Transformatórios: laboratórios de transformação da matéria

May 26, 2017 | Autor: Felipe Fonseca | Categoria: Fablab, Digital Cultures, Maker Culture, Metareciclagem, Gambiarras, transformatório
Share Embed


Descrição do Produto

Transformatórios: laboratórios de transformação da matéria Felipe Schmidt Fonseca

Resumo Este projeto de pesquisa tem por objetivo investigar a potencial aproximação entre, de um lado, a cultura maker e as ferramentas acessíveis de fabricação digital presentes nos espaços makers, hackers e FabLabs; e de outro aqueles campos ligados tanto aos consertos, adaptações, personalização e customização, quanto à produção artesanal e em pequena escala. Sugere-se que estes diferentes campos têm em comum a atuação direta com a transformação de matéria. Propõe-se então a imagem do transformatório – laboratório de transformação de matéria - como eixo de articulação ao qual possam confluir as práticas da fabricação digital, dos consertos e do artesanato. A intenção subjacente do projeto é investigar o potencial dos transformatórios enquanto espaços dedicados ao aprendizado entre pares e à criatividade aplicada. Por fim, o projeto pretende oferecer recomendações para a elaboração de políticas públicas de incentivo à inovação sustentável, cidadã e socialmente relevante em diálogo com os transformatórios e a transformação de matéria.

Introdução Ao longo da última década, uma quantidade crescente de iniciativas no mundo inteiro tem se dedicado a desenvolver diferentes formatos de atuação baseados na adoção das chamadas tecnologias e metodologias de fabricação digital1. De início, a tais tecnologias atribuía-se o potencial de democratizar e distribuir a capacidade de produzir inovações socialmente relevantes. Como sugeriu Neil Gershenfeld, professor do MIT considerado um dos principais promotores da rede de laboratórios de fabricação digital (FabLabs): “A verdadeira oportunidade é a de se agregar a força inventiva do mundo para que localmente se desenhem e produzam soluções para os problemas locais” (GERSHENFELD, 2007). Este discurso e suas variações igualmente otimistas foram amplamente repercutidos pela mídia especializada em 1

Tecnologias de fabricação digital são um conjunto de equipamentos que permitem a produção ou modificação de objetos físicos a partir de matrizes digitais, e vice-versa. Alguns exemplos destes equipamentos são a impressora 3D, as fresadoras digitais, as cortadoras laser, os scanners 3D, entre outros. Frequentemente relacionam-se a metodologias colaborativas oriundas principalmente do desenvolvimento de software como a produção ágil, a prototipagem rápida, os sprints, hackathons e desconferências, entre outras.

1

tecnologia, que propagou as tecnologias de fabricação digital como uma oportunidade de transpor para o mundo dos objetos o mesmo tipo de inventividade por ela associado ao empreendedorismo digital (ANDERSON, 2012). Isso possibilitaria repensar as bases da manufatura e da fabricação (GERSHENFELD; EUCHNER, 2015). É importante, entretanto, analisar de forma mais aprofundada tais ideias, as visões de mundo que elas supõem e as implicações que podem ser antecipadas a partir delas. Alguns autores associam tais iniciativas à suposta emergência de uma “cultura maker” (ANDERSON, 2012; BERREBI-HOFFMANN; BUREAU; LALLEMENT, [s.d.]; HATCH, 2014). Um maior acesso a equipamentos e conhecimentos a respeito da fabricação de objetos a partir de modelos digitais seria a chave para uma nova revolução industrial, mais democrática e participativa por estruturar-se de forma flexível e em rede. Setores mais amplos da sociedade teriam a oportunidade de travar contato com a ética hacker e seus valores como “autoexpressão, compartilhamento de conhecimento, construção de comunidades, aprendizado de novas habilidades, criatividade e inovação” (NASCIMENTO, 2014). Os FabLabs não são os únicos espaços em que a cultura maker se manifesta. Existem também outros formatos como os hackerspaces, makerspaces, espaços de co-working, hubs de inovação, incubadoras colaborativas, entre outros. Guardam entre si algumas características comuns. Podem ou não estar ligados a universidades ou empresas, seja de forma direta – afiliados ou incubados – ou indireta – através de parcerias e cooperação. Em outros casos, são iniciativas autônomas mantidas e sustentadas pelas próprias pessoas que as utilizam. Com frequência adotam modelos híbridos de organização, mesclando metodologias e vocabulários oriundos da pesquisa acadêmica, do empreendedorismo comercial, do design, do associativismo, do ensino formal e informal, do ativismo, entre outras áreas. Dedicam-se a uma variedade de temas que abrangem desde a reflexão crítica sobre ciência e tecnologia até a prototipagem de produtos físicos, passando ainda pela produção de conteúdo multimídia, pela experimentação e desenvolvimento com hardware e software livres, pela organização de eventos e oficinas. E frequentemente identificam-se com a cultura maker. Alguns atores engajados neste contexto definem a cultura maker como manifestação contemporânea do impulso profundamente humano de criar e inovar, potencializado agora pela disponibilização não somente de ferramentas e equipamentos como também de informação livre sobre como pôr em uso tais ferramentas e equipamentos. Apontam ainda

