), em frente do largo das Duas Igrejas era, ainda no século XV, um ermo com terras de semeadura. Com o crescimento da Vila Nova de Andrade foi aí construído um grande quarteirão de prédios, onde se elevava o Palácio, casas e anexos, dos Condes de Cantanhede, depois Marqueses de Marialva. O Terramoto arruinou o complexo, que foi abandonado e sofreu estragos sucessivos, passando-se a chamar o sítio dos 'casebres do Loreto' (Figs. nº23, 24). Em 1859, o palácio em ruínas foi definitivamente destruído por ordem da Câmara, que deu início às obras para a construção da atual praça, que ficou concluída em 1867.

Figura nº23, Julio de CASTILHO, Os Casebres do Loreto, fachada sobre a rua directa do Loreto como eram em 1859, 1859. Fonte: CASTILHO, Lisboa Antiga o Bairro Alto, 1954−1966. Vol. II. op. cit.. p.86A. Figura nº 24, Julio de CASTILHO, Os Casebres do Loreto, antigo Palácio dos Marqueses de Marialva como eram em 1859. Fachada sobre o Largo das duas Igrejas, 1856. Fonte: CASTILHO, Lisboa Antiga o Bairro Alto, 1954−1966. Vol.II. op. cit., p. 84A.

38

ARAÚJO, Norberto de, 1993, Vol. V, op. cit., p.15.

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Na Estrada de Santos 39, a seguir ao palácio dos Marialvas, sucediam-se os palácios de algumas famílias nobres 40. As primeiras obras realizadas na Estrada da Cotovia 41 processaram-se já em 1569, quando D. Sebastião manda alargar e alinhar a rua, que passa a chamar-se Rua Larga de São Roque. Como consequência destas obras, a rua aristocratiza-se com a instalação, durante os séculos XVII e XVIII, de um conjunto de palácios 42. São contudo as grandes obras pombalinas que vêm dar particular importância a estas duas ruas como ligação entre a cidade alta e a cidade baixa e como continuação da Rua Garrett. “Os grandes conjuntos pombalinos construídos, viram as suas fachadas principais para a rua do Loreto e da Misericórdia, voltando costas ao bairro” 43. A velha Rua Formosa era, até então, uma antiga estrada rural que estabelecia uma ligação entre o Alto da Cotovia e a Calçada do Combro, sem ter a importância de eixo de desenvolvimento da cidade. É também no período pombalino que a Rua de O Século (antes Rua Formosa – Fig. nº 25) ganha importância e se estabelece como fronteira entre o Bairro Alto e a cidade em crescimento. “É sem dúvida o facto de aqui se localizar o palácio da família do Marquês de Pombal, que irá dinamizar toda a zona. As duas grandes meias-laranjas, o conjunto da Rua Pereira da Rosa (antiga Calçada dos Caetanos) formam um cenário de enquadramento ao antigo palácio dos Carvalho”. 44

Figura nº25, Roque GAMEIRO, Rua de O Século outrora Rua Formosa, s/d. Fonte:TAVARES DIAS, Marina, 1994, Vol. IV, op. cit., p.74.

39

Atuais Rua do Loreto e Calçada do Combro. Marqueses de Valada, Marqueses Sousas, Morgados do Calhariz, mais tarde Duques de Palmela, o palácio Marim Olhão e o de André Valente. 41 Atuais ruas da Misericórdia e de São Pedro de Alcântara. 42Os palácios dos Cunha e Menezes (Lumiares), das famílias Ludovice e Santa Iria, dos Condes de Avintes (onde foi implantado, em 1680, o Convento de São Pedro de Alcântara). 43 CARITA, Helder, 1990, op. cit., p.51. 44 CARITA, Helder, 1990, op. cit., p.52. 40

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Nos limites norte do Bairro Alto, desde a Cotovia até ao Rato, verifica-se também um conjunto de grandes obras. Esta zona no século XIX encheu-se de novas casas e palácios elegantes. A sua ligação com o Largo das Duas Igrejas e com o centro da cidade estreitava-se na Rua dos Moinhos do Vento 45, onde existiam edifícios degradados e a zona do miradouro de São Pedro de Alcântara que, em princípios de 1800, era utilizada como lixeira. A renovação de São Pedro de Alcântara (a partir de 1830), do Jardim do Príncipe Real (1833-1869), o alargamento da Rua dos Moinhos de Vento (1880) e a demolição do palácio dos Salemas (1883), que permite a retificação da Rua dos Moinhos de Vento, proporcionam à zona uma vivência burguesa e um novo conjunto de edifícios: “Mais uma vez o Bairro Alto é envolvido […] por uma outra ambiência bem diferente da do seu interior. Este último conjunto de edifícios estabelece o fecho final da barreira que se constituiu durante o séc. XVIII e XIX à sua volta e de costas viradas para ele”. 46 Nos últimos dois séculos o interior do Bairro Alto não sofreu grandes alterações, apenas intervenções pontuais. No geral, verifica-se o empobrecimento da área, cuja estrutura fundiária é pouco apelativa para a construção de novos edifícios. Verifica-se uma densificação da população, sendo o fenómeno mais generalizado a construção de novos andares e a construção de mansardas e trapeiras na maioria dos antigos edifícios dos séculos XVI e XVII. Uma análise rápida da malha interna do Bairro Alto permite evidenciar o facto de a Rua da Rosa ser a única rua que atravessa o bairro de uma ponta à outra, enquanto as outras vias apresentam pequenos acertos na sua estrutura, remetendo-as para uma escala de bairro. A Rua da Rosa constitui-se, portanto, como eixo funcional da área, cruzado ao meio por outro eixo formado pela Rua João Pereira da Rosa – Travessa dos Inglesinhos – Travessa da Queimada. Com uma estrutura clara tanto ao nível das divisões internas e rigor na sua malha quanto dos eixos de penetração e evidência dos seus limites, o Bairro Alto veio a ganhar independência das zonas limítrofes com as quais cresceu. Por sua vez, as zonas de Santa Catarina, Bica e Chagas, que têm a Calçada do Combro como limite norte, viraram costas ao Bairro Alto, voltando-se para o rio e criando a sua própria identidade.

45 46

Atual Rua de São Pedro de Alcântara. CARITA, Helder, 1990, op. cit., pp.39-40.

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Pode-se concluir afirmando que, após o Terramoto e as obras pombalinas que se lhe seguiram, o Bairro Alto se volta sobre si próprio, criando, no seu interior, um ambiente peculiar de privacidade e ao mesmo tempo de centralidade em relação à cidade em contínuo crescimento.

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3.4 Os Jardins românticos na periferia do Bairro Alto

A malha rigorosa do Bairro Alto foi-se estruturando para lotear o maior espaço possível 47, proporcionando aos proprietários o lucro mais elevado. Como tal, não prevê a existência de jardins ou espaços públicos. É necessário considerar também que, na época de urbanização do Bairro Alto, a cultura urbana não valorizava ainda os jardins como espaços necessários para a vida pública. O espaço público era a rua. No final do século XVIII e ao longo do século XIX, com o romantismo que exigia novos hábitos urbanos e mundanos, os jardins conhecem, na cidade de Lisboa, um enorme êxito. Em resposta aos novos valores higienistas e de aformoseamento, e com a vontade de dotar a cidade de espaços que sigam princípios de comodidade e de estética, são empregues significativos recursos na construção e melhoria de numerosos jardins. O Passeio Público (1764 – 1771), mandado construir pelo Marquês de Pombal, vê a concorrência de São Pedro de Alcântara e, na segunda metade do século XIX, do Jardim da Estrela (1852) e do Jardim do Príncipe Real (1859-63), ambos de gosto romântico inglês 48. A estes se seguem o Jardim de Santos, e, já na década de setenta do século XIX, o Miradouro de Santa Catarina e o Jardim do Torel, juntamente com a obra do Jardim Botânico da Escola Politécnica, com intentos científicos. No recinto do Bairro Alto não existiam espaços disponíveis para responder a estes novos valores. Existiam porém, na sua periferia, três espaços que foram transformados em jardins: Príncipe Real, São Pedro de Alcântara e Santa Catarina, relevantes para a vivência da cidade, bem como para a do Bairro Alto, e cujas histórias são complementares à história da constituição do Bairro. Testemunho da vivência burguesa da Lisboa romântica da segunda metade de Oitocentos, a praça do Príncipe Real foi traçada em 1853 e o jardim foi plantado em 1869, depois de uma longa série de tentativas frustradas para construir grandes edifícios

47

Cfra. cap. 3.5. No final do séc. XVIII, com o aparecimento do Romantismo e da ênfase colocada no pitoresco, através da utilização do selvagem e do natural, do passado e do exótico, são introduzidas importantes alterações na arquitetura paisagística. O jardim romântico inglês, que grande influência teve em Portugal, vê a substituição dos arranjos simétricos e dos caminhos estreitos (típicos do jardim iluminista), por caminhos irregulares, rios e lagos, e por árvores plantadas de forma aparentemente não projetada, com o intuito de conferir uma aparência selvagem. Através de engenhosos artifícios, são criados cenários aparentemente naturais, sem desenhos preestabelecidos. É escolhida uma vegetação exótica, produzem-se jogos de luz e sombra, obtidos através do contraste entre uma vegetação densa e clareiras, assim se estabelecendo ambientes diferentes (exóticos, idílicos, entre outros), nos quais são utilizados elementos tais como ruínas, lagos, ilhotas e tanques. 48

170

e espaços coletivos no sítio, acabando por ser uma marca evidente na cidade pela ausência de construção e pela poesia do seu espaço verde. “Onde hoje sorri, com os seus arvoredos elegantíssimos, as suas flores, as suas alamedas serpeantes e areadas, o jardim municipal, há também muito que ver… no invisível, isto é: muito que espreitar… no passado”. 49 Conhecido no princípio do século XV como Alto da Cotovia, o sítio pertencia ao conde de Tauroca, que projeta construir aqui um grande e luxuoso palácio; as obras foram começadas mas nunca acabadas, provavelmente por falta de verbas, passando o sítio, após a morte do conde, a ser um amontoado de ruínas que, já em 1740, se tornaram na lixeira do Bairro Alto. O terreno foi então vendido aos padres da Companhia de Jesus, que começaram a limpar o espaço com o objetivo de construir um edifício destinado ao Colégio das Missões. Com o Terramoto de 1755, os alicerces do 'Palácio Tarouca' são restos inutilizáveis, e o terreno é empregue como acampamento dos regimentos militares da província, que tinham sido deslocados para a capital depois do sismo para manter a ordem pública. Com o Terramoto ruiu também a Capela Real do Paço da Ribeira, que servia de Patriarcal; foi então decidido erguer no Alto da Cotovia a nova Patriarcal 50, armada em madeira sobre o que restava das grossas cantarias das obras do conde. Era esta uma obra frágil e provisória e, em 10 de Maio de 1769, um sacristão que queria ocultar os seus roubos, deitou-lhe fogo, causando a sua destruição. O desastre teve um grande impacto popular e o local passou a ser conhecido como 'Sítio da Patriarcal Queimada', tendo sido novamente abandonado a um amontoado de pedras e ruínas. Na linha da urbanização pombalina da zona, o terreno foi destinado para a localização de um equipamento público. Em 1789, o visconde de Vila Nova da Cerveira, ministro da Fazenda e presidente do erário, sugere o aproveitamento das ruínas para a construção do Real Erário, a Tesouraria Central do Reino. A obra foi iniciada nos anos noventa, e abandonada logo em 1797 por falta de verbas, voltando o terreno a ser novamente um local de entulho, a que se passou a chamar os 'caboucos do Erário'. A obra monumental chegou apenas à segunda fiada de cantaria acima do solo, conservando-se assim até 1833, quando o governo resolveu limpar o terreno e entrega-lo à Câmara para concretizar a nova Praça.

49 50

CASTILHO, Júlio de, 1954−1966, Vol. V. op. cit., p.7. Em 1761 é aqui celebrada a primeira missa da nova Basílica Patriarcal de Lisboa.

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Do projeto do Erário 51 mantém-se memória no desenho do octógono central, transformado no reservatório edificado pela Companhia das Águas em 1863, cujas margens definem hoje o lago e o reservatório subterrâneo, e cuja água, para além de abastecer o lago do jardim, é direcionada até aos chafarizes do Século, Loreto e São Pedro de Alcântara. Em 1869 é aqui plantado um jardim 52 em estilo romântico inglês, cuja envolvente edificada é cenário de uma nova tipologia residencial, feita para a nova classe privilegiada, constituída por palacetes, muitos dos quais com sabor exótico e romanticamente orientalista. Hoje em dia o jardim 53 é dos mais concorridos da cidade. Falar-se-á mais à frente (cap.6) da sua atual vivência e relevância no panorama imobiliário lisboeta. Seguindo pela antiga estrada dos Moinhos de Vento, pouco antes de São Roque, encontramos um dos sítios mais interessantes da área: o Jardim de São Pedro de Alcântara. Este jardim romântico, considerado dos mais belos miradouros da cidade de Lisboa, no princípio de 1800 era visto apenas como um simples cume bravio, que servia de vazadouro público. O seu nome popular 54 (jardim de São Pedro de Alcântara) deriva da sua vizinhança com o convento do séc. XVII. O espaço tinha sido comprado no princípio do século XVIII pela Câmara Municipal com o propósito de trazer até aqui as Águas Livres, e de construir um aqueduto que passasse sobre o vale que é hoje a Avenida da Liberdade, para levar água canalizada à parte oriental da cidade. A obra ficou inacabada, sendo apenas construída uma muralha de 20 m de altura, dividida em dois tabuleiros, mas ficando o terreno sem utilização. No terreno, em princípios de 1800, realizava-se uma pequena feira que chegou a ser proibida, estando o espaço em péssimas condições. O sítio começou então a ser

51 À longa lista de projetos não acabados para o terreno, acrescenta-se ainda a ideia (1853) da construção dum grande complexo arquitetónico composto por dois edifícios destinados, um a anfiteatro para cursos livres e conferências, e o outro a serões poéticos e musicais, e, ainda, a edificação, no centro do jardim, dum observatório astronómico da escola politécnica. 52 A praça é organizada à volta do grande lago octogonal, em torno do qual se derramam caminhos irregulares que conduzem a espaços diversificados entre si. Segundo a ideia do jardim romântico, são aqui plantadas, de forma aparentemente não projetada, espécies arbóreas das mais diferentes proveniências (como o Cedro dos Himalaias, a Tília Prateada da península Balcânica, a Robínea da América Central e do Norte, a Palmeira do México, ou o Jacarandá do Brasil). O ex-líbris da praça é o Cedro, transformado em monumento botânico graças à estrutura de ferro que orienta o seu crescimento e que proporciona aos visitantes uma das mais agradáveis sombras da cidade. 53 Popularmente conhecido como ‘Jardim do Príncipe Real’, é oficialmente denominado 'Jardim França Borges', por ter sido aqui erguido em 1915 o monumento dedicado ao jornalista, fundador e diretor do jornal O Mundo. 54 O nome oficial é ‘Jardim António Nobre’, em homenagem ao poeta romântico.

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utilizado apenas como vazadouro público e por aí abaixo deitavam-se animais mortos e lixo. Em 1830, com o aquartelamento da Guarda Real da Polícia e a construção das suas cavalariças em frente da calçada da Glória, realizaram-se os primeiros trabalhos do tabuleiro superior da muralha, passando a ser o sítio conhecido como ′horta do Corpo da Polícia′ (antes chamavam-lhe 'Sequeiro de São Pedro'). Em 1835, a autarquia passou a encarregar-se dos passeios públicos, e mandou ajardinar o tabuleiro inferior, construindo duas escadas laterais, que estabelecem a ligação entre os dois pisos. O tabuleiro inferior foi então ajardinado com canteiros e foi colocado um pequeno tanque de repouso e, embutido na muralha, um rochoso com fetos e cascata, cuja água cai num tanque semicircular. A ladear os passeios foram colocados bustos de deuses e heróis da mitologia greco-romana 55 juntamente com algumas figuras históricas ligadas aos descobrimentos portugueses 56. Ao pôr-do-sol o tabuleiro inferior era encerrado, enquanto o tabuleiro superior continuava aberto 57. “Era então este Passeio, como todos ainda o conhecemos, um lindíssimo ponto entre os mais lindos da cidade […] Recinto do maior agrado, e que parecia afastado de Lisboa muitas léguas, pelo seu silêncio e ar bucólico; sítio muito dileto do Cupido platónico, para quem a conversação e um passeio em comum satisfazem todas as ambições. Viam-se pares afectuosos conversando, e dando largas aos seus devaneios na contemplação da Baixa e dos morros orientais. O pior foi que o parapeito de pedra tentou os suicidas, e muitos casos tristes de alucinados, atraídos pelo abismo […]”. 58 Tendo uma muralha de 20 m de altura, que dá para a Rua das Taipas, tentadora para tantos suicídios, sobretudo depois de terem sido fechados os Arcos das Águas Livres pelo mesmo motivo, a Câmara, em 1864, decidiu colocar aí uma grade e um guarda municipal a vigiar o espaço. O jardim de cima também teve a sua grade 59 voltada para a rua.

