Traço comum: [mini/micro] contos - Arroz virado, arroz queimado

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EDA NAGAYAMA

TRAÇO COMUM [mini/micro]contos

1a edição São Paulo Edna Furuiti 2013

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Copyright© Eda Nagayama São Paulo, 2013 Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Projeto gráfico e capa: Élcio Miazaki

Todas as narrativas desta obra tomam a realidade somente como inspiração e ponto de partida para a escritura de ficção. Todas as personagens e situações desta obra são ficcionais.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Nagayama, Eda Traço comum : (mini/micro) contos / Eda Nagayama. -- 1. ed. -- São Paulo : Ed. do Autor, 2013. ISBN 978-85-914950-0-9 1. Contos brasileiros I. Título. 13-01491

CDD-869.93

Índices para catálogo sistemático: 1. Contos : Literatura brasileira 869.93

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios. Os direitos morais do autor foram assegurados.

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DECRETO-LEI 2848/40. ART. 121. MATAR ALGUÉM. 9 16 19 24 29 37

Arroz virado, arroz queimado Primeira linha, última instância Bicho-homem Nico, Niquinho Maria e José Sujeito Filho do Homem

RITOS SUMÁRIOS 45 47 49 51 53 55 57 59 62 64 67

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121 de dois crac crac 1,5 litro Everybody lies Uns porquinhos Dois empréstimos Extra foncé Just in case, just one case Corpo de delito Elizabeth Loftus 12H2O + 6CO2 6O2 + 6H2O + C6H12O6

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Arroz virado, arroz queimado

O homem cozinha. Está acostumado. Não que goste mesmo. Faz porque não tem quem faça por ele. Não inventa muito para não sujar muita louça nem perder muito tempo. Hoje faz arroz virado na linguiça. Bom. Tem uma carne pra segurar a fome. Uma substância pro corpo. E é o que vai comer hoje. Fez bastante. Pra agora e pra janta. Pôs só cebola que não tinha alho. Precisava ter comprado. Esquecia sempre. Faz o arroz pra comer com farofa de milho. Da temperada, que ele prefere. A filha não gosta, acha que tem cheiro de comida rançosa. Deve ser por causa da gordura. Devem pôr toicinho pra dar gosto. Porque sem gosto, ninguém vai querer. Na sua época, era banha de porco mesmo. Lembra do cheiro. Forte, de encher o nariz. Ele ainda menino. Pequeno. É. Banha no sabão e no feijão. Tinha vizinho que matava porco no quintal de casa. O porco gritava. Depois de morto, punham de ponta-cabeça. Pro sangue escorrer todo. Eles, não. Compravam banha numas latas. Coisa que não existe mais. Branca, parecia cera. Faz tempo. Agora é tudo diferente. Tudo de plástico. A comida também. Artificial, cheia de química. Mas o gosto é sempre bom. Feita em casa, a farofa não ficava assim, boa. Não. Preferia então dessa pronta mesmo. A não ser que fosse a da velha. Mas essa não dá mais. A mulher foi fazer farofa pra outro. Paciência. Quer mais é que o desgraçado se entupa de farofa. Feito um porco. Guinchando e pendurado pelos pés. Essa outra farofa assim estava boa. Pra ele. E barata. No supermercado, o saquinho amarelo listradinho.

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O arroz ainda cozinha, imerso na panela de alumínio torta e encardida. Detesta lavar louça. Depois que a mulher foi embora, acabou ainda mais magro e curvado. Sem revolta, foi aprendendo a fazer os serviços da casa. Hoje faz tudo calado, sem se importar nem cuidar muito. Com as panelas, era diferente. Ficava com nojo do resto de comida molhado e grudado na esponja. Sem encontrar sentido em arear, ele só tira o grosso e já estava bom pra usar de novo. Não pensa. Ah, é protesto. Essa mulher de panelas brilhantes. Essa mulher que foi embora. Que deixou tudo pra trás. Ele, os filhos e essas panelas feito espelho. O brilho foi aos poucos. De tudo. Mais dele, marido. Sem esbravejar nem correr atrás. Em silêncio, deu razão. Como sempre. A mulher sempre sabia mais. O marido não valia mesmo grande coisa. Aposentou logo em seguida. Cansado da vida na delegacia, de limpar o sangue e as necessidades dos outros, do medo de ser tomado como refém em alguma rebelião. Os filhos acharam bom. O pai estava mesmo cansado. Agora podia dormir o quanto quisesse, assistir TV, jogar dominó com os amigos no boteco. Não foi bem o que fez. Arranjou uns bicos, trabalhinhos por aí como ajudante. Não tinha gosto em voltar pra casa. Vazia. Mas neste dia estava em casa. Não tinha aparecido nada pra fazer. Era janeiro, o movimento é sempre mais fraco. O arroz no fogo. Ele de olho pra não queimar. Aí, assim, de uma hora pra outra, aparece a mais velha. Chorando e gritando desesperada. Nunca viu a filha desse jeito. E suja de sangue. Ai. Sem se limpar, ela manda o pai correr. Ele obedece, sem tentar entender. Não era hora. Melhor obedecer. Da boca da filha, só choro e gritos. E o nome dos irmãos. Filhos dele. O de 14 e o de 19. Sente um aperto no estômago. Ainda vazio do arroz com farofa. Meu Deus. Faz tempo que o menino de 14 tinha deixado de ser obediente e direito. Não. De uns tempos pra cá, andava com uns tipos. O pai falou grosso. O menino nem aí. O pai então não quis mais saber. Mandou o menino mo-

