TRANSFORMAR PRIMEIRO A NATUREZA, DEPOIS A NATUREZA HUMANA

May 30, 2017 | Autor: Sonia Soares | Categoria: Applied Ethics, Agricultural Biotechnology
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TRANSFORMAR PRIMEIRO A NATUREZA, DEPOIS A NATUREZA HUMANA Sônia Soares INTRODUÇÃO

Neste artigo, procuro desenvolver algumas reflexões éticas sobre o pensamento científico dominante que orienta a aplicação da biotecnologia no âmbito da produção de alimentos, identificando similaridades com o discurso que defende a utilização de intervenção genética para o aprimoramento humano. Abordo a relação entre ciência e ética, reconhecendo que há sempre um conflito sobre os limites de cada uma, já que se costuma aceitar que a ciência trata de fatos e a ética trata de valores, para o que considero algumas análises de Lacey (2008) e Feenberg (2003). Defendo como um importante conceito que pode unir fatos e valores, sobretudo no campo da saúde, o conceito de risco, que será aqui utilizado na discussão sobre os organismos geneticamente modificados (OGM), especialmente por sua relação com a garantia do direito humano à alimentação adequada e o princípio da precaução. Utilizo ainda como referência para a discussão do aprimoramento humano o texto de Allen Buchanan (2000) sobre a relação entre natureza humana e ética, para aplicar ao caso da intervenção genética sobre plantas, do ponto de vista da justiça. Concluo que as consequências da biotecnologia responsável pela transformação da semente, podem se reproduzir na almejada transformação da natureza humana, produzindo mais injustiça social. A Revolução Verde: promessas de um mundo melhor Revolução Verde é o nome dado à transformação da agricultura do Terceiro Mundo, baseada no conhecimento científico, patrocinado por fundações americanas e agências de fomento, tais como a Fundação Rockfeller, Fundação Ford e Banco Mundial, em parceria com o governo americano, que começou a ser esboçada nos anos 40 (SHIVA, 1997; GEORGE, 1978). Ao oferecer tecnologia como substituto da natureza e da política na promoção da abundância e da paz, orientada por um conhecimento baseado apenas na relação entre rendimentos das culturas e insumos físicos e químicos, a

Revolução Verde demandou um uso intensivo de mais recursos naturais e do ‘pacote tecnológico’ constituído por fertilizantes e pesticidas, servindo aos interesses do mercado. Nos anos 50, sob a orientação do geneticista Norman Borlaug, que viria a ganhar o Prêmio Nobel da Paz em 1970 por este seu trabalho, pesquisadores da Fundação Rockefeller tinham desenvolvido no México novas variedades de trigo, de porte mais reduzido e com um potencial produtivo superior ao dobro do das variedades tradicionais. Essas variedades, no entanto, por serem anãs, apresentaram problemas de baixa resistência às doenças, necessitando também de elevadas doses de fertilizantes e de muita proteção química (pesticidas e fungicidas). Em seu programa de treinamento no México para agrônomos de todo o mundo, Borlaug os chamou de ‘apóstolos do trigo’. O Comitê do Prêmio Nobel reconheceu que o trabalho de Dr. Bourlag acelerou o crescimento econômico nos países em desenvolvimento. Dr. Borlaug finalizou seu discurso de aceitação do Nobel da Paz, ao referir-se às possibilidades do avanço tecnológico, citando o profeta Isaías (35:1,7): “e o deserto rejubilará, e florescerá como a rosa...e o solo ressequido tornar-se-á um lago, e da terra sedenta jorrará água...”1. Lester Brown (1970), consultor da Fundação Rockfeller e profeta da Revolução Verde, anunciava, em seu livro ‘Sementes da mudança’, sua esperança num futuro sem fome, baseado na melhoria das culturas agrícolas pelas modernas tecnologias e mudanças nas estratégias dos governos, com políticas orientadas para o crescimento do setor agrícola e aumento da qualidade de vida das suas populações. Interessante observar que na Primeira Conferência Mundial da Alimentação, promovida pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, 1974), em Roma, diante da crise alimentar que assolava o mundo, decidiu-se que a humanidade deveria agir para aliviar a fome de mais de 815 milhões de pessoas e os participantes comprometeram-se a erradicar este flagelo no espaço de dez anos. Mas o foco das ações voltou-se para a produção de alimentos, não para sua distribuição equitativa, de modo que não surpreende quando, mais de 20 anos depois, na Cúpula da Alimentação também em Roma (1996), anunciou-se a modesta meta de reduzir a fome à metade até 2015 (ao máximo de 400 milhões de pessoas), objetivo que passou a fazer parte das Metas do Milênio do ano 20001, assinadas por todos os 189 integrantes da Organização das Nações Unidas. Ora, como aceitar, então, que a menos de 800 dias para esta data, o mundo continue ainda com quase um bilhão de famintos? A redução das estimativas seria um sinal de redução da confiança dos políticos no progresso tecnológico? Por que os avanços da ciência e das tecnologias no campo da produção de

alimentos não promoveram resultados sociais equivalentes? Está a ciência assim tão afastada da ética? O progresso científico e tecnológico não é compatível com o progresso humano e social? Por tais motivos, penso que a preocupação de Rousseau, em seu Discurso sobre as ciências e as artes escrito em 1749, sobre a relação entre ciência e virtude, faz todo o sentido. Quanto mais avança a ciência, mais confiamos que quaisquer problemas decorrentes deste avanço serão resolvidos, quando na verdade o que temos é que, quanto mais progresso científico, mais riscos ameaçam nossas vidas, delineando o paradoxo das sociedades de risco (BECK, 2010). Por isso temos de fazer ciência com consciência moral (MORIN, 2000). Nossa sociedade foi construída sobre a ideia de que a ciência deve controlar a natureza, uma herança cartesiana e baconiana. Este exacerbado valor do controle está presente no conhecimento que orientou tanto a modificação da semente na Revolução Verde, quanto a manipulação genética de hoje, não apenas de sementes, mas também de seres humanos. Dr. Borlaug, por exemplo, até sua morte em 2009, continuava acreditando no ‘milagre’ da Revolução Verde. Em visita ao Brasil em 2004, o pai da Revolução Verde, como era de se esperar, defendeu a nova revolução agrícola, baseada na manipulação genética. A respeito dos alimentos transgênicos, Dr. Borlaug disse que: “são uma grande revolução [...], é possível transferir características desejáveis de uma planta para outra que não seria possível transferir de outra forma. As possibilidades são ilimitadas. É outra revolução”2. A ‘natureza’ do mundo natural: da phýsis à téchne

