Transmidia e estética: problemas na adaptação, montagem e animação

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Transmídia e Estética: problemas na adaptação, montagem e animação. Transmedia and Aesthetics: problems in adaptation, montage and animation. Alexandre Linck Vargas1 Resumo: A condição transmidiática em que as relações de mercado e consumo na cultura cada vez mais se sistematizam lança respostas ímpares não só a questões mercadológicas, mas também a problemas estéticos. Pensar as recentes e rápidas transformações dos ditos objetos culturais e aquilo que neles se estagnam ou se aprofundam através das adaptações, montagens e animações é o principal objetivo deste escrito. Palavras-chave: Transmídia, Estética, Adaptação, Montagem, Animação Abstract: The transmedia condition in which market relations and consumption in culture increasingly systematize itself launches odd answers not only to marketing issues, but also to aesthetic problems. Thinking the recent and fast changes of the said cultural objects and what stagnates in them or deepen through the adaptations, montages and animations is the main objective of this writing. Keywords: Transmedia, Aesthetics, Adaptation, Montage, Animation.

1. A coisa transmídia É

facilmente

constatável

o

quanto

uma

vaga

noção

de

“transmídia”,

“multiplataforma” ou coisa que o valha, virou algo natural no linguajar dessa outras duas coisas vagas que são o produtor cultural e o consumidor cultural. No seio hollywoodiano é onde aparece a necessidade transmidiática de forma mais gritante. A cultura, precisamente nesse caso, objeto de cultivo, precisa ser fértil em diferentes solos. Ou seja, é necessário uma “coisa” que consiga perpetuar-se no cinema, em ficções live-action, animações e documentários, nas histórias em quadrinhos, nos games, na literatura, na música, na indumentária e adereços, nas grandes exposições, nos grandes eventos, nas redes sociais, etc. Isso é um fenômeno relativamente recente, algo massivo de menos de dez anos para cá, muito influenciado pela internet. A principal mudança não é exclusivamente o uso de um poderoso aparato publicitário – isso é algo secular. A significativa mudança é o entendimento

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Cineasta, Graduado em Comunicação Social – Cinema e Vídeo e Mestre em Ciências da Linguagem, ambos pela Unisul (Universidade do Sul de Santa Catarina). Atualmente doutorando em Literatura e professor do curso de Cinema na Ufsc (Universidade Federal de Santa Catarina). No mestrado defendeu a dissertação A Morte do Homem no Morcego, sobre o cruzamento entre Batman, no cinema e quadrinhos, com a filosofia de Nietzsche. No doutorado pesquisa teorias da imagem e dos quadrinhos com o projeto Teoria e Crítica da Sarjeta.

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de que os antes tidos como derivados do produto original hoje ocupam uma mesma posição hierárquica. Quer dizer que se antes a camiseta do Superman era um derivado do filme Superman, uma espécie de objeto de segunda ordem, hoje ambas ocupam uma mesma valorização cultural, uma espécie de entendimento de uma narrativa que não se dá em sucessão (do filme Superman vêm a camiseta), mas em atravessamento (Superman, no cinema e na camiseta). Pode-se argumentar que é muito cedo para afirmar esse tipo de mudança, ou mesmo que essa sensação de atravessamento já ocorria antes. No entanto, é preciso considerar a participação da internet nesse processo. Mesmo que outrora grupos que consumiam um determinado objeto cultural e se dedicavam a perpetuá-lo por conta própria (fanfictions, fanzines, cosplays), a internet possibilitou e tem possibilitado cada vez mais a veiculação massiva do que antes era apenas uma manifestação menor diante de um objeto maior. Hoje uma paródia como “Batman na Feira da Fruta”2 pode alcançar uma popularidade que embora não supere a máquina publicitária de “The Dark Knight Rises”, consegue agregar para si uma notoriedade significativa e, sobretudo, relativamente independente. Diferente da era das emissões e recepções, a internet com sua interatividade convida, mais do que isso, exige do seu usuário a apropriação dos objetos culturais. Caso os planos de incursão populacional e ampliação cada vez maior da internet aconteçam, chegará muito brevemente o tempo em que não será nada raro imaginar uma paródia ser mais conhecida do que sua superprodução do cinema. Uma fronteira importante foi transposta. O processo, aquele procedimento criativo, antes secreto ou restrito sob o semblante do produto, hoje é material de exposição, o processo é o novo produto. Hoje quase tudo tem seu making of, seja ele audiovisual ou não. É como se as premissas do cinemaverdade francês de Jean Rouch e Edgar Morin, na ideia de assumir a intervenção do produtor tivesse encontrado e perfeitamente se adequado ao jogo de valor de culto e valor de exposição de Walter Benjamin na sua era da reprodutibilidade técnica 3 . Ou seja, a importância de assumir o processo é equivalente à capacidade de exposição perante o produto. Essa não hierarquização entre processo e produto, trabalhando através de um atravessamento onde uma “coisa” cruza diferentes meios nas mãos de produtores e 2