2

uma potencial relação entre a cultura maker e diversas práticas que exercitam aquilo que se poderia chamar de uma criatividade concreta, aplicada à matéria. Chris Anderson, por exemplo, relaciona suas próprias incursões nas práticas maker com suas próprias lembranças do avô inventor e identifica uma linha de continuidade entre ambas (ANDERSON, 2012). Esta perspectiva de continuidade pode também ser encontrada por exemplo na informação de que o governo federal dos Estados Unidos investiria recursos no desenvolvimento de centros de referência em manufatura, nos quais as novas tecnologias de fabricação digital seriam tratadas como instrumentos para renovação da capacidade industrial daquele país: Em março de 2012, o Presidente Obama anunciou seu plano de investir um bilhão de dólares para catalisar uma rede nacional de até 15 institutos de inovação em manufatura em todo o país que serviriam como hubs regionais de excelência em manufatura que vão ajudar a trazer competitividade para os fabricantes e encorajar investimentos nos Estados Unidos. O presidente demandou que o Congresso agisse nesta proposta, criando a Rede Nacional de Inovação em Manufatura. (MENICHINELLI, 2013) Esta aparente fácil aceitação das novas tecnologias de fabricação pela grande indústria é um sinal importante, e problemático. Para Langdon Winner, as tecnologias estão fundamentalmente entrelaçadas com o contexto social e histórico em que se situam: “as sociedades escolhem tecnologias que influenciam, por um longo tempo, como as pessoas vão trabalhar, se comunicar, viajar, consumir, e assim por diante” (WINNER, 1986). Isso não se dá somente em função das características concretas das tecnologias e seus usos, mas também à maneira como são implementadas, a como possibilitam ou restringem diferentes formas de operação, e à sua articulação com tecnologias e arranjos preexistentes. De forma congruente com as ressalvas de Winner, alguns grupos vêm apontando a insuficiência do vocabulário maker para dar conta da complexidade e das potenciais implicações políticas e sociais das iniciativas aqui tratadas. Sugerem que, apesar de inicialmente terem se identificado com um cenário de crítica ao capitalismo global – com forte influência dos hacklabs europeus de inspiração autonomista e altermundista -, os espaços da cultura maker foram gradualmente adotando uma visão de mundo na qual toda criatividade é interpretada sob a perspectiva do mercado (TROXLER; MAXIGAS, 2014). Seria de fato uma inversão daqueles impulsos inicialmente inspiradores de visões de mundo mais sustentáveis, diversas e includentes. Johan Sördeberg e Alessandro Delfanti veem um cenário no qual os valores dos hackers são cooptados pelo sistema, uma recuperação que ao naturalizar a inovação crítica acaba 3

neutralizando as alternativas que ela gera (DELFANTI; SÖDERBERG, 2015). Para contrabalançar a iminente captura e assimilação do potencial transformador das práticas exercidas nos espaços de cultura maker, pode-se apontar para o fato de que as mesmas tecnologias e práticas têm grande potencial não somente para a fabricação de novos objetos, mas também para os consertos e reparos (THE RESTART PROJECT, [s.d.]). De fato, em alguns contextos pode-se ver uma aproximação entre a cultura maker, o reuso de objetos e sua ressignificação2. Mas é importante atentar para duas questões. A primeira é que as práticas deste universo que recebem atenção da mídia e da opinião pública de forma generalizada são aquelas ligadas essencialmente à inovação e ao empreendedorismo industrial em grande escala. A segunda é que mesmo quando os consertos são mencionados, ainda assim pouca referência se faz aos profissionais já estão em atuação na sociedade. De certo modo, novas práticas de conserto de objetos estão sendo experimentadas, mas em troca ignoram as gerações anteriores. Steven Jackson recorda que trabalhar com objetos descartados ou defeituosos é uma atividade ancestral, que sempre fez parte da história das tecnologias (JACKSON, 2014). De que forma os novos “consertadores” não estariam desta forma descartando um vasto universo de conhecimentos práticos e habilidades tão antigos quanto a humanidade? Esta exclusão tem obviamente um paralelo na fabricação digital. Quando os novos makers promovem a ideia de uma fabricação distribuída respondendo a problemas locais como uma novidade revolucionária, não estariam também eles deixando de contemplar aqueles ofícios que fizeram isso por muito tempo? De fato, antes da ascensão da indústria de massa no século XX, os objetos utilizados por boa parte da população eram produzidos em pequenas indústrias e oficinas artesanais. À medida em que a indústria passou a oferecer alternativas mais acessíveis em decorrência da produção em escala, do uso de novos materiais e outros fatores, grande parte destes ofícios desapareceu. Alguns deles permanecem, como é o caso dos artigos de luxo, das peças decorativas ou artísticas, ou ainda das soluções feitas sob medida. Outros também sobrevivem talvez por sua natureza híbrida entre a fabricação e o conserto, como é o

