Transformações nos saberes sobre arte e seu ensino

June 2, 2017 | Autor: S. Rangel Vieira ... | Categoria: Arts Education, Pedagogy, Teacher Formation
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Transformações nos saberes sobre arte e seu ensino1 Dra. Susana Rangel Vieira da Cunha2

(Trans)Formação Meu trabalho como professora e pesquisadora tem como proposta desestabilizar conceitos fixos sobre arte, provocar dúvidas e curiosidade neste campo e buscar alternativas nos modos ensinar arte. Procuro tecer fios com as alunas, mesclando o pensamento sensível e conceitual, uma vez que não existe processo de conhecimento em arte numa perspectiva apenas teórica/reflexiva ou experiencial. O conhecimento neste campo necessita da mediação entre os dois. É conhecendo e pensando sobre a produção simbólica, vivenciando e entendendo os seus processos expressivos que as pessoas ampliarão suas visões sobre a arte em sua dimensão histórica,

social,

individual,

expressiva,

conceitual,

cultural,

simbólica e técnica. Vasculhar o processo de expressão do adulto é resgatar suas marcas, sua identidade, seu estar no mundo. É um processo de (re)conhecimento das imagens internas e externas que se inicia com a desestabilização das crenças essencialistas e imutáveis sobre a arte. O ensino da arte em qualquer nível deveria abranger tanto a construção da linguagem visual quanto contribuir para que as crianças realizem leituras cognoscentes, conscientes e sensíveis de outras tantas imagens que estão aí sendo consumidas passivamente. Segundo FUSARI e FERRAZ(1992, p. 74): “Uma educação do ver, do observar, significa desvelar as nuances e características do próprio cotidiano” e ir além, propondo rupturas com o instituído, com aquilo que é oferecido pelas imagens veiculadas pelos meios

1

Artigo publicado na Revista de Educação Projeto: Artes Plásticas, v.3,n.5, 2001 e na .Revista Imaginar da Associação de Professores de Expressão e Comunicação Visual. , Lisboa:v.38, p.04 - 10, 2002. 2

Professora e pesquisadora da Faculdade de Educação da UFRGS, organizadora e autora de vários livros, entre eles: Cor, som e movimento: a expressão plástica, dramática e sonora da criança)

midiáticos como representações verdadeiras e únicas sobre o mundo. O ensino de arte poderia ser uma das vias de questionar o que está

estabelecido,

aguçando

os

sentidos,

aglutinando

expressão/vida, a fim de produzir propostas no campo da visualidade que possibilitem indagações sobre a própria vida. Uma das funções do ensino da arte seria o de anexá-la a outras formas de atividades sociais, “incorporá-la na textura de um padrão de vida específico” (GEERTZ, 1997. p.146) e não isolá-la como um fenômeno mágico e inexplicável. Diante desses pressupostos foi concebida a presente pesquisa com contornos de investigação-ação a partir de uma abordagem auto-biográfica. O trabalho iniciou em março de 1997 (oficialmente foi concluída em 2000, mas até hoje continua em andamento) junto às alunas que freqüentaram semanalmente e por um semestre a disciplina Arte na Educação Infantil que integra o currículo do Curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. As participantes da pesquisa tiveram o papel simultâneo de "objetos" e de “sujeitos” da investigação (NÓVOA, p. 22.) ora como fonte de informações, ora como direcionadoras do processo da pesquisa. Foi um movimento de ir e vir entre teoria e prática, um refazer-se a cada situação de desvendamento sobre o conhecimento das alunas que passava a estruturar outros caminhos de investigação e intervenção no próprio conhecimento produzido entre professora e alunas. Com isso, a análise de dados percorreu todas as etapas de uma forma interligada e analítica, refazendo o conhecimento e os procedimentos durante todo o processo. O projeto de pesquisa percorreu vários caminhos, às vezes paralelos, entrecruzados ou circulares, no sentido de entender como os processos expressivos individuais das alunas e crianças se constituem historicamente, culturalmente e socialmente e por isso os procedimentos metodológicos foram se constituindo pelas transformações das etapas tendo em vista a multiplicidade dos