Disponível em: . É interessante lembrar que para Benjamin haveria no cinema um retorno de valores, pois seria justamente a arte cinematográfica aquela capaz de cumprir a tarefa didática do culto para os desafios da vida moderna – mesmo sendo ela a arte mais destinada, até aquele momento, aos valores de exposição. Essa complicada união de valores, culto e exposição, que Benjamin já prenunciava, hoje tem toda sua dimensão através da transmídia, onde todo produto traz consigo as maneiras processuais de se compreender a obra através de entrevistas, comentaristas, etc. 3

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consumidores pouco estáveis em sua posição clássica parece ser o norte da cultura globalizada. É como se a máquina de guerra, de Roosevelt a Goebbels, no jogo onde uma ideia do Estado precisa ser perfeitamente assimilada a ponto de ser incorporada como se uma ideia da população tomasse um novo desdobramento. A máquina da economia de mercado faz da ideia de um grande produtor cultural comercial a ideia de um grupo consumidor, porém, com o diferencial da internet onde a transculturação permite uma recriação e retorno muitas vezes indesejado ao produtor original 4 . As atuais reinvindicações de velhos produtores culturais através de leis mais rígidas de veiculação na internet refletem bem a crise de uma condição. Existem restrições econômicas difíceis de serem superadas, pois uma hipotética paródia do Batman, mesmo tendo maior acesso na internet do que um hipotético filme oficial, não possuirá facilmente os direitos para cobrar por esse acesso, agregar outra publicidade e garantir alta lucratividade. Assim, tem seu sentido a crítica bastante sintonizada a um pensamento marxista de que esse atravessamento é apenas uma sofisticação do próprio capitalismo, pois agora não só consumimos, mas também produzimos o objeto cultural que apenas um grupo pode tirar proveito econômico. Ainda assim, mesmo num cenário de controle econômico da produção cultural, é inegável a força criativa que muitas vezes emerge dessas apropriações. É precisamente aqui que a coisa vaga da transmídia encontra seu ponto de tensão.

2. Choque entre modelos de disseminação e apropriação

Há dois movimentos opostos e complementares na necessidade transmidiática. O primeiro que destaco é aquele mais identificado ao uso corporativo. A atual condição dos super-heróis é o mais fácil exemplo. Quando Mario Puzo escreveu e Richard Donner dirigiu seu “Superman, o filme” de 1978, um importante paradigma foi colocado. Embora o filme fosse bastante respeitoso ao seu objeto primeiro, as histórias em quadrinhos, havia certo tributo às radio e telesséries; mais do que isso, o filme procurava um discurso próprio, não necessariamente inédito nos quadrinhos, mas original da forma de ser expressado. Superman foi um filme de super-herói que narrava, sobretudo, a volta do messias5.

