Transicao e Constitucionalismo - Aportes ao Debate Público Contemporâneo no Brasil

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O Direito Achado na Rua, vol. 7 Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina

O Direito Achado na Rua, vol. 7

Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina

Realização

MEMORIAL D A A N I S T I A

Couche Fosco 90_Capa do Livro Direito Achado na Rua Vol 7.indd 1

José Geraldo de Sousa Junior • José Carlos Moreira da Silva Filho Cristiano Paixão • Lívia Gimenes Dias da Fonseca • Talita Tatiana Dias Rampin Organizador (as)

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Série O Direito Achado na

Rua, vol. 7 Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina

Organizador (as) José Geraldo de Sousa Junior • José Carlos Moreira da Silva Filho Cristiano Paixão • Lívia Gimenes Dias da Fonseca Talita Tatiana Dias Rampin

Brasília, 2015

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MEMORIAL D A A N I S T I A

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Universidade de Brasília – UnB Reitor Ivan Marques de Toledo Camargo Vice-reitora Sônia Nair Báo

Centro de Educação a Distância da Universidade de Brasília – CEAD-UnB Diretora Profª. Dra. Wilsa Maria Ramos Athail Rangel Pulino Filho (In memoriam) Coordenadora da Unidade de Pedagogia Simone Bordallo de Oliveira Escalante Gestor Pedagógico do Curso Jean Lima de Assumpção Gerente do Núcleo de Produção de Materiais Didáticos e Comunicação Jitone Leônidas Soares Web Designer Fred Alves Designer Instrucional Arthur Colaço Pires de Andrade

Revisão Luiza Kuwae Projeto Gráfico e Diagramação Carla Clen Gerente do Núcleo de Tecnologia Wesley Gongora Gestão Ambiente Virtual de Aprendizagem Wilson Santana Desenvolvimento Web Thales Birino Help Desk Alisson Longuinho

Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos – NEP-Ceam-UnB Coordenadora Nair Heloisa Bicalho de Sousa

Coordenador do projeto José Geraldo de Sousa Junior

Revisoras técnicas do livro Talita Tatiana Dias Rampin Lívia Gimenes Dias da Fonseca Esta publicação é resultado de iniciativa fomentada com verbas do projeto Marcas da Memória da Comissão de Anistia. Por essa razão, as opiniões e os dados contidos na publicação são de responsabilidade de seus organizadores e de suas organizadoras, bem como de seus autores e de suas autoras, e não traduzem opiniões do Governo Federal, exceto quando expresso em contrário. As imagens que ilustram a publicação, incluindo a capa, são fotografias do período da ditadura civil-militar no Brasil e retratam momentos de violência e violações cometidos na e à Universidade de Brasília. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) S725d Sousa Junior, José Geraldo de. O direito achado na rua : introdução crítica à justiça de transição na América Latina / José Geraldo de Sousa Junior, José Carlos Moreira da Silva Filho, Cristiano Paixão, Lívia Gimenes Dias da Fonseca, Talita Tatiana Dias Rampin. 1. ed. – Brasília, DF: UnB, 2015. – (O direito achado na rua, v. 7). 500 p. ISBN 978-85-64593-32-9 1. Cidadania. 2. Direito. I. Silva Filho, José Carlos Moreira da. II. Paixão, Cristiano. III. Fonseca, Lívia Gimenes Dias da. IV. Rampin, Talita Tatiana Dias. V. Título. CDU 342.71(7/8)

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Presidenta da República DILMA ROUSSEFF

Ministro da Justiça JOSÉ EDUARDO CARDOZO

Secretário-Executivo MARIVALDO DE CASTRO PEREIRA

Presidente da Comissão de Anistia PAULO ABRÃO

Vice-presidentes da Comissão de Anistia JOSÉ CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO CLAUDINEI DO NASCIMENTO

Conselheiros da Comissão de Anistia ALINE SUELI DE SALLES SANTOS ANA MARIA GUEDES ANA MARIA LIMA DE OLIVEIRA CAROLINA DE CAMPOS MELO CAROLINE PRONER CRISTIANO OTÁVIO PAIXÃO ARAÚJO PINTO ENEÁ DE STUTZ E ALMEIDA HENRIQUE DE ALMEIDA CARDOSO JUVELINO JOSÉ STROZAKE MANOEL SEVERINO MORAES DE ALMEIDA MÁRCIA ELAYNE BERBICH DE MORAES