olhares e ações nas abordagens metodológicas que foram se configurando na relação teoria/prática em situações de sala de aula. Embora tendo um plano flexível e aberto, havia um desenho básico de procedimentos composto de: entrevistas, leituras e discussões de textos sobre arte, história da arte-educação e a linguagem expressiva infantil, depoimentos analíticos enfocando as histórias de vida das alunas; sessões de resgate do processo expressivo; observações e análises do trabalho pedagógico em arte em contextos escolares. Os procedimentos foram estruturados de forma que as alunas tivessem possibilidade de refletir durante o processo de pesquisa, participando de maneira ativa, produzindo uma reflexão autoformadora durante todo o processo investigativo. A investigação buscou: • apreender a interação dos fatores de várias ordens que concorrem para a configuração das concepções de arte e ensino de arte da alunas; • ampliar as concepções de arte e seu ensino levando em conta os saberes trazidos pelas alunas; • identificar os princípios constitutivos do processo de criação buscando estabelecer relações entre estes e a prática docente com vistas a um redimensionamento do fazer pedagógico fundamentado na relação arte e educação.

Do pensar ao fazer Do fazer ao pensar Inicialmente foram utilizados questionários que procuravam desvelar as concepções sobre arte e ensino de arte na Educação Infantil. A maioria das respostas referia-se à arte como algo que “transmite mensagens”, “como um meio de comunicação”, “como uma produção expressiva do interior de cada um procurando reproduzir alguma coisa externa ou interna”, “como uma forma de expressar sentimentos, medos, incertezas para outros indivíduos”,

“tudo que é feito

artesanalmante”, “formas de expressão espontânea”, “como algo bonito e ao mesmo tempo difícil das pessoas copiarem”, “vem de um dom”, pode ser manifestada através da linguagem do desenho, da argila, pintura, do

corpo”, “pode ser assistida, como a dança, pintura, cinema, exposição de trabalhos”, “algo vinculado ao olhar, seja como forma de observação ou admiração”, “aquilo que pode ser apreciado por outras pessoas.” Essas afirmativas revelavam que os saberes trazidos pelas alunas estavam ancorados em uma visão de arte centrada exclusivamente na autonomia das obras, que por sua vez são “belas”, encantam nossos sentidos e são portadoras de narrativas subjetivas e visões particulares de mundo. Atribuem às obras um sentido mágico de contemplação, segundo Canclini, (s/d.p.8.) essa forma de encarar a arte “não oferece explicações racionais acerca do processo de recepção da arte; apenas se interessa pela obra como objeto fetichizado”. A arte, a que as alunas se referem, é um conjunto específico da produção simbólica, aquela que foi institucionalizada como arte pelos discursos e locais de exibição, aquela que está posta de maneira incontestável como produção artística. Ao elegerem um determinado tipo de produção como sendo “a artística” deixam de perceber outras manifestações produzidas por outros grupos sociais ou as colocam como produções menores, pitorescas ou folclóricas. Mesmo dentro do universo da arte com A maiúsculo, a produção artística referida estava

restrita

ao

realismo,

aos

materiais

e

modalidades

convencionais das artes visuais. Colada a essa visão, o artista é visto como um ser de exceção, como alguém que tem um “dom natural” para criar obras extraordinárias, realistas, narrativas, bem feitas tecnicamente que serão admiradas por espectadores passivos. Após o mapeamento das concepções, que davam conta de respostas conceituais sobre o campo da arte, foi elaborado um estudo reflexivo baseado em leituras de diferentes autores (Coli: 1992; Ostrower:1983; Camargo:1994; Canclini: s/d) a fim de discutirmos e ampliarmos as idéias contidas nos questionários. Durante as reflexões sobre como alguns meios - livros, programas escolares, mídia, etc -legitimam certas produções simbólicas, as alunas lembraram que os locais de exibição - galerias, museus, centro culturais, feiras de rua – indicam atitudes frente à arte e modos de validar e classificar os objetos como artísticos. Segundo

