(Trans)Mutação: Estudos e reflexões através do prisma da ciência, arte e filosofia

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ISSN 2176-1248

(Trans)Mutação: Estudos e reflexões através do prisma da ciência, arte e filosofia Telles, E.G. Mestranda em Educação, Gestão e Difusão de Biociências (IBqM/UFRJ). Graduada em Artes Cênicas – Indumentária - Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Email: [email protected] Silveira, J. R. A. Mestre e Doutorando em Educação, Gestão e Difusão de Biociências - Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis, Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] Lannes, D. Professora Associada. Laboratório Em Formação, Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis, Universidade Federal do Rio de Janeiro (IBqM/UFRJ). E-mail: [email protected] Resumo Conceitos como mutação, transmutação, evolução e metamorfose são apresentados neste estudo a partir de uma breve exploração bibliográfica de seu viés científico seguido de um aprofundamento em forma de ensaio metafórico. Tal ensaio vislumbra o indivíduo em sua relação íntima e com a sociedade que o cerca com o intuito de prover fundamentação teórica e conceitual para embasar a produção, em um futuro próximo, de uma obra considerada de arte e ciência: uma performance a ser realizada como produto de mestrado profissional. As reflexões aqui expostas são pessoais e baseadas em sentimentos, experiências próprias e observações do meio. Palavras-Chave: transmutação, performance, arte, ciência, ensaio

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Introdução Mutação,

transmutação,

evolução

e

metamorfose

são

conceitos

científicos com íntimas relações entre si. Embora com significados semelhantes em alguns contextos, cada termo possui suas especificidades e o estudo destas terminologias é o passo inicial. Esta reflexão se faz necessária para a etapa seguinte, na qual ultrapassamos a esfera das ciência naturais ao explorar a ‘(trans)mutação’ através do olhar reflexivo e metafórico em forma de ensaio. Este ensaio busca compreensão acerca do indivíduo em sua relação com a sociedade e consigo mesmo, em um profundo processo de transformação íntima. Dentre os diversos autores que nos servem de inspiração para as reflexões, Zygmunt Bauman ocupa uma posição de destaque. Muitas reflexões descritas neste trabalho são desdobramentos, reflexões e metáforas que tomam como ponto de partida, além de experiências pessoais, o pensamento: "Para

ser

feliz



dois

valores

essenciais

que

são

absolutamente

indispensáveis [...] um é segurança e o outro é liberdade. Você não consegue ser feliz e ter uma vida digna na ausência de um deles” (BAUMAN, 2011)1. A partir do estudo bibliográfico e do ensaio metafórico descritos neste trabalho, produzimos a fundamentação teórica e conceitual que embasará a produção, no futuro próximo, de uma obra que consideramos de ciência e arte, ou de artscience. Esta obra será realizada ao longo do ano de 2017 como produto de um mestrado profissional. Escolhemos, inicialmente, a performance como linguagem artística. De acordo com Féral (2008), o teatro se beneficia da performance ao que o ator se transforma em performer. Também em seu artigo é colocado que a representação e o jogo de ilusão dão lugar à descrição dos acontecimentos da ação cênica, o "espetáculo centrado na imagem e na ação e não mais sobre o texto” (p. 198). E a receptividade do espectador é requerida de maneira essencialmente investigativa. Ainda de acordo com o autor: 1

Entrevista: Zygmunt Bauman - Fronteiras do Pensamento. Londres, jul. 2011. Concedida a Fernando Schüler e Mário Mazzilli - Fronteiras do Pensamento. Disponível em https://goo.gl/oh40Fo

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no teatro performativo o ator é chamado a “fazer” (doing), a “estar presente”, a assumir os riscos e mostrar o fazer (showing the doing), em outras palavras, a afirmar a ‘performatividade’ do processo. A atenção do espectador se coloca na execução do gesto, na criação da forma, na dissolução dos signos e em sua reconstrução permanente. Uma ‘estética da presença’ se instaura (se met en place) (Féral, 2008, p. 209).