2

N. do A.: Eu tive a oportunidade de passar algumas semanas como pesquisador convidado na cidade de Nantes, na França, onde um conjunto de iniciativas que trabalham com a recuperação e o conserto de objetos descartados por cidadãos e organizações vêm se organizando. Existem na cidade espaços que oferecem tais materiais para artistas, hobistas e famílias de baixa renda. Os interessados podem também utilizar a infraestrutura de lugares como o FabLab Plateforme C para reutilizar os materiais, ou o Atelier Partagé du Breil para consertar e recuperar objetos com defeitos.

4

caso do trabalho de sapateiros, marceneiros, serralheiros, costureiras, entre outros. Mas onde estão estes profissionais e suas habilidades nos mapas desta “nova cultura maker”? Andrew Russel e Lee Vinsel, organizadores da conferência The Maintainers3, afirmam que as pessoas que trabalham com manutenção são mais importantes para o mundo do que os inovadores (RUSSELL; VINSEL, 2016). Talvez seja possível incrementar esta afirmação, incorporando também todas as pessoas que trabalham com instalações, adaptações, consertos, desmonte, ressignificação e descarte de objetos. A intenção aqui é reconhecer um vasto campo de atividades, realizadas por uma parcela considerável da população em todas as partes do mundo. E apontar para o fato de que todas estas atividades lançam mão cotidianamente de uma série de conhecimentos aplicados, de habilidades tácitas e de criatividade situada. Se a ideia é utilizar as novas possibilidades de produção material na busca de alternativas sustentáveis para o desenvolvimento, e ainda atuando de forma distribuída, democrática e inclusiva, talvez seja necessário prestar mais atenção neste universo combinado de práticas que já estão disseminadas na sociedade do que esperar uma revolução liderada por equipamentos de fabricação digital operados por estudantes de design e outros tipos urbanos. Partindo do princípio de que a evolução da produção industrial de larga escala e seu papel como eixo de organização da sociedade está fartamente documentada, inclusive em sua relação com as novas tecnologias de informação (como em CASTELLS, 2005), torna-se ainda mais importante voltar os olhos para estas três áreas - a cultura maker inspirada pelas tecnologias de fabricação e metodologias digitais; o universo dos consertos, reparos e adaptações; e a produção artesanal e em pequena escala. São campos com características distintas, cujos princípios no entanto guardam grande familiaridade. Não somente por frequentemente operarem no eixo da busca de aprimoramento do artífice que deseja “fazer um bom trabalho pelo próprio trabalho” (SENNETT, 2008), mas por lidarem com aquilo que se poderia definir como “transformação de matéria”. De fato, a materialidade sempre foi fundamental para a produção artesanal e os consertos. Sem matérias-primas ou objetos a reparar, estas atividades não existem. Já a genealogia da fabricação digital poderia identificá-la como aquele momento em que a cultura digital passa a relacionar-se diretamente com a matéria, em oposição à virtualidade da internet e dos mundos simulados. Propõe-se aqui que articular as novas tecnologias de fabricação digital a partir do 3

Website: http://themaintainers.org/ (acessado em 28/10/2016).