elas, os museus nos “ensinam “ a ver os objetos dentro de uma hierarquia de valores. As alunas diziam: “quando entro num museu já sei que aquilo é ARTE, não posso duvidar do que está ali, mesmo que eu não entenda eu sei que é algo valioso...”; “...quando fui a Bienal do Mercosul achei esquisita a maioria dos trabalhos: sala com luzinhas de celulares, outra com uma cama, objetos que pareciam brinquedos e que a gente podia mexer...e mesmo achando estranho sabia que aquilo tudo era arte”; “ quando fui ao museu era a mesma coisa do que estar numa igreja, tinha que andar devagar, em silêncio, olhar os quadros vagarosamente“; “...quando vejo os trabalhos dos índios na rua nunca penso que aquilo pode ser arte.” Considero essas colocações como indicadores de uma grande mudança no modo inicial em como elas percebiam a arte: se antes a arte era tida como uma produção desvinculada de contextos sócioculturais, agora começavam a vê-la a partir dos significados produzidos culturalmente em torno dos objetos artísticos. Os depoimentos serviram para explorarmos as seguintes questões emergentes: Existe algo nos objetos que “dizem” que ele é artístico, ou o artístico está relacionado ao aparato de discursos produzidos em nossa cultura? Existe autonomia para o espectador decidir o que é artístico? Será que em nossas práticas cotidianas em sala de aula não elegemos também modelos do que seja arte e trabalhamos a partir deles? A partir de quais referenciais estruturamos um planejamento em arte? Concomitante às reflexões sobre arte, que permearam todo o desenvolvimento da pesquisa, foi proposta a montagem de um Museu Imaginário (adaptação que fiz das idéias de André Malraux) a partir de um acervo de objetos considerados artísticos por nós para que discutíssemos sobre os critérios que direcionavam nossas escolhas por determinados objetos. Minha intenção com o museu imaginário era fazer com que as alunas se perguntassem sobre as idéias essencialistas sobre arte, como por exemplo, a capacidade dos objetos artísticos terem uma imanência, ou uma aura que lhes confeririam um significado independente das circunstâncias que os

geravam, um valor em si inscrito na materialidade do próprio objeto que lhe dava o estatuto de “objeto artístico”. O

acervo

do

nosso

museu

possibilitou

pensarmos

concretamente em cima dos objetos, das suas formas, história, materialidade, técnicas construtivas e os significados e valores que nós e os outros atribuímos a eles. De certo modo, manusear os objetos, vê-los, compará-los, colocá-los lado a lado fez com que as alunas reformulassem suas concepções iniciais sobre arte de um modo mais aguçado e sensível do que aquelas realizadas no campo teórico. Acredito que isso se deva ao fato de que o conhecimento sobre a arte se faz tanto no campo conceitual quanto no campo sensorial, ou seja, ao lermos sobre pintura temos um entendimento, ao passo que o ato de pintar possibilita outra forma de conhecê-la. Assim, o contato com a materialidade dos objetos exemplificou e ampliou outros pontos importantes que não haviam aparecido nas discussões a partir dos textos. Os objetos do Museu Imaginário tinham a ver com os saberes sobre arte já enunciados nos questionários (caráter narrativo, figurativo, artesanal, estético, etc) e em sua maioria consistiam de objetos que habitam nosso cotidiano. Em sua maioria, eram peças decorativas como reproduções de obras de arte consagradas, peças de cerâmica, porcelanas pintadas à mão, esculturas ou montagens tridimensionais produzidas por familiares ou artesãos, azulejos pintados, produções infantis, souvenir de viagem (industrializados ou artesanais) ou objetos utilitários como panos de pratos bordados ou pintados, almofadas de crochê, brinquedos antigos, bandejas, copos, etc. Os critérios classificatórios elaborados foram muitas vezes contraditórios, contudo conviviam pacificamente, como por exemplo, o caráter artesanal e industrializado, ou a peça única e a produção em série. Ao constatarem que haviam contradições nos critérios, as alunas se davam conta do caráter mutável que nós podemos dar aos objetos, ou seja, os objetos por si só não têm marcas em si que os elevam à categoria “do artístico”. Nós é que atribuímos significados a eles conforme nossos referenciais sócio-culturais. Assim, o caráter fixo com que

qualificavam os objetos como artísticos foram relativizados e outros critérios foram elaborados. A etapa posterior ao museu imaginário teve dois enfoques simultâneos: as histórias de vida das alunas (depoimentos autobiográficos enfocando as experiências familiares e escolares no campo da arte) e as vivências expressivas. Os depoimentos tinham como finalidade o entendimento das alunas sobre seus processos educativos no campo da arte, uma vez que elas se viam como “naturalmente incapazes” para apropriarem-se da linguagem visual. Ao verem-se dentro de uma história educacional ora tecnicista, ora essencialista, elas percebiam que a “incapacidade para as artes” era em conseqüência dos modos como elas haviam sido

“ensinadas”

e

não

uma

deficiência

“nata”.