55

Ulisses, Vénus, Minerva. Afonso de Albuquerque, Camões, D. João de Castro, Infante Dom Henrique, João de Barros, Pedro Álvares Cabral e Vasco da Gama. 57 Esta parte era constituída por uma alameda ladeada por árvores de densa folhagem, entre as quais encontravam-se bancos para o descanso. No meio da alameda foi colocada uma fonte, proveniente do Paço da Bemposta. Em 1904 foi aqui erigido o monumento a Eduardo Coelho, fundador do Diário de Notícias, e outro ao ardina. Muito mais tarde (1952) foram aqui colocados um telescópio e o primeiro “leitor panorâmico” azulejado da cidade, obra do pintor Fred Kradolfer, consistindo este num indicador de panorama que identifica elementos da paisagem. 58 CASTILHO, Julio de, 1954-1966, Vol. III, op. cit., pp.344 – 345. 59 Que terá vindo do desaparecido palácio da Inquisição do Rossio. 56

173

Desde logo foi um dos mais concorridos passeios da cidade, especialmente nas tardes e noites de verão; aqui tinham o hábito de passear algumas das mais relevantes personagens da nobreza e da burguesia lisboeta. Em 1886, o Arquiteto camarário José Luís Monteiro desenha para o espaço um coreto em forma de lira, construído em madeira e coberto de zinco, que se degradou rapidamente. O mesmo Arquiteto é responsável pelo embelezamento dos panos de muralha de São Pedro de Alcântara. Ao longo das últimas décadas de 1800 o jardim transformou-se num espaço de animação noturna, com a organização de vários espetáculos, dos mais diversos programas, desde concertos, representações teatrais, iluminações e o estabelecimento de um café. Em 1896, no tabuleiro inferior, surge o 'Éden-concerto' que animou o espaço, mas “poucos eram os que pagavam bilhete, pois podiam assistir a todo o espetáculo apoiados nas grades de cima”. 60 Houve vários projetos para a alameda, entre os quais o da Sociedade promotora de Belas-Artes que tentou sem sucesso, em 1866, promover a construção de um edifício para as suas exposições anuais, tendo, já em 1909, surgido um projeto para a construção de um palácio, com restaurante e teatro. Porém, apenas se construiu, em 1933, uma pequena escola infantil no tabuleiro inferior e, na década de setenta do século XX, um campo de jogos no tabuleiro superior. Uma recente requalificação do espaço efetuada pela Câmara Municipal, terminada em 2008, retirou o campo de jogos e colocou em ambos os tabuleiros um quiosque. O terceiro jardim que se encontra na periferia do Bairro Alto e que serve os seus habitantes é o de Santa Catarina 61, também conhecido como Miradouro do Adamastor. O jardim situa-se no Alto de Santa Catarina 62 (uma das sete colinas de Lisboa), onde a Rainha D. Catarina de Áustria (1507-1578) fez construir, em 1557, uma pequena Igreja para a Santa Catarina do Monte Sinai; no mesmo ano foi criada a paróquia do mesmo nome. A Igreja foi destruída pelo Terramoto de 1755, a freguesia transferida para a desaparecida ermida do Espírito Santo do Recolhimento dos Cardais e, em 1835, para a Igreja dos Paulistas, na Calçada do Combro. O jardim de Santa Catarina nasceu em 1877 por decisão camarária. Em 1927 foi inaugurado o monumento à figura mitológica do Adamastor. É hoje um dos miradouros mais concorridos da cidade, do qual se pode desfrutar de uma maravilhosa vista sobre o Tejo.

60

FRANÇA, José-Augusto, 1994, op. cit., p. 83. Conta-se que daqui, aquando das invasões francesas, o general francês Junot assistiu à partida da frota que levou a família real para o Brasil (1808). Deste facto terá nascido a expressão popular, sinónimo de frustração, ′ver navios do alto de Santa Catarina′. 62 Que se chamou também de Alto de Belver, Belvedere, Boa Vista ou Pico. 61

174

São estes três jardins, juntamente com a Praça Camões, que ainda hoje servem a população do Bairro Alto. Existiu apenas uma possibilidade de dotar o interior do bairro de um espaço público e de um pulmão verde. O antigo Convento dos Inglesinhos 63 possuía um amplo jardim com árvores centenárias que poderia, quando ainda pertencia à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, ter sido aberto ao público. Esta oportunidade foi perdida, e dificilmente o Bairro Alto poderá vir a ter um dia, no seu interior, um espaço público de qualidade.

63

Este tema será mais amplamente tratado no capítulo 6.

175

3.5 Régua e esquadro.

Foi descrito, até aqui, o modo como ao longo dos quinhentos anos de história do Bairro Alto a sua malha urbana se manteve substancialmente inalterada. Mas qual a razão pela qual se criou esta malha e como foi possível que a mesma se tenha mantido estável ao longo dos séculos? No volume VI da obra Peregrinações em Lisboa de Norberto de Araújo 64, encontram-se duas plantas muito interessantes (Fig.26). A primeira, reduzida da planta de Tinoco 65, mostra o Bairro Alto de 1650; a segunda refere-se ao Bairro Alto da época da publicação (1939), que não difere muito do Bairro Alto atual. É interessante notar como o miolo do bairro se manteve sensivelmente igual ao longo dos séculos. Na segunda planta nota-se a abertura da Praça Camões, e pequenas alterações como o alongamento da Travessa dos Inglesinhos e o fecho da saída da Rua do Trombeta para o Largo do Calhariz. O interesse destas observações é evidente na afirmação de Norberto de Araújo, que refere que o Bairro Alto é um “caso raro de previsão acertada dos urbanistas do século XVI”. 66 Substituídas por um sistema de quarteirões com uma métrica repetida, no Bairro Alto a rua e o beco, que caracterizam a Lisboa islâmica e medieval, desaparecem. Isso constitui um facto novo na cidade de Lisboa, embora já se tivesse experimentado um sistema de quarteirões na Vila Nova da Oliveira 67, onde, porém, a métrica não é sempre exata e os quarteirões são compridos, dando ainda valor à hierarquia entre a rua e a travessa, segundo conceitos medievais. No Bairro Alto, a utilização sistemática de uma mesma métrica de quarteirão permite uma maior e mais racional organização do espaço urbano. Como foi dito anteriormente, não se conhecem com exatidão as formas de divisão fundiária que vieram a estruturar a malha do Bairro Alto, nem um plano urbanístico propriamente dito. Todavia,

nos

documentos

apresentados

por

Mário

Saa 68

referentes

aos

sub-aforramentos da altura de 1513, é utilizado o termo chão para designar os lotes. Este facto sugere uma relação entre as métricas iniciais e a constituição dos lotes e dos quarteirões, sendo o chão uma medida agrária utilizada na Idade Média, que

64

ARAÚJO, Norberto de, Vol. VI, 1993. op cit., pp. 14-15. A planta da cidade de Lisboa de João Nunes Tinoco (1650) reveste-se de particular importância, sendo a mais antiga planta de Lisboa. A planta original desapareceu, existindo apenas a primeira cópia (1850), conservada no Museu da Cidade de Lisboa. 66 ARAÚJO, Norberto de, Vol. VI, 1993, op cit., p.15. 67 Uma breve história da Vila Nova da Oliveira foi traçada no sub-capítulo 3.1 para o qual se remete. 68 SAA Mário, 1929, op. cit.. 65

176

correspondia a um retângulo de 60 palmos (13,20 m) de comprimento por 30 (6,6 m) de largura 69.

Figura nº 26,1 Norberto de ARAUJO, O Bairro Alto em 1650 (planta reduzida da planta de Tinoco) e o Bairro Alto em 1937. Fonte: ARAUJO, Norberto de, Vol. VI, 1993, op. cit., pp.14-15.

Esta medida (embora, às vezes, com pequenas alterações) aparece nos quarteirões e nas construções mais antigas ou menos alteradas, especialmente nos edifícios dos séculos XVI e XVII. Em lotes reedificados, sobretudo nos conjuntos pombalinos e nos do século XIX, esta medida continua a aparecer em múltiplos dos lotes inicias. Da mesma maneira, os edifícios mais antigos (séculos. XVI e XVII) ocupam lotes estreitos que correspondem a metade de um chão, e os edifícios, pela sua distribuição interior e as suas dimensões, aproximam-se das tradições medievais, que melhor serviam as exigências da faixa de população de menores recursos. A malha urbana do Bairro Alto é, portanto, constituída por um parcelamento regular, baseado na medida do chão, que se propagou, ao longo do tempo, de sul para norte. Parece provável que a razão para a conceção desta trama seja a possibilidade de implantar edifícios de diferentes dimensões e importância, utilizando múltiplos ou submúltiplos do módulo base (Fig. 27). Nesta ótica, pode-se olhar para a área do Bairro

69

No Grande Dicionário da Língua Portuguesa encontram-se as seguintes definições: “Chão: medida agrária de 60 palmos de comprido por 30 de largo”. “Palmo: extensão de 8 polegadas ou 22 centímetros”.

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Alto como um loteamento privado ante litteram, onde, de facto, a rapidez de execução e o máximo aproveitamento do espaço disponível são os fatores aos quais é dada maior importância. Neste sentido, o Bairro Alto apresenta características semelhantes aos loteamentos privados do século XX, como, por exemplo, máximo aproveitamento do terreno para construção, normas estritas com relação aos tempos de construção, atenção à facilidade de utilização da viatura (no caso específico o coche) e boas qualidades ambientais. A utilização de um módulo de base facilitava o controlo dos lotes, ao mesmo tempo que permitia o aforamento de terrenos, maiores ou menores, de acordo com a possibilidade económica do interessado, acompanhando o maior ou menor grau de representatividade dos edifícios. Explica-se assim a existência no bairro de lotes com diferentes dimensões, a par da existência de tipos arquitetónicos extremamente heterogéneos. De facto, no Bairro Alto existem edifícios que vão desde as humildes casas construídas nos lotes de meio chão aos palácios construídos num quarteirão inteiro (como, por exemplo, o Palácio Ludovice, de 1747, em São Pedro de Alcântara). Nota-se que a relação entre as dimensões do quarteirão e as ruas e travessas se inverte na fase de urbanização seguinte à instalação da Companhia de Jesus em São Roque (1553). A partir deste momento a urbanização polariza-se em direção à Igreja de São Roque, facto evidente na planta do bairro. Os quarteirões edificados dentro do perímetro constituído pelas Rua da Rosa, Travessa da Queimada, Rua de São Pedro de Alcântara e Travessa da Cara, caracterizam-se por estarem organizados no sentido transversal, virados em direção a São Roque. Existe portanto, nesta fase, uma inversão de 90º da malha urbana, mantendo as dimensões de base dos lotes e a diferenciação inicial entre ruas e travessas. As poucas descontinuidades existentes na malha do Bairro Alto, sobretudo na zona norte, correspondente à terceira fase de urbanização, devem-se à adaptação da malha a terrenos já aforados na primeira metade de 1500 e a algumas preexistências no local, como, por exemplo, o palácio do Cunhal das Bolas (Rua Luz Soriano nº 180182). Foi exatamente o rigor com que a malha se foi estruturando que permitiu a sua sobrevivência ao longo dos séculos. No período pombalino o Bairro Alto não sofreu grandes alterações. Isto aconteceu, por um lado, porque apenas uma pequena parte do bairro foi gravemente afetada pelo Terramoto e, por outro lado, porque a métrica pombalina de quarteirão era incompatível com a métrica de quarteirão do bairro. Apenas uma expropriação de grandes dimensões teria permitido grandes construções que 178

respeitassem a métrica pombalina. De facto, numa pequena área (Ruas da Misericórdia e Loreto) foram efetuadas expropriações para permitir a construção de edifícios pombalinos, que, com a sua monumentalidade, constituem parte da cintura de envolvimento do bairro. Os edifícios construídos no período pombalino no interior do Bairro Alto são obrigados a adaptar-se à métrica da malha quinhentista. Todavia, se a forma da malha urbana não se altera, altera-se a imagem arquitetónica na vertical: a horizontalidade primitiva transforma-se com a emergente tendência para a verticalidade. A vontade de uma maior rentabilidade do solo, relacionada com as qualidades de centralidade que o bairro vinha a adquirir em relação à cidade em crescimento, leva a um aumento do índice de ocupação. Muitos edifícios são ampliados nos antigos logradouros, transformados em saguões, enquanto os edifícios dos séculos XVI e XVII são aumentados em altura um ou dois pisos. Esta nova tendência para a verticalidade faz com que as ruas percam as suas características de boa iluminação e ventilação, que distinguiam a área no século XVI, quando o Bairro Alto era considerado “[...] o sítio mais alto da cidade, o mais descoberto ao norte, o mais lavado dos ventos, o mais purificado dos ares”. 70 O aumento das cérceas dos edifícios e os poucos edifícios pombalino, no entanto, não destrói a unidade arquitetónica e métrica do bairro. No final do século XVIII e princípios do século XIX, os edifícios em gaioleiro têm a mesma dificuldade de acomodação à malha urbana, podendo ser construídos apenas quando era possível juntar vários lotes. Estes casos são raros no Bairro Alto, o que faz com que o bairro tenha chegado até hoje “[...] em termos de grande conjunto, como uma unidade urbana, única na cidade”. 71 A existência de quintas ou grandes terrenos, na posse de uma única pessoa ou da Igreja, permitiu o surgimento de pequenas variações na malha regular do bairro. Estas zonas, presentes sobretudo a poente, são de fácil identificação por se constituírem como uma evidente alteração à malha ortogonal. Geralmente tratava-se de terrenos periféricos na data da fundação do Bairro, e que durante muito tempo mantiveram um caráter rural. Com o crescimento da cidade foram aforados, oferecendo uma certa heterogeneidade à malha do Bairro Alto. O caso mais evidente deste fenómeno é do Alto do Longo.

70

TELES, Pe. Baltazar – Chrónica da Companhia de Jesús na Privíncia de Portugal. Lisboa : por Paulo Craesbeeck, 1645-[1647]. [s.ISBN], Parte II, pp. 101-102. 71 CARITA, Helder, 1990, op. cit., p.50.

179

Figura nº 27, Estudo métrico de um troço do Bairro Alto, com a indicação do módulo de base (chão) 72.

72Publicado

em: PAVEL, Fabiana − Architecture and society in Bairro Alto. Prostitutes, artists and stabbings; palazzi, streets and alleys. Em: MARQUES, Lénia; RICHARDS, Greg (coord.); Creative Districts Around the World. Celebrating the 500th anniversary of Bairro Alto. Breda: NHTV, 2014. pp.9-16. ISBN: 978-90-819011-3-0.

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No quarteirão entre a Rua da Rosa, Travessa do Conde de Soure, Rua de O Século e Rua Dom Pedro V, existiu o palácio e a quinta dos Condes de Soure, que, no século XVIII, abandonaram a zona 73, mudando-se para a Penha de França. A ruína de parte do edificado durante o Terramoto levou o Conde a aforar, em 1818, parte das construções do conjunto bem como os terrenos agrícolas. Esta pequena urbanização (Alto do Longo) é particularmente interessante porque não retira ao sítio o seu caráter rural. A zona do Alto do Longo ainda hoje é constituída por casas baixas, de origem humilde, à volta de um pátio irregular, criando um ambiente único na malha do Bairro Alto. A retificação da Rua dos Moinhos de Vento e os prédios de quatro e cinco pisos construídos no final do século XIX, quase escondem este pequeno conjunto semi-rural. É interessante notar que toda a área do Bairro Alto entre a Rua da Rosa e a Rua de O Século, o Cunhal das Bolas e o Alto do Longo, mantém, ainda hoje, uma certa ambiência rural, até na toponímia das ruas: Vinha, Loureiro, Parreiras (hoje Cruz de Soure). Uma outra alteração refere-se ao interior de alguns palácios ou conjuntos de edifícios. Após o Terramoto, os nobres que habitavam a área abandonaram os seus palácios para se transferirem para as suas quintas nos arredores da cidade. Em muitos casos estes palácios foram alugados a gentes de menores recursos através de uma divisão do seu interior. Por sua vez, alguns edifícios foram alterados interiormente para permitir a instalação de unidades industriais (especialmente indústrias gráficas), ou sedes de jornais (séculos XVIII-XIX), criando uma rede de comunicações internas que leva a uma junção de unidades habitacionais, às vezes de quarteirões inteiros. Estas alterações de uso não se manifestaram para o exterior, deixando inalteradas as fachadas e a imagem de conjunto da área. O Bairro Alto evoluiu e alterou-se ao longo dos séculos, seguindo as forças e os eventos que marcaram a evolução da cidade, conseguindo todavia manter-se como 'unidade', como 'bairro' ou 'sistema espacial coerente'. A nível formal, a coerência deste sistema é baseada, como visto, numa estrutura rígida e no respeito de métricas que se repetem. Um dos valores urbanísticos do Bairro Alto reside na ampla gama de variações deste sistema, que permite uma heterogeneidade formal à qual corresponde uma heterogeneidade social, ambas igualmente interessantes.

73

A época de esplendor do palácio foi a segunda metade de 1600. Aqui viveu, em 1699, a Rainha D. Catarina e, em 1724 o Abade de Lyvry, embaixador de França. Neste mesmo palácio foram instalados alguns teatros (1733, o Teatro de Fantoches; 1761, o Teatro de Actores; de 1771 até finais do século XIX, o Teatro do Bairro Alto).