No tratado Econômico de Xenofonte, agricultura é o que permite a um certo tipo de areté exercitar-se, como uma forma de virtude ativa feita de energia. Fora do alcance do cálculo humano, a atividade agrícola não podia ser considerada uma téchne, por estar submetida à natureza e suas forças divinas (VERNANT, 1990). Neste contexto, a cultura da terra nada mais é que um ‘culto’, uma participação ativa à ordem natural e divina, por isso, não se poderia transformar a natureza para fins humanos a partir do trabalho da terra. Também em Hesíodo, aponta Vernant (1990), o agricultor não aplica ao solo uma técnica de cultura, mas apenas se submete à dura lei dos deuses. O trabalho na terra é

mais uma forma de experiência religiosa. Deméter, a divindade da terra cultivada, tinha por função garantir uma ordem regular em suas relações com os homens. A agricultura ainda vem associada à atividade guerreira, e Xenofonte nos diz que “sendo uma deusa, a terra ensina também a justiça aos que podem aprendê-Ia, pois aos que lhe prestam melhores serviços dá em troca muitos bens” (Econômico, V, 12,). Em outras passagens da mesma obra é possível reconhecer um caráter especial nesta atividade, considerada mãe e nutriz das outras artes: “onde a terra for forçada a permanecer estéril, também as outras artes, as de terra e as de mar, quase desaparecem” (V, 17), tornando mais nobres os que a praticam (XV,12); e sempre ligada à natureza, como uma questão de esforço e vigilância: “a agricultura é uma arte tão amiga dos homens e tão fácil que basta que a olhemos e a ouçamos para que ela nos torne peritos nela. Sobre muitas coisas, disse, é ela mesma que ensina como usá-Ia da melhor maneira” (XIX, 17, 18). O fato é que em 10 mil anos de atividade agrícola, o homem aprendeu a selecionar, dentre a matéria ‘dada’ pela natureza, aquela que melhor ele poderia utilizar. Em sua relação com a biodiversidade natural, a humanidade domesticou espécies, selecionou e aperfeiçoou o patrimônio genético da natureza contido na semente. Foi com este conhecimento empírico, auto-suficiência e recursos locais disponíveis, que os camponeses desenvolveram sistemas agrícolas sustentáveis (ALTIERI, 1979). A evolução biológica veio acompanhada de uma evolução cultural. Não é por coincidência que os países que possuem a maior diversidade de formas vegetais também possuem o maior número de grupos étnicos (RIBEIRO, 2003). As variedades indígenas, no entanto, produzidas tanto pela seleção natural como pela seleção humana, são chamadas ‘primitivas’, enquanto aquelas produzidas em laboratório são consideradas ‘avançadas’. Os experts decidiram que o conhecimento indígena não tinha valor e não era ‘científico’ (SHIVA, 1997). A essência da Revolução Verde, como visto, foi a transformação da natureza e do valor dado à semente, que não só passa a ser uma estratégia de produzir muito dinheiro, como também é transformada em máquina. Para Vandana Shiva (1997) é exatamente na natureza da semente que reside a principal barreira biológica a ser derrubada para que o capital penetre na agricultura. É esta natureza dual da semente o maior obstáculo para a biotecnologia, pois a semente é tanto meio de produção como produto na forma de grão, representando para o capital um “empecilho biológico simples: dadas as condições apropriadas, a semente se reproduz e se multiplica” (SHIVA, 1997, p. 242).

No caso do Punjab, relatado por Shiva (1997) como um exemplo do fracasso da Revolução Verde, cuja estratégia centralizadora tinha como elementos fundamentais o controle da natureza e o controle sobre as pessoas, a grave crise étnica e ecológica foi resultado da transformação da natureza da semente, que passou de um presente da natureza, um recurso livre reproduzido na terra, para um custoso insumo a ser adquirido. O Punjab tornou-se o exemplo mais avançado da ruptura entre o solo e a sociedade. Neste sentido, compreende-se a crítica da autora sobre as relações entre política e tecnologia, cujo casamento baseou-se no slogan ‘building on the best’. Por isso, ela afirma que a ciência da Revolução Verde foi essencialmente uma escolha política, em cujo centro estava a semente milagrosa.

A nova téchne: implicações éticas de uma vida fabricada

A Revolução Verde mudou o significado e a natureza fundamental da semente, e esta mudança afetou profundamente, como demonstrado no caso do Punjab, as ideias de identidade e de autocompreensão de todo um povo (SHIVA, 1997). Por trás da escolha política por esta tecnologia, está posta a estratégia de controle sobre a natureza, aperfeiçoando seus processos por meio do novo conhecimento disponível, e substituindo as práticas e saberes milenares, agora considerados ultrapassados, para o que foi necessário transformar as estruturas agrárias dos sistemas existentes. Uma vez que as sementes nativas respondiam muito pouco ao intenso uso de fertilizantes químicos, as sementes da Revolução Verde foram desenhadas para superar os limites e os ciclos naturais. Alta produtividade, no entanto, não era a característica destas sementes, e sim uma função da disponibilidade de insumos requeridos, os quais, por sua vez, tinham profundas consequências desastrosas para o meio ambiente, o que acabava resultando em prejuízos, quando comparadas às sementes nativas, dado que quanto menor a diversidade e maior uniformidade de um ecossistema, maior a sua vulnerabilidade à instabilidade e menor sua sustentabilidade (SHIVA, 1997). Como consequência, as sementes milagrosas não mais pertencem à natureza, como patrimônio genético comum da humanidade, já que são propriedades protegidas por leis3. O patenteamento desta forma de vida é o que Vandana Shiva (1993; 1997; 2012) chama de biopirataria. Para a física indiana, isso encoraja duas formas de violência: uma, quando trata as formas de vida como se fossem máquinas, negando-lhes sua capacidade