5

vocabulário da indústria contemporânea de larga escala acaba por limitar em muito o seu potencial de transformar o mundo real. Uma visão ampliada que envolva todas as atividades dedicadas à transformação de matéria pode se demonstrar um caminho mais adequado para entender as potencialidades colocadas para os dias de hoje e o futuro. Mesmo ao reconhecer que um esforço importante de reflexão a respeito da sustentabilidade da produção industrial e construção de alternativas vem se desenvolvendo nos últimos anos – em especial nos campos ligados à perspectiva do “cradle to cradle” (MCDONOUGH; BRAUNGART, 2002) -, ainda assim parece fundamental experimentar com novos modos de organização que levem em conta aquelas outras áreas anteriormente apontadas: artesanato, consertos e fabricação digital. Uma compreensão da transformação de matéria como eixo para experimentação de novos formatos deve levar em conta três níveis de articulação. O primeiro nível é aquele representado pelos conhecimentos que são mobilizados nas atividades materiais – tanto os conhecimentos científicos quanto a herança cultural e a sabedoria popular. Este nível se configura em diferenciadas formas na fabricação digital, nos consertos e no artesanato, mas ainda assim há elementos comuns importantes. Aqui residem também a inovação e a criatividade aplicada. O segundo nível é um mais concreto, ligado às habilidades práticas como a fabricação e operação de ferramentas e equipamentos, o tratamento de matéria-prima, os procedimentos no ambiente de trabalho. Neste nível também é possível visualizar elementos de criatividade e experimentação, embora em um nível mais tático do que estratégico, segundo a definição de Certeau. Já o terceiro nível é o do trabalho em si, a vontade e a atenção humanas aplicadas como tempo dedicado a realizar coisas – no caso, tempo dedicado a transformar coisas em outras coisas, sejam novas ou não. Ao propor a transformação da matéria como eixo articulador das possibilidades naqueles três campos – artesanato, consertos e fabricação digital –, sugere-se construir caminhos alternativos, sustentáveis e includentes para o desenvolvimento. Não se trata, desta forma, de escapar da rota de evolução da indústria ao longo dos últimos séculos, mas sim de reconhecer que estes tiveram uma série de nefastos efeitos indiretos, que são usualmente tratados como externalidades. Busca-se assim pensar a manufatura e a fabricação nos termos da convivialidade (ILLICH, 1973), investigando-as em relação à organização do trabalho, ao espaço de trabalho e ferramentas, às práticas criativas e às implicações sociais e políticas. Por último, surge a questão a respeito de em que medida a perspectiva da transformação de

6

matéria pode ensejar o desenvolvimento de estruturas dedicadas a articular os saberes e potencialidades nela envolvidos. Seguindo Geert Lovink e Ned Rossiter, a crescente presença das redes digitais de comunicação em virtualmente todas as áreas da vida contemporânea impõe a necessidade de experimentar com novas formas institucionais (LOVINK; ROSSITER, 2005). É importante, desta forma, atuar em duas escalas distintas porém articuladas. A primeira é o desenvolvimento local de espaços físicos compartilhados nos quais pessoas com diferentes interesses e habilidades pudessem trabalhar juntas e aprender umas com as outras. Tais espaços estariam relacionados ao contexto internacional dos FabLabs, makerspaces, hubs de inovação e outros, mas orientados em torno da transformação da matéria e incluindo também os consertos e a produção artesanal como elementos de igual relevância. A segunda escala é a das estratégias sociais para que tais iniciativas surjam, sustentem-se e prosperem. Que tipo de políticas públicas podem ser elaboradas para que floresçam tais espaços diversos, enraizados em seus territórios e comunidades, e fundamentalmente inovadores? Naturalmente, aqui se trata de ampliar mesmo a compreensão do que venha a ser inovação – não somente o domínio daquilo que aumenta a produtividade da produção econômica ou a valorização nos mercados, mas também criatividade aplicada que seja socialmente relevante – na forma de tecnologias sociais e apropriadas, de inovação cidadã, do design crítico e outros eixos.

Justificativa A rede internacional de laboratórios de fabricação digital (FabLabs) está alcançando a marca de mil espaços em todos os continentes habitados, feito considerável para um formato proposto há cerca de dez anos. Outros modelos de espaços que se dedicam a atividades similares vêm também crescendo. São espaços coletivos que adotam formatos diversos laboratórios de fabricação digital, hackerspaces, makerspaces, estúdios coletivos, espaços de trabalho compartilhado, hubs de inovação, entre outros. Tais experiências – que chamei genericamente em trabalho anterior de “laboratórios experimentais em rede” (FONSECA, 2014) - provêm de históricos variados, mas guardam significativos elementos comuns entre si. Um dos mais significativos é a assim chamada cultura maker. Entretanto, ela vem sendo descrita de maneira limitada, frequentemente adotando o vocabulário industrial de forma acrítica. Este projeto de pesquisa busca exercitar uma outra interpretação para o potencial destas 7