181

As variações no sistema métrico da malha urbana do Bairro Alto conduzem a uma série de tipos de edifícios, que correspondem, por um lado, à época de construção e, por outro, às diferentes classes sociais que aqui se instalaram e aos seus diferentes recursos económicos 74. As tipologias edificatórias do Bairro Alto foram estudadas com grande atenção por Helder Carita 75 e pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) 76. Helder Carita, com relação à tipificação das soluções arquitetónicas, propõe um estudo sobre as variações estilísticas ao longo dos séculos de vida do Bairro Alto, uma análise aprofundada dos principais elementos compositivos (cunhais, portas, janelas, entre outros) e também a identificação na malha urbana dos palácios, edifícios públicos e religiosos existentes ou desaparecidos. O estudo do LNEC, com o objetivo de servir a reabilitação, na vontade de “perseguir a 'vocação tipológica do edifício' [...]”, para que o projeto de reabilitação possa “desenvolver as aptidões e qualidades que se encontram já presentes” 77, proporciona, ainda com relação à tipificação das soluções arquitetónicas, uma definição atenta e pormenorizada das tipologias, seguindo uma lógica temporal, a análise das soluções formais e construtivas e, a partir destes dados, uma análise das principais anomalias funcionais e construtivas presentes no edificado do bairro, bem como alguns critérios e metodologias para a resolução das anomalias presentes. Com base nestes dois estudos que definem e caracterizam a fundo as tipologias arquitetónicas do Bairro Alto, parece útil fazer um sumário e uma rápida descrição das mesmas. Os principais tipos arquitetónicos presentes na área de estudo podem ser organizados em quatro grandes tipologias, correspondentes a quatro grandes períodos históricos: o Da fundação do Bairro Alto (1498) até ao Terramoto de 1755 e à institucionalização do pombalino; o Da segunda metade do século XVIII ao terceiro quartel do século XIX, correspondendo ao período de influência do 'estilo Pombalino' e à sua progressiva atenuação nas referências arquitetónicas e técnico-construtivas; o Do último quartel do século XIX até ao início do segundo quartel do século XX, período caracterizado pela construção de edifícios em 'gaioleiro';

74

Cfra. cap.4. CARITA, Helder, 1990, op. cit. 76 CABRITA, António Reis; AGUIAR, José; APPLETON, João − Manual de apoio à reabilitação dos edifícios do Bairro Alto. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, 1992. ISBN: 972−95834−0−4. 77 Ibidem, p.45. 75

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o Do segundo quartel do século XX até aos nossos dias, com a consolidação do 'modernismo' e a utilização do betão armado. O estudo morfo-tipológico do Bairro Alto evidência a “[R]iquíssima sobreposição e heterogeneidade de linguagens epocais existentes − e tão caracterizadoras deste bairro −, assim como a verificação de que existem muito poucos edifícios que conservam o seu interior e exterior sem significativas alterações às tipologias originárias”. 78 Aquela que é considerada por Norberto de Araújo uma “previsão acertada dos urbanistas do século XVI” 79 parece mais a previsão acertada de um elucidado promotor. Não existe nenhum documento que tenha transmitido a existência de um plano regulador do traçado da Vila Nova de Andrade, a qual se foi construindo a partir de 1498. Alguns autores apontam para a Companhia de Jesus como promotora ou inspiradora deste plano racional: “Fosse quem fosse o intendente das construções [...] o que é visível é que se olhou com certo desvelo para o nascente povoado. Houve plano: e não foi o acaso que o delineou, o acaso, que assim se chamava o arquitecto mourisco da Lisboa velha. [...] sobre aquela amostra de edificação arregimentada, cómoda, e clara, paira (ou eu me engano muito) o pensamento claustral, o espírito luminoso e uniforme da Companhia”. 80 Esta hipótese, proposta antes da descoberta da documentação apresentada por Mário Saa e por Helder Carita, parece pouco provável por uma incongruência temporal. A urbanização do Bairro Alto iniciou-se em 1498, os documentos apresentados por Mário Saa demonstram a existência, se não de um plano, pelo menos de uma série de regras às quais as edificações deviam responder já em 1513, enquanto a Companhia de Jesus se estabeleceu em São Roque em 1553. Além-mar, nas fundações das cidades coloniais, na mesma época, impunham-se, em muitos casos, traçados ordenados “[...] pela sua adaptabilidade – ou indiferença – aos diferentes sítios e pela sua rapidez de implantação no terreno, assegurando desde logo uma distribuição

78

Ibidem, p.45. ARAÚJO, Norberto de, 1993, op. cit., Vol. VI, p.15. 80 CASTILHO, Júlio de, 1954, op. cit., Vol I, pag. 85. 79

183

equitativa dos lotes urbanos ou das quintas suburbanas e uma fácil reprodução face às necessidades de extensão.”. 81 É provável que a utilização de um esquema hipodâmico tenha resultado de um método dedutivo, preferindo “a indução do particular para o general, da casa para o conjunto informal de casas” 82, podendo notar-se também que as ordenações reais davam particular importância aos lotes de terreno e à construção de ruas largas e direitas. José-Augusto França sublinha o facto de que se desconhece a existência de um plano, mas que, vista a clareza e modernidade do traçado, é provável que tenha havido um, que pode também ter sido “resultado [...] da sobreposição empírica de vários” 83. Nesta linha de pensamento, parece provável que o traçado do Bairro Alto seja fruto de uma previsão de parcelamento do território e da imposição de uma série de regras por parte dos seus promotores: as famílias Andrade e Atouguia. Numa época em que a cidade de Lisboa estava a ser reorganizada segundo programas régios e uma nova legislação, e em que se impunha uma “arquitectura de programa” 84, as famílias Andrade e Atouguia, nos contratos de aforamento e sub-aforamento das antigas Herdades de Guedelha Palançano, estabelecem uma série de regras que se baseiam nos princípios das reorganizações régias, e que se referem ao ordenamento do território, às métricas de loteamento (o chão) e aos métodos e tempos de construção. Resulta, portanto, pertinente afirmar que o ′plano empírico′ de urbanização do Bairro Alto, a que vários autores se referiram, seja apenas o resultado da aplicação das regras impostas nos contratos de aforamento da Vila Nova de Andrade. Terá sido esta regulamentação a permitir a modernidade e racionalidade do traçado regular do bairro e da sua arquitetura, que se afasta, desde o seu começo, da do período medieval, permitindo a construção de um bairro considerado ainda hoje único na cidade de Lisboa.

81 PORTAS, Nuno – Interrogações sobre as especificidades das fundações urbanas portuguesas. Em PORTAS, Nuno – Os tempos das formas, a cidade feita e refeita. Vol1. Braga: ed. Universidade do Minho, 2005. ISBN: 9789729982200. p. 20. 82 Ibidem, p.20. 83 FRANÇA, José-Augusto. 1987, op. cit., p. 28. 84 CARITA, Helder, 1999, op. cit. p.106.

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Na página anterior: Mescal, bar do Bairro Alto. Foto da autora.

4.1 Toleradas, fadistas e facadas.

Os escombros dos edifícios arruinados pelo Terramoto caracterizavam, na secunda metade do século XVIII, o centro da cidade. O medo dos abalos de terra estava tão vivo na memória da família real, que esta preferiu ir morar em aposentos de madeira em Belém. O exemplo real foi seguido por muitas famílias nobres, não apenas pelo medo de novos terramotos, mas também por moda 1. Assim, muitos dos palácios nobiliários do Bairro Alto foram abandonados, tendo os seus proprietários preferido habitar pequenas casas de madeira, construídas nos jardins dos palácios de veraneio. Se o Terramoto não afetou gravemente a arquitetura do Bairro Alto, a não ser numa pequena área limítrofe à atual Praça Camões, alterou, em parte, a sua composição social. A decisão da nobreza de abandonar os seus palácios no centro da cidade fez com que os mesmos tenham sido deixados ao abandono ou alugados a famílias de poucos recursos, o que viria a contribuir para a degradação dos edifícios. “[A]inda em finais de Setecentos, famílias inteiras viviam em casebres miseráveis ou nas ruínas dos palácios e casas destruídas pelo Terramoto, por onde vagueavam muitas crianças esfarrapadas. À noite tais sítios eram extremamente perigosos. «Os malfeitores servem-se de facas pontiagudas para cometer os assassinatos [...] quase sempre resultado de vinganças pessoais ou de ciúme. Os ladrões contentam-se com a ameaça» ”. 2 Esta situação modificou a convivência entre as classes sociais no Bairro Alto. Devido à vizinhança com o porto e com as atividades ligadas à navegação, existiu sempre no Bairro Alto um ambiente de alguma marginalidade, prostituição e atividades ilícitas; edifícios da nobreza ladeavam as humildes casas dos ‘homens do mar’. Tinha-se criado uma mistura social peculiar, que originou “uma personalidade destacada nos aglomerados bairristas do século XVI e XVII”. 3

1 “O rei, a rainha, D. Pedro, irmão do rei, as suas três filhas e o moço príncipe da Beira viviam numa longa fila de aposentos de madeira em Belém. Os terrores e as recordações do terramoto estavam tão profundamente vivos nos seus espíritos, que preferiam habitar em casas de madeira a correrem o risco de viver em edifícios de pedra, fosse dentro ou fora de Lisboa. [...] Aliás, o exemplo real era seguido por muitos nobres e verificava-se, não só devido ao medo, mas também à moda e a vaidade. Gorani e Baretti conheciam pessoas cujas casas estavam situadas em bairros que não foram atingidos, mas que preferiam absolutamente uma barraca, porque estavam persuadidos que ter um tal género de habitação era sinal de grandeza e qualidade”. (BRAGA SANTOS, Piedade; RODRIGUES, Teresa; SÁ NOGUEIRA, Margarida – Lisboa Setecentista vista por estrangeiros. (1º ed. 1987). Lisboa: Livros Horizonte, 1996. ISBN: 972-24-0991-3. p.20.) 2 BRAGA SANTOS, Piedade, et al. 1996, op. cit., p.50. 3 ARAÚJO, Norberto de, Vol. VI, 1993, op. cit., p.12

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Sobre essa convivência que existia entre as diferentes classes sociais no Bairro Alto, Amorim Rui refere o papel do futuro Marquês de Pombal: “Possivelmente a mais célebre personagem aqui [no Bairro Alto] nascida foi Sebastião José de Carvalho e Mello, o marquês de Pombal, que toda a sua juventude passou-a, acompanhado por um punhado de ′rapazes de bem′, em arruaças por essas vielas e tabernas. Os ′capotes brancos′ foram o terror do bairro na primeira metade do século XVIII” 4. Os Capotes Brancos, chefiados pelo futuro Marquês de Pombal, tinham como base uma taberna que se encontrava na rua da Rosa nº 148-154. Daqui partiam pela noite fora em brigas e facadas contra o bando dos Capotes Pretos, chefiado pelo Infante D. Francisco, duque de Beja e irmão de D. João V. Estes, por sua vez, tinham como base uma taberna na rua da Vinha nº 20. Estes bandos, que aterrorizavam as noites do bairro, constituídos por jovens fidalgos e marujos, são um exemplo das relações intricadas entre aristocráticos e populares. De condição popular, com forte centralidade em relação à cidade mas, ao mesmo tempo, com forte qualidade espacial de intimidade, o Bairro Alto do século XIX torna-se lugar privilegiado para o florescer de um ambiente artístico a par de uma certa marginalidade. O Bairro Alto torna-se num dos lugares marcantes da Lisboa boémia, persistindo uma forte relação entre o mundo da prostituição e outras atividades ilícitas e o ′respeitável′ mundo burguês. Se o espaço social boémio do Bairro Alto do início do século XIX pode parecer um espaço fechado sobre si próprio, ele mantém, todavia, uma relação viva com o mundo que está à sua volta. A sociedade portuguesa da época (como a de toda a Europa) era fortemente moralista, com diferenciações sociais de prestígio, condição, fortuna, e onde a mulher era vista de duas maneiras: ou a 'donzela pura e imaculada', ou a 'mulher pública', a prostituta 'imoral'. É neste século que a mulher 'virtuosa' começa a ganhar o direito de estar à janela e passear pela rua 5. Ao mesmo tempo inicia-se uma ′perseguição′ à prostituta, com o objetivo de retirá-la da vida pública, isolando-a, tolerando-a e controlando-a com disposições legislativas. Paralelamente, segundo Pais, “[…] os códigos de honra do puritanismo estavam intimamente relacionados com a perversão”. Se em casa eram aplicadas rígidas normas de virtude, fora de casa “[…] estes furibundos apóstolos dos bons costumes que exigiam

4

AMORIM, Rui em CACHULO, Marina e COCEIRO, João (coordenadores) - Bairro Alto e seus amores. Lisboa: URBE, 1990. [s. ISBN] p.35. 5 Nesta época surge, em Lisboa, um novo tipo de espaço público urbano para a burguesia, sendo criados o Passeio Público e alguns jardins como São Pedro de Alcântara, Príncipe Real e Estrela (Cfra. Cap 3.4).

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de sua mulher uma fidelidade irrepreensível tinham atitudes contraditórias”. Por um lado, a vida em família era idealizada e vista como um refúgio contra os males da cidade, por outro, “[…] a vida em público como domínio imoral tinha um significado diferente para homens e mulheres. Para as mulheres representava um lugar onde se corria o risco de se perder a virtude [...]. Para os homens, a vida em público tinha uma tonalidade moral diferente.” Na vida pública “[…] o homem libertava-se airosamente dos códigos de dignidade e pudor que se supunham dever estar encarnados na sua pessoa enquanto pai ou esposo no âmbito da esfera familiar”. 6 Neste contexto, é possível distinguir duas cidades diferentes, a da sociedade 'respeitável' e a da vida 'imoral'. “[...] a Lisboa boémia é essencialmente uma região de valorização e intensificação do indecente e do imoral, onde se cruzam discursos ilícitos e condutas de infracção; uma região associada a práticas de apropriação colectiva de um tempo/espaço onde a noite aparece como a mais subtil fronteira que separa a boémia da 'sociedade respeitável'”. 7 Deste modo destaca-se uma 'certa Lisboa' como antro de marginalidade, cuja especificidade se constitui no espaço urbano que a circunscreve (Bairro Alto, Alfama, Mouraria...) e onde são relevantes as relações que se estabelecem entre os seus múltiplos atores: prostitutas, chulos, fadistas, marialvas 8, proprietários de tabernas, entre os outros. O espaço urbano, bem como as relações que aqui se estabelecem, são descritos por Avelino de Sousa no seu texto Bairro Alto. Romance de costumes populares 9. Situando-se em finais de 1800, o romance tem como protagonistas Gabriela, senhora de boa família que vive num palacete na Rua Formosa (atual Rua de O Século), e Adelaide Pinoia, prostituta matriculada, que vive e exerce numa pequena casa na travessa do Poço da Cidade. Os destinos das duas mulheres cruzam-se por estarem ambas apaixonadas pelo Dr. Luís Galvão:

6

PAÍS, Maxado José – A Prostituição e a Lisboa Bohemia. Do século XIX a inícios do século XX. Porto: Ambar, 2008. ISBN: 978-972-43-1317-7. p. 59. 7 Ibidem, pp. 27-28 8 “Chulo: fadista; aquele que vive à custa da mulher. Fadista: mulher que se entrega a prostituição; homem vadio; brigão; desordeiro. Marialva: indivíduo de família distinta que leva vida dissoluta, convivendo com fadistas e toda a casta de boémios”. No “Glossário de termos e expressões usados na gíria da Lisboa boémia do século XIX”. Em: PAÍS, Maxado José, 2008, op. cit., pp. 169-183. 9 SOUSA, Avelino de − Bairro Alto, romance de costumes populares. Lisboa: livraria popular: 1944. [s.ISBN]

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“[...] cínico, sempre metido de gorra com rufiões e gatunos, principalmente na taberna da Tia Conceição, na rua da Atalaia, que é o quartel general da malandragem que envergonha o nosso Bairro Alto!”. 10 Encontramos, ao longo da história de Gabriela e de Pinoia, um desfile de malandros e ladrões, prostitutas, fadistas e literatos que habitam a vida noturna do Bairro Alto com numerosas tabernas e casas de pasto 11. Estas personagens cruzam-se nas em situações sórdidas e perigosas, em brigas noturnas e planos de furtos. Mas o texto apresenta também outras personagens e outras ambiências, como: uma humilde casa na rua da Vinha, habitada por uma família definida como honesta e trabalhadora que não vê com agrado certos 'rufiões' do bairro; ou os salões nobres do palacete da Gabriela, onde, numa das fronteiras que dividem o bairro do resto da cidade (a Rua de O Século), se encontram baronesas, burgueses endinheirados e grandes literatos. Trata-se de uma sociedade plena de contrastes, na qual as prostitutas misturam-se com as senhoras 'fidalgas' na multidão da procissão do Senhor dos Paços da Graça em São Roque12. A prostituta é uma figura fulcral no Bairro Alto do século XIX, e que persiste, em parte, no século XX e XXI. A sua presença nesta área terá começado desde os primórdios do Bairro, devido à vizinhança com o porto, mas é na segunda metade de 1800 que esta atividade se acentua, bem como os regulamentos que visam circunscrevê-la. Em 30 de Julho de 1858 é promulgado o primeiro Regulamento Policial de Meretrizes e Casas de Toleradas da Cidade de Lisboa, com o objetivo de salvaguardar a respeitabilidade da ‘mulher virtuosa’, afastando as meretrizes da vida pública. Consequentemente cresce o número de casas de toleradas em várias freguesias da cidade de Lisboa. Marina Tavares Dias refere como, no Bairro Alto, “o negócio por excelência era a prostituição”:

10

SOUSA, Avelino de, 1944, op. cit., p. 65. De todas as tabernas e casas de pasto descritas no romance, há algumas que perduram até hoje, com o mesmo nome embora com proprietários e vivências diferentes, como, por exemplo, o Tacão Grande na Travessa da Cara. Muitos dos ambientes são descritos no seu interior, e também é delineada a sua história. Este tipo de descrição é feita também para as habitações e outros equipamentos, como a esquadra da polícia que na época se encontrava na esquina entre a Rua dos Calafates (atual Rua do Diário de Notícias) e a Travessa dos Fiéis de Deus. 12 “Umas das mais notáveis procissões de Lisboa, cujo trajecto vinha desde São Roque até à igreja da Graça, parando em sete passos comemorativos de outras tantas cenas da Paixão de Cristo. Tratava-se duma procissão ao mesmo tempo aristocrática e popular, evocativa da Via Sacra [...] Era um longo cortejo de mulheres de pés nus e rosto coberto, de penitentes com severas disciplinas, de joelhos, muito clero, secular e regular, sete anjos, com os emblemas da Paixão, a irmandade, com capas de seda roxa, e duas bizarras figuras – o trombeta, que marcava o compasso, e os farricocos, encapuzados ostentando símbolos da morte e da penitência.” Em: SANTANA, Francisco, SUCENA, Eduardo (direção) – Dicionário da História de Lisboa. Lisboa: Carlos Quintas & Associados – Consultores, lda, 1999. ISBN: 972-96030-0-6. p.781. 11

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“Com moradas diversas, [a prostituição] preferia, quase sempre, as transversais do bairro. Na Travessa do Poço da Cidade, pequenos lampiões dispostos em renque enquadravam as prostitutas nas tradicionais ′meias-portas′. [...] Quase todos os primeiros andares se destinavam ao mesmo tipo de comércio. Tudo muito às claras, apesar da luz mortiça do gás da Companhia. O polícia de giro e o guarda-nocturno paravam, muitas vezes, para conversar. [...] as prostitutas locais eram acarinhadas pelo povo que as conhecia, e que nunca se lhes desviava do caminho” 13. Um autor desconhecido, em 1876, oferece os seus versos ao Bairro Alto, em que associa o bairro a certo tipo de atividades: “[...] Recebei, Bairro-Alto, as minhas trovas, / Que com grande tezão foram escriptas, / Cantae-as noite e dia, ó putas novas, / P’ra seduzir as almas dos catitas: / Dae, cantando-as com arte, ao mundo provas / De que tem mais valor Maria Ritas, / Thomazias, Joaquinas, e Therezas, / Que essa corja de vis putas francezas. / [...]” 14 Quase toda a segunda metade do século XIX foi dominada pelo regulamentarismo relativo à atividade da 'mulher pública' na ótica, como sugere Machado Pais, de um “projecto global de exclusão, marginalização e enclaustramento” das prostitutas. Já em princípios do século XX, o discurso dominante tende a assumir uma direção abolicionista, como “análise crítica do regulamentarismo e, particularmente, da instituição que o coroa e do símbolo de isolamento da prostituta: a casa de toleradas” 15. Em particular “[c]om o virar do século [XIX], o espaço prostitucional passa a assentar em circuitos subtis e móveis que as prostitutas percorrem com astúcia (recolage sur le trottoir). O próprio crescimento da cidade de Lisboa fez com que a implantação tradicional das casas de toleradas não tivesse correspondência com as necessidades de um certo tipo de clientela marginalizada em raios periféricos cada vez mais distantes do centro tradicional da boémia lisboeta” 16. A dispersão da procura levou as prostitutas a ampliarem o raio geográfico da sua ação. Ao mesmo tempo, como sugere Machado Pais, factores económicos terão ido contra as casas de toleradas, já que a clandestinidade implicava menores riscos e

13

TAVARES DIAS, Marina, 1995, Vol. IV, op. cit., p. 96. Cancioneiro do Bairro-Alto: coleção de chistosas poesias de um autor patusco offerecidas a certas meninas que fazem certas coisas. Cadiz: [s.n.], 1876. [s.ISBN.] p.3. 15 PAÍS, Machado José, 2008, op. cit., p. 62. 16 Ibidem, p. 144. 14

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investimentos para os clientes e os exploradores da atividade. Estes factores terão jogado a favor do declínio das casas de toleradas. Na tabela nº1, nota-se que a freguesia da Encarnação (correspondente a parte do Bairro Alto) é a mais procurada pelas casas de toleradas sendo a freguesia que conta com o maior número destas casas (37) em 1947. No mundo da Lisboa boémia, a prostituição interliga-se profundamente com o fado (Fig. 28). Na gíria em voga nos bairros boémios da capital é clara a associação entre fado e prostituição: ‘fadista’ tanto pode ser a mulher que se entrega à prostituição, como o homem brigão e desordeiro; 'chulo' pode referir-se ao fadista ou àquele que vive à custa da mulher 17.

FREGUESIAS Encarnação Mercês S. Catarina Camões Ajuda Belém Santos S. José Restauradores S. Nicolau Anjos Socorro Sé e S. João da Praça Castelo

1841

1947

72 21 8 0 7 8 30 30 0 18 2 51 1 6

37 3 0 3 0 0 1 16 11 0 6 25 2 0

Tabela nº1 Número de casas de toleradas em algumas freguesias de Lisboa em 1841 e 1947. Fonte: José Pais, MACHADO, 2008. op. cit., p.145.

Adelaide Pinoia e Gabriela (que, no final da história, se torna prostituta), protagonistas do romance de Avelino de Sousa referido há pouco, cantam este fado: “Quem nasceu no Bairro Alto há-de sofrer e chorar, sem que possa resistir se tiver alma de artista! A ouvir uma guitarra docemente a soluçar, dentro em si há-de sentir qualquer coisa de fadista!

17

PAÍS, Maxado José, 2008. op. cit., pp. 169-183.

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Ser mulher é ser escrava do homem vil, inclemente... Trapo sujo que se lava para servir novamente! Ser mulher, é ser escrava do homem vil, inclemente!

O seu coração magoado, sofre, chora, vibra e canta... Cai na lama, cai no fado, e nunca mais se levanta! Quem nasceu no Bairro Alto há-de sofrer e chorar ao ouvir uma guitarra docemente a soluçar...” 18

D. Carlota Scarnicchia (vulgarmente Escarniche), contemporânea da Severa 19, foi fadista e prostituta conhecida no Bairro Alto. De origem ilustre, entrega-se à vida marginal, levando a própria família, de acordo com a moralidade da época, a repelir publicamente a sua dedicação ao fado e à prostituição, colocando um anúncio num jornal onde se declarava que a rapariga não pertencia à família e nem era seu o apelido que usava. Outra mulher muito conhecida na história do fado foi a Maria Custódia: formosa, de bela voz, desenvolta, fadista, exercia a profissão de prostituta na Travessa dos Fiéis de Deus. São estas algumas das figuras que se podem encontrar ao longo da história do Bairro Alto, do fado e da prostituição, e que, ainda hoje, persistem no imaginário coletivo. A figura do homem fadista da época é profundamente ligada à boémia e à navalha. Pinto de Carvalho descreve assim o fadista:

18

SOUSA, Avelino de, 1944, op. cit., pp.139-140. Maria Severa Onófria (Lisboa 1820-1846) é considerada uma das figuras fulcrais na história do Fado. Nasce e morre no bairro da Mouraria, onde exercia a profissão de prostituta e cantava o fado na tasca da mãe, conhecida como ′a Barbuda′, também fadista e prostituta. Num curto período de tempo habitou no Bairro Alto, na Travessa do Poço da Cidade. 19

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“O fadista - minado de taras, avariado pelas bebidas fortes e pelas moléstias secretas, com o estômago dispéptico, o sangue descraseado e os ossos esponjados pelo mercúrio – é um produto heteromorfo de todos os vícios, atinge a perfeição ideal do ignóbil. Tem sempre um raciocínio imperioso, um argumento pouco friável, uma dialéctica agressiva e resoluta, que não presta flanco ao assalto das objecções – a navalha. [...] Os seus amores são sempre seleccionados entre as rameiras que vigem e viçam na atmosfera microbiana dos bairros infectos [...]”. 20 As tascas e tabernas (como a Taverna da Balbina, na esquina da Rua da Atalaia com a Travessa dos Fiéis de Deus ou a casa de pasto do Morgueira, na Rua das Gáveas) encontravam-se em grande número no Bairro Alto, e constituíam o habitat dos fadistas, que aqui se reuniam, realizavam grandes descantes 21 de fado e preparavam os seus crimes. 22 São numerosos os relatos de crimes perpetuados nesta época no Bairro Alto pela mão de conhecidos fadistas. Pinto de Carvalho (Tinop) refere que: “O fado, a navalha e a guitarra constituem uma trindade adorada pelo lisboeta [...]” 23. É ainda Tinop a contar de como os fadistas que emigram para o Brasil, em particular no Rio de Janeiro aderem às maltas de capoeiras (bandos muito temidos na época) e de como “[...] a fadistagem também se recruta na burguesia, e até na aristocracia [...]” 24. Francisco Câncio referese ao Bairro Alto (bem como à Madragoa, Mouraria, Alfama e Ribeira Nova) como o habitat natural do fadista, que “aí sentia-se como peixe na água”

25

.

Parte da mitologia fadista pertence aos bairros populares da Lisboa do século XIX, quando o fado era vadio e se cantava em tudo quanto era lugar de boémia. Já em finais de 1800 o fado começa a aristocratizar-se passando a ser cantado nos salões nobres, os versos passam a ser escritos por poetas renomados e o fadista vê o seu campo de ação restringir-se pouco a pouco e a sua navalha desaparecer.

20

CARVALHO, Pinto de (Tinop) – História do Fado. 5ª edição (Iª edição 1903). Lisboa: Dom Quixote, 2003. ISBN: 972−20−0379−8. pp. 49-50. 21 Descante: modo de cantar em dueto (em desgarrada ou desafio). No “Glossário de termos e expressões usados na gíria da Lisboa boémia do século XIX”. Em: PAÍS, Machado José, 2008, op. cit., pp. 169-183. 22 “No Bairro Alto notavam-se o fadista Pau de Ferro (...) e o João Arraya serralheiro e filho de um sapateiro da Rua do Norte, à esquina da Travessa do Poço. Frequentava uma tabernória, onde se reuniam fadistas e bandurrilhas. Um tenente Municipal que andava de ronda, entrou ali uma noite e correu todos a chicote. O Arraya, que pertencia ao número, foi esperá-lo para o largo de S. Roque e, arrancando a muleta a um coxo, que aí estacionava habitualmente, rachou a cabeça ao guita desmancha-prazeres” CARVALHO, Pinto de (Tinop), 2003, op. cit. p. 72 23 CARVALHO, Pinto de (Tinop), 2003, op. cit., p. 38. 24 Ibidem. p. 53. 25 CÂNCIO, Francisco,1962, op. cit., pp.61-76.

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Figura nº 28, José MALHOA, O Fado, Museu da Cidade de Lisboa/CML.

No século XX o fado conhece novos caminhos: primeiro a revista e depois, nos anos trinta e quarenta, o cinema. Com o tempo “o fado faz-se turístico e recolheu a lugares onde o pobre fadista de outrora não ousaria entrar” 26. É no Bairro Alto, no Largo Trindade Coelho, que Hermínia Silva 27 abre o seu ‘solar’, restaurante típico onde as refeições são acompanhadas pelo fado (Fig.29). O advento das casas de fado determina uma nova era para o fado. Hoje em dia pode dizer-se que o fado 'vadio' está em vias de desaparecimento. Existem atualmente no Bairro Alto cinco casas de fado de tradição antiga 28. Estes espaços têm um público amplo, com grande presença de turistas. Para os amantes do fado vadio estas casas são lugares de cultura folclorizada e vendida a preços altos. Persiste uma tasca, no Bairro Alto, a Tasca do Chico, na rua do Diário de Notícias, aberta em 1993, onde ainda se canta o fado vadio. Esta tasca ruma contra a corrente, oferecendo um espaço castiço 26

TAVARES DIAS, Marina, 1995, op. cit., p.27. Celebre fadista da segunda metade do sec. XX. 28 Adega Machado (1937), Rua do Norte nº91; Café Luso (1941), Travessa da Queimada nº10; O Faia (1947), Rua da Barroca nº54-56; A Severa (1955), Rua das Gáveas nº51; O Forcado (1967), Rua da Rosa nº219-221; 27

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onde numerosos fadistas amadores ou profissionais atraem moradores, jovens e também alguns turistas.

Figura nº29, Tim BORIC, Eléctrico 24, Largo de São Roque, 1978. Fonte: [Em Linha] [retirado em 01 de Set. de 2012]. Disponivel em: http://biclaranja.blogs.sapo.pt/474157.html .

Em Novembro de 2011, foi apresentada e aprovada a candidatura do Fado a Património Cultural Imaterial da Humanidade 29 (UNESCO), com a vontade de implementar um plano de salvaguarda do património do Fado 30. Nesta ótica, a CML propõe-se divulgar o fado e transformá-lo num produto turístico, trabalhando em cinco áreas programáticas: envolvimento da sociedade civil através da criação de uma rede de cooperação entre instituições diversas; educação e formação através de programas educativos; edição e investigação; ações de promoção a nível nacional e internacional; dinamização e revitalização de espaços tradicionais de fado através da criação e desenvolvimento de circuitos temáticos na cidade de Lisboa, envolvendo os espaços performativos do fado profissional e amador.

29

“O património cultural imaterial, transmitido de geração em geração, é permanentemente recriado pelas comunidades e grupos em função do seu meio, da sua interacção com a natureza e a sua história, proporcionando-lhes um sentimento de identidade e de continuidade, contribuindo assim para promover o respeito pela diversidade cultural e a criatividade humana” em: Convenção para a Salvaguarda do Património Imaterial da Humanidade, UNESCO, 2003 (Artº 2, alínea 1). 30 Neste âmbito é importante também lembrar a existência, em Alfama, do Museu do Fado que, desde 1998, visa salvaguardar as memórias materiais e imateriais da história passada e presente do Fado.

196

A ação que mais interessa no âmbito do presente estudo é a dinamização e revitalização de espaços tradicionais do Fado. Todavia, de momento, os esforços da CML neste sentido foram direcionados especialmente para a Mouraria, por ser considerado bairro berço do Fado, e por as ações se integrarem num programa, ′aimouraria′, mais amplo de intervenção no território 31, assim ficando, de momento, o Bairro Alto à margem destas ações camarárias.

31

Cfra cap. 5.5.