de auto-organização; outra, quando nega a capacidade de auto-reprodução dos organismos vivos, já que permite o patenteamento das futuras gerações de plantas e animais (SHIVA, 2012). Mas não se trata apenas de uma perda no campo do direito: as sementes de laboratório são plantadas em grandes extensões de terra de monoculturas, provocando também uma erosão genética. Junto a esta uniformidade forjada, a Revolução Verde fez a natureza extremamente vulnerável. Diante disso, posso agora estabelecer um paralelo entre as consequências do conhecimento para a natureza de um ser – a semente –, e o que está acontecendo no debate sobre aprimoramento moral de seres humanos, em que se pensa que a ideia tão antiga de natureza humana deva mesmo ser ultrapassada pela possibilidade de intervenção genética que produza alterações nesta natureza. Para Buchanan (2000), por exemplo, pode deixar de ter sentido falar em direitos humanos, em um mundo povoado por indivíduos, cada um com sua própria natureza. Se, no caso da Revolução Verde, onde valores culturais de cooperação e prudência de um povo foram substituídos pela competição, pelo lucro e pelo consumo, gerando uma crise moral, além de doenças sociais e epidemias, como alcoolismo, drogas, tabagismo, o que poderia acontecer em uma sociedade onde nenhum indivíduo reconhecesse mais no outro algo que é compartilhado pela espécie? Ora, os direitos humanos podem ser vistos como resultado de uma ‘evolução’ humana acerca de sua própria compreensão como ser humano (BOBBIO, 1997). As chamadas ‘gerações’ de direitos, com a histórica ampliação do seu conteúdo, pode bem revelar uma expressão moldada ao longo da história por distintas culturas, em permanente interação, do mesmo modo que a semente aperfeiçoada pelos agricultores ao longo de milênios. Estaria este processo obsoleto diante do progresso da técnica como entendido pela Revolução Verde? Seria compatível a coexistência do progresso humano pelos mecanismos até hoje conhecidos e do progresso advindo da técnica aplicada à natureza humana por meio da intervenção genética? Com a Revolução Verde e agora com a nova revolução na agricultura, via organismos geneticamente modificados (OGM) isso não é possível, já que no caso da Revolução Verde, tratou-se de uma substituição deliberada de sementes consideradas pobres por outras consideradas mais produtivas, e no caso dos transgênicos, há a contaminação inevitável e impossível de ser controlada, podendo até mesmo ser entendida como uma estratégia da indústria da biotecnologia para tornar sua presença um fato consumado (FERNANDES, 2007) ou para aumentar seus lucros (ANDRIOLI &

FUCHS, 2008). E se não é possível deter a contaminação genética, como garantir o direito daquele produtor que não quer usar sementes transgênicas? Ameaçar este direito do agricultor significa ameaçar sua autonomia. A redução da diversidade genética na agricultura, portanto, está profundamente relacionada à perda da autonomia dos sujeitos envolvidos na produção de sementes. É neste quadro de complexidade, onde “as histórias das biotecnologias agrícola e humana estiveram estreitamente entrelaçadas” (Fukuyama, 2003, p. 202), que se pode, então, questionar: qual o futuro da natureza humana sem que seja ‘aberto’ à diversidade genética, e sim sujeito a um tipo de ‘monocultura’ como foi feito com as sementes? Seria próprio da natureza, humana ou não, a diversidade e pluralidade genética em um espaço de

convivência

harmônica?

O

aprimoramento

genético

humano

seria

também

acompanhado de uma redução das liberdades e direitos? Mesmo considerando apenas uma possibilidade remota de alcançar as supostas promessas da biotecnologia sobre a espécie humana – ainda que seja bastante provável a sua viabilidade – é necessário discutir a natureza humana, pois, ela é “fundamental para nossas noções de justiça, moralidade e de uma vida digna, e tudo isso sofrerá mudanças se essa tecnologia se difundir” (Fukuyama, 2003, p. 94). Em sua Oração pela dignidade do homem, escrita em 1486, o filósofo Pico della Mirandola (1989) relata o que Deus disse ao primeiro homem: "Ó Adão, não te demos nem um lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio, nem tarefa alguma específica, a fim de que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e a tua decisão. A natureza bem definida dos outros seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não constrangido por nenhuma limitação, determiná-la-ás para ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entreguei. Coloquei-te no meio do mundo para que daí possas olhar melhor tudo o que há no mundo. Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são as bestas, poderás regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo”.