Alguns

depoimentos resumem o quanto as pedagogias em arte formataram a idéia de que eram “incompetentes para as artes”: “lembro-me que certa vez, tive que copiar uma gravura na qual havia um desenho de um urso comendo mel. Tive muitas dificuldades em acertar o desenho, visto que não conseguia demonstrar o mel escorrendo. De tanto apagar e tentar desenhar o mel, minha folha rasgou. O resultado foi que minha professora me xingou e me obrigou a fazer outro desenho durante o recreio”. “A livre expressão foi propiciada durante boa parte da minha escolarização. A professora, a partir da concepção do livre-fazer banalizava a criação dos alunos, deixando-nos completamente soltos, sem perspectivas, sem exercer o seu papel de mediadora”. “Apesar de pouquíssimas recordações lembrome que fazíamos trabalhos de arte de forma mecânica, onde o sentimento era muito pouco usado como forma de expressão. Era tudo determinado pela professora, tínhamos que fazer do jeito que ela achava certo. Até hoje tenho dificuldade em me expressar”. “Tínhamos também um caderno de desenho com sugestões de desenhos para colorir, desenho para completar e “copiar igual”, desenhos em perspectiva – este eu tinha verdadeira aversão ao realizar pois não conseguia fazer igualzinho ao desenho original.” A professora trazia o modelo que era copiado por todos. Os melhores trabalhos, cópias perfeitas dos modelos, eram expostos. Nós não tínhamos condições de expressarmos nossa criatividade ou imaginação”.

No processo de entendimento de como elas foram se constituindo nesta área do conhecimento, elas se davam conta gradativamente que os modelos pedagógicos vivenciados haviam produzido registros no modo delas se expressarem e no modo em como elas ensinariam arte. A esse respeito Nòvoa diz que as concepções e práticas pedagógicas resultam da escolarização dos estudantes e que há uma estreita relação entre a maneira de como aprendemos e o modo como ensinamos. Mesmo reconhecendo que tais modelos haviam negado o conhecimento, a expressão, imaginação e experimentação, estes eram os únicos modelos de ensino de arte que as alunas conheciam. Ao se darem conta de que aqueles modelos não tinham sentido, elas começavam a se perguntar se haveriam outras possibilidades para ensinar arte. Como seria possível elaborarem outras propostas pedagógicas que contemplassem o conhecimento e vivências no campo da arte com algum sentido para elas e para as crianças? Para esclarecermos estas questões, estudamos autores de diferentes enfoques teóricos como por exemplo: Luis Camargo (Arte-educação: da pré-escola à universidade); Zélia Cavalcanti (Arte na sala de aula); Analice Dutra Pillar (Desenho e construção do conhecimento na criança); Ana Angélica Moreira (O espaço do desenho: a educação do educador); Sandra Richter e Susana Vieira da Cunha (Cor, som e movimento: A expressão plástica, musical e dramática no cotidiano da criança) e Edith Derdyk (Formas de pensar o desenho) que propõem caminhos teórico-metodológicos diferenciadas daqueles vivenciados pelas alunas durante suas escolarizações. Minha intenção com as leituras não era a de substituir os modelos pedagógicos formadores vividos pelas alunas por outros modelos, mas sim de dar visibilidade a outras propostas pedagógicas para que elas ampliassem suas referências e pudessem compor outras possibilidades no modo de ensinar arte. Paralelamente às histórias de vida, iniciei um trabalho que também buscava, de um outro modo, trazer à tona fragmentos da história expressiva das alunas a fim de que elas compreendessem como esses processos foram se configurando. A primeira grande barreira a romper era a idéia do “não sei desenhar” que a maioria