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Utilizo-me aqui do conceito de transculturação pela leitura de Ángel Rama sobre o termo de Fernando Ortiz. Curiosamente estreou no Brasil no dia 25 de dezembro de 1978. Informação disponível em: . 5

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Ressalto o paradigma que Superman colocou, pois havia ali um tênue equilíbrio entre tributo às mídias antecessoras e vontade de afirmação numa mídia diferente. As continuações de Superman não conseguiram atingir esse mesmo patamar, eram cada vez mais distantes daquilo que os quadrinhos do homem de aço mostravam. É preciso deixar claro que a distorção não é necessariamente um problema para o consumidor cultural, ele, por consciência ou mesmo por ignorância pode facilmente abrir mão de problematizar isto. A distorção é, por princípio, uma questão mercadológica exclusivamente importante para a corporação dona do personagem. No entanto essa distorção parecia ser a regra. Batman de Tim Burton, em 1989 e seu retorno em 1992, nasceram sob este conceito. Mesmo havendo tributos, era uma versão cinematográfica que tinha outras referências cinematográficas mais fortes (o noir, o expressionismo alemão), do que os próprios quadrinhos, desenhos animados ou séries. O desencanto deste procedimento ainda no segundo filme de Burton, e mais precisamente no terceiro e quarto Batman com Joel Schumacher, onde a substancial referência era a série dos anos 1960 – que já era uma paródia –, propiciaram a cobrança de uma nova postura. Foi pela tomada de um princípio de fidedignidade aos objetos primeiros que “Homem-Aranha” de Sam Raimi, em 2002, aconteceu. Mesmo que houvesse afastamentos, mudanças necessárias ou mesmo a presença de uma visão mais particular de Raimi, havia a clara postura de não confrontar diretamente o consumidor já acostumado com o personagem em outras mídias. Esse tipo de fórmula foi repetida por “Batman Begins” de Christopher Nolan em 2005 e “Homem de Ferro” de Jon Favreau em 2008, ambos com maior aceitação do que as continuações de Raimi, cada vez mais focadas na sua própria visão do personagem, ou mesmo extremadas tentativas de reinterpretação de um personagem como “Mulher-Gato” de Pitof em 2004. “Homem de Ferro” pode ser visto como o quarto estágio desse processo, antecedido por Superman, Batman e Homem-Aranha. A cinessérie que a Marvel Studios construiu no cinema até o momento com dois Homem de Ferro, um Hulk, um Thor, um Capitão América e a reunião de todos em “Os Vingadores” adiciona elementos a essa preocupação de fidedignidade, pois não se trata mais somente de ser tributário ou respeitoso às mídias antecessoras, o mais importante é buscar uma narrativa comum a todas elas. Não por acaso a cinessérie Marvel acontece no momento em que os quadrinhos de super-heróis passam a se concentrar exclusivamente em janelas cinematográficas, muito pouco ou quase nada aproveitando composições de páginas mais sofisticadas, janelas circulares, entre outros recursos; igualmente os games passam a se utilizar de um realismo cinematográfico e emprestar um deslumbramento gráfico que o cinema 3D e, principalmente,