Mutação, transmutação, evolução e metamorfose sob o prisma da ciência Nesta seção, a partir da pesquisa dos autores aqui evidenciados em suas obras, busca-se a compreensão científica dos termos acima citados. Fernando J. Regateiro (2007) em seu livro ‘Manual de Genética Médica’ define como mutação as “alterações permanentes provocadas na sequência de DNA” (p. 46). Para que haja mutação em um gene é necessário que fatores intrínsecos, ou seja, espontâneos, ou extrínsecos (induzidos) ocorram (REGATEIRO, 2007). Segundo Madigan et al (2016) na obra ‘Microbiologia de Brock’, as mutações ocorrem ao acaso e podem ser neutras, ou seja, não acarretar malefício e nem benefício, benéficas ou deletérias. Ainda: A natureza seletiva de um ambiente não causa mutações adaptativas porém seleciona simplesmente aqueles organismos em que houve as mutações

os organismos cujas mutações que fornecem uma

vantagem valor adaptativo para o crescimento e reprodução (MADIGAN et al, 2016, p. 363).

No que concerne ao termo transmutação, Edson Perrone (2013) no livro ‘Charles Darwin: o homem e sua teoria’ esclarece que entre os séculos XVIII e XIX os princípios do que hoje entende-se como ‘evolução’, na época eram tratados como ‘transmutação’. Georges-Louis Letrec (conde de Buffon), que viveu entre 1707 e 1788, apoiava a “ideia do transformismo das espécies, acreditando que elas se modificavam ao longo do tempo e tinham uma origem comum” (p.13). Erasmus Darwin (1731-1802), o avô de Charles Darwin, escreveu o livro ‘Zoonomia’ onde sugeriu que “a vida poderia ter surgido a partir de um ancestral comum e que uma espécie poderia se transformar em outra” (p. 13) (PERRONE, 2013).

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Ainda de acordo com a pesquisa de Perrone (2013) o naturalista francês Jean-Baptiste Pierre Antoine de Monet (1744-1829), o cavaleiro de Lamarck, desenvolveu a “primeira teoria científica sobre o processo de evolução dos seres vivos em seu livro Philosophie Zoologique” (p.14). Em pesquisas com moluscos da bacia de Paris o cavaleiro passou a crer no princípio da transmutação. Sua teoria era calcada na ideia de que as espécies eram adaptadas ao ambiente em que viviam e que espécies semelhantes mas que viviam em ambientes diversos mostravam distinções. Isto porque, em sua teoria, as “mudanças no ambiente provocavam a necessidade de adaptação dos organismos que desenvolviam alterações que levavam à progressão contínua das espécies” (p. 14). A teoria de Lamarck, embora incorreta, serviu de base para Charles Robert Darwin (1809-1882) desenvolver a teoria da evolução. Com base no conceito da seleção natural, explicava o surgimento de “seres vivos tão biodiversificados e adaptados a seus ambientes particulares” (p. 7) (PERRONE, 2013). Na alquimia o termo transmutar também era bastante utilizado. Em ‘A Alquimia em três Dimensões’ de Antônio Siqueira (2012) é colocado que a Alquimia era uma “ciência natural que buscava compreender os fenômenos da natureza e que proporciona a compreensão lógica do inconsciente que a caracteriza” (p. 13). Esta cresceu em toda a Idade Média e, também, fez parte da pré-história das tradições mesopotâmicas. Neste contexto, transmutação refere-se à mudança de uma natureza, ou forma, para outra e ocorreria “a partir do enxofre (fogo) e o mercúrio (líquido) que quando combinados produziam o ouro” (p. 14) (SIQUEIRA, 2012). Quanto ao verbo ‘metamorfosear’, este remete à transformação. Na obra Metamorphosis: Nature's Magical Transformations de Alvin e Virginia Silverstein (2002) é explicitado que “certos animais durante suas vidas possuem duas ou mais formas distintas, cada uma tão diferente da outra que não é fácil reconhecer que tais aparências pertencem a um mesmo animal” (p. 67). As mudanças severas que ocorrem durante a transformação de uma forma em outra são chamadas metamorfose. Exemplificando esse processo os

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autores citam as transformações que a lagarta sofre quando dentro do casulo, também chamado de crisálida, entra no estágio de pupa onde aparentemente nada muda, porém no interior do casulo a forma da lagarta sofre mudanças. Assim, tornando-se adulto, o inseto deixa o casulo e exposto à brisa e ao Sol a metamorfose completa-se dando origem a uma borboleta ou mariposa (SILVERSTEIN; SILVERSTEIN, 2002). (Trans)Mutação: ensaio reflexivo e metafórico Após explorar o viés científico, as reflexões descritas a seguir são pessoais baseadas em sentimentos, experiências próprias e observações do meio. Tais reflexões são necessárias para a construção da performance a ser realizada. Todo o processo é amplamente metafórico e segue um princípio ensaísta de acordo com a percepção de Meneghetti (2011): “o ensaio é forma que quebra a lógica esquematizada e sistemática da ciência tradicional, sobretudo de natureza positivista. Os ensaios são muito utilizados na área das ciências sociais” (p. 321). A relevância de um ensaio está na “capacidade reflexiva para compreender a realidade” (p. 322), havendo tal intenção em todo o processo. Desta forma, ele pode afastar-se do “rigor