Assim, enquanto todas as outras criaturas foram ontologicamente determinadas segundo uma essência dada por Deus, o homem foi feito diversamente, com uma natureza não determinada por Deus, cabendo a ele plasmar a si mesmo, segundo sua própria escolha. Deste modo, a intervenção genética, capaz de alterar a natureza humana, desde que fosse por escolha do próprio ser a ser modificado, não alteraria esse caráter ‘livre’ da natureza humana, podendo ser até mesmo expressão deste caráter. O problema é maior quando são futuros pais a escolherem para futuros bebês. E se futuros

bebês, uma vez adultos e livres, quisessem uma outra natureza não mais possível de ser obtida por intervenção genética e de nenhum outro modo? Recordando o significado antigo de physis como ação e efeito do verbo gerar, o termo natureza pode, portanto, estar associado à origem como geração do que é natural, sendo natural aquilo que é gerado naturalmente (por si mesmo), sem ser fabricado. Se aplicado à natureza humana este é um conceito de múltiplas interpretações na história da filosofia, no caso da semente, até pouco tempo atrás, não parecia haver dificuldade em compreender sua natureza, como “símbolo das forças latentes, não manifestas; das possibilidades misteriosas cuja presença nem se suspeita às vezes e que justificam a esperança” (CIRLOT, 1984) ou, no dizer aristotélico, como a vida em potência. A possibilidade de mudar a compreensão de natureza daquilo que é natural, mas não humano, começou a ser esboçada no século XIX, a partir das contribuições de Darwin e Mendel, culminando na realização do primeiro Congresso Internacional da nova ciência em construção (Genética), em Londres (1899), sobre hibridização e cruzamento de variedades. O século XX é coroado, então, tanto com a descoberta do genoma humano, de genes causadores de erros inatos e outras doenças, como com as tentativas eugênicas, revelando o anseio de um aprimoramento acelerado pela tecnologia. O principal limite rompido pelo progresso científico nesta área foi a barreira entre espécies. Se o agricultor até então de algum modo selecionava as melhores sementes e assim ia produzindo plantas ‘aprimoradas’, agora é possível inserir em plantas genes de outras espécies, como vírus e bactérias. Em 1973, S. Cohen e A.Y. Chang realizam um experimento com o qual superaram uma barreira biológica, introduzindo uma molécula de DNA de sapo na bactéria E. coli que começa a produzir o gene estranho. A possibilidade de utilizar a técnica para inserir genes de vírus tumorais em E. coli e verificar como exercem seus efeitos cancerígenos suscita o temor entre os cientistas de que a bactéria possa transformar-se em um organismo danoso, o que levou a um intenso debate entre os cientistas na Conferência de Asilomar (1975), quando foi proposta uma moratória no uso da tecnologia. Ao invés de moratória, no ano seguinte, teve início um processo de regulação buscando um controle por meio de regras de biossegurança. Não houve, na época, qualquer debate sobre implicações éticas no uso da tecnologia dia DNA recombinante. Como reconhece Paul Berg (1995), presidente do comitê que convocou a conferência, foi uma escolha deliberada porque era prematuro considerar as aplicações de uma tecnologia ainda especulativa, de modo que em 1975, a preocupação maior eram os possíveis efeitos sobre segurança e saúde pública.

A preocupação de Berg continua fazendo sentido, pois, como afirmam Ticciati & Ticciati (1998, p. 1-3): A mistura de genes por cruzamento natural é claramente sujeita a regras muito bem definidas – você não pode misturar espécies não relacionadas e nem inserir um gene sozinho, você tem que pegar o pacote de DNA inteiro. Onde há regras há limites. Por exemplo, quando um jumento cruza com uma burrica, o descendente – uma mula – é estéril. A natureza não permite propagação ou transformação do DNA da mula. A lei natural colocou um limite. A engenharia genética não está sujeita a essas regras e ultrapassa todos os limites colocados pela lei natural.

Assim, no caso da agricultura, de processo empírico, o melhoramento genético tornar-se-ia, segundo os geneticistas, um processo totalmente controlado pela mão humana, produto de uma téchne altamente especializada. Ao destruir a diversidade, as sementes milagrosas, no entanto, tornaram-se um mecanismo de alimentar pestes. Sir Alfred Howard (apud Shiva, 1997, p. 93), um expert em agricultura, membro do império britânico, que trabalhou na India de 1905 a 1924, tornou-se um defensor da agricultura tradicional, chegando a afirmar que: Nature has never found it necessary to design the equivalent of the spraying machine and the poison spray for the control of insect and fungus pests [...]. The principle followed is that plants and animal can very well protect themselves […] Nature’s rule in these matter is to live and let live4.

Desta forma, torna-se necessário discutir se a manipulação, no caso das sementes, é ou não correta do ponto de vista moral, considerando que no caso de manipulação de genoma humano, a extrapolação do limite da barreira da espécie leva igualmente a pensar nas consequências para o que Habermas (2010) chama de ‘autocompreensão ética da espécie’, na medida em que ao deslocar a fronteira entre nossa base natural indisponível e o ‘reino da liberdade’, a técnica genética pode modificar a estrutura geral de nossa experiência moral e afetar nossa consciência moral. Nossa sociedade foi construída com base na ideia de ser uma civilização sustentada no conhecimento científico e nas tecnologias por ele produzidas. Paradoxalmente, ao contrário de todas as outras formas de produção e organização social, a ciência tende a se manter acima da sociedade, evitando qualquer questionamento acerca de seus atos. E é neste ponto que a filosofia moral torna-se importante para indicar, não certezas, mas questionamentos acerca da obrigação ou não de obter o melhor espécime por meio de engenharia genética, levando em consideração os motivos que poderiam justificar tal escolha, bem como as consequências desta decisão, em termos de riscos.