197

4.2 Tipógrafos, jornalistas e artistas.

Desde sempre boémio, o Bairro Alto é lugar não apenas de prostituição e fado mas também de ópera, teatro e ampla produção literária e artística. Na extremidade noroeste encontra-se o quarteirão que outrora foi o Palácio dos Condes de Soure 32. Neste espaço instala-se, em 1733, um teatro de fantoches ao mesmo tempo que, às portas este do Bairro Alto, no Palácio de Fernão Álvares de Andrade, perto do local onde hoje se encontra o Teatro da Trindade, abre a Academia da Trindade (1735), onde, pela primeira vez, se canta ópera num espetáculo público, como, até então, se cantava apenas no teatro régio para a corte. Com a tragédia de 1755, todas as casas de espetáculo da cidade ruíram ou foram abandonadas. Uma vez apaziguado o medo de uma nova catástrofe, começou o movimento de reconstrução da cidade e “[...] houve quem ousasse pensar a sério, e de vez, na distracção artística do Público por meio de um teatro” 33, desta vez de atores em 'carne e osso'. O Teatro do Bairro Alto foi construído em 1760 adaptando parte do palácio dos Condes de Soure, com acesso pela Rua da Rosa. Júlio de Castilho reporta a seguinte descrição do teatro: “É espaçoso. A platêa divide-se em duas; tem uma ordem de camarotes no nível da platêa, a que dão o nome de forçuras; é raro ver mulheres n’estes camarotes, a não ser em noites de enchente real. Tem mais duas ordens de camarotes, sendo onze de cada lado, e cinco no fundo. Da quarta ordem somente metade, do lado da scena, tem camarotes; a outra metade forma galeria. O ponto, como de costume, está na boca da scena, mas em logar elevado, de modo que de toda a parte se vê” 34. É neste teatro que estreia, aos treze anos de idade, Luísa de Aguiar Todi (1753-1833), considerada a mais importante cantora de ópera da sua época, que com o seu talento percorreu a Europa, e que viveu e morreu no Bairro Alto, na antiga Travessa da Estrela, hoje Rua Luísa Todi em sua memória. O Teatro do Bairro Alto possuía, também, um botequim onde “[...] os grupos dos peraltas desdenhosamente envolvidos nos panejamentos dos seus capotes, e discutindo, de tricórnio ao lado e em alta voz” lembravam “os grupos buliçosos do antigo Marrar, ou os do Martinho, ou os do Suísso, discutindo,

32

Cfra. Cap.3. CASTILHO, Julio De, 1954-1966, Vol. IV, op. cit., p.148. 34 Ibidem, pp.155-156. 33

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entre chascos espirituosos, e de charruto ao canto da boca, a balela política da tarde, a chegada de um Príncipe estrangeiro [...]” 35. É novamente Júlio de Castilho que relata como o Teatro do Bairro Alto, embora pobre em termos de decoração, acústica ou iluminação, era ponto de encontro para a Corte e os endinheirados de Portugal, para quem este espaço “[...] figurava então mais do que para nós S. Carlos de Lisboa, a Scala de Milão, ou a grande Ópera de Paris” 36. A decadência da sala começou com a inauguração do Teatro Nacional de S. Carlos 37 (1793). No princípio do século XIX o antigo Palácio dos Condes de Soure, que tinha visto o fausto da Corte, já se encontrava num amontoado de ruínas com poucas zonas ainda habitáveis, onde se refugiavam os mendigos. Em 1879 foi tudo transformado em prédios de rendimento e, hoje em dia, grande parte do conjunto encontra-se ao abandono. Outro teatro que ganhou o nome de 'Teatro do Bairro Alto' (conhecido também como Teatro de S. Roque, ou Teatro Pituresco e Mechanico) esteve aberto entre 1812 e 1835 no atual Largo da Misericórdia, ocupando o antigo Palácio Niza. Todavia este não foi tão notável como o predecessor, sendo vocacionado para os espetáculos de marionetas. Uma vez desinstalado o teatrinho, começou o declínio do edificado, até chegar aos anos vinte do século XX quando o conjunto foi vendido à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa que aí construiu parte das suas instalações. O nome do teatrinho de fantoches instalado em 1733 no Palácio dos Condes de Soure foi apropriado, em 1975, pela Companhia da Cornucópia, que se instalou na Rua Tenente Raul Cascais e que deu ao novo teatro o nome de ‘Teatro do Bairro Alto’, embora se encontre mais perto do Rato. Não apenas de teatros é feita a história artística do Bairro Alto. Na Rua João Pereira da Rosa nº22 encontra-se hoje a Escola de Dança do Conservatório Nacional, e, na Rua dos Caetanos nº29, a Escola de Música do Conservatório Nacional, instalada no antigo Convento dos Caetanos 38. O músico João Domingos Bomtempo (1775-1842) começou, a partir de 1834, um projeto para a reforma do ensino musical em Portugal, ao mesmo tempo que o dramaturgo Almeida Garrett (1799-1854) se movia para a reforma do ensino teatral. É assim fundado, em 15 de Novembro de 1836, o Conservatório de Arte Dramática, que englobava três escolas: uma Escola de Música, 35

Ibidem, pp.176-177. Ibidem, p.178. 37 O qual, por sua vez, veio substituir a Ópera do Tejo, teatro da Corte inaugurado em 1755 e completamente destruído pelo Terramoto no mesmo ano. 38 Os clérigos de São Caetano de Thiene tinham-se aqui instalado em 1653, construindo uma igreja e algumas casas com chãos de semeadura. O Convento foi construído em 1698, após os clérigos terem tido a licença régia para converterem o hospício em Convento (1661). 36

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uma Escola de Teatro e Declamação, e uma Escola de Mímica e Dança. Esta nova instituição instala-se no antigo Convento dos Caetanos, desocupado a partir de 1834 por causa da extinção das Ordens religiosas. Deste modo o Bairro Alto começa a ser o berço do ensino musical 39 e dramático em Lisboa. O ambiente de privacidade e, ao mesmo tempo, de centralidade com relação à cidade em crescimento, que caracterizava o Bairro Alto do século XIX, contribuiu para o fortalecer do clima artístico da área. Muitos artistas escolheram esta zona para viver, entre eles Nicolau Tolentino e Bocage, que aqui passaram os últimos anos das suas vidas e foram sepultados no desaparecido cemitério das Mercês 40. Também Almeida Garrett aqui viveu, na Rua da Barroca, sendo a sua casa um ponto de referência onde se realizavam encontros e debates. Camilo Castelo Branco nasceu no bairro e aqui viveram, entre outros, António Feliciano de Castilho, Ramalho Ortigão e Oliveira Martins. Ao percorrer a ligação entre a história das artes em Portugal e o Bairro Alto, não se pode esquecer a íntima ligação que existe entre o Bairro e a história do jornalismo. Os antigos Palácios abandonados pela nobreza após o Terramoto oferecem, graças às suas grandes dimensões, o local ideal para as redações dos jornais e para as tipografias. A Capital, A Voz, A Tarde, Diário da Manhã/Época, Diário de Notícias, Diário de Lisboa, Diário Ilustrado, Diário Popular, Economista, Extra, Jornal do Comércio, Jornal Novo, Modas e Bordados, O Mundo, O País, O Ponto, O Século, Opção, Record, República, Revolução de Setembro, Século Ilustrado, Tempo, Vida Mundial, e as

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O Convento dos Caetanos alberga hoje apenas a Escola de Música. “[...] pelo Decreto-Lei nº310/83 a estrutura quadripartida do Conservatório Nacional de Lisboa foi dissolvida, surgindo em sua substituição várias Escolas autónomas [...]. Assim, toda a aprendizagem artística e geral passou a estar integrada numa super-estrutura comum mais global, na qual os níveis de ensino seriam divididos em níveis secundários (mais formativos), ligados a escolas de formação geral, e os de nível superior (mais especializados), ligados a Universidades ou a Institutos Politécnicos. Visto duas das anteriores Escolas (Dança e Música) comportarem uma vertente de iniciação mais formativa, verificaramse as suas respectivas divisões em duas escolas, uma de nível secundário e outra de nível superior, dando origem às Escolas de Música e de Dança de Lisboa e às Escolas Superiores de Música e de Dança de Lisboa; as Escolas de Teatro e Cinema deram origem por sua vez à Escola Superior de Teatro e Cinema. Em relação à Escola de Música, tal legislação originou por um lado, uma divisão institucional entre os dois níveis de ensino (geral e superior) que anteriormente se encontravam reunidos, provocando compreensíveis dificuldades de reajustamento [...]. Foi, assim, criada a Escola de Música do Conservatório Nacional (EMCN), que passou a leccionar, apenas o ensino básico e secundário [...] Actualmente, a Escola de Música do Conservatório Nacional é a que mais se tem vindo a identificar com a tradicional instituição, mantendo-se no mesmo edifício dos Caetanos e continuando a ser um dos principais intervenientes da formação musical portuguesa”. BORGES, Maria José - Escola de Música do “Conservatório Nacional de Lisboa” Breve notícia histórica por Maria José Borge - [Em Linha][Retirado em Set 2012]. Disponível em: http:/ /www .em-conservatorio-nacional.com/instituicao/apresentacao/historia/ Em 1987 foi implementada a Escola de Dança com sede na Rua João Pereira da Rosa nº22, ao lado do Convento dos Caetanos. 40 O Cemitério das Mercês encontrava-se no quarteirão delimitado pelas Ruas dos Caetanos e Luz Soriano e pela Travessa das Mercês. Júlio de Castilho refere que se tratava duma capela, e não de um cemitério ao ar livre, onde se encontravam cerca de noventa covas, entre as quais as de Bocage e Tolentino. O edifício foi vendido pelo Estado ao Sr. Alberto Neves que aí construiu a sua fábrica de carruagens. Quando este decidiu, em 1897, fazer obras para melhorar as instalações da fábrica, preocupou-se de pedir que as ossadas aí presentes encontrassem uma colocação condigna. As ossadas foram transferidas, sem cerimónias, para as valas comuns dos cemitérios do Alto de São João e dos Prazeres.

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delegações do Comércio do Porto, do Jornal de Notícias e da revista Notícias de Angola, são algumas das redações que aqui se instalaram ao longo dos séculos XIX e XX. Alguns destes títulos são hoje referenciados em topónimos - Largo Trindade Coelho, Rua de O Mundo (hoje da Misericórdia), Rua Diário de Notícias, Rua de O Século -, ou em monumentos de homenagem - a Eduardo Coelho, fundador do Diário de Notícias, e ao ardina, no jardim de São Pedro de Alcâncara ou a França Borges, fundador e diretor de O Mundo, no jardim do Príncipe Real (Figs.30 e 31) - atestando a forte presença do jornalismo na história do Bairro Alto.

Figura nº30, Monumento de homenagem a Eduardo Coelho e ao ardina. Figura nº31, Monumento de homenagem a França Borges.

Os jornais foram, no século XIX, os maiores arrendatários ou compradores dos palácios do Bairro Alto: o palácio Marim-Olhão recebe a Revolução de Setembro; o dos Viscondes de Laçada o Século; o Diário instala-se no palácio que é hoje a sede do Clube Lisboa-Rio de Janeiro, na Rua da Atalaia com a Travessa da Queimada; logo em frente, no palácio dos Condes de Atalaia, instala-se antes o Economista e depois o Record; na mesma rua, o palácio dos Condes de Tomar recebe o País. Ligadas à atividade jornalística, nascem numerosas casas de pasto, tascas, botequins e casas de fado.

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“Noctívaga por excelência, atribulada e desordenada de horas, toda esta população precisava de lugares para comer, descontrair, trocar ideias e conviver, quer de dia quer de noite” 41. Foram também os palácios, nas antigas cocheiras, lojas e entradas, a fornecer os locais para a instalação das casas de pasto e de fado. No 1º de Maio, no Alfaia, no Farta Brutos ou na Rina, encontravam-se jornalistas, muitas vezes de publicações concorrentes, “discutiam-se notícias, reportagens, gralhas e manchetes, contavam-se anedotas, jogava-se à batota” 42. Toda a vida ligada ao jornalismo (Fig. nº32) confere ao bairro um ambiente peculiar e uma atividade intensa a todas as horas do dia e da noite. “Quando chegava a hora das viaturas partirem para a distribuição dos jornais, o Bairro Alto mergulhava numa azáfama dos diabos, gritavam os ardinas os títulos mais chamativos, mais um dia de trabalho tinha terminado” 43. E um novo dia logo começava. “Na 'região demarcada' do Bairro Alto, convergiam fenómenos culturais tão diversos como as lições de condução de automóveis, a iniciação aos procedimentos da vida sexual, o jornalismo, o fado e outras actividades inerentes ao funcionamento ininterrupto duma cidade sem sono” 44. Na segunda metade do século XX, as redações dos jornais começam a sair do bairro, procurando espaços maiores e de mais fáceis acessos. Atualmente apenas se mantém no Bairro Alto o jornal A Bola. Os palácios abandonados pela nobreza no século XVIII continuam a ser, ainda hoje, espaços procurados por muitos atores (desde empreendimentos imobiliários 45 à projetos artísticos) tanto pelas possibilidades que as suas amplas áreas proporcionam, como pela já referida centralidade do Bairro. De particular interesse são os casos da Hemeroteca Municipal de Lisboa, do Teatro Paulo Claro 46 e do mais recente Teatro do Bairro, instalados em antigos palacetes. Sublinha-se que os últimos dois edifícios já tinham albergado a redação do jornal A Capital e as rotativas do jornal Diário Popular.

41

CARITA, Helder, 1990, op. cit., p.93. NETO, Manuel, op. cit., 1995. 43 ibidem. 44 CACHULO, Marina e COCEIRO, João, 1990, op. cit, p.30. 45 Cfra. Cap.6. 46 Teatro Paulo Claro é o nome que a companhia Artistas Unidos propunha para o teatro a colocar no velho edifício d’A Capital. 42

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Figura nº32, Anónimo, A Redação do ‘Diário de Notícias’ em 1927. Fonte: NETO, Manuel -Bairro Alto: Lisboa República popular; Bairro Alto, o bairro do malhão. Diário de Notícias. (27 Abr. 1995).

O palácio dos Condes de Tomar (séc. XVIII), situado na Rua Dom Pedro V, ao lado da Igreja de S. Roque, foi adquirido pela CML em 1969, e aí foi instalada em 1973 a Hemeroteca Municipal, que deixou de funcionar no palácio no dia 7 de Outubro de 2013 47. Era de particular interesse a colocação da Hemeroteca, biblioteca especializada em publicações periódicas, no Bairro Alto, como homenagem às inúmeras redações de jornais que por este bairro passaram. Todavia a presença na área deste marco da história dos jornais já estava ameaçada há alguns anos. O Palácio encontra-se em muito mau estado de conservação e não estão, de momento, previstas obras profundas para a sua recuperação. Uma notícia de 28 de Junho de 2012, revela que a CML adquiriu o edifício do complexo desportivo da Lapa pretendendo aí instalar a Hemeroteca. Desconhece-se o destino previsto para o antigo Palácio dos Condes de Tomar, que passou, entretanto, a ser propriedade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa 48. Assim o jornalista Carlos Filipe coloca as seguintes questões:

47 Aprende-se do website da Hemeroteca Municipal de Lisboa (HML) que, devido à mudança de instalações, os serviços da HML estão temporariamente indisponíveis e que a sua coleção está inacessível ao público até a abertura das novas instalações no Complexo Desportivo da Lapa, cuja inauguração está prevista para o ano de 2014, data a definir. Fonte: [em linha] [consult. 04 Dec. 2013] disponível em: http://blx.cmlisboa.pt/gca/?id=428 48 A SCML (Santa Casa da Misericórdia de Lisboa) em 2012 celebrou um protocolo com a CML que inclui a permuta de vários imóveis, entre os quais o edifício da Hemeroteca. Fonte: Relatório de atividades da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa de 2012, p.45.

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“[...] mais um destino oficial para a Hemeroteca ... coitada, (...) nunca mais vê é o seu edifício defronte a São Roque ser alvo das merecidas e urgentes obras. Qual é a intenção da CML? Vender o edifício da actual Hemeroteca? Ou, simplesmente, coibir ainda mais as pessoas de a visitarem/consultarem?” 49. O jornal A Capital teve as suas instalações no coração do Bairro, num grande Palácio, que ocupa quase um quarteirão, ladeado pela Rua Diário de Notícias nº78/79, pela Rua do Norte e pela Travessa do Poço da Cidade. O edifício foi cedido temporariamente à companhia de teatro Artistas Unidos, em Novembro de 1999, pela Sojornal, então proprietária do imóvel que, em 2001, passou a ser de propriedade da CML. A 27 de Janeiro de 2000 os Artistas Unidos iniciaram o primeiro espetáculo. Quando a companhia começou a utilizar o edifício, este encontrava-se já em forte estado de degradação. Jorge Silva Mello, diretor da companhia, descreve assim os primeiros tempos de utilização do espaço: “Entrámos n’A Capital, esse enorme edifício abandonado [...]. Ainda não sabíamos o que lá íamos fazer, mas sabíamos que queríamos fazer coisas e coisas em conjunto. Estava tudo sujo, alagado. [...] Fomos limpando, reparando telhas, localizando infiltrações, não tínhamos tempo a perder e também fomos planeando. E, entre detergentes e vassouras, abrimos em 27 de Janeiro de 2000 [...]. Depois, foi o que se sabe: com Vai Vir Alguém de Jon Fosse, encenado por Solveig Nordlund, estreámos a primeira produção nascida naquelas velhas paredes e não parámos: estreámos, repusemos, convidámos, acolhemos, entusiasmámo-nos, recebemos autores, organizadores, falhámos, discutimos” 50. Os Artistas Unidos elaboraram um projeto que previa a transformação do edifício d’A Capital (que necessitava de obras de conservação profundas) num centro de artes. Em Fevereiro de 2000 foi entregue ao então Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Dr. João Soares, o documento ′Um Projecto para A Capital′. A Câmara sempre manifestou à Companhia um forte interesse pelo projeto, que nunca veio a ser posto em prática. Em Agosto de 2002, o edifício d’A Capital foi fechado por problemas de segurança, com a promessa da Câmara de intervir rapidamente para a requalificação e reabertura do espaço. Desde então os Artistas Unidos deixaram de utilizar um espaço fixo, movendo-se de sala em sala até Julho de 2012, data em que é assinado um

FILIPE, Carlos − Complexo Desportivo da Lapa entregue à Câmara de Lisboa. O Público (28 Jun. 2012). ISSN: 0872-1548. 50 MELO, Jorge Silva − Ainda a Capital − Teatro Taborda? Teatro Paulo Claro à vista?. (Jul. 2003). [Em Linha] [Consul. 28 Out. 2012] Disponível na internet: artistasunidos.pt/arquivo/na−capital 49