tecnologias em sua relação com práticas enraizadas na sociedade. A compreensão da potencial familiaridade entre práticas presentes na cultura maker, nos consertos e na produção artesanal contribui para os esforços em curso de repensar a manufatura e a produção industrial em bases mais sustentáveis e includentes (DICKEL; FERDINAND; PETSCHOW, 2014; NASCIMENTO, 2014; TROXLER; MAXIGAS, 2014). Entende-se que os diferentes arranjos ligados àquela perspectiva aqui definida como “transformação de matéria” vai exercer um papel central nos futuros desenvolvimentos destas tecnologias. Reconhece ainda que elas têm de fato um grande potencial de mudança na sociedade. Minha motivação para procurar este caminho de investigação não reside somente em um interesse teórico ou abstrato. Há cerca de quinze anos tenho trabalhado diretamente com iniciativas que mais tarde estariam relacionadas ao universo dos laboratórios experimentais com tecnologias livres. Fui um dos fundadores, em 2002, da rede MetaReciclagem, que estabeleceu diversos laboratórios dedicados à recuperação de computadores descartados, em todo o país. Como membro de um subgrupo da rede MetaReciclagem chamado coletivo Lixo Eletrônico, tive contato com a elaboração da Política Nacional de Resíduos Sólidos, finalmente aprovada em 2010. Pude assim entender as potencialidades e limitações de ver a questão dos resíduos eletroeletrônicos de uma perspectiva e vocabulário eminentemente originados nas práticas da grande indústria – uma visão reforçada quando participei de intercâmbio com organizações que trabalham com o mesmo tipo de material na Holanda e Bélgica. Como resultado, iniciativas altamente criativas e situadas ficavam simplesmente fora do radar. Fui também consultor do PNUD desenvolvendo estudo para o Ministério da Cultura a respeito de laboratórios experimentais de cultura digital, tema que também pesquisei durante o mestrado no Labjor. Foi ali que primeiro encontrei o tema dos laboratórios de fabricação digital e a cultura maker. A conclusão de minha dissertação apontava a importância de se criarem espaços intencionalmente deixados em branco, onde pessoas de diferentes campos de atuação pudessem operar “na potência da invenção, a cada momento, de acordos e colaborações impossíveis de se prever” (FONSECA, 2014). Tive também outras experiências que confluem para a proposta de tratar a transformação de matéria como eixo central. Uma delas foi meu período como designer residente em 2014 na Virginia Commonwealth University, no Catar. Coordenei um grupo de estudantes de mestrado em pesquisas de campo visitando artesãos, depósitos de pneus no meio do deserto e profissionais que consertavam objetos, e também na realização de um evento dedicado aos 8

consertos e à ressignificação. No momento, estou também finalizando outro período de imersão. Passei três semanas em Nantes, na França, como pesquisador residente, trabalhando com o FabLab Plateforme C e a oficina comunitária de consertos da Associação PiNG. Vivenciei um pouco do dinâmico contexto das iniciativas de recuperação e reutilização de materiais e produtos naquela cidade. Em seguida, passei um período como professor visitante no Digital Cultures Research Lab (DCRL) da Universidade Leuphana, em Luneburgo, Alemanha. Participei ali da programação do semestre, focada em explorar em termos teóricos e práticos o design e os consertos. Na mesma medida, o interesse nas potencialidades dos espaços voltados à transformação de matéria tem também relação natural com minha atuação na cidade em que vivo: Ubatuba, no litoral norte de São Paulo. Se não faz muito sentido em Ubatuba um FabLab em sua concepção usual – espaço voltado primordialmente ao uso de estudantes de design e arquitetura, empreendedores digitais e artistas -, por outro lado vejo um grande potencial de espaços mais plurais, ao se levarem em conta algumas características da cidade. Acabo de passar dois anos coordenando algumas atividades da plataforma Ciência Aberta Ubatuba – projeto de pesquisa coordenado pelo IBICT que conta com recursos do IDRC, do Canadá. Ao longo do projeto, pude aprofundar o contato com diversos atores sociais envolvidos de alguma forma com a produção e uso de conhecimento – entre estudantes de nível técnico, cientistas baseados em outras localidades, populações tradicionais de indígenas, quilombolas e caiçaras, hackers e outros grupos. Uma das questões colocadas à sociedade de Ubatuba é que, por conta das áreas de conservação que cobrem mais de 80% de seu território, a cidade precisa necessariamente encontrar modelos de desenvolvimento alternativos, que escapem aos mecanismos usuais de industrialização baseada no desmatamento, mineração e produção poluente. Um agente público ligado à administração municipal foi justamente quem primeiro me falou sobre “indústria de transformação” como uma das hipóteses que gostariam de experimentar. A imagem do “transformatório” como espaço experimental e produtivo derivado da ideia de transformação da matéria é minha maneira de contribuir para este debate, cuja relevância e aplicação eu consigo enxergar diretamente na cidade em que vivo, mas me parece existir também para outras localidades. Por fim, ao longo destes anos como ator engajado em campos correlatos – se não tanto em meu percurso acadêmico, definitivamente nos outros tipos de iniciativas em que estive envolvido -, estabeleci um contato profícuo com iniciativas que também se situam em campos 9