Rousseau (1749) já afirmara: “se nossas ciências são vãs no objetivo a que se propõem, são mais perigosas ainda pelos efeitos que produzem”. Não é o caso de ser contra o conhecimento, mas de defender a virtude. Se com o progresso cientifico na produção de sementes tivemos tanta destruição não apenas da natureza, mas por causa dela, também da natureza humana, quanto podemos estar seguros de que a manipulação genética humana trará mais felicidade? O filósofo contemporâneo Andrew Feenberg (2003), em sua teoria crítica da tecnologia, propõe analisar a relação da tecnologia com os valores e com os poderes humanos a partir de dois eixos: um, em que a tecnologia é considerada ou neutra, ou carregada de valores; outro, em que a tecnologia ou é autônoma, ou humanamente determinada. Interessa aqui especialmente um par de combinação dos eixos obtido a partir dessa análise. O autor chama determinismo a condição em que a tecnologia é considerada autônoma e neutra, e instrumentalismo ou fé liberal no progresso quando a tecnologia é considerada neutra, mas humanamente determinada. Instrumentalismo é a visão-padrão moderna segundo a qual a tecnologia é simplesmente uma ferramenta ou instrumento da espécie humana com os quais nós satisfazemos nossas necessidades. Já o determinismo seria aquela visão das ciências sociais desde Marx segundo a qual a força motriz da história é o avanço tecnológico. Para os deterministas a tecnologia não é controlada humanamente, são os humanos dominados por ela, conforme as exigências de eficiência e progresso. Segundo esta visão, a tecnologia emprega o avanço do conhecimento do mundo natural para atender às características universais de natureza humana, por exemplo, suas necessidades básicas, como a alimentação. Por isto, a tecnologia está ligada, por um lado ao conhecimento da natureza, e por outro, às características genéricas da espécie humana (FEENBERG, 2003). Ao discutir as possibilidades de intervenção genética humana, Buchanan (2000) viu como progresso moral este movimento de empurrar as fronteiras do natural, que traz para a esfera do controle social (portanto, para o domínio da justiça), o que antes era considerado natural, de forma que a intervenção genética para evitar ou minimizar sérias limitações ou oportunidades em razão de uma doença seria uma das exigências de justiça – no caso humano, para garantir a igualdade de oportunidades. Na mesma linha de pensamento, Lacey (2006) considera que se uma avaliação da ciência puder ser feita não apenas pelo valor cognitivo de seus produtos teóricos, mas também por sua contribuição para a justiça social, a modificação do natural – um produto do avanço científico agora possível – deve poder ser associada a uma expansão também

do domínio da justiça. Por isso, é inevitável e extremamente necessário que se discuta a questão do limite na aplicação de biotecnologias, tendo em vista que sua utilização pode trazer riscos à vida natural e humana. Vou utilizar outro caso concreto, associado à Revolução Verde, que é o da produção de plantas transgênicas, para mostrar que o conhecimento dos processos de transgenia e seu produto, as sementes transgênicas, assim como no caso das sementes milagrosas da Revolução Verde, não produziram justiça social. Aperfeiçoando o natural: o caso das plantas transgênicas e the best baby

Em 1893, Dr. John Augustus Voelcker (apud SHIVA, 1997, p. 25), escreveu à Sociedade de Agricultura Real da Inglaterra um Relatório acerca do melhoramento da agricultura indiana, no qual afirma: I explain that I do not share the opinions which have been expressed as to Indian Agriculture being, as a whole, primitive and backward, but I believe that in many parts there is little or nothing that can be improved, whilst where agriculture is manifestly inferior, it is more generally the result of the absence of facilities which exist in the better districts than from inherent bad systems of cultivation […] it is much easier task to propose improvements in English agriculture than to make really valuable suggestions for that of India5.

Do pensamento originário sobre a importância de restaurar os ciclos da natureza e trabalhar em parceria com os processos naturais, a visão de agricultura que passou a dominar o mundo entendia que era preciso dominar a natureza e transformá-la, até produzir uma nova natureza, o que se tornou possível com a transgenia. As plantas transgênicas são aquelas cujo genoma foi intencionalmente manipulado, geralmente com a finalidade de introduzir um ou mais genes estranhos à sua espécie. O objetivo da manipulação é atribuir à planta novas propriedades, que nem a evolução, em longo prazo, conseguiu inventar. O caso das plantas transgênicas para Jacques Testard (2011) é rico em ensinamentos sobre o que ele chama de mística genética. O pai do primeiro bebê de proveta francês reconhece que a descoberta do DNA levou à crença de que o genoma seria uma espécie de programa do ser vivo, quando na verdade é apenas uma fonte de informações. Em sua crítica sobre o lobby científico e industrial da nova genômica e suas pretensões, Jacques Testard (2011, p. 224) afirma que: “O futuro dirá o que essa atitude comporta de ilusões, mas a atualidade permite constatar sua vontade globalizante, certamente totalitária”.

Superestimar os poderes da biotecnologia na intervenção genética pode levar ao risco de reforçar o determinismo genético. Na mesma linha de Testard, Buchanan (2000) afirma que sucumbir ao determinismo genético é pensar que os genes são causas autosuficientes ou autônomas de traços ou comportamentos, e que não teria estratégia melhor para proteger as instituições de críticas do que implantar o determinismo na cabeça das pessoas. Buchanan (2000) considera ainda que o aumento na capacidade de intervenção genética, decorrente da expansão do conhecimento acerca do papel dos genes como fatores causais, em nada serviria para justificar uma atitude acrítica e conservadora em relação às nossas práticas sociais e instituições políticas. Assim sendo, ele propõe uma postura ética proativa como melhor defesa contra o determinismo genético. Ora, este parece ser o caso das plantas geneticamente modificadas. Uma das formas de promover a aceitação desses OGM foi trazer o argumento da melhoria genética, do aprimoramento e da melhor produtividade das culturas, com base na referência a processos ‘naturais’, tais como as bactérias do solo que trocam genes de resistência a antibióticos, o trigo moderno que recebeu fragmentos de genoma do centeio, etc. Entretanto, paradoxalmente, o processo político e jurídico para produção de OGM é embasado no discurso da alta e especializada tecnologia, portanto, merecedora de patentes e royalties, algo inimaginável no caso da semente ‘natural’, mas absolutamente defensável no caso da semente como ‘evento fabricado em laboratório’. Uma das graves consequências das plantas transgênicas, já reconhecida pela ONU (2009), é a perda de diversidade genética provocada pela expansão das variedades comerciais. A pesquisa em melhoramento genético se concentrou no desenvolvimento de um número limitado de variedades de alto rendimento, fazendo com que hoje se cultivem apenas 150 espécies. A maior parte da humanidade vive de não mais que 12 espécies de plantas, e o grosso da produção se concentra nos quatro cultivos básicos mais importantes (trigo, arroz, milho e batata). Estima-se que aproximadamente 75% da diversidade genética vegetal tenha sido perdida à medida que os agricultores de todo o mundo foram abandonando suas variedade locais em favor de variedades geneticamente uniformes que produzem mais em determinadas condições. A diversidade genética dos próprios cultivos também está se reduzindo. Por exemplo, no Sri Lanka, em 1959, eram cultivadas 2.000 variedades de arroz; em 1992, eram menos de 100, das quais 75% tinham uma origem comum. De 30.000 variedades tradicionais de arroz na Índia originalmente, plantavam-se, no começo dos anos de 1990, tão-somente 50. Esta erosão