MARINA SILVA STEINBRUCH MÁRIO MIRANDA DE ALBUQUERQUE MARLON ALBERTO WEICHERT NARCISO FERNANDES BARBOSA NILMÁRIO MIRANDA PRUDENTE JOSÉ SILVEIRA MELLO RITA MARIA DE MIRANDA SIPAHI ROBERTA CAMINEIRO BAGGIO RODRIGO GONÇALVES DOS SANTOS VANDA DAVI FERNANDES DE OLIVEIRA

Diretor da Comissão de Anistia VIRGINIUS JOSE LIANZA DA FRANCA

Chefe de Gabinete RENATA BARRETO PRETURLAN

Coordenadora-Geral do Memorial da Anistia Política do Brasil ROSANE CAVALHEIRO CRUZ

Coordenadora de Reparação Psíquica CARLA OSMO

Coordenador de Articulação Social, Ações Educativas e Museologia ALEXANDRE DE ALBUQUERQUE MOURÃO

Coordenador Geral de Gestão e Informação Processual MARLEIDE FERREIRA ROCHA

Coordenadora de Controle Processual, Julgamento e Finalização NATÁLIA COSTA

Coordenação de Pré-Análise RODRIGO LENTZ

Coordenador de Registro e Controle Processual JOÃO ALBERTO TOMACHESKI

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Transição e Constitucionalismo: Aportes ao debate público contemporâneo no Brasil1 Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira* David Gomes**

I. Introdução

J f az alg um temp o que o debate em torno do tema “Ju stiça de T ransiçã o”2 vem crescendo no á Brasil. O aumento exponencial da quantidade de trabalhos acadêmicos que tomam tal conceito como núcleo de suas reflexões e a qualidade dos argumentos desenvolvidos em muitos desses trabalhos, por um lado, assim como as políticas públicas relacionadas a esse mesmo conceito, por outro, são prova disso (CATTONI DE OLIVEIRA; MEYER, 2014; SOARES; KISHI, 2009; PIOVESAN; SOARES, 2014).

Esse debate, em que pese sua relevância cívica (RICOEUR, 2007), poderia certamente ter permanecido restrito aos limites da Academia e das instituições políticas. Todavia, alguns fatores contribuíram significativamente para que o debate alcançasse as discussões da esfera pública em seus variados canais discursivos, institucionalizados ou não. Os próprios trabalhos acadêmicos e políticas públicas tiveram seu papel nessa ampliação do debate. Mas dois acontecimentos merecem destaque: o julgamento da ADPF nº 153 pelo Supremo Tribunal Federal3 e a instauração da Comissão Nacional da Verdade4, acomp anhada p or comissões semelhantes em â mbitos reg ionais ou locais.

Ao mesmo tempo, desde os protestos de junho de 2013, tem crescido o movimento em prol de uma nova Constituiçã o5. U m dos arg umentos p resentes na def esa da f eitura dessa nova Constituiçã o afirma que a atual Constituição da República, de 1988, não expressaria de modo adequado a soberania p op ular. E laborada em um contexto ainda demasiado p ró ximo da Ditadura militar, ela exp ressaria muito mais compromissos à época necessários com elementos conservadores e autoritários. Nesse sentido, o exercício da soberania popular estaria represado na atual moldura constitucional e a transição para a democracia nã o estaria realmente comp leta até que uma nova Constituiçã o viesse romp er com aqueles compromissos e sepultar de vez os resquícios ditatoriais.

F rente a esse cenário tã o comp lexo quanto rico de um p onto de vista democrático, certos temas mais específicos merecem atenção especial, em razão tanto de sua recorrência quanto de sua força junto à opinião pública, sobretudo uma força que, por vezes, prejudica o resgate crítico do passado autoritário e a efetivação crítica de um presente e, quiçá, um futuro democrático.

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Aos Professores Doutores José Geraldo de Sousa Junior, José Carlos Moreira da Silva Filho, Paulo Abrão Pires Junior e Cristiano Paixão. Agradecemos à Professora Doutora Katya Kozicki pela leitura da versão preliminar deste texto.

* Mestre e Doutor em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG, Professor Associado da UFMG, pesquisador do CNPq. ** Professor assistente do Departamento de Direito da Universidade Federal de Lavras; Doutorando, com bolsa CAPES, do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG.