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os figurinos dos super-heróis Marvel possuem, algo que segue numa evolução natural do vestuário e apetrechos já pensando em brinquedos e colecionáveis. Isso parece um processo crescente, não exclusivo. Em outras narrativas podemos encontrar esse desejo transmidiático, como na literatura onde games como “Assassin’s Creed” produzem best sellers, ou mesmo no veterano exemplo da música, sendo que hoje a trilha tema dos filmes pode ser ouvida antes mesmo do filme estrear. É evidente que há uma predileção pelo lugar do cinema na hora de afinar esteticamente esses diferentes produtos, mas é preciso considerar que essa posição majoritária é uma questão muito menos do cinema como uma arte destacada por seus recursos sensíveis, e muito mais como, por enquanto, o topo da escala de arrecadação. Seja como for, o que a necessidade transmidiática corporativa traz é uma padronização estética das narrativas, uma descontinuidade das diferenças em nome de uma identificação de mercado pelo consumidor que consiga ocupar-se do mesmo produto sob muitos lugares diferentes. A não hierarquização dessa narrativa na ordem de consumo do produto, embora ainda hoje o cinema ocupe um lugar privilegiado, é uma maneira de pressupor uma liberdade, uma falsa autonomia do consumidor que pode apenas ouvir a música sem ver o filme, ou ler o livro sem jogar o game, ou comprar os brinquedos sem ler os quadrinhos. No entanto, apesar dessa necessidade de homogeneização da transmídia corporativa, há um segundo movimento que é a apropriação transmidiática dos objetos da corporação. As redes sociais são o lugar de excelência para o aparecimento de paródias, subversões, encontros impossíveis de personagens ou a continuidade da narrativa finada pela corporação6. Se isso por ora serve apenas de reforço publicitário, quando atinge grande sucesso pode se tornar um concorrente ameaçador 7 , precisando ser também incorporado ou eliminado de alguma forma. Curiosamente é mais significativo nesse processo ainda em desdobramento a constatação de que a mesma não hierarquização transmidiática do produto, aquela que garante sua onipresença corporativa e é a mesma que fomenta o comportamento de apropriação que garante as produções marginais, igualmente é aquela que faz muitos quererem adquirir sem

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Harry Potter é um bom exemplo atual. Há diversas fanfics onde são explorados prelúdios, derivados e continuações para além de onde a história acabou. Algumas podem ser verificadas em: . 7 Isso é uma hipótese, não há, até onde eu pude apurar, o caso de um fanfilm que superou outro produzido no seio da corporação. Contudo na música há paródias já se sobrepondo a específicas versões oficiais, como foi o recente caso da versão do cantor Latino sobre a música “Gangnam Style” do sul-coreano Psy. A paródia em formato de repúdio à versão de Latino, pelo videologger Cauê Moura, teve mais acessos que a versão brasileira original no site Youtube.

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nenhum custo o produto cultural. A militância contra as leis de direitos autorais de sites como The Pirate Bay ou grupos como Anonymus é um sintoma de uma premissa aparentemente contraditória, mas altamente coerente. Pois essa falsa autonomia do produto cultural transmidiático e sua instigante sedução em tornar-se onipresente na cultura levou ao sentimento de que mais do que da corporação, o objeto é da própria cultura, e por isso mesmo não deve ser exclusivo ou inacessível à alguém. Batman não é da Time Warner, Batman é nosso, de todos nós – diria um possível manifesto. Mesmo que haja uma conscientização de remuneração na internet para os artistas produtores, da mesma forma é comum um profundo repúdio às grandes corporações que com suas licenças e copyrights ainda querem regular o jogo do consumo cultural8. Evidentemente é ingênuo traçar paralelos estéticos higiênicos entre corporação e público consumidor. Mesmo os produtos culturais marginais, como os fanfilms publicados na internet, quando muito levados a sério, costumam se aproximar do centro estético que o procedimento corporativo produz. Ao mesmo tempo de dentro das corporações por vezes aparecem inciativas bastante heterogêneas. Do ponto de vista estético, ser corporativo não é sinônimo de ser parte da empresa, até porque a defesa massificada de uma corporação muito acontece justamente por quem não integra a folha de pagamento dessas entidades. Por isso, para darmos corpos estéticos a esse confronto, é preciso levar em conta dois objetos precisos e altamente significativos nesse movimento: as vídeo-montagens pela manifestação marginal e as animações pelo procedimento corporativo.