genética em grande escala aumenta a nossa vulnerabilidade aos efeitos das mudanças climáticas e ao aparecimento de novas pragas e doenças (ONU, 2009). A importância das sementes como patrimônio genético é inegável. Em junho de 2002, durante a realização da Conferência Mundial da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação), em Roma, a Via Campesina Internacional lançou a campanha “sementes patrimônio do povo a serviço da humanidade”, relançada em janeiro de 2003 durante a realização do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre (RS), no Brasil. Os defensores da biotecnologia aplicada à agricultura, visando à produção de alimentos, alegam que as sementes transgênicas incorporam conhecimento científico e os requisitos de uma patente: novidade, inventividade, utilidade e aplicação industrial. Na análise de Lacey (2006), o conhecimento científico que informa a engenharia genética resulta de pesquisas orientadas por uma versão biotecnológica do que ele chama de ‘estratégias materialistas’ ou ainda ‘abordagem descontextualizada’, que predomina na ciência moderna. O que caracteriza esse tipo de estratégias, segundo o autor, é a exclusão das categorias de intencionalidade, de conteúdo valorativo, na formulação das teorias, hipóteses e dados. Assim, na pesquisa com base em estratégias materialistas, os fenômenos aparecem dissociados de qualquer forma de organização social, vidas e experiências humanas, e não pode haver qualquer juízo de valor incluído nas implicações lógicas de teorias e hipótese, garantindo uma neutralidade cognitiva (LACEY, 2006). Seria moralmente irresponsável não considerar os valores que são afetados com o cultivo de sementes transgênicas. Do mesmo modo que se pode questionar o quanto a intervenção genética humana afetaria a identidade da espécie e traria problemas de autocompreensão do indivíduo (HABERMAS, 2010), a produção de ‘eventos’ em laboratório para produzir grãos, por exemplo, afeta a vida em comunidade. Vejamos o que diz um camponês mexicano da região de Oaxaca sobre a contaminação de variedades locais de milho por culturas de transgênicos: “A contaminação de nosso milho tradicional aniquila a autonomia fundamental de nossas comunidades indígenas e agrícolas, pois não estamos simplesmente falando de nosso estoque de alimentos; o milho é uma parte vital de nosso patrimônio cultural” (ALTIERI & NICHOLS, 2002, p. 162).

O mesmo se pode observar a respeito do arroz na Tailândia, ao se dizer: “arroz jasmim é o orgulho dos agricultores tailandeses e dos habitantes da Tailândia [...] arroz constitui parte integrante de nosso modo de viver e de nossa índole.” (NILLES, 2003). Os depoimentos revelam o quanto estão interligadas, pelo menos no caso dos agricultores, a natureza do mundo natural e do mundo humano, de modo que uma

alteração naquela pode desestruturar esta. O que poderia acontecer, então, com a espécie humana, no caso de uma alteração na sua natureza? Outro aspecto subjacente não considerado, é que a semente nativa incorpora um conhecimento milenar dos agricultores. Como relata Altieri (2003), os indígenas da América Latina tem noção de direitos de propriedade intelectual (DPI), sendo o caso mexicano um bom exemplo disso, onde são encontradas as amostras de milho mais antigas que existem no mundo, datadas em aproximadamente 10 mil anos, e o movimento armado do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), que se ergueu em 1994, exigiu o reconhecimento constitucional dos direitos e da cultura indígena, sendo que em 1998, foi estabelecido que no México, por ser o país de origem do milho e ter a maior diversidade genética, não se podiam desenvolver campos de cultivo nem de experimentação de milhos transgênicos, o que não tem sido respeitado pelo governo mexicano. A semente crioula, historicamente adaptada às mais diversas condições edafoclimáticas pelos camponeses e pelos povos indígenas, é o que dá a eles a possibilidade de implantar modelos de produção e formas de organização do trabalho familiar e/ou comunitário, que lhes permitem obter autonomia perante as políticas públicas e inserção nos mercados de produtos agrícolas, caracterizando a justa situação de fortalecimento local. Somente considerando a biodiversidade como base para a segurança e soberania alimentar, podemos construir uma sociedade com menos desigualdades sociais. Já o conhecimento incorporado na semente transgênica não diz respeito à diversidade biológica, à adequação aos processos e padrões naturais, mas à estrutura molecular de genes e à química de suas expressões. Para Lacey (2000), a questão científica a ser respondida pela semente transgênica é a da maximização da produção sob certas condições, enquanto que para responder à outra questão, também científica, sobre como promover o empowerment, o fortalecimento local e garantir a segurança alimentar, portanto, justiça social, seria necessário o conhecimento agroecológico, embutido na semente nativa, cultivada por milênios. A legislação brasileira LOSAN (Lei 11346/2006), ao assegurar o direito de todos a uma alimentação adequada e defender a segurança alimentar diz que: “a segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis”. (art. 3º)