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protocolo para a utilização do Teatro da Politécnica. Neste protocolo pode-se ler, no ponto b): “As partes reconhecem a indisponibilidade actual do edifício 'A Capital' para nele se materializar a actividade da ARTISTAS UNIDOS e que, com a celebração do presente contrato programa, tal fim deixará de ser reclamado pelas ARTISTAS UNIDOS” 51. Desta forma a companhia teatral encontra finalmente uma sede depois de dez anos de romarias, mas o projeto de um espaço dedicado às artes no edifício d’A Capital morre definitivamente. Ana Henriques escreve num artigo para o jornal O Público: “A Câmara de Lisboa mantém ao abandono o antigo edifício de A Capital desde que, em 2002, dali despejou a companhia de teatro Artistas Unidos, por razões de segurança. «O edifício esteve para continuar a ter um uso cultural mas as obras necessárias ao cumprimento dos regulamentos de segurança e estabilidade obrigavam a um investimento muito forte», conta o vereador da Mobilidade [Nunes da Silva]. «Também se pensou em ali instalar um equipamento social, como um jardim-de-infância, mas encontraram-se outras soluções». Com o parque do Largo do Camões a abarrotar quase constantemente resolveu-se ocupar A Capital”. 52 O edifício d’A Capital poderia ter sido transformado num lugar dedicado às artes, continuando a tradição do Bairro Alto e devolvendo à população um espaço abandonado há mais de uma década. Um artigo da imprensa nacional 53 revela a intenção de a CML transformar o edifício em um silo com 179 lugares para automóveis (metade dos quais prometem-se serem atribuídos a moradores do bairro) até 2014. Melhor sorte teve o edifício onde estiveram as rotativas do Diário Popular 54, na Rua Luz Soriano nº68. Neste espaço, a 3 de Maio de 2011, foi inaugurado um novo teatro que ganhou o nome de 'Teatro do Bairro' 55 (Fig.33). A programação do teatro é ampla, variando entre a música, o teatro e o cinema. O próprio projeto arquitetónico, assinado pelo arquiteto Alberto Sousa Oliveira, reflete a vontade de proporcionar um

51

Contrato assinado entre a Câmara Municipal de Lisboa e a Artistas Unidos, a 25 de Julho de 2012. [Em Linha] [Consul. 28 Out. 2012]. Disponível em: www.cm-lisboa.pt. 52 HENRIQUES, Ana − Bairro Alto com mais estacionamento e parque em estudo no Príncipe Real. O Público (27 Jul. 2012). ISSN: 0872-1548. 53 RODRIGUES, António Pinto – Silo automóvel avança no antigo edifício d’A Capital, Bairro Alto. [Em Linha] [Consult. 5 Mar. 2010]. Disponível em: http://www.tsf.pt/PaginaInicial/Vida/Interior.aspx?content_id=2952692 54 O espaço fazia parte do parque industrial do jornal Diário Popular, e aí funcionou a sala das rotativas entre 1942 e 1992. 55 Explorado pela produtora de cinema e teatro Ar de Filmes, dirigida pelo produtor Alexandre Oliveira e pelo encenador António Pires. A direção artística do Teatro é compartilhada com três instituições musicalmente simbólicas da cidade: o B.leza, na música africana, a Mesa de Frade, ligado à nova geração de fadistas e o Hot Clube de Portugal, que representa o mais antigo clube de jazz do País, fundado em 1948 por Luiz Villas-Boas.

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espaço flexível, capaz de acolher diferentes expressões artísticas. A antiga sala da rotativa é assim transformada em uma ‘black box’, primando pelo apagamento da decoração e passível de se adaptar às necessidades do momento 56, conservando o cariz industrial do antigo espaço.

Figura nº33, Alberto Souza OLIVEIRA, estudo de conceito para planta teatro e para planta café concerto, planta e cortes. Fonte: OLIVEIRA, Souza Alberto – Teatro do Bairro. Lisboa: Uzina, 2012. pp.6-7-26.

56 A sala tem capacidade para 110 lugares sentados, dos quais 80 em auditório retráctil. As duas cotas originais do espaço são mantidas, facilitando a capacidade de alteração do espaço, que se modifica de sala de teatro ou cinema, a sala de concertos ou discoteca com espaço de dança.

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4.3 Caminhando até ao ‘novo’ Bairro Alto.

O Bairro Alto dos nossos dias é muito diferente do que era nos anos sessenta e setenta do século XX, um lugar que a maioria da população do resto da cidade considerava pobre e ‘duvidoso’, marcado por alguma desconfiança pública, “um território impenetrável, de ‘facas na liga’, absolutamente fora de lei” 57, apenas aberto à curiosidade de poucos lisboetas e a um certo espírito boémio ligado aos jornalistas e aos estudantes do Conservatório. É a partir do final da década de 1970 e na década de 1980 que o Bairro Alto começa a ganhar uma nova vida, sobretudo noturna. Graças à existência de espaços disponíveis e com preços de aluguer baixos, e pelo facto de ser uma das poucas zonas da cidade com um hábito instalado de deambulação noturna, começam a abrir bares e discotecas, lojas de decoração e design, que marcaram a vida de muitos lisboetas. Com a Revolução de ’74, o ponto de encontro noturno de muitos lisboetas era a Cervejaria da Trindade, aberta até às duas horas da manhã. Depois desta hora não havia muitas alternativas para os amantes da vida noturna. O músico Gimba (membro da banda Afonsinhos do Condado) conta 58 como certa noite ele e outros jovens, entre os quais Zé da Guiné (Fig.34), figura que se tornará num dos ícones da movida lisboeta dos anos de 1980, decidiram sair da Cervejaria da Trindade e aventurar-se pelo Bairro Alto até chegarem ao bar ‘Arroz Doce’ 59, que, na altura, mais que um bar era de facto um prostíbulo. Através do ‘boca-a-boca‘, o local começou a ser conhecido e durante alguns meses tornou-se num ponto de romaria “numa invasão progressiva, pacífica e tolerada, que mudou para sempre os costumes da casa, e de todo o Bairro, e por conseguinte, da cidade” 60. Zé da Guiné terá sido o primeiro a abrir um bar moderno no Bairro: o lendário Souk, na Rua Diário de Notícias, que será o primeiro local da movida do Bairro Alto. Entretanto Manuel Reis (outra figura icónica da movida lisboeta) já em 1974 tinha aberto, na esquina da Rua da Atalaia com a Travessa da Queimada, a loja de antiguidades ′1900-1930′, e, em 1981, abrirá 61 o restaurante ′Pap’Açorda′, na Rua da Atalaia.

57

GIMBA – Desbravando o Bairro Alto: os pioneiros. [Em Linha] [Consul. 28 Out. 2012]. Disponível em: http://gimba.blogs.sapo.pt/10124.html. 58 Ibidem. 59 Que também se tornará num dos sítios icónicos do Bairro Alto dos anos de 1980, e que hoje em dia mantem o mesmo nome mas uma vivencia completamente diferente. 60 GIMBA, op. cit. 61 Juntamente com Fernando Fernandes e José Miranda.

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É em 1982 que começa a grande metamorfose do Bairro Alto, quando Manuel Reis abre o Frágil, mais uma vez na Rua da Atalaia, no local de uma antiga padaria (Fig.35). A estrutura é mantida mas o espaço é decorado por artistas de renome 62, em resposta às exigências da clientela. Este espaço tornou-se num marco da vida noturna lisboeta, por onde passou toda a geração jovem dos anos de 1980 e 1990. “Num simples bar da Rua da Atalaia, número 126, os jovens esclarecidos do pós 25 de Abril fizeram a revolução simbólica de que precisavam. No sítio certo, à hora certa, o Frágil deu-lhes corda para ascenderem a um país novo. [...] o bar mudou a face do Bairro Alto e instituiu uma nova maneira de fruir a noite” 63. Outro dos pioneiros das noites do Bairro Alto é Hernâni Miguel, que no bairro abriu e ajudou a abrir numerosos espaços – Café Concerto, Ocarina, Lábios de Vinho, Tagus, Três Pastorinhos, Bairro Alto Bar, entre outros – Hernâni afirma que: “Há uma noite ANTES de nós e uma noite DEPOIS de nós.” 64

Figura nº34, Anónimo, Zé da Guiné. Fonte: [em linha] [consult. Set.2013]. Disponível em: www.facebook.com/ZEDAGUINEfilme Figura nº35, Miguel Sá MARQUES, Margarida Martins, uma das mais famosas porteiras do Frágil. Fonte: [em linha] [consult. Set.2013]. Disponivel em: http://lisboasos.blogspot.pt/2012/02/margarida-martinsfotografada-por.html

Já na década de 1990, a explosão da vida noturna no Bairro começa a causar alguns aspetos negativos, em particular a excessiva ocupação por parte dos

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1985 decoração de Cabrita Reis; 1986 decoração de Rui Sanches; 1988 decoração de Francisco Rocha. HORTA, Bruno – O Frágil abriu há 30 anos. Time Out Lisboa (20 Jun. 2012), p22. ISSN: 1711−7976. 64 BATISTA, Ricardo Glenn – Entrevista a Hernâni Miguel. [em linha] [Consult. 15-02-2013]. Disponível em: www. conexaolusofona.org. 63

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estabelecimentos lúdicos e de restauração. Na imprensa nacional começam a aparecer artigos com títulos como: “Os martírios do Bairro Alto” 65 ou “Bairro Alto: morte anunciada da Sétima Colina de Lisboa” 66. Já em 1995, num artigo no Diário de Notícias, Helder Carita alertava para o facto de que: “Dotar

o

bairro

de

modernas

infraestruturas,

percursos

pedonais

ou

parqueamentos, sem assegurar uma verídica e actuante protecção aos actuais moradores e às actividades tradicionais, poderá permitir no bairro – como se tem assistido em outras capitais europeias – alterações incontornáveis às vivências e vocações do bairro, a favor de valores superficiais da ordem do pitoresco e do folclórico.” 67 De facto, a dinâmica dos anos de 1980 transformou o Bairro Alto no ponto de referência da cidade para a vida noturna, provocando a abertura de um número cada vez maior de estabelecimentos noturnos e de restauração. Hoje a frequência do Bairro Alto é muito diferente. O valor icónico de espaços como o Frágil, os Três Pastorinhos, o Kapitan Kirk e o Keops 68, que marcaram as décadas de 1980 e 1990, perdeu-se. Existem novos estabelecimentos que se destacam, bares como Maria Caxuxa, Clube da Esquina, Purex, todos na mesma rua; o novo Frágil e o Cohiba; poucos espaços culturais, como a galeria Zé dos Bois (ZDB). Mas hoje a vida noturna acontece sobretudo na rua. Os bares multiplicaram-se nos últimos anos, substituindo as velhas lojas de bairro, o que tem provocado uma mudança radical na vida diária dos residentes. À noite, especialmente aos fins-de-semana, as ruas ficam repletas de gente, criando graves distúrbios para a população residente, devido ao ruído e à falta de higiene. Isto levou, em Fevereiro de 2009, a que a autarquia decidisse impor o fecho dos bares às duas horas da madrugada durante a semana e às três horas aos fins-de-semana e vésperas de feriado. Esta decisão tem vindo a levantar muitas críticas pela Associação de Comerciantes do Bairro Alto e pelos utentes dos estabelecimentos noturnos: “No passado sábado [1 de Novembro de 2009], quem cruzasse o Bairro Alto às 3 da manhã, encontrava ruas quase desertas e grupos de polícia ao dobrar da próxima esquina. Um cenário ‘inseguro’, afinal, que lembra zonas de exceção. Era este o efeito do ‘plano’ [Plano Integrado de Intervenção no Bairro Alto], logo no

65

PAIXÃO, Guilherme – Os martírios do Bairro Alto. Público (23 Out. 1994). ISSN: 0872-1548. RESENDE, Carlos – Bairro Alto: morte anunciada da Sétima Colina de Lisboa. O Dia (11 Julho 96). 67 CARITA, Helder – Bairro Alto: Identidades e Renovações. Diário de Notícias (27 Abr. 1995). ISSN 08741352. 68 O Frágil foi vendido em 1999, mas manteve o mesmo nome e a mesma filosofia. Os Três Pastorinhos, o Kapitan Kirk e o Keops já não existem. 66

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‘dia 2’ do Bairro Alto com que António Costa sonha: a ‘segurança’ são agora os coletes amarelos, polícias zelosos, que fecham bares e transformam aquelas ruas num palco estranho e militarizado.” 69 Com esta medida, os carros da polícia começavam as rondas pelas ruas do bairro ainda antes das duas horas da manhã para ‘convidar’ os proprietários dos bares a fechar e os clientes a deixar os estabelecimentos, bem como as ruas. Nos últimos quatro anos este tipo de pressão por parte da polícia tem vindo a diminuir, e os fruidores da noite voltaram a ocupar as ruas mesmo depois do fecho dos bares. Observa-se assim uma mudança na utilização do espaço público. Já não se vem ao Bairro Alto para conversar e participar em tertúlias. A maioria dos jovens, divididos em tribos urbanas 70 (Fig.36), encontra-se por volta das 22 horas no Largo Camões e distribui-se pelo bairro segundo áreas bem determinadas, muitos preferindo aos espaços culturais, os pequenos estabelecimentos que vendem apenas bebidas diretamente para o consumo na rua, por oferecerem preços mais baixos. Numerosos comerciantes antigos do bairro criticam este proliferar de pequenos espaços de consumo no exterior, que não propõem nenhuma oferta criativa. A maioria deste tipo de fruidor da noite do Bairro passa aqui as horas que antecedem o ‘início da noite’ em outras zonas da cidade (24 de Julho, Cais de Sodré, Lux-Fragil), aproveitando os preços mais baixos de alguns dos estabelecimentos comerciais do Bairro Alto. Existe de fato um conflito de opiniões e interesses entre comerciantes e moradores. Em Junho de 2012 foram efetuadas, no âmbito deste trabalho, algumas entrevistas aos presidentes das Associações presentes no território, a fim de melhor compreender as diferentes posições de cada um dos atores presentes no bairro. Esta pesquisa tem revelado a presença de quatro 71 Associações ativas no território (Anexo I - Quadro nº1) com missões, objetivos e valores, em muitos casos, convergentes: Associação dos Comerciantes do Bairro Alto (ACBA), Associação dos Moradores do Bairro Alto (AMBA), Associação Mais Cidadania, Lisboa Club Rio de

69 GILLOT, Tiago - Dar a volta ao Bairro Alto. (03 Nov. 2009). [Em Linha] [Consul. 10 Set. 2011] Disponível na internet: http://antigo.esquerda.net/content/view/9252/67/. 70 Para uma das possíveis definições destas tribos e a sua distribuição no território do Bairro, veja-se o texto de RAINHA, Luís - Noites de Lisboa: atribulações, deambulações e outras confusões. Lisboa: Má Criação, 2001. É importante sublinhar que a publicação tem mais de dez anos, pelo qual alguns dos espaços descritos ou já não existem ou mudaram de vocação, considera-se portanto, o texto meramente explicativo de algumas ‘tribos’ presentes no território. 71 Para além das associações aqui reportadas, assinala-se a associação sem fins lucrativos Casa do Brasil. Embora esteja sedeada no Bairro Alto (Rua Luz Soriano nº42) não foi considerada no âmbito deste trabalho por não se tratar de uma associação com atividades inerentes ao território. Trata-se duma associação cujo objetivo principal é dar apoio jurídico a imigrantes, especialmente brasileiros, e divulgar a cultura e as artes brasileiras em Portugal.

210

Janeiro (LCRJ). Através das entrevistas efetuadas 72 identificou-se uma divergência de opiniões, geradora de conflitos, entre a ACBA e AMBA. Para a AMBA o objetivo principal, expresso pelo seu presidente Luís Paisana, bem como pelo documento ′Bairro Alto 2012. Por um Bairro Alto habitável′ 73 é a luta pela proibição da venda e consumo de bebidas na rua, por se considerar a causa principal dos outros grandes problemas do bairro: insegurança e falta de liberdade; salubridade e sujidade das ruas; mobilidade e estacionamento; direito ao descanso dos moradores.

Figura nº36, Esquematização das zonas do Bairro Alto preferencialmente frequentadas a noite por grupos específicos.

Luís Paisana afirma que, se é verdade que parte da identidade do bairro tem a ver com uma história ligada à vida boémia, antes esta vida ocorria dentro de portas, sem causar graves distúrbios aos moradores. A AMBA não se opõe, portanto, à existência dos

bares,

considerando

também

que

muitos

moradores

são

donos

de

estabelecimentos ou aí trabalham. O problema principal será o fato de “as regras não 72 73

Anexo I. Anexo I.