3. Lugar da adaptação, montagem e animação

Tentando ser ainda mais específico, retomo os super-heróis, mais especificamente o Batman. Criado em 1939 e até hoje bastante popular, o homem-morcego pode ser considerado o super-herói mais transmidiático de todos. Nas histórias em quadrinhos, Batman tem um lugar privilegiado dentro do que foi canonizado como grandes clássicos das HQs, algumas

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Uma linha própria de pesquisa sobre assunto seria a partir dos atravessamentos políticos que aparecem nesses grupos militantes contra as atuais leis de direitos autorais na internet. Há um cruzamento bastante complexo entre anarcocapitalismo e algo que podemos chamar de comunismo de consumo. Outra questão relevante é a divisão material e imaterial da cultura causada pela internet. Pois não é incomum notar que muitos dos que compram um Dvd original de um filme assim fazem para ter a capa, extras e outros acessórios. O filme mesmo, caso fosse o único interesse, não precisaria ser comprado. Não por acaso o atual mercado de vídeo doméstico têm investido em edições de luxo para colecionadores. É como se o filme registrado numa mídia física fosse ele o material extra.

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vezes transcendentes ao seu próprio gênero9. Nos cinemas é o único personagem que teve duas cinesséries10 e oito longas-metragens11. Com Batman, assim como com muitos superheróis, grande parte dos seus consumidores não são necessariamente apreciadores da arte das HQs, do cinema, brinquedos ou games, estando muito mais próximos à postura de torcedores que procuram seguir, apoiar, defender e exigir a presença do personagem em diferentes mídias. Esse torcedor de hoje é filho da geração que foi educada pelo cinema-espetáculo norte-americano dos anos 1970 e 80, onde o instrumental publicitário ensejava a disseminação transmidiática que temos hoje. Da mesma forma, a “adolescentização” do público consumidor foi uma outra mudança significativa, hoje algo bastante óbvio em qualquer sala de cinema de shopping nos EUA ou no Brasil. Isso quer dizer que a imensa maioria da geração que hoje desfruta de um super-herói num cenário transmidiático já cresceu num ambiente bastante saturado dessa norma mercadológica e estética. Com isso surgem manifestações que podem ser facilmente conferidas em grupos de interação sobre o assunto em sites, canais de vídeo ou redes sociais. A primeira mais significativa para Hollywood é a apatia natural desse público, que já tão acostumado com um filme-evento a cada final de semana, precisa de motivações ainda mais estrondosas para lotar salas de cinema. Hoje o 3D na grande parte dos filmes que se utilizam da tecnologia remonta aos primeiros anos do cinema, onde mais importante que um enredo cinematográfico é o deslumbramento pela própria possibilidade tecnológica. Esse tipo de saída, que já dá sinais de fraqueza12, é uma das parcas maneiras de lidar com uma geração que requer novidades, mas que cresceu tão mergulhada num específico projeto estético que possui grande rejeição a mudanças. Nos quadrinhos isso ainda é mais visível nas queixas dos leitores que aludem aos “bons e velhos tempos”, normalmente reclamando da falta de criatividade nas histórias de hoje e ao mesmo tempo rejeitando mudanças significantes na natureza de seus personagens13.

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Curiosamente grande parte do cânone de histórias sobre o Batman se concentram entre 1986 e 1989. Dentre elas podemos destacar “O Cavaleiro das Trevas”, “Ano Um”, “A Piada Mortal”, “Asilo Arkham”, “O Messias”, “Morte em Família”, “O Filho do Demônio” e as “As Dez Noites da Besta”. 10 Em 1943 foram feitos quinze episódios e em 1949 mais quinze com elenco completamente diferente. 11 Além dos filmes de Burton, Schumacher e Nolan, em 1966 houve uma versão longa-metragem da série televisiva “Batman”, produzida por William Dozier. 12 2011 foi o primeiro ano em que alguns filmes-evento lançados em 3D não obtiveram boa bilheteria, dentre eles, destaca-se Lanterna Verde de Martin Campbell. 13 A polêmica recente sobre o casamento gay entre dois personagens dos X-Men e a mudança de hetero para homossexual do Lanterna Verde Alan Scott é o exemplo mais estrondoso. Mas esse tipo de comportamento conservador pode ser visto inclusive quando há alguma alteração no uniforme clássico do super-herói, como no caso das mudanças propostas para todo o universo da Dc Comics na reformulação chamada “The New 52” em 2011.