Assim sendo, o que está em jogo na disputa entre as sementes é a escolha entre dois modos de vida: um que enfatiza os agroecossistemas sustentáveis, e outro que enfatiza o mercado (LACEY, 2000). A discussão filosófica a respeito do aprimoramento humano por meios biotecnológicos precisa considerar fortemente esta questão: que interesses de mercado estão por trás da pesquisa de manipulação genética humana? Como afirma Shiva (1997) no caso das sementes, quem controla a semente, controla o mundo, pois é isto que alimenta a humanidade. E quem controla ou controlará a manipulação genética humana? Um dado muito interessante desta relação é que enquanto 90% da biodiversidade encontra-se nos países em desenvolvimento, 95% de todas as patentes biológicas estão hoje concentradas nas mãos de atores dos países industrializados (NILLES, 2003). Juridicamente, foi por meio do acordo TRIPS (Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights, Including Trade in Counterfeit Goods), firmado por ocasião da criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1995, e imposto aos países em desenvolvimento, que ficou assegurada a proteção de patentes e os DPI relacionados ao comércio. O artigo 27 do acordo assinado em 1994 garante o patenteamento de processos e produtos em todas as áreas da tecnologia, sempre que cumpridos os requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial 6. Já vimos que a semente transgênica, uma vez no meio ambiente, constitui um fator de contaminação que ameaça a saúde pública e a justiça social, uma vez que pode deixar sem condições de sobrevivência os agricultores que tiveram suas lavouras contaminadas. Passo, então à discussão sobre até que ponto a implantação das sementes transgênicas estaria ‘corrigindo’ um defeito da natureza ou apenas acentuando as situações de desigualdades sociais. A biotecnologia aplicada à justiça social

Na primeira visão apresentada por Buchanan (2000), representada por Aristóteles e Kant, para existir a moralidade a natureza humana deve satisfazer certas condições, por exemplo, ser livre e racional. Evidentemente, tais características seriam dificilmente aplicadas aos vegetais, entretanto, em uma vasta revisão de publicações acadêmicas no campo da ética ambiental e da ecologia, realizada por Gregorowius, Lindemann-Matthies e Huppenbauer (2011), a respeito do discurso ético no uso dos OGM, encontraram-se, em

56.6% dos artigos, preocupações morais com a modificação genética, relacionadas ao valor intrínseco da ‘naturalness’, das entidades bióticas, ou ao reducionismo conceitual. Por outro lado, não é possível a ideia de progresso moral se pudermos alterar a natureza humana, dada a ideia tradicional de basear a teoria de justiça em uma concepção fixa de natureza humana. Neste caso, parece haver uma distinção entre a manipulação genética em plantas, que produzem a uniformidade, e o que seria possível com a manipulação genética humana, que produziria naturezas distintas. Teríamos então maior diversidade humana e menor diversidade natural? E se as características humanas obtidas por meio da intervenção genética não fossem mais desejadas em uma segunda ou terceira geração? Os netos da manipulação genética, não desejando mais passar adiante os genes manipulados, seriam obrigados a buscar uma nova intervenção. Seria isto possível, desejável, justo? As propostas de enhancement (moral ou cognitivo) parecem expressar um mesmo conjunto de características, tais como atributos de inteligência, memória, ou mesmo senso de justiça (NAHRA & OLIVEIRA, 2012). Por outro lado, sem qualquer manipulação em nossos genes, nossa história até hoje mostra o quanto modificamos nossa compreensão acerca de valores como a igualdade, a equidade, o bem-estar geral, em um processo que se caracteriza pela contínua ampliação dos chamados direitos humanos e sociais. Analogamente, por milênios, os agricultores tem cultivado suas sementes, aprimorando-as, sem qualquer laboratório de alta tecnologia, no mais amplo laboratório da natureza. Todo este trabalho milenar, no entanto, é hoje desconsiderado, comparado com os artefatos produzidos pelas corporações, que só enxergam valor naquilo que produz dinheiro para o mercado. No caso das plantas há ainda um inconveniente, visto que há transferência dos genes introduzidos, que não deveriam ser transferidos, para outras espécies. É a chamada ‘contaminação horizontal’ (quando o material genético passa para um microorganismo do solo, transferindo-se depois para outra planta por meio desse vetor). Entretanto, embora a capacidade de trocar material genético entre espécies seja um meio de introduzir variações adicionais, é também um meio para a engenharia genética produzir uniformidade entre as espécies (KLOPPENBURG, apud SHIVA, 1997). Pensar na repetição deste mecanismo em termos de reprodução humana também seria assustador: não há qualquer garantia da estabilidade na manipulação genética obtida na fabricação de plantas em laboratório. E se o gene manipulado no bebê que deveria produzir uma criança saudável sofresse alteração em função de interação com outros genes? Aumentaria assim, a possibilidade de doenças genéticas, e de maior

dificuldade de tratamento, visto que seriam verdadeiras ‘quimeras’. Estaríamos criando novos e perigosos riscos, como no caso das ‘super pragas’ resistentes às plantas transgênicas: poderíamos ter um espécime humano equivalente à buva? Pode-se argumentar que, filosoficamente, não é isso que interessa, no entanto, penso que as consequências das tecnologias disponíveis pelo avanço do conhecimento devem ser analisadas filosoficamente, tanto do ponto de vista consequencialista, como principialista, dentro da perspectiva da primazia da defesa dos direitos humanos. Por isso, penso que a questão do risco à saúde humana, que decorre da introdução destas novas tecnologias, precisa ser colocada, do ponto de vista ético: temos o direito de trazer às futuras gerações novos riscos, com os quais não sabemos ainda lidar? Devemos deixar às futuras gerações a tarefa de lidar com os riscos por nós produzidos? Devemos adotar o ponto de vista da ‘fé cega’ na ciência que sempre trará soluções para os problemas criados, inclusive em um futuro incerto? Se o reducionismo científico é amplamente criticado, também o reducionismo filosófico, especificamente, no campo da bioética que tenta enfrentar estas questões, não parece ser o caminho mais indicado. A questão da patente é um bom exemplo, pois o patenteamento da vida levanta questões não resolvidas no campo político e no campo jurídico, além de tocar em valores éticos centrais. Animais e vegetais são criaturas com uma vida autônoma e não meros objetos de uso ou produtos da indústria. Quando se trata da alteração genética de um animal ou vegetal, o acréscimo de dois ou três genes a um ser vivo com milhares de genes, de forma alguma já o transforma em uma invenção. Acontece que a engenharia genética não cria novos genes, apenas manipula os já existentes (SHIVA, 2012). Os direitos de propriedade, no contexto do avanço biotecnológico, parecem colidir frontalmente com os direitos humanos. Se com os direitos de propriedade das ‘invenções’ da natureza, no caso de plantas geneticamente modificadas, temos já sérios problemas como apontados aqui, caberia, no mínimo, pensar prudencialmente, acerca das consequências da manipulação no genoma humano, uma vez que, também este material é patenteado. Conclusão Tentei