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Para uma abordagem conceitual e histórica do tema, cf. o texto de Marcelo Torelly (Justiça de Transição – origens e conceito) neste livro.

Sobre a ADPF nº 153, ver, sobretudo, MEYER, Emilio Peluso Neder. Ditadura e responsabilização: E lementos p ara uma justiça de transição no Brasil. Belo Horizonte: Arraes, 2012. Para acessar o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, ver (Acesso em: 09/02/2015).

Sobre a proposta, ver (Acesso em: 25/06/2014). Contra, ver e PAIXÃO et al (2014).

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O objetivo do p resente texto é, p ortanto, abordar alg uns desses temas, ainda que sem a menor pretensão exaustiva. Mais do que isso: o objetivo do presente texto é procurar mostrar como transição e Constituiçã o articulam- se internamente no seio de um p rocesso histó rico em curso há cerca de trê s décadas no Brasil.

II. A “teoria dos dois demônios”

E m linhas g erais, a arg umentaçã o central que une as variações da “teoria dos dois demô nios” pode ser assim apresentada: houve violência da parte dos militares, mas também houve violência da parte dos atores sociais contrários à ditadura; além disso, a violência praticada pelos militares justificavase pelo fato de ser uma resposta às ameaças à democracia que assombravam o Brasil antes do golpe militar de 1964. Ou seja, inicialmente, as atrocidades cometidas durante a ditadura estariam justificadas p or p roteg er a p ró p ria democracia contra as ações dos g rup os de E squerda que desejavam instaurar um regime socialista no País; em seguida, essas atrocidades continuariam a estar justificadas pela necessidade de reação à atuação armada dos grupos de Esquerda que se contrapunham ao regime militar. Logo, se se quiser abordar o passado ditatorial, seria necessário reconhecer que ambos os lados da História p recisam ser lembrados, investig ados, julg ados e condenados. Quatro argumentos mostram com clareza a insustentabilidade dessa teoria:

Primeiro, porque não havia ações armadas consistentes capazes de colocar em xeque o E stado de Direito e suas instituições no p ré- 19 6 4. F oi justamente o g olp e que f orçou uma atuaçã o clandestina e armada dos g rup os de esquerda, imp ossibilitados de atuar na leg alidade. S eg undo, nã o havia a p rática sistemática, p or p arte das org aniz ações op ositoras da ditadura que adotaram táticas de g uerrilha, de atos de terrorismo, ou seja, contra alvos civis indiscriminados. T erceiro, nã o é raz oável colocar lado a lado, como se equip aráveis f ossem, as condutas de resistê ncia a um g overno tirâ nico, p raticadas p or g rup os p rivados, e a rep ressão armada do Estado com toda sua potência material (...). Por fim, deve-se lembrar de que os integ rantes das g uerrilhas urbanas e rurais que combateram a ditadura brasileira já f oram, em sua enorme maioria, presos, torturados e, às vezes, processados e punidos para além do legalmente permitido e em contrariedade mesmo à legalidade autoritária vigente à época (QUINALHA, 2013, p. 192).

III. A Lei de Anistia

Em relação à Lei de Anistia de 1979, a argumentação que se apresenta como obstáculo ao enfrentamento do passado autocrático gira em torno da ideia de acordo ou pacto político: a Lei nº 6.683/1979 representaria um acordo ou pacto entre as forças contrárias existentes na sociedade brasileira àquele tempo, acordo ou pacto sem o qual inclusive a transição para a democracia não se teria tornado possível. Assim, qualquer alteraçã o relativa a essa lei, mesmo uma interp retaçã o mais restritiva dela que p udesse f aze r com que nã o seja ap rop riada como mecanismo de autoanistia p elos p ró p rios ag entes da ditadura, significa um risco para a república democrática pós-Ditadura militar. Essa argumentação não é nova, mas ganhou impulso após a decisão do STF na ADPF nº 153, uma vez que a lógica do acordo ou pacto p revaleceu como cerne dessa decisã o. A f rag ilidade dessa linha de arg umentaçã o revela- se diante de qualquer estudo histó rico mais sério. N ã o houve acordo ou p acto alg um, até p orque o contexto social e institucional nã o permitia a completa livre expressão da vontade política de quem se opunha à ditadura. A Lei de Anistia foi uma lei imposta de cima para baixo, nos termos em que o Governo militar e sua