verbalizava antes de iniciarmos os trabalhos de resgate da linguagem gráfico-plástica. Elas diziam “ não sei desenhar e quando penso que nesta aula teremos que fazer alguma coisa quase desisto”. “Nunca fiz nenhum desenho que gostasse”. “Nas aulas de artes sempre pediam para que eu desenhasse um modelo que a professora colocava lá na frente e eu nunca conseguia fazer parecido”. “Nunca gostei de artes”. “ Quando me pedem um desenho faço sempre a mesma coisa: uma casinha, árvore com maças, nuvens e o sol. Parece desenho de criança.” Diante destas afirmativas procurei fazer com que elas percebessem, através de vários desafios expressivos, que a linguagem gráfico-plástica depende de um conhecimento específico e que como conhecimento deve ser aprendido de uma maneira prazerosa e significativa. Pretendia que aprendessem a construir um olhar que capturasse as sutilezas, percebendo que “cada vermelho é um mundo e há o mundo do vermelho entre as cores” (CHAUÍ, 1988, p.58). Queria que aprendessem que um olhar curioso poderá criar repertórios singulares para outras configurações representativas e que este olhar diferenciado buscará uma forma, um material e modos de pensar através de imagens. Queria que elas se dessem conta de que lidar com formas, cores, espaços, volumes, materiais não é um “dom” com que alguns poucos nascem, mas sim uma aprendizagem que parte de um olhar ativo, analítico, sensível e poético sobre o mundo visível e invisível. As propostas expressivas vivenciadas nessa etapa foram trabalhadas na perspectiva de desvelar e ampliar os repertórios das alunas, pois segundo Miriam Martins (1998, p162): Quanto mais o aprendiz tiver oportunidade de ressignificar o mundo por meio da especificidade da linguagem da arte, mais poder de percepção sensivel, memória significativa e imaginação criadora ele terá para formar consciência de si mesmo e do mundo. Desvelar/ampliar, como termos interligados, são ações que se auto-impulsionam, como pólos instigadores para poetizar, fruir, conceituar e conhecer arte elaborando sempre novas relações com o já sabido.

As primeiras experiências gráficas tinham o intuito de trazer os repertórios sem uma intervenção pedagógica mais contundente. Além disso, pretendia que elas revivessem seus antigos processos de uma forma reflexiva e prazerosa. Solicitava a elas que

desenhassem paisagens, pessoas, coisas que gostavam, que haviam vivido, etc. Os desenhos realizados eram muito semelhantes no que diz respeito à temática (árvores com maçãs, casinha, nuvem e sol, figura humana de palito) às formas simplificadas e sem detalhes e à pouca exploração dos materiais. Após esses registros, analisávamos quais os motivos que as impediam de elaborarem outros desenhos e as justificativas eram de que “não tinham habilidade” , “na escola sempre faziam o mesmo tipo de desenhos”, “não tinham outras idéias além daquelas”. Sobre tais afirmação realizávamos uma reflexão na tentativa de entenderem que não existe uma habilidade nata para o desenho ou para a imaginação, mas que formas, temáticas mais elaboradas e uso exploratório dos materiais dependiam em muito do desafio imposto pelo mediador da proposta. No caso foram indicadas algumas temáticas, mas sem haver a intenção de problematizá-las para que elas vasculhassem livremente seus repertórios imagéticos. Também nessa atividade nos reportamos em como as crianças reagem quando solicitamos temas ou deixamos que elas criem sem interferência da professora. Depois dos primeiros registros, as propostas seguiam vários percursos que envolviam a observação, imaginação, criação, leitura de imagens e exploração de materiais. Uma das propostas enfocando a observação foi a seguinte: solicitei às alunas que desenhassem cabelos e coloquei vários materiais gráficos à disposição (lápis de cor e aquarelado, giz de cera, canetinhas, lápis 6b), Não fiz nenhuma intervenção enquanto desenhavam. Quando finalizaram os trabalhos perceberam que haviam desenhado cabelos muito semelhantes e com poucos recursos expressivos: linhas da mesma espessura, cores sem tonalidades, poucas soluções nos tipos de cabelos, etc. Depois propus que “brincassem de cabeleireiras” umas

com

as

outras,

explorando

penteados

inusitados.