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Por isso tudo a adaptação se tornou um objeto de preocupação específico num mercado onde tudo precisa ser interpenetrante. Nesse sentido, dois objetos específicos se tornaram o lugar exemplar dessa condição. Para a corporação, a animação; para a apropriação, as vídeo-montagens. Aqui montagem não quer dizer simplesmente a reedição de imagens ou sons, mas montagem próximo ao conceito de montagem de atrações de Eisenstein, onde a força agressiva e agregadora da atração desperta uma ideologia. Obviamente não se trata, no caso específico das vídeo-montagens do Batman, de uma percepção magnânima, mas traz à tona aspectos pouco explorados, mas que são imediatamente assimilados, mostrando-se como uma característica natural ao personagem. No site Youtube muitos podem ser encontrados: temos os vídeos “The Dark Knight Kills Christmas” onde um menino se torna um psicopata ao se fantasiar de Batman; há a transformação em canção da música-tema de Batman de 1989 realçando musicalmente características do personagem; em “The Dark Kinght Rages” conhecemos mais da relação entre Batman e Robin, quando o menino-prodígio tenta ensinar ao homem-morcego como jogar videogame e acaba espancado por isso; assim como o vilão Bane acaba vencendo, matando e estuprando o super-herói ou, em outro vídeo, se recusando ameaçar Gotham por não suportar as afetações do Robin 14 . Impossível listar todos, mas basta perceber que paródias, reedições de trailers, exploração de situações incomuns, cruzamentos musicais improváveis ou mesmo filmes mais sisudos muito dizem sobre o espaço na cultura no que se refere ao Batman. Mais do que as versões oficiais, essas vídeo-montagens evidenciam ao mostrar atitudes incomuns, porém razoáveis, um sentimento coletivo e relativamente autoconsciente diante do personagem. Em outras palavras, esse tipo de exercício torna manifesto que o centro está fora do centro, está na interpretação versátil a partir do que é central. Na corporação acontece de maneira inversa. É preciso definir o centro e torná-lo conceitualmente claro. Embora sejam os filmes live-action a principal forma de receita, são as animações para o mercado de DVDs que até então tem desempenhado o papel de um lugar que não é o principal, que inclusive está para ser descartado, mas que ao mesmo tempo é o ponto central simbólico onde todas as necessidades transmidiáticas se condensam. A

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The Dark Knight Kills Christimas, disponível em: , Batman Theme Song, disponível em: , The Dark Knight Rages, disponível em: , Dark Knight Rises Ending Leaked, disponível em: , The Dark Knight & 60’s Robin, disponível em:< http://www.youtube.com/watch?v=1-GkQihKYvM>.