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rar com a mais velha. Vagabundo pro seu lado, não. Já bastava a vida na delegacia. Tinha ensinado o certo. Se preferia o torto, isso era problema dele. A mulher que vigiasse o filho. Mas se foi embora. Foi é fazer mais filhos com outro. Traíra. O filho deve ter puxado a mãe, isso sim. Ele é que não ia vigiar. Se era isso que fazia todo dia. Vigiar e limpar. Ficar de olho. Ver e disfarçar. Avisar os colegas. Um que esconde uma faca. A mulher de outro que traz um ilícito. Ver e esquecer. A pegação entre os homens. Coisa de bicho. Feia, com muita judiação. Mais, se o recém-chegado fosse bem branquinho, cara de menino. O gosto aumentava. Não queria nem pensar. Não. Ali, lugar também de um filho seu. Não. Apesar de saber das correrias do menino. A mochila pra lá e pra cá. Um dinheiro que aparecia. Um tênis novo que brilha no escuro. O pai via. Falou grosso. Mais de uma vez. O filho não tinha como esquecer porque nem ouvia. E olha que o mais velho era polícia. E a outra enfermeira. Tanto gosto de ver os filhos de uniforme. Se bem que preso também usa uniforme. Camiseta branca e calça cáqui. Mas desse uniforme ninguém pode ter orgulho. O mais novo vai acabar assim. De uniforme de preso. É um pensamento que passa pela cabeça. Não agora enquanto correm. Pai e filha. A filha com os olhos borrados. Deve ter passado maquiagem. A rua comprida. Não chega nunca. Lá na frente, um amontoado de gente. A filha abre caminho. No grito. O homem então vê. O carro do filho de 19. Preto. Faz uns meses que apareceu com esse carro. O pai estranhou. O filho falou todo confiante. Juro zero e 60 prestações. Coisa de trabalhador com carteira assinada. O pai não acreditou, mas achou melhor ficar quieto. Quem sabe. O filho polícia que falasse alguma coisa. Tinha essa autoridade. Não deve ter falado é nada. Se falou, o irmão nem ouviu, claro. O carro ali. O pai olha. Faltou fôlego. Ele está ofegante. Mais confuso. O carro zero do filho de 19 anos. Enfiado no poste. Torto. A lataria. Furada. De balas. De tiros. Semiautomática, fuzil, 9mm, 22,