Disponibilizei pentes, escovas, presilhas de cabelos, bico de patos, rolos, grampos, prendedores, fitas, elásticos e outros adereços. Junto com a brincadeira salientava que observassem como são os fios do

cabelo no seu conjunto, nos diversos locais da cabeça, o peso, consistência, cor, textura, volume, etc. Quando

concluíram

os

penteados

incentivei

que

os

desenhassem a partir da observação e do conhecimento físicosensorial que experienciaram durante a confecção dos penteados. Durante a realização dos desenhos pedia que elas explorassem as possibilidades do carvão e do suporte (papel kraft)

e que

descobrissem como elas poderiam transpor o observado para o representado, não de um modo fotográfico, mas que tentassem “entender” o cabelo como um volume com características próprias que deveria ser expresso num plano bidimensional.

Brincando de Cabelereira: O cabelo como suporte para imaginação/criação

Desenhando cabelos: o referente como suporte para criação

Ao concluírem o segundo desenho, as alunas ficaram

Desenhos de cabelos

satisfeitas e surpresas com suas

produções

exclamavam:

e

Nunca

em

minha vida havia feito um desenho que gostasse!!! Não sabia

que

desenhar

eu

conseguiria

algo

tão

legal.”

Perguntava a elas: o que havia mudado do primeiro para o segundo desenho? O que havia acontecido naquele pequeno espaço de tempo,

uma

manual

habilidade

tinha

adquirida, processos

ou

outros

haviam

desencadeados? os

sido

sido

Segundo

depoimentos,

elas

diziam: O que eu descobri com esta atividade é que o nosso primeiro desenho, que foi livre, é mais estereotipado. O segundo é mais livre e aberto, pois a arte é uma produção

e

um

conhecimento.” Descobri que sou

capaz

de

arriscar

e

aprender. A partir desta aula vi que tenho condições de criar

meus

próprios

desenhos”. “ Foi de grande valia a comparação entre o 1º e 2º desenho pois pude avaliar o meu “crescimento”, pude analisar os dois tipos de material: lápis/carvão e canson/kraft e isto enriquece muito a nossa prática.

“Descobri que se pode criar mesmo em um desenho de observação, já que cada um vê aquilo que mais lhe interessa e, sendo assim, nem todos têm a mesma percepção diante de um mesmo objeto. Acredito que, mesmo que todos tivessem tido como modelo o mesmo cabelo, os desenhos sairiam completamente diferentes, pois cada um de nós imprime as suas marcas, as suas aprendizagens e as suas diferentes visões de mundo em tudo que faz.” Ao ampliarem seus repertórios iniciais, as alunas passaram a ter confiança em sua capacidade de expressão e perceberam que as mudanças nos desenhos não estavam restritas às habilidades manuais, mas ao modo como elas tinham sido acionadas e sensibilizadas em torno de um objeto de conhecimento. Por outro lado, a crença que devemos deixar as pessoas se expressarem livremente, sem uma estratégia pedagógica, caiu por terra quando elas compararam o “desenho livre” dos cabelos com o desenho posterior que mostrava avanços em termos de soluções gráficas e criação, mesmo tendo sido realizado a partir de um trabalho direcionado. Nesse sentido, aprenderam que o desenho de observação, necessariamente não precisa ser “igual” ao observado, mas poderá ser uma interpretação pessoal, uma autoria que é marcada por um modo peculiar de expressão. Após essa breve experiência gráfica, realizamos uma leitura sobre as imagens produzidas. Assim, foi possível desmanchar a idéia de que a representação de algo não precisa coincidir necessariamente com a visão objetiva que temos da realidade. Também foi interessante analisar como as alunas passaram a entender a aprendizagem técnica: se antes os aspectos técnicos eram vistos

separados

das

modalidades

expressivas,

agora

elas

percebiam que o domínio técnico da materialidade advém da necessidade expressiva, ou seja, buscamos um manejo matérico – uma técnica – para configurarmos nossos desejos expressivos. Ao

longo

do

semestre,

continuamos

com experiências

expressivas em diferentes modalidades e materiais, ora enfocando a imaginação, ora a observação/percepção ou a exploração dos materiais, ora aspectos específicos da linguagem visual. Junto ao resgate expressivo começamos a traçar paralelos entre as

descobertas

individuais

coletivas

em

e

crianças

e

como

as

pequenas

vão

constituindo o “vocabulário” gráfico-plástico.