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Unidade II Marcos Teóricos da Justiça de Transição e os Processos Transicionais na América Latina representação no Poder Legislativo nacional permitiram que fossem estabelecidos6 . As p alavras de Paulo Sérgio Pinheiro são conclusivas sobre o assunto:

A L ei da Anistia nã o f oi p roduto de acordo, p acto, neg ociaçã o alg uma, p ois o p rojeto nã o correspondia àquele pelo qual a sociedade civil, o movimento da anistia, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e a heroica oposição parlamentar haviam lutado. Pouco antes de sua votação, em setembro de 1979, houve o Dia Nacional de Repúdio ao Projeto de Anistia do governo e, no dia 21, um grande ato público na praça da Sé promovido pela OAB-SP, ig ualmente contra o p rojeto do g overno. A lei celebrada nos debates do S T F como saldo de “negociação” foi aprovada com 206 votos da Arena, o partido da ditadura, contra 201 do MDB. A oposição, em peso, votou contra ato de Legislativo emasculado pelas cassações, infestado por senadores biônicos. Parece que o movimento da anistia e a oposição na época não tinham sido comunicados de seu papel no “acordo nacional” que os ministros 30 anos depois lhes atribuiriam (PINHEIRO, 2010).

Finalmente, é preciso lembrar que a decisão do STF não significa o encerramento de qualquer p ossibilidade de se continuar discutindo a revisã o da L ei de Anistia. E m p rimeiro lug ar, há as instâ ncias internacionais (CATTONI DE OLIVEIRA; MEYER, 2011); em segundo lugar, há a possibilidade de que o STF, ele mesmo, reveja suas decisões; em terceiro lugar, há os julgamentos em outras instâncias no Direito interno que p odem, ap esar do acó rdã o do S T F , p rof erir decisões que ap ontem p ara uma nã o ap licaçã o da lei a ag entes do reg ime militar.7

IV. Transição e Constituição8

E ssas considerações sobre a L ei de Anistia e a recusa em aceitá- la como exp ressã o de um acordo ou pacto do qual teriam participado as diferentes forças políticas e nacionais do País abrem caminho para um terceiro ponto. Após a publicação da Lei nº 6.683/1979 – considerada, como visto acima, uma derrota para a oposição à Ditadura –, a sociedade civil, em crescente organização, reunir-se-á em torno principalmente de dois temas: eleições diretas e assembleia constituinte9 . A amp litude da camp anha das Diretas Já e a imp ortâ ncia simbó lica que ela adquiriu costumam of uscar esse seg undo tema, mas, na realidade, ambas as reivindicações apareciam articuladas em meados da década de 1980. Derrotada a Emenda Dante e mantidas as eleições indiretas para a Presidência da República, as atenções de intelectuais, artistas, políticos e toda uma série de movimentos sociais que surgiam ou se fortaleciam nos anos 1980 puderam concentrar-se na demanda por uma nova Constituição. I nicialmente, a elaboraçã o dessa nova Constituiçã o seg uiria a tô nica de um p rocesso elitiza do, uma vez mais sem participação popular: Sarney enviara um comunicado ao Congresso Nacional acerca do tema; o Congresso elaborara uma emenda à Constituição de 1967, permitindo que a próxima legislatura pudesse atuar também como Congresso Constituinte; a esse Congresso caberia, sobretudo, deliberar sobre um antep rojeto de Constituiçã o p roduzi do p reviamente p or uma comissã o de notáveis.

GRECO (2009); GRECO, 2014. Ainda que se discorde da compreensão que a autora apresenta do Estado Democrático de Direito (Cf. CATTONI DE OLIVEIRA 2012, p. 80-84), considera-se que suas críticas podem apontar para os riscos de um processo de democratização no Brasil que somente pode ser levado adiante democraticamente.

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Recentemente, a Justiça federal do Rio de Janeiro recebeu denúncia do Ministério Público Federal pela morte do Dep. Rubens Paiva (. Acesso em: 25/06/2014). Sobre o tema, Meyer (2012).

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Para uma história do conceito de constituição, assim como para a noção de um direito por vir e de um constitucionalismo por vir, conforme Cattoni de Oliveira (2013, p. 69-76).

p reciso lembrar, p orém, que a p auta em torno de uma constituinte e de uma nova Constituiçã o é anterior a esse momento, podendo, no limite, ser encontrada já nos primeiros anos do regime ditatorial, e inclusive antes do golpe (PAIXÃO, 2012).