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animação é o lugar de encontro da padronização dos elementos cruciais a serem desenvolvidos, o entre-lugar de uma fixação. Isso é algo natural se formos levar em conta os principais filões da transmídia. É na animação que o desenho dos quadrinhos é respeitado, que a narrativa live-action é apresentada, que o visual do game é esboçado, que a concepção do brinquedo é exercitada, que a música é conceitualmente promovida, que a marca é graficamente expressada. Tudo isso, toda essa tensão ocorre na animação de maneira mais ou menos pacífica, conseguindo se relacionar e promover, mesmo que discretamente, as bases do imaginário coletivo. Não há uma pesquisa oficial, mas não é difícil encontrar muitos relatos de pessoas que consumiram amplamente Batman nos anos 1990 onde o ponto pacífico que atende dos leitores de quadrinhos aos espectadores de cinema é a série animada “Batman”, encabeçada por Bruce Timm a partir de 1992. Contudo isso não é algo seguro, pois a série animada “The Batman” de 2004 não caiu nas mesmas graças, menos do que por uma suposta debilidade dos roteiros e mais por uma infidelidade com o personagem dos quadrinhos. Com isso, o pensamento corporativo, cada vez mais consciente das suas necessidades transmidiáticas tem criado longas-metragens em animação que inicialmente aludiam às histórias clássicas (“A Morte do Superman”, “Superman e Batman: Inimigos Públicos”, “Liga da Justiça: A Nova Fronteira”, “Liga da Justiça: Crise em Dois Mundos”, “Batman Contra o Capuz Vermelho”) ou ao universo dos filmes (“Batman: o Cavaleiro de Gotham”), passando a fazer hoje adaptações que se vendem a partir da defesa da reprodução quase que absoluta do objeto original em texto, enquadramento e traço, no caso, de histórias em quadrinhos consagradas (“Batman: Ano Um”, “Batman – O Cavaleiro das Trevas” parte 1 e parte 2)15. Com isso fica manifesta a lógica essencial do centro simbólico corporativo. Não são as interpretações que interessam, são as reproduções, a continuidade que se imprime nos desenhos animados atuais da Dc Comics, ou no cinema da Marvel Studios onde os filmes possuem muito pouco uma impressão autoral por parte do diretor, do roteirista ou outros, parecendo serem todos um mesmo filme de uma mesma equipe de pessoas, o que de fato não deixa de ser verdade numa perspectiva empresarial. A ideia de espelhamento dos quadrinhos para o cinema, do cinema para os games, dos games para os brinquedos e assim por diante, ao

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É preciso lembrar que os animes, adaptações animadas de mangás, desenvolvidos nos anos 1960, já traziam consigo essa fórmula que conjugava uma adaptação fiel que conseguia atrair novos interessados sem com isso ganhar rejeição por parte dos leitores de quadrinhos. No entanto, essa respeitosidade tem outras implicações na cultura japonesa que merecem ser mais desenvolvidas. Pois no contexto do anime muito dessa fidelidade surge mais pela figura do autor e menos pela afinidade corporativa. Notar essas diferenças e a evolução empresarial no anime nos últimos 50 anos é uma segunda linha de investigação que muito acrescentaria.

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supostamente subtraírem uma visão autoral acabam vendendo a ideia de que o produto foi feito por quem deveria fazê-lo, por quem é o portador da visão oficial e, por isso mesmo, correta – ou seja, a entidade abstrata da corporação. Por isso o argumento de infidelidade é impossível armar-se, não há rejeição logicamente possível, pois não é mais o filme que pode vir a distorcer o gibi, é o gibi que é moldado para que dele se faça um filme. Ao suprimir a sensação de uma identidade criativa pessoal e interventora, a corporação se aproxima de um corpo teológico onde ela é a portadora da verdade simplesmente por assim sê-la. Uma premissa tautológica: a visão da corporação é verdadeira porque é verdadeira. Já os torcedores se tornam então fiéis que são atendidos amplamente por uma meta-narrativa que se reflete em imagem e semelhança por todas as mídias, essas mediações do senhor, daquilo que assenhora toda a obra. O que está em jogo entre os temas da reprodução centralizadora da animação e da repetição espontânea das vídeo-montagens é uma oposição conceitual entre fidelidade e lealdade no âmbito da adaptação. O que é fidelidade? Ser fiel é evocar o objeto, transpor uma referência e torná-la presente por materialização. É da ordem do platonismo, onde pelo não ver o objeto atual apenas é enxergado o “original”, o objeto anterior que sempre será o modelo ideal e qualquer adaptação, uma cópia degenerada. Lealdade é diferente. Ser leal é da ordem da lei, onde menos interessa o objeto e mais significa a arbitrariedade, a imposição, a força relacional – conceitualmente força é sempre relacional. A lealdade não transpõe porque a força do objeto nunca se ausentou, embora o objeto primeiro por si só já está perdido, imaterial. Mesmo que a força da lei, do leal seja uma força que se cristalizou, que se materializou por meio do objeto “original”, este objeto segundo se torna possível através de uma subjetivação, de uma maneira às vezes mais, às vezes menos confusa na relação sujeitoobjeto – podendo inclusive inverter tal ordem. Pois se a força da lei for maior, é o sujeito da adaptação que é objeto de uma sujeição simbólica. Não sou eu que escrevo através do Batman, é a força do Batman que me inscreve. A lealdade se aproxima de um nietzscheanismo primitivo, assim é possível dizer, pois sua relação com o objeto primeiro se dá pelo não querer enxergar nele uma obediência, uma regulação – é próprio da lei, pela sua arbitrariedade, obedecer a si mesma, ela que regula o objeto primeiro, não o contrário. É enganoso, e portanto herdeiro ainda de uma concepção platônica achar que a lei é automaticamente derivada do objeto primeiro a partir de critérios supostamente justos e verdadeiros. A lealdade atém-se apenas à potencialidade – embora em muitos casos tal potencialidade é entendida como singular ou mesmo é ignorante do que a lealdade, a ordem da lei, põe em jogo. O risco desse processo é a formação de um objeto segundo que anula