Minha

intenção nessa proposta era trabalhar

tanto

com

a

percepção das alunas sobre seus

próprios

processos

expressivos quanto direcionar esse

novo

olhar

para

a

expressão infantil. A

esse

respeito

Ana

Angélica Moreira (1984, p.127) reflete dizendo: “recuperar o ser poético que é a criança só é

possível

quando

os

professores se percebem como pessoas

ainda

capazes

de

viver o estranhamento, que é o ser da poesia, quando o professor

descobre

nele

mesmo o prazer da criação.” Os

estudos

constituição

da

sobre

a

linguagem

Experiências gestuais com tinta

visual infantil foram estendidos a observações e análises de atividades em arte nas escolas infantis, pois a meu ver não bastaria compreendermos teoricamente como as crianças passam dos rabiscos iniciais à representação, como vão separando o fundo da forma, como vão das escolhas aleatórias da cor ao uso analógico, sem entendermos como as professoras trabalham as diferentes concepções imagéticas das crianças no cotidiano da sala de aula. Sendo um dos últimos procedimentos, foi possível às alunas analisarem as práticas em arte de um modo muito aguçado e crítico; ao mesmo tempo constatavam que o que está ocorrendo atualmente

na Educação Infantil é similar ao que elas viveram em suas escolarizações

em

outros

graus

de

ensino.

Ou

seja,

independentemente do grau de ensino, da temporalidade e dos contextos educativos, os enfoques no modo de ensinar arte são semelhantes e continuam produzindo um conhecimento superficial no que diz respeito à própria arte, aos processos expressivos, à pesquisa de materiais e principalmente no que se refere à produção dos imaginários infantis.

Considerações (semi)finais Os resultados parciais do presente trabalho indicam que as alunas, participantes da pesquisa, formulam suas concepções sobre arte e seu ensino durante o período escolar, anterior à entrada na universidade. As experiências vivenciadas no ensino de arte de 1º e 2º graus, ainda centra-se na estética das belas-artes que dá um sentido universal e imutável à produção artística e geram por sua vez metodologias baseadas em abordagens empiristas e/ou inatistas. Com isso, os conceitos de arte e seus modos de ensino formam

uma coerência de princípios impermeáveis a outras

propostas educacionais. Apesar disto, não é lícito colocar a escola como a única responsável por propagar idéias sobre arte sob pontos de vista pragmáticos ou essencialistas, muito aquém das propostas contemporâneas nos campos da arte e da pedagogia. Entretanto, a escola vai absorvendo e validando as idéias do senso-comum que se refazem

historicamente

conhecimentos,

que

como

pode

ser

um

corpo

reafirmado,

organizado

de

desenvolvido,

formalizado, observado e até ensinado. Os discursos sobre arte, como

símbolo de distinção social, e os artistas, como seres de

exceção, são produzidos por nossa cultura e aceitos nos contextos escolares - da educação infantil ao ensino universitário - sem que haja contestação ou um esforço analítico-crítico que provoque uma mudança significativa em termos de outros conhecimentos sobre arte e seu ensino. Em sua maioria, as alunas tiveram em suas escolarizações, modelos de ensino de arte do passado (Livre-expressão e

Tecniscismo) que foram recuperados e adaptados sem uma discussão sobre a validade de tais enfoques na atualidade. Tais modelos

produziram

registros

equivocados

no

sentido

de

impossibilitarem a experiência expressiva das alunas. Entretanto, a partir de um conjunto de intenções, procedimentos metodológicos e de propostas que contemplaram a reflexão teórica e experiências sensíveis-expressivas em um processo contínuo de ação-reflexãoação foi possível romper os saberes instituídos. Estes movimentos do fazer ao pensar, geraram deslocamentos, dúvidas, rupturas e flutuações no próprio conhecimento. No