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Contudo, nã o f oi esse o caminho que acabou sendo trilhado. U m dos p rimeiros atos dos constituintes reunidos a partir de fevereiro de 1987 foi deliberar por não trabalhar apenas no anteprojeto dos notáveis, f ormulando um reg imento interno que org aniza sse com autonomia os trabalhos da Assembleia Constituinte. Com isso, um p rocesso p ensado p ara ser extremamente excludente f oi f orçado a abrir- se ao diálog o com a sociedade civil, resultando no p rocesso constituinte mais democrático da histó ria constitucional brasileira (CARVALHO NETTO, 1992; BARBOSA, 2012), com a apresentação de mais de 1.000 emendas populares para serem analisadas (WHITAKER et al., 1989).

Por conseguinte, se a sociedade não foi convidada a celebrar o pacto da anistia e se não foi ouvida na derrota das Diretas Já, ela pôde, ao contrário, participar ativamente da conformação políticojurídica da nova República. Isso inegavelmente representa uma ruptura10 p rof unda com a tradiçã o elitista e excludente, primeiro do Império, depois da República, no Brasil. Se a Constituição não contemplou todas as demandas populares – o que seria sempre, de qualquer modo, impossível –, ela contemplou um número expressivo delas, ao mesmo tempo em que estabeleceu um quadro de direitos e garantias fundamentais que delineou o espaço dos conflitos políticos e das reivindicações jurídicas nas últimas duas décadas e meia. E se a Constituiçã o nunca se resume ao texto constitucional, mas consiste nos sentidos que se atribuem a esse texto p or meio de uma constante p rática hermenê utica, o que se viu nesse intervalo de temp o f oi uma Constituiçã o constantemente reinterp retada p elas lutas sociais. L og o, os arg umentos em p rol de uma nova Constituinte e de uma nova Constituiçã o resvalam em uma falácia grave: entender a atual Constituição de 1988 como um obstáculo, um limite à soberania pop ular. E sses arg umentos p arecem nã o se dar conta do f ato de que é exatamente essa Constituiçã o que tem possibilitado, desde o fim da década de 1980, o avanço da democracia participativa e da atuação dos movimentos sociais tanto no âmbito da sociedade em geral quanto no âmbito institucional dos Poderes L eg islativo, E xecutivo e, inclusive, J udiciário. A Constituiçã o de 19 8 8 ap resenta- se, assim, como condição de possibilidade do próprio exercício da soberania popular, e aquilo que é condição de possibilidade não pode ser entendido como simples limite (CATTONI DE OLIVEIRA, 2009).

N o contexto p resente, a f orça social que ainda p ossui alg umas p autas racistas, sexistas e homofóbicas, para além dos velhos discursos de crítica aos direitos humanos e de defesa de uma ordem econô mica liberal extremamente desig ual, p oderia f atalmente dar orig em a uma nova Constituiçã o que viesse a ser caracteriza da p elo abandono das conquistas exp ressas, ap ó s árduos combates, na Constituiçã o de 19 8 8 . O que tem p roteg ido os movimentos que se op õem a essas p autas e a esses discursos sã o exatamente tais conquistas.

Acreditar que seria possível evitar esse risco limitando a atuação da possível Constituinte apenas à reforma política parece ser uma crença ela mesma demasiado arriscada, além de não fazer sentido de um ponto de vista lógico: ou uma Constituinte não possui limites e pode alterar aqueles que supostamente f oram imp ostos a ela, ou nã o se trata de uma Constituinte, mas ap enas de um p rocesso de ref orma da Constituiçã o. Para esse processo de reforma constitucional, a própria Constituição de 1988 indica o caminho das emendas, o que p oderia ser f eito sem maiores ameaças ao conjunto amp lo de direitos e g arantias f undamentais, tendo- se em vista as chamadas cláusulas p étreas. Os arg umentos que recusam essa alternativa e insistem na Constituinte para a reforma política por entenderem que a reforma constitucional p or meio de emendas jamais tocaria nos p ontos demandados p elos movimentos sociais em razã o da composição do Congresso Nacional são igualmente arriscados, além de ingênuos: nenhum argumento

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Ou seja, enfatizar a articulação entre transição e Constituição não significa afirmar uma continuidade entre o regime ditatorial e a democracia da nova República. Ao contrário, essa articulação entre transição e Constituição expressa precisamente a ruptura com a ordem autoritária anterior.