metodológico”

observado em obras científicas (MENEGHETTI, 2011). Assim como o processo científico da metamorfose, na qual a lagarta se transforma em borboleta, as porções psicológicas, filosóficas e sociais de um indivíduo também se metamorfoseiam, e não há expressão mais adequada para metaforizar tais aspectos do que a artística. Apenas a arte possui a sensibilidade, e ao mesmo tempo pluralidade, necessária para unir tão intrinsecamente tantas faces. A mutação de um indivíduo não ocorre exclusivamente por qualquer fator externo, independendo de fatores intrínsecos. O ambiente em que se habita, por exemplo, pode fomentar o interesse na transformação, mas alteração nenhuma ocorrerá independente da vontade e esforço pessoal. Adquirir ou abdicar de determinadas características exige reorganizações

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inúmeras, tanto no padrão do pensamento quanto na produção de uma atitude externa a ser realizada. Dentre flexibilidade,

as

características

podemos

discorrer

sobre

a

importante característica para a vida contemporânea. A

capacidade de adaptação diante de diferentes situações, a versatilidade ao lidar com diferentes perfis de indivíduos, além do dinamismo no tempo de reajuste às diversas demandas que esta maleabilidade exige. Porém flexibilidade e ‘esgarçamento’ são conceitos bem distintos e que com frequencia são confundidos. A flexibilidade é uma capacidade de reajuste que respeita os limites de cada um. Suas individualidades são levadas em consideração. Estão presentes e caracterizam o diferencial daquela pessoa. O ‘esgarçamento’ ultrapassa os limites, não é alcançado com naturalidade, exige mais do que cada um pode oferecer. Extrapola o limiar de tensão aceitável levando quase ou totalmente à ruptura da individualidade. A pessoa praticamente deixa de ser quem é para tornar-se outro sem que isso seja um processo intrínseco e saudável. A sociedade atual induz esse ‘esgarçamento’ exigindo padrões inalcançáveis,

tempos

de

reação

curtos

demais,

numa

esquizofrenia

comportamental que dilui a individualidade. Sob o pretexto de solicitar protagonismo e destaque, acaba por formar um exército de seres que crêem que são multifacetados, quando na verdade terminam sem face alguma, todos iguais, todos sem identidade. Conhecer os próprios limites, qualidades e dificuldades são fatores primordiais para o desenvolvimento da capacidade de reinvenção ao mesmo tempo em que o próprio diferencial mantém-se preservado. Não há como, por mais que se tente, passar pelos diferentes estágios da vida sem que haja mutações. O aprendizado, as mutações sociais e/ou as experiências vividas induzem a mutação interior. Não há como permanecer imutável diante das sucessivas alterações pelas quais o entorno passa. Os questionamentos gerados, as reflexões decorrentes, as percepções alteradas geram a transformação. Esta transformação, em contrapartida, gera uma

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mudança no entorno e assim temos um ciclo interminável de mutações pessoais e coletivas provocando a evolução. A multiplicidade e o ritmo social acelerado atual exigem dinamismo, versatilidade e pluralidade do indivíduo que muitas vezes age como se utilizasse muitas peles. Diversas camadas vão sendo criadas, cada qual para atender um aspecto da vida diversa. Mas a falta de tempo, muitas vezes, não permite a reflexão acerca de cada camada. Frequentemente as camadas sequer são conscientemente percebidas por quem as cria e utiliza. Não há a possibilidade de retração, da busca e reforço de quem se é de fato. A personalidade torna-se uma conjunção de fatores paradoxais, impressões superficiais, um acúmulo de cascas sobrepostas onde a essência pessoal se perdeu. A formação de um casulo passa uma falsa impressão de segurança, quando na realidade deixa-se de viver ao se refugiar ali. O medo da exposição impede vivências, experiências. Chega-se num ponto em que o próprio indivíduo não é mais capaz de enxergar-se sem o casulo. Perde-se o referencial de seu íntimo. As necessidades pessoais estão dando lugar às necessidades de uma sociedade virtual na qual a aparência e expectativa do outro estabelece as metas do indivíduo. Um amplo círculo social virtual, por exemplo, ao invés do cultivo de seletas amizades reais. O desenvolvimento de uma vida calcada em específicos padrões de exposição que estabelecem metas inalcançáveis de realizações. O casulo prende, imobiliza. Quanto mais denso, menos é possível a realização de movimento. É preciso aprender ou reaprender a se mexer e a se locomover enquanto gradativamente o casulo é abandonado. Não é possível romper as camadas e libertar-se do casulo sem que haja movimento, assim como não é possível realizar tais árduas transformações sem que haja motivação. Seja uma motivação social, seja profissional ou outra qualquer: não há gasto energético para sair de um ponto e passar para outro sem a presença de uma motivação, ainda que inconsciente. A metamorfose ocorre após um marco ou uma sucessão de marcos que incentivam o processo da mudança.