processo

de

recuperação

expressiva,

as

alunas

desencadeavam também a transformação do pensamento conceitual e vice e versa. Muitas vezes as descobertas vivenciadas no “fazer expressivo” e/ou nas discussões de fundo teórico eram estendidas para outras situações e áreas do conhecimento. As formas de pensar a arte e seu ensino possibilitavam uma “abertura” para a compreensão de saberes mais amplos no campo pedagógico. Outro ponto que considero importante é que as alunas foram extrapolando a idéia de arte e seu ensino centradas em objetos e modalidades convencionais (pintura, desenho, recorte e colagem, etc ) e passaram a entender o ensino de arte como também um modo de “decifrar” a cultura visual. Elas foram se dando conta que as imagens de um modo geral “ensinam” modos de ser e de estar no mundo, constituindo uma pedagogia visual que atua como qualquer outra estratégia de ensino. Se antes as imagens eram vistas apenas como representações inocentes do mundo, agora passaram a serem vistas como uma força educativa atuante no cotidiano e que devemos criar modos de intervenção para esta força educativa não determine os significados existenciais das crianças. Considero essa forma de encarar o ensino de arte na Educação Infantil como um avanço muito grande em relação ao que está ocorrendo ainda hoje nas salas de aula, quando o trabalho em artes ainda é o “momento do deixar fazer" ou o “momento de desenvolver habilidades motoras”.

Creio que ao longo do trabalho houve mudanças significativas tanto nas concepções sobre arte quanto nas possibilidades de viabilizar propostas prazerosas, críticas e contextualizadas no ensino da arte. Segundo os depoimentos das alunas, pode-se constatar o modo como elas passaram a entender o ensino de arte: “Pude perceber o quanto a arte amplia a consciência da gente sobre o mundo e sobre nós mesmos. È uma visão a partir de outros referenciais que não limita e padroniza os comportamentos, mas que respeita e valoriza a diferença e a forma de expressão de cada pessoa.” “Com este trabalho revi muito do que fui enquanto aluna nas aulas de Educ. Artística e percebi o quanto é importante o educador ver as várias possibilidades dessa área, não a vendo apenas como acessível para aqueles que têm um “dom”. Todos podemos melhorar nossos desenhos, traços, porém é preciso que cada um reencontre o seu traço perdido naquelas aulas de artes...” “Nós professoras transmitimos a visão de arte que temos aos nossos alunos. Se acreditamos que não somos capazes de desenhar ou que só é possível desenhar estereótipos, estaremos permitindo que nossos alunos também pensem assim.” “ Penso que as leituras e as atividades práticas foram muito importantes pois através delas tive a oportunidade de resgatar a criança que fui e verificar o quanto fui moldada, censurada, limitada em minha expressão, e pude perceber a influência do professor no processo expressivo.” Saliento que minha intenção com este trabalho não foi de “construir um modelo de ensino de arte” a ser seguido nos cursos de formação de professoras mas dar visibilidade ao modo como venho estruturando algumas propostas pedagógicas em que são possíveis outras leituras sobre a arte e seu ensino. Como foi visto anteriormente, a situação em que se encontra o ensino de arte na Educação Infantil, e também em outros níveis de ensino, não está contribuindo para que as crianças possam elaborar sua linguagem expressiva entendida aqui como uma forma de ler e representar suas relações singulares com o mundo. Dessa forma é necessário que nos cursos de formação de professoras sejam repensadas as formas de ensinar arte, para que os velhos modelos não sejam transpostos para as salas de aula de hoje.

Referências Bibliográficas: ANDRÉ, Marli E. A pesquisa no cotidiano escolar. In I. Fazenda (org). Metodologia da Pesquisa Educacional. São Paulo, Cortez, 1989. CHAUÍ, Marilena. Janela da alma, espelho do mundo. In A Novaes (org) O olhar. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p.58. FUSARI, Maria F. de R. e FERRAZ, Maria Heloisa de T. Arte na Educação Escolar. São Paulo, Cortez, 1992. GEERTZ, Clifford. O saber Local. Trad. Vera Mello Joscelyne. Petropólis, RJ, Vozes, 1997. NÓVOA, António. Os professores e as histórias da sua vida. In A. Nòvoa, Vida de professores. Porto, Porto Editora, s.d, 2ª ed CANCLINI, Nèstor. A socialização da arte. São Paulo, Cultrix, s/d. MARTINS, Mirian C. Didática do ensino de artes: a língua do mundo: poetizar, fruir e conhecer arte. São Paulo, FTD, 1998. MOREIRA, Ana Angélica. O espaço do desenho: a educação do educador. São Paulo, Ed. Loyola, 1984.

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