assemelhados. Cito somente algumas, como exemplo: Access Space, Refab Space e Makers, em Sheffield, Reino Unido; o festival Pixelache, o Trashlab e o Fablab Aalto, em Helsinque, Finlândia; os já citados PiNG e Plateforme C em Nantes, França; o DCRL e o Fablab Lüneburg, em Luneburgo, Alemanha; o IOT Council, a Fundação Dyne.org e a Fundação Waag, em Amsterdã, Holanda; o Hangar, em Barcelona, assim como o Medialab Prado, em Madri, Espanha; o MAMM e o Parque Explora, em Medelim, Colômbia. Isso para não falar nas dezenas de projetos no Brasil que compartilham de perspectivas semelhantes e vêm também explorando caminhos ligados à apropriação crítica de novas tecnologias. É mais um dos contextos com os quais a pesquisa aqui proposta tem muito a contribuir.

Objetivos O objetivo central deste projeto é articular de maneira teórica e prática o potencial de cooperação entre três conjuntos de atividades que são usualmente vistos como distintos: os ofícios ligados à produção manual e artesanal; as adaptações, as personalizações e os consertos de objetos de diversas origens; e por fim o campo emergente da fabricação digital, do empreendedorismo colaborativo e da cultura maker. Busca-se identificar elementos de criatividade aplicada comuns a estas atividades, e então propor mecanismos de estímulo ao desenvolvimento de soluções inovadoras e socialmente relevantes que operem entre elas. Propõe-se como unidade de articulação entre estes campos a imagem do Transformatório, definido pioneiramente como espaço coletivo dedicado à transformação de matéria – seja produzindo, modificando, alterando ou ressignificando objetos físicos. Espera-se contribuir com uma perspectiva crítica, consciente dos impactos sociais e políticos mas ainda assim propositiva relacionada a estas formas de atuação. O projeto tem ainda objetivos secundários que possibilitarão explorar diferentes caminhos para alcançar o objetivo principal. Entre eles encontram-se: a) identificar elementos em comum nas práticas e discurso da produção manual e artesanal, dos consertos e adaptações, e da cultura maker - no Brasil e em outros países; b) construir uma definição experimental sobre o que é um Transformatório, em diálogo com formatos identificados entre aqueles três campos; c) desenvolver experimentos concretos para teste da ideia de Transformatório no território, em especial no município de Ubatuba, no litoral norte do Estado de São Paulo; d) explorar caminhos que orientem a criação de políticas públicas de estímulo a práticas inovadoras de transformação de matéria, dando ênfase à relevância social, distribuição no

10

território e construção de alternativas de desenvolvimento sustentável e inclusivo.