211

serem cumpridas […]Todos os moradores têm direito ao descanso noturno, é um direito expresso na lei do Estado Português. É um direito do qual depende a saúde da pessoa [...].” 74 Quanto aos bares que não cumprem a legislação, Luís Paisana argumenta que existe a ideia de que no Bairro Alto tudo é permitido: “ [o Bairro Alto representa] o local de divertimento da cidade de Lisboa, onde tem toda a variedade de divertimentos, e infelizmente criou-se a ideia que as pessoas aqui podem fazer o que querem, podem gritar, urinar, partir garrafas, drogar-se etc.” 75 Para o presidente da AMBA, esta situação provoca uma grande insegurança, com assaltos a moradores e utentes. Por isso a AMBA afirma que a presença da polícia municipal é insuficiente, devendo ser a sua ação reforçada pela polícia de choque. Enquanto esta situação não for resolvida, a AMBA considera que a reabilitação dos edifícios não é prioritária, por considerar que a diminuição da população residente resulta da falta de segurança pública e dos distúrbios causados pela ‘noite’. Paralelamente, Luís Paisana é favorável aos empreendimentos turísticos de qualidade: “Penso em restaurantes e casas de fado, nos quais, aliás, trabalha gente do Bairro Alto. Penso em atividades que não tenham como público-alvo a pessoa de mochila que não tem dinheiro e que na maior parte dos casos não pode ir a uma casa de fado ou a um restaurante de qualidade. Estas são pessoas que vêm um fim-de-semana, low cost, compram uma cerveja por 1€ e ficam a noite toda a fazer barulho.” 76 Em contrapartida, Victor Silva, presidente do Lisboa Club Rio de Janeiro (a associação mais antiga do Bairro Alto), dirige a sua crítica para a presença e aumento de condomínios fechados e hotéis de luxo: “[...] se tudo se transformar em condomínios fechados, o Bairro Alto vai acabar por parecer um gueto! Já há vários aqui, e as pessoas que lá vivem não se conhecem e não interagem com o resto do bairro. [...] Se continuar assim, o Bairro Alto vai ser o quê? Só condomínios fechados, hotéis de luxo e hostels para erasmus que vêm aqui para se embebedarem? [...] é preciso perceber que esta situação vai dar cabo da identidade do bairro.” 77.

74

Anexo I. Anexo I. 76 Ibidem. 77 Ibidem. 75

212

Víctor Silva, nado e criado no bairro, acredita que a vida noturna faz parte integrante da identidade do Bairro Alto. Mas, como todos os outros entrevistados, considera que o grande problema passa pela falta de civismo de muitas pessoas que “vêm para aqui ‘beber o bairro’, e não trazem nada para ele” 78(Fig. nº37 e 38). Segundo ele, o que está a estragar a imagem do Bairro não são todos os estabelecimentos noturnos, mas os que aproveitam espaços mínimos, sem oferecer nenhum tipo de serviço, nem sequer instalações sanitárias, e que se limitam a vender bebidas para o consumo na rua. Nos anos de 1980 e 1990 já existia um grande número de bares e discotecas, mas a situação não era tão incómoda para os moradores. Segundo Victor Silva, a situação terá começado a alterar-se a partir da Expo ’98 e do Europeu 2004, com o aumento exponencial da procura dos estabelecimentos noturnos, em especial dos que praticam preços baixos.

Figuras nº37 e nº38, Rua do Trombeta, demonstração de indignação por parte dos moradores do bairro contra a falta de civismo.

Victor Silva comenta também o desaparecimento do comércio tradicional: “Antigamente saía-se de casa de roupão e pantufas para ir à mercearia ao lado de casa, hoje em dia isso já não existe” 79. Justifica que, se é verdade que esta situação resulta em parte do aparecimento das grandes superfícies comerciais que oferecem preços com os quais os pequenos comerciantes não podem competir, é verdade também que para parte da população, especialmente os idosos, o comércio de proximidade é essencial. As pequenas mercearias estão a ser substituídas por bares ou lojas de 78 79

Ibidem. Ibidem.

213

design 80. Relativamente a estas últimas, Victor Silva considera a sua presença cada vez mais negativa, tanto pelos casos em que existe uma ′sessão acessória′ para venda de bebidas, que facilmente permite a transformação do espaço de loja para bar, tanto pelo facto de não servirem de apoio à população do bairro. Outra grande questão reportada é a da salubridade do bairro. Grande parte da falta de higiene e limpeza é causada pela sua utilização noturna, embora aquela se deva também à dificuldade de os moradores se adaptarem ao sistema de recolha de lixo implementado pela CML. Este não assenta na distribuição de caixotes, mas na distribuição porta a porta, cada quatro meses, de sacos apropriados e na colocação pelos moradores do lixo doméstico à porta dos edifícios entre as 5 e as 8:30 da manhã. Relativamente a este sistema, Victor Silva considera que: “[...] não está a funcionar. Só se pode pôr o lixo à porta de manha até as 8:30. É claro que, sobretudo para as pessoas de idade, que eventualmente moram num terceiro ou quarto andar sem elevador, é impensável sair de casa nestes horários apenas para colocar o saco do lixo à porta. O que acontece é que as pessoas põem o lixo à porta quando saem de casa por outras razões. O resultado é que há sempre lixo na rua” 81. Relativamente a esta última situação, também a ACBA alertou ultimamente (através do seu blog e de e-mails enviados a comerciantes e moradores) para o grave problema de insalubridade pública causado pelo abandono de lixo na rua a todas as hora do dia e da noite (Figs. nº39 e 40). Belino Costa, presidente da ACBA 82, não nega a existência de problemas causados pela vida noturna, mas argumenta que: “A questão dos conflitos de uso não é nova e nem sequer começou nos anos de 1980. Antes do fenómeno dos anos de 1980 o Bairro Alto era dominado pela prostituição; este era o bairro dos marinheiros e da pancadaria. [...] é sim uma questão que se intensificou nos últimos anos [...] Nos anos de 1970 este era um bairro altamente degradado onde as pessoas temiam entrar, e de facto é a atividade comercial que o regenera.” 83

80

Apesar de não haver dados quantitativos relativamente a este fenómeno, a generalidade das entrevistas efetuadas e a observação direta efetuada durante o desenvolvimento do presente trabalho, confirmam esta ocorrência. 81 Anexo I. 82 Durante o desenvolvimento deste trabalho tem havido uma mudança nos quadros diretivos da ACBA, tendo passado, em 2013, a presidência para Hilário Castro. 83 Anexo I.

214

Figura nº39, ACBA, Travessa da Queimada as 14 horas. Fonte: [Em Linha] [Consul. 10 Set. 2013] Disponível em: http://bairroalto-comerciantes.blogspot.pt Figura nº40, ACBA, Travessa do Poço da Cidade as 17:30. Fonte: [Em Linha] [Consul. 10 Set. 2013] Disponível em: http://bairroalto-comerciantes.blogspot.pt

A seu ver o problema mais grave e que causa grande parte dos distúrbios aos moradores é a massificação do comércio noturno, tanto dos bares quanto dos restaurantes. Quanto a estes últimos, Belino Costa considera que a crescente abertura do bairro para empreendimentos turísticos e de restauração pode “ter consequências terríveis”, porque a concorrência pode levar a que “o bairro se torne numa espécie de feira popular” 84. Relativamente aos bares, a ACBA não nega a existência de “culpas graves”, mas defende os antigos comerciantes contra a “nova geração de ‘comerciantes de vão de escada’ que transformam a rua no espaço do seu estabelecimento” 85. Foi assim que a ACBA decidiu lançar uma campanha para pôr fim à venda de garrafas de vidro na rua e acabar com esta concorrência considerada desleal. O problema do ‘copo de plástico para a rua’ é hoje de todos os estabelecimentos como consequência do fenómeno trazido pelos ‘comerciantes de vão de escada’. Belino Costa defende que a “massificação por baixo preço” do Bairro tem vindo a criar graves problemas não apenas aos moradores, mas também aos comerciantes cumpridores das regras e, em geral, para a qualidade do bairro. Poderiam ser propostas ações que sensibilizassem os utentes para os problemas do bairro, mas a questão essencial passa por procurar consumidores mais exigentes: “O Bairro Alto ou sobe o tipo de oferta ao fim de ter um público mais exigente ou continua neste percurso de decadência” 86. A massificação é, para a ACBA, o grande problema do Bairro Alto, que “pelas suas características espaciais não está qualificado para ser uma zona de fruição de massa”.

84

Ibidem. Ibidem. 86 Ibidem. 85

215

Para Belino Costa, o sentimento de insegurança não deriva essencialmente dos assaltos diários mas dos momentos em que “aparecem grupos [normalmente externos ao bairro] que agem duma forma mais ou menos organizada e que geram o caos”. O momento mais inseguro será “depois dos bares fecharem, quando já não há muitas pessoas na rua e os policiais são quase ausentes” 87. Para melhorar esta situação, a ACBA tem-se batido pela instalação de videovigilância 88 no bairro, considerando-a um “ótimo instrumento de dissuasão”. Relativamente à questão da segurança, Luisa Mangano, presidente da Associação Mais Cidadania (associação que trabalha essencialmente com os jovens do bairro), considera que não existe grande insegurança durante o dia, apenas pequenos furtos e pequenos traficantes de droga, em geral residentes do bairro, que não incomodam os outros moradores. Mais do que para os problemas de insalubridade e de ruído, Luisa Mangano alerta para a presença no bairro de muitos jovens com graves problemas sociais e familiares (prostituição, droga, problemas com a justiça, entre outros).

Figuras nº 41 e nº42, ACBA, Cartazes para as Comemorações dos 499 anos do Bairro Alto. Fonte: [Em Linha] [Consul. 10 Set. 2013] Disponível na internet: http://diadobairroalto.blogspot.pt/

87

Ibidem. Entre Janeiro e Agosto de 2013 foram instaladas 27 câmaras de videovigilância no Bairro Alto, mas, em Dezembro de 2013, a PSP e a CML ainda não tinham decidido uma data para a entrada em funcionamento do sistema. 88

216

Figura nº43, ATELIÊ SILVADESIGNERS, Logo do BA500. Fonte: Comissão dos 500 anos do Bairro Alto. Figura nº44, BA500, Convite para a visita guiada à Igreja de Santa Catarina. Fonte: Comissão dos 500 anos do Bairro Alto.

As questões de insalubridade, ruído e insegurança são também sublinhadas nos programas eleitorais para as eleições Autárquicas de 2013. Todos os partidos que concorreram para a Junta de Freguesia da Misericórdia 89 propuseram a sua resolução. A fim de alargar o conhecimento sobre o bairro, a sua história, as suas vivências e problemáticas, os atores presentes no território, juntamente com especialistas das várias áreas do conhecimento, têm procurado desenvolver vários projetos e atividades. Algumas destas atividades foram praticadas no âmbito das Comemorações do aniversário do Bairro Alto, celebrado a 15 de Dezembro. O ‘Dia do Bairro Alto’ tem sido festejado ao longo de dias e com numerosas iniciativas, promovidas pelas várias associações presentes no território. Em 2012, ano em que se assinalaram os 499 anos de vida do Bairro, o tema principal das Comemorações, que se concentraram na semana de 9 a 16 de Dezembro, foi ‘As noites do Bairro Alto têm dias’, com o objetivo de chamar a atenção para o facto de a vivência do bairro não se limitar à vida noturna (Figs. nº 41 e 42). Em 2013, em que se assinalaram os 500 anos de vida do Bairro, as comemorações iniciaram-se no mês de Março, prolongando-se até Dezembro (Figs. nº 42 e 43). Mais uma vez com o apoio das várias associações presentes no território, da Santa Casa da Misericórdia, da Irmandade de São Roque e das várias instituições com sede no bairro (como, por exemplo, o Conservatório Nacional ou a Hemeroteca), temse desenvolvido um programa amplo de atividades, desde visitas guiadas 90 ao Bairro o

89

Os candidatos à presidência da freguesia da Misericórdia foram: Carla Madeira (PS); Luís Carvalho (PSD/CDS); Paula Cristina Peralta (CDU); António Pinho (BE). As votações aconteceram no dia 29 de Setembro de 2013. Carla Madeira resultou a vencedora. 90 Neste contexto, propiciou-se a possibilidade de divulgar o trabalho desta Tese de Doutoramento junto de um público amplo, através da realização de visitas guiadas e entrevistas a imprensa nacional e internacional. Estas atividades são documentadas no Anexo II.

217

a alguns edifícios simbólicos, a concertos, espetáculos teatrais, ateliers, feiras de artesanato, entre as outras. A presença deste tipo de atividades realça a existência de um movimento de atores, investigadores e moradores atentos às especificidades do território e ativos em projetos direcionados quer para o melhoramento do Bairro, quer para a divulgação da sua história e identidade à população da cidade.

218

4.4 O edificado e a população em números.

A fim de melhor entender as mudanças socioeconómicas e do parque edificado do Bairro Alto analisam-se de seguida os dados dos Censos de 1970 91 a 2011. Para além dos dados publicados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), solicitaram-se a esta instituição outros dados 92, considerados relevantes para o presente estudo. Como já referido anteriormente 93 o território que se analisa neste estudo como ‘Bairro Alto’ não se insere numa única divisão administrativa. Até à recente reforma administrativa da cidade (8 de Novembro de 2012), a maioria do território analisado pertencia à freguesia da Encarnação e uma parte a oeste pertencia à freguesia de Santa Catarina 94. Pretendia-se analisar a totalidade do território através das subsecções estatísticas, mas os dados disponibilizados pelo INE, segundo o ′Programa de Difusão dos Censos de 2011′, não são suficientes para uma análise de toda a área delimitada como Bairro Alto 95 (Fig.nº45). Assim, cingiu-se esta análise censitária do Bairro Alto à freguesia da Encarnação 96, que abrange uma parte importante do território em análise. Sempre que os dados disponibilizados o permitiam procedeu-se à análise por subsecções estatísticas. Interessa também assinalar que as categorias estatísticas e os conceitos relativos à habitação têm sofrido alterações nas últimas décadas, pelo que nem todos os dados são comparáveis entre os vários censos. Adotam-se aqui as categorias e os conceitos utilizados nos Censos de 2011.

91

Os dados relativos aos Censos de 1970 devem ser lidos como valores aproximados, sendo que o 1º Recenseamento à Habitação constitui uma estimativa efetuada com base numa amostra do 20% do universo em estudo. 92 Alojamentos clássicos arrendados segundo o escalão de renda, por estado de conservação do edifício; alojamentos clássicos, ocupados como residência habitual, segundo o estado de conservação dos edifícios, pela entidade proprietária dos alojamentos. 93 Cfra. Cap. 3. 94 Com a reforma administrativa da cidade de Lisboa (8 de Novembro de 2012) estas freguesias foram extintas, passando o seu território a ser englobado na nova freguesia da Misericórdia, que agrega in toto as antigas freguesias da Encarnação, Mercês, Santa Catarina e São Paulo. No específico, a zona entre a Rua da Rosa e a Rua de O Século pertencia a Freguesia de Santa Catarina. 95 No Anexo II se apresenta a troca de e-mails efetuada com o INE, com o objetivo de obter os dados necessários para a análise detalhada relativamente às subseções estatísticas, e a listagem completa dos dados fornecidos a nível das subsecções estatísticas. O INE afirmou que, de acordo com o Programa de Difusão dos Censos de 2011, não é possível obter todos os dados pedidos relativamente às subsecções estatísticas. 96 A freguesia de Santa Catarina têm uma vocação essencialmente habitacional, apresentando em menor número a existência das contradições presentes na freguesia da Encarnação relativas ao turismo, aos serviços noturnos e ao comércio, mais se destaca o facto de o seu território ser mais amplo do da freguesia da Encarnação. Por estas razões optou-se por cingir à análise à freguesia da Encarnação nos casos em que não foi possível analisar os dados das subsecções estatísticas. Passa-se, a partir deste momento, a denominar de Bairro Alto a freguesia da Encarnação.

219

De notar ainda que os dados relativos ao número de edifícios e à época de construção apresentam uma discrepância entre os Censos de 2001 e de 2011: em 2011 foram recenseados um total de mais 33 edifícios que em 2001, dos quais 20 construídos entre 2001 e 2011. Relativamente aos restantes 13 edifícios, construídos anteriormente a 2001, não se encontra justificação, não sendo possível que o número de edifícios anteriores a 2001 aumente em 2011. Na Tabela nº 2 pode-se ver a distribuição dos edifícios por época de construção, e a sua variação entre os dois Censos. Na Tabela nº3, pode-se ver a variação do número de edifícios na área relativa às subsecções estatísticas. Neste caso o fenómeno se inverte, sendo recenseados um total de 13 edifícios a menos do que em 2001. Todavia, em ambas as tabelas, notamos uma variação relativamente aos edifícios em todas as épocas de construção.

Figura nº45, Mapa com a indicação das divisões administrativas anteriores à reforma administrativa da cidade de 8 de Novembro de 2012, e indicação da área relativa às subsecções estatísticas analisadas. (sem escala).

220

Época de construção Ano

Total

2001 2011 2011-2001

19191945

464

Antes de 1919 373

19461960

19611970

19711980

19811990

19911995

19962000*

497

342

+33

-31

20012005

20062011

43

3

11

2

1

22

9

-

-

95

21

5

5

3

1

5

13

7

+52

+18

-6

+3

+2

-21

-4

+13

+7

(* Nota-se que este valor nos censos de 2001 refere-se aos anos 1996-2001, nos censos de 2011 aos anos 1996-2000, podendo, portanto, existir uma discrepância entre os dois valores). Tabela nº2, Variação do nº de edifícios na freguesia da Encarnação, entre os Censos de 2001 e de 2011. (Fonte: INE, Censos 2001, 2011).