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sólido, devidamente fundamentado em referências empíricas aptas a permitir algum tipo de projeção, assegura que – nem sequer indica uma tendência mínima a que – uma Constituinte composta por membros exclusivamente eleitos p ara ela nã o rep roduzi rá o mesmo quadro de f orças p resentes hoje no Cong resso. Certamente, a crítica precisa e deve manter-se ativa, as lutas sociais e políticas precisam e devem manter-se constantes. Todavia, é importante que crítica e lutas operem no interior da Constituição, não contra ela; valendo-se das proteções que a Constituição estabelece exatamente para permitir a crítica e as lutas, nã o arriscando abrir mã o dessas p roteções. É isso que p oderá revelar com mais clareza a articulação interna entre transição e Constituição no Brasil, articulação apta a efetivar o projeto constituinte do E stado Democrático de Direito entre nó s.

V. A atual retórica da exceção

Se é possível afirmar a existência de uma articulação interna entre transição e Constituição e se é possível acrescentar que essa articulação só faz sentido se compreendida no horizonte complexo da temp oralidade histó rica, há condições, entã o, de criticar a atual retó rica da exceçã o e do E stado de E xceção. Essa retórica, crescente desde a publicação de trabalhos de autores como Giorgio Agamben sobre o tema, fortaleceu-se com a truculência policial durante as jornadas de junho de 2013 e com o conjunto de medidas estatais referentes à Copa do Mundo Fifa de 2014. A argumentação principal de tal retórica afirma que se estaria vivendo no Brasil não uma democracia, mas um Estado de exceção, não um Estado Democrático de Direito, mas uma f arsa de democracia p reenchida p or esp aços de exceçã o.

Novamente, a falácia faz-se presente, pois não se percebe que a própria crítica à atual situação das instituições no Brasil e a própria alegação da exceção dependem de garantias que só fazem sentido em uma democracia. Ademais, chamar o atual contexto político, social e institucional brasileiro de Estado de E xceçã o é desconsiderar totalmente a ap rendiza g em histó rica do que f oi realmente a exceçã o ditatorial. N ã o estamos em um E stado de E xceçã o, estamos saindo de um, já há alg umas décadas. S em dúvida, ainda há traços de autoritarismo fortemente presentes no País, mas isso não permite desconsiderar todo o processo de transição e tudo o que significa, hoje, a democracia brasileira em face do que significou a Ditadura militar. Contra a retórica da exceção, deve impor-se, uma vez mais, a articulação interna entre transiçã o e Constituiçã o na ef etivaçã o do p rojeto constituinte do E stado Democrático de Direito no País, efetivação que somente pode ocorrer no transcurso de um processo histórico marcado por tensões típicas de qualquer democracia (CATTONI DE OLIVEIRA, 2011).

VI. A acusação de revanchismo e a tensão entre passado, presente e futuro

Um último tema precisa ser destacado. Trata-se da acusação segundo a qual a preocupação com o passado ditatorial seria orientada por uma lógica da vingança e da revanche: se a ditadura já terminou, não há motivo algum para se remoer o passado, a não ser um interesse vingativo e revanchista; o único caminho legítimo seria esquecer o que ficou para trás e olhar apenas para frente.

Como se espera que tenha ficado claro ao longo do presente texto, a reflexão sobre a transição está longe de apontar apenas para uma volta ao passado. Essa distância fica bem marcada por meio da articulaçã o interna, enf aticamente trabalhada, entre transiçã o e Constituiçã o. O que essa articulaçã o quer dize r, em outras p alavras, é que há uma articulaçã o interna, extremamente tensa e densa, entre p assado, p resente e f uturo, de modo que o que comp reendemos do p resente e o que lançamos ao f uturo lig a- se estreita e comp lexamente ao que interp retamos como tendo sido o p assado. U m p resente e um f uturo democráticos nã o p odem ef etivar- se sem acertar as contas com um p assado autoritário. Assim, nã o se trata de revanche ou vingança: trata-se de justiça, de Justiça de Transição; trata-se do fato de não ser possível simplesmente esquecer o que ficou para trás e olhar para frente, pois o esquecido do passado, 189

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o passado recalcado, sempre ameaça com a sombra do seu retorno. A alternativa única que resta diante disso, por paradoxal que seja, é exatamente o contrário: olhar para trás e seguir em frente (CATTONI DE OLIVEIRA; GOMES, 2014).