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todas as formas de desestabilização sujeito-objeto, recomeçando um novo platonismo, onde o símbolo da lei, sua arbitrariedade se transforma em nova verdade. Por isso que é primitivo, melhor dizendo, um convite, já que em Nietzsche o plural é o processo e a potência apenas um princípio que a vontade deve acontecer. Posso dizer então que a reflexão da lealdade é uma forma de por em questão os princípios da fidelidade e do platonismo. Com isso muitas outras formas, tidas por estáveis, caem por terra. Pois ao tirar do sujeito o privilégio de sujeito, de subtrair do objeto essa suposta condição pacífica de objeto inanimado, as posições se invertem e o consumido pode ser o próprio sujeito. Por isso, a própria concepção de consumo, numa situação de lealdade, se torna insuficiente para dar conta da relação criativa que se tem com a cultura. O que aparece é o antagonismo entre um procedimento que desfruta e descarta a nós mesmos, e uma defesa do irredutível da cultura, aqui pensada ainda como terra de cultivo, mas não por uma tônica de conservação e sim de criação, semeação imprevisível, porém rigorosamente fomentada. É uma alternativa a se pensar, uma decisão a se fazer. Pois o jogo de forças que se imprime por um lado é o fortalecimento platônico da corporação na sua maquinaria transmidiática, do outro é o ato de ultrapassar a própria ideia de mídia, essa mediação entre um primeiro e um segundo por um objeto vazio que serve apenas de canal. Enquanto mídia, Batman é um objeto vazio que só serve para ser consumido e consumir, mas no momento em que o ser Batman, sua potencialidade na cultura é levado em conta, independente da corporação que o assenhora, uma cultura do poder-vir-a-ser da própria cultura se consolida. Esse é um jogo maior, sendo ainda impossível prever os desdobramentos que as produções transmidiáticas terão como um todo. Mas há alguma segurança em dizer que num jogo estético e mercadológico que antes parecia fechado, eis uma inquietante abertura.

REFERÊNCIAS:

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FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Literatura, roteiro e cinema: o escritor multimídia. In: Narrativas migrantes: literatura, roteiro e cinema. São Paulo: Empório do Livro, 2010. LINCK VARGAS, Alexandre. Messianismo político e sua super-ação: uma breve história do Superman. In: JORNADAS INTERNACIONAIS DE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS, 1., 2011, São Paulo. Anais eletrônicos. CD-ROM. 2011. MASCARELLO, Fernando. Cinema hollywoodiano contemporâneo. In: MASCARELLO, Fernando. História do cinema mundial. Campinas: Papirus, 2006. Cap. 13, p. 333-360. MORIN, Edgar. Crônica de um filme. In: Crônica de um verão: textos. Encarte do filme em DVD Crônica de um verão. Rio de Janeiro: Videofilmes, 2008. NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia Das Letras, 2007. VASCONCELOS, Sandra Guardini; AGUIAR, Flavio (Org.). Ángel Rama: Literatura e cultura na América Latina. São Paulo: Edusp, 2001.

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