Bibliografia e Metodologia A metodologia do projeto está embasada em quatro módulos: revisão bibliográfica sobre o contexto, pesquisa de campo com iniciativas relevantes, protótipo experimental, e elaboração conceitual. Como se trata de um fenômeno relativamente recente, o campo da fabricação digital – em particular sua articulação crítica em torno da ideia de transformação da matéria – ainda conta com uma produção bibliográfica incipiente. Par tratar diretamente destes temas, o projeto se utilizará de referências atualmente em estágio exploratório, como a edição de número 5 do Journal of Peer Production, que tratou de “Shared Machine Shops”. Por outro lado, parece claro que muitos dos temas tratados de maneira concreta nos laboratórios de fabricação digital e outras estruturas assemelhadas encontram precedentes na literatura, ainda que em termos mais gerais e embrionários. Parte importante do projeto será a revisão bibliográfica a partir de autores estabelecidos que exploram as dinâmicas sociais e políticas que cercam as tecnologias (BRUNO LATOUR, 2000; FEENBERG, 1991; ILLICH, 1973; WINNER, 1986). Serão ainda buscadas pontes com autores que analisam a emergência de novas dinâmicas sociais a partir da disseminação de tecnologias de informação e comunicação (BAZZICHELLI, 2011; CASTELLS, 2005; RATTO, 2011; TERRANOVA, 2004; TROXLER; MAXIGAS, 2014), bem como outros que problematizam o vocabulário industrial utilizado para a adoção de novas tecnologias (MENOTTI, 2010; TURNER, 2006). Além da revisão bibliográfica, o projeto vai também dedicar-se a pesquisa de campo em moldes etnográficos. Em um primeiro nível, vai investigar as áreas ligadas a consertos, adaptações, produção artesanal e indústria em pequena escala na cidade de Ubatuba. Pretende-se assim entender de maneira mais aprofundada estes campos, observando-se: 1) organização do trabalho; 2) infraestrutura de trabalho – ferramentas e espaços; 3) ocorrência de criatividade cotidiana e inovação informal; 4) condições e implicações sociais e políticas destas áreas de atuação na cidade. Em um segundo nível, através de pesquisa secundária, entrevistas com atores relevantes e quando possível visitas e imersões, a pesquisa vai investigar estes mesmo quatro eixos em diferentes iniciativas dedicadas ao que se está chamando aqui de transformação de matéria. Alguns exemplos iniciais, que posteriormente precisarão de uma avaliação mais embasada acerca de sua relevância e priorização: a) 11

iniciativas de cultura maker e hacker em São Paulo como os FabLabs públicos, o Lab de Garagem, o Café Reparo, o Garoa Hacker Clube, entre outros; b) o Medialab Prado, em Madri, e o Calafou, na Catalunha, ambos na Espanha; c) a associação PiNG e o Plateforme C em Nantes, na França; d) o Fablab Berlim e o DCRL em Luneburgo, ambos, na Alemanha, o Makers, em Sheffield, e o Free Space Manchester, ambos no Reino Unido. O módulo do protótipo se constitui na forma de uma série de atividades concretas a serem desenvolvidas na cidade de Ubatuba, com a intenção de testar na prática a ideia do transformatório como eixo de articulação de uma cultura de transformação da matéria. Será elaborada uma estratégia de mobilização e engajamento de atores das diversas áreas potencialmente relacionadas. Não serão envolvidos somente aqueles grupos cujo interesse potencial na transformação de matéria é óbvia – como os profissionais que consertam produtos diversos, aqueles que fabricam produtos em pequena escala ou os grupos de hackers e outros interessados em tecnologia. Um deslocamento maior irá de encontro a grupos que atuam na busca de alternativas inovadoras à modernidade industrial. É o caso, por exemplo, da economia solidária, da permacultura, da agricultura orgânica e familiar. É uma perspectiva também presente nos movimentos de valorização das artes e ofícios manuais, da representatividade de minorias, bem como dos saberes tradicionais de comunidades. A adesão às iniciativas destes atores e daqueles, bem como o surgimento de cooperação entre as diferentes áreas, será o foco principal da atenção da pesquisa. A elaboração conceitual terá por objetivo definir de maneira aprofundada o que é a transformação de matéria e como se configura o transformatório enquanto unidade de articulação. Como mencionado nos objetivos secundários deste projeto, a elaboração se dará através da imagem de uma definição experimental. Em outras palavras, a definição sobre o que é um transformatório será ela mesma objeto de um processo continuado de construção experimental e será modificada a partir do contato com o campo – tanto no contexto local quanto na rede regional e internacional. O projeto de pesquisa, então, estará articulado nestes quatro módulos: bibliografia, etnografia, experimento e elaboração conceitual. A estrutura da tese, entretanto, seguirá uma organização diferente, dividida em cinco capítulos. O primeiro capítulo oferecerá uma narrativa sóciohistórica que abarque as diferentes práticas em que a transformação da matéria operou um papel central, passando pelas manufaturas pré-industriais, pela descrição de setores que foram

12

substituídos ou modificados pelas inovações industriais, e pela presença de práticas ligadas aos consertos e produção artesanal na sociedade contemporânea. O segundo capítulo fará um apanhado dos formatos de organização e produção surgidos a partir das redes digitais, analisando um pouco mais a fundo como a transformação de matéria surge neste contexto e de que forma ela se dissemina. O terceiro capítulo vai explorar similaridades entre os diferentes modelos de organização do trabalho presentes nos contextos descritos anteriormente, para então propor uma definição relevante do que venha a ser o transformatório como unidade de articulação, e a transformação da matéria como tema de atuação. O quarto capítulo será um relato etnográfico dos diferentes cenários que estão no horizonte do projeto, bem como a elaboração das observações realizadas durante as atividades do protótipo experimental. Já no quinto capítulo pretende-se analisar de forma transversal a ocorrência de condições que facilitem ou restrinjam a adoção e disseminação da perspectiva da transformação de matéria nos projetos investigados, para então elaborar um conjunto de recomendações de políticas públicas, posicionamento e organização para que os transformatórios se desenvolvam. •

