Transplante de órgãos, tecidos e partes do corpo humano: aspectos bioéticos e da regulação jurídica no Brasil

July 4, 2017 | Autor: P. Burg Conti | Categoria: Law, Bioética, Medical Ethics, Bioethics, Philosophy of Medicine
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Publicado originalmente em www.emporiododireito.com.br – agosto/2015

Transplante de órgãos, tecidos e partes do corpo humano: aspectos bioéticos e da regulação jurídica no Brasil Paulo Henrique Burg Conti

I. Introdução

Ao fim desse primeiro semestre de 2015, a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) divulgou as mais recentes informações acerca do Registro Brasileiro de Transplantes, incluindo os dados atuais da situação da doação de órgãos e transplantes no Brasil e, o resultado, não foi animador. Pela primeira vez desde 2007 houve diminuição na taxa de potenciais doadores, de doadores efetivos e no número de transplantes de rim, de fígado e de pâncreas, em relação ao ano anterior. A elevada taxa de recusa familiar à doação (44%) continua sendo o principal obstáculo para a efetivação da doação, na maioria dos Estados brasileiros. Diante desse quadro, emerge a necessidade de se discutir certas questões que envolvem o transplante de órgãos, no intuito de um maior esclarecimento e incentivo à doação bem como ao estabelecimento das devidas diretrizes éticas e jurídicas para a realização do procedimento de transplante.

II. Aspectos históricos e as espécies de transplantes de órgãos

A ideia de realização de transplante de órgãos, substituindo órgãos doentes por órgãos sadios ou sangue obtido de animais ou outros seres humanos remonta à Antiguidade, ocupando seu espaço na mitologia e na literatura desde essa época, apesar de sua concretização prática ocorrer apenas a partir do século XX. No transcurso dos diferentes períodos históricos desenvolveram-se concepções heterogêneas acerca de um dos pontos centrais que norteia o tema transplante de órgãos: a questão sobre a propriedade do corpo humano. Na tradição clássica, no Direito Romano, não se considerava o corpo como uma coisa sob a qual se pudesse haver um domínio ou propriedade. Deus se constituía no único proprietário do corpo humano, sendo o homem o mero

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administrador de seu próprio corpo. O corpo não poderia ser objeto de comércio e nem violado pelos indivíduos ou pelo Estado. No início da modernidade, nos séculos XVII e XVIII, emergem outras correntes de ideias, dentre elas, a do pensamento liberal e a do pensamento socialista. Para o pensamento liberal, contrariamente à tradição clássica, o corpo era a primeira e principal propriedade do ser humano. O homem não seria mero administrador do corpo, mas seu próprio senhor e dono. Assim, o corpo passa a ser a propriedade primária, origem e fundamento de todo o direito de propriedade, sendo inviolável pelo Estado e pela sociedade, mas não pelo próprio indivíduo. Nesse viés, propriedade, individualidade e personalidade seriam expressões idênticas, inclusive podendo o corpo ser objeto de comércio, ter um preço. Já para o pensamento socialista, a propriedade era um elemento de despersonalização, convertendo o próprio em estranho. Desse modo, caberia ao socialismo converter o estranho em próprio, socializando a propriedade, inclusive a do corpo. Nesse sentido, a ética do corpo apresenta um viés social e público e todas as questões concernentes à propriedade de órgãos para transplante são guiados por essa ética. O corpo, portanto, seria violável e não alienável. Do século XX aos dias atuais acabou se consolidando um pensamento que integra características das correntes anteriores: que a pessoa é inviolável, sujeito de direitos e deveres. Esses direitos e deveres apresentam, por suposto, duas dimensões distintas, uma individual (oriunda do pensamento liberal) e outra social (oriunda do pensamento socialista), formando um complexo sistema ético e jurídico. Com a evolução biotécnica iniciada no último século, possibilitou-se a realização de transplantes de órgãos, tecidos e partes do corpo humano, tornandose essa prática um recente ramo da Medicina. Atualmente, é realizada uma série de transplantes de órgãos, tais como de rins, córneas, coração, fígado, pâncreas, pulmão, medula óssea, testículos, ovários. Tomando-se em consideração os sujeitos envolvidos no procedimento de transplante de órgãos, pode-se classificá-lo em três espécies diferentes. São denominados de autotransplantes aqueles que se realizam num indivíduo que é seu próprio doador (por exemplo, um enxerto de pele de uma parte à outra do corpo), de isotransplantes os realizados entre gêmeos univitelinos (não apresentam problemas quanto à rejeição), de homotransplantes aqueles feitos entre diferentes sujeitos da mesma espécie (geralmente apresentam possibilidade de rejeição, havendo necessidade de ações médicas complementares) e os

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heterotransplantes que se realizam entre indivíduos de espécies diferentes (por exemplo, de animais para o homem).