Referências

BARBOSA, Leonardo Augusto Andrade. História Constitucional Brasileira: mudança constitucional, autoritarismo e democracia no Brasil pós-1964. Brasília: Câmara Federal, 2012.

CARVALHO NETTO, Menelick de. A Sanção no Procedimento Legislativo. Belo Horizonte: Del Rey, 1992.

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. A legitimidade democrática da Constituição da República Federativa do Brasil: uma reflexão sobre o projeto constituinte do Estado Democrático de Direito no marco da teoria do discurso de Jürgen Habermas. In: GALUPPO, Marcelo Campos (Coord.). Constituição de Democracia: Fundamentos. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 235-262.

______. Democracia sem espera e processo de constitucionalização: uma crítica aos discursos oficiais sobre a chamada “transição política brasileira”. In: CATTONI, Marcelo (Coord.). Constitucionalismo e História do Direito. Belo Horizonte: Pergamum, 2011, p. 207-248. ______. Teoria da Constituição. Belo Horizonte: Initia Via, 2012.

______. Passagem do Direito: Coisa devida, dever ser e devir, direito por vir. In: FONSECA, Ricardo Marcelo (Org.) As Formas do Direito: Ordem, razão e decisão. Curitiba: Juruá, 2013, p. 69-76.

______; MEYER, Emilio Peluso Neder (Org.) Justiça de Transição nos 25 anos da Constituição de 1988. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ________. Anistia, história constitucional e direitos humanos: o Brasil entre o Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. In: CATTONI, Marcelo (Coord.). Constitucionalismo e História do Direito. Belo Horizonte: Pergamum, 2011, p. 249-288. ______; GOMES, David Francisco Lopes. A história, a memória, os soberanos: a justiça de transição e o projeto constituinte do Estado Democrático de Direito. In: PIOVESAN, Flávia; SOARES, Inês Virginia Prado (Coord.). Direito Humanos atual. Rio de janeiro: Elsevier, 2014, p. 1-15. GRECO, Heloisa Amélia. Anistia anamnese vs. Anistia amnésia: a dimensão trágica da luta pela anistia. In: SANTOS, Cecilia M.; TELES, Edson; TELES, Janaína (Orgs.). Desarquivando a ditadura: M emó ria e justiça no Brasil, vol. 2. São Paulo: HUCITEC, 2009, p. 524-540. ______. 50 anos do Golpe/35 anos da Lei da Anistia: a longa marcha da “estratégia do esquecimento”. Cadernos de História, v. 15, n. 22, p. 160-189, 1º sem de 2014. MEYER, Emilio Peluso Neder. Ditadura e responsabilização: E lementos p ara uma justiça de transiçã o no Brasil. Belo Horizonte: Arraes, 2012.

PAIXÃO, Cristiano et al. Constituinte exclusiva é inconstitucional e ilegítima. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2014. PAIXÃO, Cristiano. A constituição em disputa: transição ou ruptura? In: SEELAENDER, Airton (Org.). História do Direito e construção do Estado. São Paulo: Quartier Latin, 2012 (no prelo).

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PINHEIRO, Paulo Sérgio. 2010. O STF de costas para a humanidade. Folha de São Paulo, 5/5/2010. Disponível em: . (Acesso em 25/06/2014). PIOVESAN, Flávia; SOARES, Inês Virginia Prado (Coord.). Direito Humano atual. Rio de janeiro: Elsevier, 2014.

QUINALHA, Renan Honório. Com quantos lados se faz uma verdade? Notas sobre a Comissão Nacional da Verdade e a “teoria dos dois demônios”. Revista Jurídica da Presidência Brasília, v. 15, n. 105, p. 181204, fev./mai. 2013. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007.

SOARES, Inês Virginia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shimada (Coord.). Memória e Verdade: A justiça de transição no Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Fórum, 2009.

WHITAKER, Francisco et al. Cidadão Constituinte: A saga das emendas populares. Rio de Janeiro: Paz e T erra, 19 8 9 .

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