Época de construção Ano

Total

2001

685

Antes de 1919 530

2011

669

537

19191945

19461960

19611970

19711980

19811990

19911995

19962000*

31

5

15

2

1

0

87

90

19

4

3

0

1

2

20012005

20062011



− 6

7

2011-16 +7 +59 +14 +11 +1 -1 +1 -85 +6 +7 2001 (*Nota-se que este valor nos Censos de 2001 refere-se aos anos 1996-2001, nos Censos de 2011 aos anos de 1996-2000, podendo, portanto, existir uma discrepância entre os dois valores). Tabela nº3, Variação do nº de edifícios na área do Bairro Alto, segundo os dados das subsecções estatísticas, entre os Censos de 2001 e de 2011. (Fonte: INE, Censos 2001, 2011).

Época de construção Ano

Total

2001 2011 2011-2001

19191945

19461960

19611970

19711980

1845

Antes de 1919 1401

19811990

19911995

19962000*

199

18

29

2258

1440

444

96

17

+413

+39

+245

+78

-12

20012005

20062011

13

7

116

62

-

-

11

12

8

55

138

37

-2

+5

-98

-7

+138

+37

(* Nota-se que este valor nos censos de 2001 se refere aos anos 1996-2001, nos censos de 2011 aos anos 1996-2000, podendo, portanto, existir uma discrepância entre os dois valores).

Tabela nº4, Variação do nº de alojamentos na freguesia da Encarnação, entre os Censos de 2001 e de 2011. (Fonte: INE, Censos 2001, 2011).

A mesma discrepância verifica-se em relação ao número de alojamentos por época de construção. Na Tabela nº4 reportam-se os valores dos Censos de 2001 e 2011, nos quais se pode notar um aumento, nos últimos Censos, não só do valor total (+413) mas também do número de alojamentos construídos antes de 1919, de 1919 a 1945, de 1946 a 1960 e 1981 a 1990. Embora possa ter havido alguma reformulação

221

cadastral, é difícil justificar o facto de que os alojamentos anteriores a 2001 tenham aumentado em 2011. Estas discrepâncias retiram algum rigor aos dados aqui apresentados, mas isso não invalida a pertinência da leitura realizada. Refere-se também o facto de os dados dos Censos relativos à habitação (estado de conservação, época de construção, tipo de estrutura, entre outros) resultarem da observação dos inquiridos, que, na maioria dos casos, não têm formação técnica neste domínio

4.4.1 Evolução do parque habitacional

O parque habitacional do Bairro Alto é antigo, com 68,8% do edificado anterior a 1919, relativamente à freguesia da Encarnação, e 80,27% relativamente às subaceções estatísticas, segundo o Censo de 2011. Entre 1919 e 1995 verifica-se uma diminuição progressiva dos edifícios desta época. A partir de 1996, existe uma leve inversão de tendência com um ligeiro aumento de novos edifícios (Gráficos nº1 e 2). Dado que não existem atualmente vazios urbanos na malha do Bairro Alto, este aumento do número de edifícios indica a ocorrência, nos últimos 16 anos, de ações de renovação urbana assentes na demolição de edifícios antigos e sua substituição por novas edificações. 2006-2011 2001-2005 1996 - 2000 1991-1995 1981-1990 1971-1980 1961-1970 1946-1960 1919-1945 antes de 1919

1,4% 2,6% 1% 0,2% 0,6% 1% 1%

0,0%

4,2% 19,1% 68,8%

20,0%

40,0%

60,0%

80,0%

Gráfico nº1, Edifícios (%) por época de construção, freguesia da Encarnação. (Fonte: INE, Censos 2011).

222

2006-2011

1,04%

2001-2005

0,89%

1996-2000*

0,29%

1991-1995

0,15%

1981-1990

0

1971-1980

0,45%

1961-1970

0,60%

1946-1960

2,85%

1919-1945

13,46%

antes 1919

0,00%

80,27%

20,00%

40,00%

60,00%

80,00% 100,00%

Gráfico nº2, Edifícios (%) por época de construção, segundo as subsecções estatística da área do Bairro Alto. (Fonte: INE, Censos 2011).

Relativamente à necessidade de reparações dos edifícios, observa-se que a maioria do parque edificado (58,4%) necessita de reparações (pequenas, médias ou grandes), e uma pequena parte do total (3,6%) se encontra em estado de grande deterioração. Em números absolutos, do total de 497 edifícios recenseados, 290 têm necessidade de reparação e 18 estão em avançado estado de degradação. Ao comparar estes valores com os da cidade de Lisboa no seu todo, observa-se que o parque edificado da freguesia da Encarnação está mais degradado que a o resto da cidade (Gráfico nº3).

Lisboa

58,4%

54,1% 38%

Encarnação

42,9% 33,8% 27% 18,9% 11,5% 4,4% 5,6%

Sem necessidade Com necessidade de reparação de reparação

Pequenas reparações

Reparações médias

Grandes reparações

0,3%

3,6%

Muito degradado

Gráfico nº3, Necessidade de reparação dos edifícios (%), do município de Lisboa e da freguesia da Encarnação. (Fonte: INE, Censos 2011).

Em relação a 2001, verifica-se uma ligeira melhoria do estado de conservação dos edifícios, com um aumento de 3% dos edifícios sem necessidade de reparações, embora haja um pequeno aumento do número de edifícios muito degradados (de 3,4% em 2001 passa a 3,6% em 2011) (Tabela nº5).

223

Sem Ano

necessidade

Com necessidade de reparações Total

de

Pequenas

Reparações

Grandes

Muito

reparações

médias

reparações

degradado

reparações 2001

35%

61,4%

35,8%

16,4%

8,2%

3,4%

2011

38%

58,4%

33,8%

18,9%

5,6%

3,6%

Tabela nº5, Variação da necessidade de reparações dos edifícios (%), da freguesia da Encarnação, entre 2001 e 2011. (Fonte: INE, Censos 2001, 2011).

Cobertura

Estrutura

Nenhumas

34%

37%

Paredes e caixilharia exteriores 35,2%

Pequenas

35,8%

31%

31,5%

Médias

19,2%

21%

21%

Grandes

7,2%

7%

8,3%

Muito grandes

3,8%

4%

4%

Tabela nº6, Necessidade de reparações (%), freguesia da Encarnação. (Fonte: INE, Censos 2011).

Quanto ao tipo de reparações necessárias, estas são uniformemente distribuídas entre cobertura, estrutura, paredes e caixilharias exteriores, existindo uma média de 5,7% de necessidade de reparações grandes e muito grandes (Tabela nº6). Grande parte do parque edificado (68,8%) foi construído antes de 1919, sendo neste conjunto que se encontra a percentagem maior de edifícios muito degradados ou com necessidade de grandes reparações, enquanto os edifícios construídos a partir de 1961 apresentam um melhor estado de conservação. Conclui-se assim que, embora se constate uma ligeira diminuição (3%) dos edifícios com necessidade de reparações, a situação do património arquitetónico do Bairro Alto mantém-se crítica, apresentando um estado de conservação precário (Tabela nº7) com 62% a necessitar de reparações, referindo-se 24,5% a reparações médias e grandes, e 3,6% a ameaça de ruína. Considera-se preocupante não ter havido uma melhoria substancial do estado de conservação entre 2001 e 2011, e ter aumentado o número de edifícios a ameaçar ruína. Parece também estranho o caso de 5% dos edifícios construídos entre 2001 e 2011 necessitarem de grandes reparações.

224

59,4% 58,1% 2001

2011

25,8% 15,0%

16,1%

5,6% para venda

18,9% 1,1%

para aluguer

para demolição

outros

Gráfico nº 8, Situação dos alojamentos familiares clássicos vagos (%), da freguesia da Encarnação. (Fonte: INE, Censos 2001, 2011)

Uma outra situação que merece ser referida é a existência em 2011 de 58,1% de alojamentos vagos (59,4% em 2001) na categoria ‘outros’. Isto significa a existência de 462 alojamentos fora do mercado, que não aguardam demolição. Qual é então a situação destes alojamentos? Alguns destes alojamentos mais antigos poderão aguardar obras de reabilitação para voltarem a ser colocados no mercado. Noutros casos poderá tratar-se de alojamentos em edifícios devolutos, ou de edifícios devolutos que não podem ser demolidos em que o proprietário, pela própria passividade, contribui para que o tempo agrave o estado de degradação até a sua ruína, permitindo a libertação do solo para especulação 97. Estas últimas duas hipóteses não permitem, no entanto, explicar os 48 alojamentos vagos na categoria ‘outros’, que se encontram fora do mercado, construídos entre 1991 e 2011. Estes poderão ter sido adquiridos como forma de investimento, fator que, todavia, não justifica a sua não colocação no mercado do arrendamento 98.

97

AGUIAR, José; PINHO, Ana; 2006. op. cit., pp. 33-34. 98 Nota-se que os dados apresentados pelo Censo são uma imagem num dado momento, pelo qual não se exclui a possibilidade de os alojamentos em questão terem sido postos no mercado após a realização do Censo.

225

Época de



Sem

construção

total

necessidade

Com necessidade de reparações

edif.

de

Total

Pequenas

Reparações

Grandes

Muito

reparações

médias

reparações

degradado

reparações TOTAL

497

38%

58,4%

33,8%

18,9%

5,6%

3,6%

Antes 1919

348

31,6%

62,9%

34,2%

22,4%

6,3%

3,7%

1919-1960

116

38,8%

56,9%

38,8%

13,8%

4,3%

4.3%

1961-1980

10

60%

40%

40%

-

-

-

1981-1990

3

100%

-

-

-

-

-

1991-2000

6

100%

-

-

-

-

-

2001-2011

20

95%

5%

-

-

5%

-

Tabela nº7, Edifícios por estado de conservação (%), e época de construção, freguesia da Encarnação. Fonte: INE, Censos 2001, 2011).

Segundo o artigo 89º do RJUE 99, as edificações devem ser objeto de obras de conservação pelo menos uma vez em cada oito anos. Caso isso não seja cumprido pelo proprietário, as Câmaras têm a obrigatoriedade de ordenar as obras necessárias, tendo também a faculdade de se substituir ao proprietário no caso de não cumprimento das intimidações. Esta ocorrência parece, de facto, não acontecer.

Com necessidade de reparações

Proprietário com encargos Proprietário sem encargos Particulares ou empresas privadas Ascendentes ou descendentes Estado, institutos públicos, etc. Autarquias locais Empresas públicas

Sem necessidade de reparação 60%

A necessitar de pequenas reparações

A necessitar de médias reparações

A necessitar de grandes reparações

Muito degradado

26%

10%

4%

0%

49%

35%

13%

2%

1%

32%

41%

22%

4%

2%

33%

33%

30%

4%

0%

18%

24%

24%

35%

0%

35%

50%

15%

0%

0%

0%

0%

100%

0%

0%

Tabela nº8, Alojamentos clássicos, ocupado como residência habitual, segundo o estado de conservação dos edifícios, pela entidade proprietária dos alojamentos (%), da freguesia da Encarnação. (Fonte: INE, Censos 2011).

Registe-se ainda que sendo as autarquias locais e o Estado também proprietárias de imóveis, o Conselho de Ministros, com a resolução 24/88, determinou que o Estado

99

DECRETO-LEI Nº136/2014. Diário da República, I série, nº173, 9 de Setembro de 2014, pp.4809-4860. pp.4850-4851.

226

e as instituições públicas deveriam, até 1991, ter providenciado todas as obras necessárias no seu património habitacional 100. Todavia, como mostra a Tabela nº8, os alojamentos que são propriedade do Estado ou das autarquias não apresentam um melhor estado de conservação que os restantes. Embora se observe que os alojamentos muito degradados são propriedade de particulares, empresas privadas e proprietários sem encargos, existe também uma elevada percentagem de alojamentos a necessitar de médias e grandes reparações que são propriedade do Estado (59%), de autarquias locais (15%) e de empresas públicas (100%). “É certo que o elevado número de situações em que as autarquias locais são chamadas a intervir em obras de reabilitação em substituição dos senhorios torna financeiramente incomportável esta atuação, reduzindo a intervenção camarária aos casos extremos. Não é no entanto compreensível, que nos casos em que as próprias autarquias são os senhorios, o estado de conservação dos alojamentos seja francamente pior que a média nacional” 101.

4.4.2 Regime de ocupação

Com relação ao regime de ocupação, nota-se (Gráfico nº4) um aumento da da percentagem de alojamentos ocupados pelo proprietário, em detrimento do arrendamento, e também um aumento substancial de alojamentos em “outra situação”. 67,2% 30,5%

58,2%

2001

2011

35,9% 2,3%

Proprietário ou co-proprietário Arrendatário ou subarrendatário

5,9%

Outra situação

Gráfico nº4, Alojamentos clássicos de residência habitual (%) segundo o regime de ocupação, da freguesia da Encarnação. (Fonte: INE, Censos 2001, 2011)

Analisando os alojamentos por entidade proprietária (Gráfico nº5), verifica-se o aumento da ocupação por parte do proprietário (+5,4%), enquanto os alojamentos propriedade de particulares ou empresas privadas, assim como do Estado, autarquias

100

AGUIAR, José ; PINHO, Ana – Análise quantitativa do parque habitacional na perspectiva da sua reabilitação. Lisboa: LNEC, 2006. ISBN: 728.025.4(469). p.27. 101 AGUIAR, José; PINHO, Ana; 2006. op. cit., p.28.

227

locais, instituições públicas autónomas e afins, tem vindo a diminuir. Apenas a propriedade de empresas públicas verifica um ligeiro aumento do 0,2%. 60,4%

2001

55,6%

2011

35,9% 30,5%

5,4%

4,9% 0,1%

Ocupante proprietário

Ascendentes, descendentes de 1º ou 2º grau

Particulares ou empresas privadas

0,3%

Empresa pública

3,6%

3,3%

Estado, autarquias, inst. Púb. Etc.

Gráfico nº5, Alojamentos clássicos de residência habitual (%) segundo a entidade proprietária, freguesia da Encarnação. (Fonte: INE, Censos 2001, 2011)

Entre 2001 e 2011 diminuem os alojamentos ocupados como residência habitual, a favor dos ocupados por uso sazonal e dos vagos. Os alojamentos de uso sazonal ou residência secundária passam de 7,8% a 15,6%. Isto poderá indiciar, em parte, como se irá ver mais a frente, a crescente utilização de alojamentos arrendados ao dia a turistas em substituição do hotel, fenómeno este em expansão no Bairro Alto bem como em todo o centro histórico (na freguesia dos Mártires atinge o valor mais alto com 28,3% - Tabela nº9). Os dados dos Censos a nível da freguesia não se referem a edifícios destinados a serviços tais como: edifícios de apartamentos para arrendamento, hostel, hotel e pensão. Considerando este dado importante para o presente trabalho, foi efetuado, no quadro deste estudo, um levantamento 102 destes serviços no Bairro Alto (Fig. nº46). Destacam-se os apartamentos destinados a arrendamento temporário para turistas (nº 104) e a arrendamento para estudantes, em particular estudantes Erasmus (nº 22) 103.

102

O levantamento foi efetuado pela autora por observação direta e através dos dados disponibilizados pelos proprietários dos estabelecimentos, entre os meses de Junho e Julho de 2013. 103 Não foi possível realizar no quadro deste estudo um levantamento completo destas duas situações. Com o intuito de ter uma ideia da presença destas duas tipologias, foi efetuado, entre Junho e Julho de 2013, um levantamento através de algums web sites especializado: homeaway.pt; lisbonapartments.com; housing.esn-lisboa.org.

228

Freguesia

Residência habitual

Uso sazonal ou residência secundária

Alojamentos vagos

Castelo

54,5%

6,3%

39,2%

Encarnação

49,2%

15,6%

35,2%

Madalena

45,9%

6,5%

47,6%

Mártires

49,8%

28,3%

21,8%

Mercês

63,7%

10,4%

25,9%

Sacramento

53,0%

23,3%

23,7%

Santa Catarina

61,6%

13,0%

25,4%

Santa Justa

51,3%

7,0%

41,7%

Santiago

57,4%

13,1%

29,5%

Santo Estêvão

53,4%

7,8%

38,8%

São Cristóvão e São Lourenço São Miguel

60,7%

19,5%

19,8%

75,5%

9,0%

15,6%

São Nicolau

33,0%

17,4%

49,5%



47,6%

10,0%

42,5%

Socorro

63,9%

7,7%

28,4%

Tabela nº9, Alojamentos familiares clássicos (%) por freguesia (correspondente à divisão administrativa em vigor no momento da realização dos Censos 2011) e forma de ocupação. (Fonte: INE, Censos 2001, 2011)

82,5% 64,8%

2001

74,7%

2011

49,2% 35,2% 15,6%

7,8% Alojamentos ocupados

Residência habitual

Uso sazonal ou residência secundária

17,5%

Alojamentos vagos

Gráfico nº 6, Alojamentos familiares clássicos (%) por forma de ocupação, da freguesia da Encarnação. (Fonte: INE, Censos 2001, 2011) TIPOLOGIA



NºMAX PAX

edifício de apartamentos para arrendamento

4

112

hostel

4

212

hotel

3

126

pensão

6

227

TOT.

17

677

Tabela nº10, Tipologias de serviços para aluguer temporário e nº máximo de hospedes. (Fonte: Levantamento efetuado pela autora em Junho e Julho de 2013).

229

10 8 6 4 2 0

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