Capítulo 1: Transformação da matéria;



Capítulo 2: Laboratórios experimentais e novos arranjos;



Capítulo 3: Transformatórios;



Capítulo 4: Etnografia e protótipo experimental;



Capítulo 5: Contextos e estratégias para incentivo aos transformatórios.

13

Bibliografia ANDERSON, C. Makers: the new industrial revolution. , 2012. V. 1. BAZZICHELLI, T. Networked disruption. 2011. BERREBI-HOFFMANN, I.; BUREAU, M.; LALLEMENT, M. Makers - un monde social en mouvement -26042016. BRUNO LATOUR. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. [S.l.]: [s.n.], 2000. CASTELLS, M. Castells, manuel. a sociedade em rede. DELFANTI, A.; SÖDERBERG, J. Repurposing the hacker. three temporalities of recuperation. 2015. Disponível em: . Acesso em 26 out. 2016. DICKEL, S.; FERDINAND, J.-P.; PETSCHOW, U. Shared machine shops as real-life laboratories. Journal of peer production, 2014. n. 5, p. 1–11. FEENBERG, A. The politics of meaning. Radical philosophy review, 2016. v. 19, n. 1, p. 85–110. FONSECA, F. S. Redelabs: laboratórios experimentais em rede (dissertação de mestrado). Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2014. Disponível em: . GERSHENFELD, N. Neil gershenfeld: unleash your creativity in a fab lab | ted talk subtitles and transcript | ted.com. Ted talks, [S.l.], 2007. Disponível em: . Acesso em: 27 out. 2016. GERSHENFELD, N; EUCHNER, J. Atoms and bits: rethinking manufacturing. Research technology management, 2015. v. 58, n. 5, p. 16–21. Disponível em: . Acesso em 26 out. 2016. HATCH, M. The maker movement manifesto. The maker movement manifesto, 2014. p. 1– 31. ILLICH, I. Tools for conviviality. American political science review, 1973. v. 69, n. 3, p. 999. Disponível em: . Acesso em 26 out. 2016. JACKSON, S. J. Rethinking repair. Media technologies: essays on communication, 14

materiality, and society, 2014. p. 221–240. LOVINK, G.; ROSSITER, N. Dawn of the organised networks. Fibreculture, 2005. v. 5. Disponível em: . . Acesso em 26 out. 2016. MCDONOUGH, W.; BRAUNGART, M. Cradle to cradle. Chemical and engineering news, 2002. v. 80, n. 3, p. 208. MENICHINELLI, M. Policies for digital fabrication. Openp2pdesign.org, [S.l.], 2013. Disponível em: . Acesso em: 23 out. 2016. MENOTTI, G. Gambiarra and the prototyping perspective. [S.l.]: [s.n.], 2010. Disponível em: . Acesso em 26 out. 2016. NASCIMENTO, S. Critical notions of technology and the promises of empowerment in shared machine shops. Journal of peer production, 2014. n. 5, p. 10–14. Disponível em: . . Acesso em 26 out. 2016. RATTO, M. Critical making. Open design now: why design cannot remain exclusive, 2011. p. 202–209. RUSSELL, A.; VINSEL, L. Innovation is overvalued. maintenance often matters more | aeon essays. Aeon, [S.l.], 2016. Disponível em: . Acesso em: 23 out. 2016. SENNETT, R. The craftsman. New Haven and London: Yale University Press, 2008. TERRANOVA, T. Network culture : politics for the information age. Londres: Pluto Press, 2004. THE RESTART PROJECT. Dear makers. [S.l.], [s.d.]. Disponível em: . Acesso em 26 out. 2016. TROXLER, P.; MAXIGAS. Editorial note: we now have the means of production, but where is my revolution? Journal of peer production, 2014. n. 5, p. 11–13. TURNER, F. From counterculture to cyberculture. Chicago: The University of Chicago Press, 2006. WINNER, L. Artefatos têm política? Núcleo de estudos de ciência & tecnologia e sociedade, 1986. Disponível em: . Acesso em 26 out. 2016.

15

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.