III. Análise ética e a regulação jurídica no Brasil

A temática que envolve o transplante de órgãos suscita uma série de questionamentos de natureza ética e jurídica. Assim, ressaltamos alguns: quanto ao doador cadáver, como e quando determinar o momento da morte? Deve haver autorização expressa ou pode valer o consentimento presumido para a doação? Quanto ao receptor, quais os critérios de escolha e prioridade para determinar quem será o futuro transplantado? Seria possível a comercialização de órgãos humanos para fins de transplante? Tais questões não apresentam respostas homogêneas e absolutas, mas certas diretrizes bioéticas (princípios da autonomia, beneficência, não maleficência e equidade/justiça) bem como jurídicos (dignidade humana) atuam como norte para dirimir os problemas trazidos pelas referidas situações. Nesse viés, no que tange ao doador-cadáver emergem dois casos difíceis, o primeiro é sobre qual o critério a ser utilizado para determinar a morte e, o segundo, se é possível a doação caso o falecido não tenha manifestado sua vontade em vida. Assim, com a possibilidade biotécnica de reanimação do coração e da respiração de uma pessoa, a cessação de funcionamento desses órgãos deixou de ser o critério determinante da morte. Portanto, entende-se, atualmente, pela utilização do critério de morte cerebral, ou seja, quando o paciente se encontra em coma irreversível e tenha perdido todas as funções cerebrais. Juridicamente, esse também é o critério adotado pela Lei 9.434/1997 em seu art. 3 o, onde a morte encefálica deve ser constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos que são definidos pela Resolução 1.480/1997 do Conselho Federal de Medicina. Tal procedimento fornece ao médico a segurança de que não estará cometendo um crime de homicídio, por exemplo. Quanto à manifestação de vontade em vida do falecido em ser doador de órgãos apresentam-se três caminhos diferentes de regulação: 1- se o falecido não manifestou sua vontade em vida não poderia ser doador (presunção de não doador), 2- se o falecido não manifestou sua vontade em vida poderia ser doador (presunção de doador) e 3- não havendo manifestação da vontade em vida do falecido a

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decisão poderia ser tomada por terceiros. Diferentemente de países que adotaram a vertente da presunção de doador, o Brasil optou pela possibilidade da decisão ser tomada por terceiros. Assim, a Lei de Transplantes, em seus arts. 4 o e 5o estabelece que a doação dependerá de autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive. No caso do doador ser pessoa juridicamente incapaz, a autorização deve ser expressa por ambos os pais ou pelo representante legal. E quanto ao doador vivo? Teria ele permissão para decidir pela sua própria mutilação? Teria o dever de doar órgãos ou parte de seu corpo para benefício do próximo? De acordo com o princípio da totalidade, que norteou durante séculos essa questão, um órgão ou parte do corpo doente poderia ser extraído para o bom funcionamento de todo o organismo, mas não um órgão ou parte do corpo sadia. No entanto, atualmente tem se aceitado a possibilidade de doação de órgãos inter vivos desde que a vontade do doador seja livre e a extração do órgão não prejudique ou coloque em risco sua saúde e integridade (por exemplo, transplante de rins). Nesse sentido, ninguém tem o dever de ser doador inter vivos, mesmo que a doação não traga prejuízo a si próprio e promova um benefício ao receptor do órgão. A Lei de Transplantes regulamenta tal matéria em seu art. 9o e 9o-A. Por outro lado, como determinar os critérios de ordem e escolha dos futuros receptores de órgãos? Definitivamente a solução não passa pela adoção de critérios de poder aquisito ou “valor e dignidade social”. Poderia se pensar em quesitos de maior necessidade, de faixa etária ou por sorteio. Quanto a isso nos parece correto e mais equitativo a elaboração de uma fila única de espera, estabelecida através do cadastramento de pacientes. A Lei 9.434/1997 acabou adotando devidamente esse sistema, uma vez que em seu art. 10o declara que o transplante ou enxerto só se fará com o consentimento expresso do receptor, assim inscrito em lista única de espera, após aconselhamento sobre a excepcionalidade e os riscos do procedimento. No que diz respeito à possibilidade de comercialização de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante, a Lei de Transplantes brasileira rechaça corretamente a teoria liberal sobre a propriedade do corpo humano, de modo que é proibida a comercialização de tecidos, órgãos e partes do corpo humano. Em seus arts. 15, 16 e 17, o texto legal criminaliza as condutas de compra e venda de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, assim como o recolhimento,

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o transporte, a guarda, a distribuição ou a realização de transplante nos quais se tem ciência da obtenção do órgão em desacordo com os dispositivos da lei.

IV Como ser doador de órgãos, tecidos e partes do corpo humano

Por fim, ressaltamos que para um indivíduo ser doador de órgãos, tecidos e parte do corpo humano não há necessidade ou obrigatoriedade de manifestar a sua vontade por documento escrito. Basta que noticie seu cônjuge e familiares próximos da vontade de ser doador.

IV. Referências

BRASIL. Lei n. 9.434/1997, alterada pela Lei n. 10.211/2001. ______. Conselho Federal de Medicina. Resolução n. 1.480/1997. ______. Resolução n. 1.949/2010. DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2010. 967 p. GRACIA, Diego. Bioética Clínica. Bogotá: El Búho, 1998. 150 p. ______. Ética de los confines de la vida. Bogotá: El Búho, .353 p. MENDOZA BUERGO, Blanca (Ed.). Autonomía personal y decisiones médicas: cuestiones éticas y jurídicas. Madrid: Civitas, 2010. 322 p. VARGA, Andrew C. Problemas de Bioética. São Leopoldo: Unisinos, 2005. 298 p. www.abto.org.br, acessado em 04/08/2015. www.adote.org.br, acessado em 04/08/2015.

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