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Os sentimentos estão anestesiados por debaixo de cada camada até o momento em que o excesso de cascas gera uma rachadura. Não há então maquiagem que disfarce esta rachadura, não há mais música que abafe o ruído incessante que ecoa do íntimo e intensifica a cada momento a quebra das cascas. As camadas vão ruindo. Abrir-se à mudança é estar pronto para o que não se conhece, o que não se domina. Para um indivíduo que se resguarda dentro das cascas que cria, lidar com o desconhecido é paralisador. A percepção da necessidade de transmutar precisa ser do próprio indivíduo, e não de outrem. As ações necessárias para a transformação só se farão efetivas quando são aplicadas pelo próprio indivíduo, partindo do âmbito mais íntimo – o reconhecimento da necessidade de mudar. Somente a partir de então uma série de modificações poderão ocorrer, iniciando-se por alterações que aparentemente não são perceptíveis ao meio externo até as que de fato se fazem visíveis. Compreender o que ‘prende’ o indivíduo no estado atual e qual a motivação para a transformação é essencial, minimizando assim o risco de estagnações durante o processo. Nem sempre é possível saber onde se deseja chegar. Ter tal clareza ajuda a definir qual o resultado a ser alcançado e traçar os passos a serem cumpridos, estabelecendo fases com metas realistas e possíveis; a aplicação gradativa destes passos, respeitando o tempo necessário para cada etapa porém sem estagnação; ter a consciência de que é necessária a constante atenção para que não haja acomodação. Cada etapa estabelece-se como uma mutação benéfica, ao que o conjunto de todas as mutações caracteriza uma evolução. É possível a descoberta – literalmente o princípio de ‘retirar a cobertura’ – de um indivíduo que agora desprendido de seu casulo, despojado de suas camadas, exponha uma renovada e íntegra essência transformada ou (trans)mutada. O desfecho pós-transmutação não pode ainda ser descrito, pois não foi vivenciado. Será que a transmutação tem fim? A única certeza é a de que a jornada, ainda que rumo ao desconhecido, promove um importante movimento de autoconhecimento e reforma íntima que de detalhe em detalhe vai revelando um indivíduo cada vez mais preparado de

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fortalecido para lidar com toda a diversidade de vivências que o universo tem a oferecer. Referências FÉRAL, J. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. Tradução por Lígia Borges. Sala Preta – Revista de Artes Cênicas. São Paulo: Departamento de Artes Cênicas, ECA/USP, n. 8, p. 197-210, 2008. MADIGAN, M. T. et al. Microbiologia de Brock, 14. Ed. Porto Alegre: Artmed, 2016. 1160p. MENEGHETTI, F. K. O que é um ensaio-teórico? RAC. Curitiba, v. 20 n. 2, p. 320-332, mar/abri 2011. PERRONE, E. Charles Darwin: O Homem e Sua Teoria, 1. Ed. São Paulo: Clube dos Autores. 2013. 170p. REGATEIRO, F. J. Manual de Genética Médica, 1. Ed. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. 2007. 514p. Reimpressão. SILVERSTEIN, A. SILVERSTEIN, V. Metamorphosis: Nature's Magical Transformation, 1. Ed. New York: Dover Publications, Inc. 2002. 80p. Reimpressão. SIQUEIRA, A. A Alquimia em Três Dimensões, 1.Ed. São Paulo: Clube dos Autores. 2012. 149p.

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