apresentar

aqui

algumas

similaridades

no

debate

entre

ciência,

biotecnologia e ética, quando aplicado à agricultura – tendo como exemplos a Revolução Verde e a transgenia – e quando aplicado ao aprimoramento humano a partir de intervenções genéticas.

A intervenção genética humana é hoje uma possibilidade técnica, cabendo discutir suas possibilidades e permissibilidade dentro de limites éticos. No caso da agricultura, fica evidente o quanto de injustiça social foi produzida a partir da aplicação das possibilidades tecnológicas, anunciadas sempre como promotoras da paz e da abundância. Igualmente, defende-se a possibilidade de intervenção no genoma humano (embrionário), visando à produção de seres mais saudáveis, mais inteligentes, e até mais morais. O determinismo genético, no entanto, já foi desmascarado, tanto no caso da agricultura, como no caso da genômica humana, tendo sido já amplamente reconhecida a importância do meio ambiente na expressão gênica. Assim sendo, cabe no mínimo a dúvida: o quanto a escolha da melhor criança por seus pais garantiria o melhor futuro? O que é considerado pelos pais como o melhor seria também considerado por estas crianças quando capazes de julgamento, considerando a provável alteração no ambiente em que estas se tornariam adultas? A questão da transgenia em plantas tem mostrado isso, pois, a melhor semente, a mais adaptada a certo herbicida, em menos de uma década, revelou sua fragilidade de permanecer no meio ambiente, necessitando de uma nova semente. Não se pode admitir isso com seres humanos. Assim sendo, torna-se necessário fazer uma avaliação do risco, sendo o princípio da precaução, já recomendado no caso das sementes transgênicas, uma alternativa adequada para o caso da manipulação humana. Se não há garantias de que a manipulação produzirá efeitos benéficos, ainda que isso não seja fortemente definitivo, é melhor, prudencialmente, evitar introduzir esta prática, até que se tenha um mínimo de segurança, tendo em vista que os efeitos indesejáveis podem ser irreversíveis, como está acontecendo no caso da contaminação das plantas transgênicas. Ao invés da sociedade buscar se adequar às mudanças tecnológicas, mais proveitoso seria defender mudança nas tecnologias para que se adaptem aos valores da justiça social, da sustentabilidade e da diversidade. Notas: 1.

2.

3.

Then, by developing and applying the scientific and technological skills of the twentieth century for “the well-being of mankind throughout the world”, he may still see Isaiah's prophesies come true: “... And the desert shall rejoice, and blossom as the rose... And the parched ground shall become a pool, and the thirsty land springs of water’”. Disponível em http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/peace/laureates/1970/borlaug-lecture.html. Acesso em 07 ago 2013. O prazo se esgota em 31 de dezembro de 2015. Cf. Objetivos de desenvolvimento do milênio. Disponível em http://www.unicef.org/brazil/pt/resources_9540.htm. Acesso em 09 ago 2013. O Estado de São Paulo, 11/02/2004. Disponível em http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=16206. Acesso em 07 ago 2013.

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No Brasil, o marco legal para a garantia do patenteamento desta forma de vida deu-se no final dos anos 90, com a Lei de proteção aos cultivares (Lei nº 9456/1997) e a Lei de propriedade industrial (Lei nº 9279/1996). Os requisitos de patenteabilidade previstos no artigo 27 do acordo TRIPS estão presentes no artigo 8º da lei 9279, quais sejam: novidade, inventividade e aplicação industrial; não são patenteáveis: o que for contrário à moral, aos bons costumes e à segurança, à ordem e à saúde públicas (art. 18/9279/96). A Natureza nunca achou necessário produzir algo como uma maquina de spray e spray de veneno para controlar pestes de fungos e insetos [...] o princípio seguido é que plantas e animais podem muito bem proteger a si mesmos [...] A regra da Natureza neste assunto é viver e deixar viver (tradução minha). Eu esclareço que não compartilho das opiniões expressas de que a agricultura Indiana, como um todo, é primitiva e atrasada, mas eu acredito que em muitas coisas há pouco ou nada para ser melhorado, ao passo que onde a agricultura é manifestamente inferior, isto é mais geralmente o resultado da ausência de facilidades que existem nos distritos melhores do que devido a sistemas ruins de cultivo […] é muito mais fácil a a tarefa de propor melhoramentos na agricultura inglesa do que fazer sugestões valiosas para a agricultura da India (tradução minha). Cf. http://www2.cultura.gov.br/site/wp-content/uploads/2008/02/ac_trips.pdf. As exceções previstas no TRIPS que incluem o direito de patentes sobre plantas e animais são extremamente controversas. A respeito da análise sobre patenteamento da vida, ver Shiva (2012). Ver ainda análise de Peter Singer (2004) sobre as acusações feitas à OMC.

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