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38, ponto 40. Não sabe. A perícia ainda demora. Mas eles vão saber. Vão tirar fotos. Medir e riscar o chão. Desenhar setas. Projétil 1. Projétil 2. Pra ele é buraco mesmo. Ainda sem perícia na cena do crime. O pai só olha, parado. A filha chora. Ainda. Agarra o braço e arrasta o pai. O corpo tão pesado. Um saco de ossos e carne. Uns vizinhos gritam. Deixem passar o homem. Obedecem. Não é o mar de Moisés. Quem dera. Nenhum milagre. Só desgraça mesmo. O povo comenta baixinho. É o pai. É a irmã. Querem olhar. Todos. Mas ninguém quer estar no lugar deles. O homem vê. Agora um pouco mais magro e curvado. Também. Um pouco morto. Dentro do carro, os dois filhos. O de 14 e o de 19. Executados. No banco, pedaços do cérebro. Sangue. Muito. O filho de 19, de boca e olhos abertos. O mais novo, sem rosto. Um tiro no meio da cara. Outro entrou pela bochecha, saiu pelo maxilar. Estraçalhou. A ferragem e os corpos retorcidos. Aquilo não era humano. Uns bonecos. Um filme. Esta vida não podia ser a sua. Deus. Pouco. Pra lembrar do que veio em seguida. Confusão. Polícia e vizinhos. A mulher, mãe desses filhos todos. Lembra. É ela. Sem ser pródiga, volta. Essa que chega em estado de choque. Mas é só. Ela e todo o resto fogem da memória. Ele sem nem saber dizer. Se mais bonita ou mais gorda. Ela, de rosto também estraçalhado. Mesmo sem tiro. Após 15 anos. O pai revê. Ele, último dos homens do bando. Uns morreram, outros condenados. O mandante preso. Sabe disso tudo. Se teve justiça, não sabe dizer. Se haviam feito direito. Os homens de toga preta. Os policiais do distrito. Os investigadores do DHPP. Pena que os filhos não prestavam mesmo. Quem matou também não. Talvez ele próprio. Já não tinha mais

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certeza. Se criou esses filhos. Se não conseguiu endireitar. As ideias agora ficam confusas, todas misturadas. Cão correndo atrás do próprio rabo. O homem repete. Mais para si próprio. Na sua cabeça. Eles não prestavam. Ajudava pensar assim. Sem saber que maldades seus meninos ainda poderiam fazer. Não. Tudo podia ter sido diferente. Culpa da mulher. Se tivesse ficado. Se não tivesse abandonado a casa, a eles todos. Ele. Por causa de um outro. Ela não tinha esse direito. Mãe devia amar os filhos acima de todas as coisas. De qualquer homem. Mesmo que esse homem que aparecesse por aí fosse muito melhor que o seu marido. A cria não tinha culpa. A mãe escolheu mal na primeira vez. A culpa mais dela do que dele. Se virou as costas. A própria mãe. Sem amor da mãe, um filho pode perder o rumo. Porque amor de pai não basta, não é bom o bastante. Ele bem que tinha tentado. Um pobre coitado. Fraco das ideias. Nunca teve, assim, uma força. Não. Só não caiu no crime. E olha que podia. Por pouco. Podia também. Em vez de seis, 12 filhos. Como esse homem. Matador de dois dos seus. Julgamento depois de 15 anos. O pai olha para ele. Um sujeito normal. Sem cara de bandido. De filme, vilão de novela. Dos tipos na delegacia. Podia passar por ele na rua. Normal. Um porteiro de prédio. Operário de obra. Matador dos meus dois filhos. Não, não parece. Depois de 15 anos. Careca, engordou. Usa um óculos grande, dourado. Tipo exibido. Está ficando velho também. Sem pescoço, a cabeça redonda parece enfiada no meio dos ombros. Mas que tanto filho põe no mundo. Sem compensar a conta dos filhos dos outros. A primeira mulher, ele disse que morreu de câncer. Logo arranjou outra e fez tudo de novo. Agora diz que é de Deus. Que Deus deve ter umas ovelhas bichadas, isso, sim. E ainda diz que é inocente. O homem olha pra esse réu. Não pode acreditar. Olha pra filha que chora. O coração ainda cheio de raiva. Se for o melhor pra ela, quer cadeia pra esse desgraçado. Culpado. Um punhado grande de

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anos pra ver o que é bom. Para comerem da carne dele. Limpar privada. Fazer encomenda pra parentada trazer nos dias de visita. Ter medo de dormir e não acordar mais. Ter medo de acordar e ser ainda pior. Ter medo de ser traído por um e por todos. Desconfiando de tudo. O que vê, o que ouve. Achando que está louco. Ou que vai ficar. Ali pra sempre. Até morrer. Devagar, morte que não acaba nunca. Mas isso tudo não faz ninguém feliz. Os filhos sem poder voltar desse lugar pra onde foram. Que não é céu. Que não seja inferno. Seus meninos desencaminhados. Sobrou as filhas, o filho polícia. Agora, os netos. Pra ele mesmo, tem um quartinho na casa da filha enfermeira. Ela sai pra trabalhar. Ele fica. Leva o cachorro pra passear. Faz comida. A filha insiste. Só ração, pai. Mas ele quer fazer o gosto do bicho. Faz arroz. Virado na linguiça. O poodle adora. E late, andando só nas perninhas de trás. O homem faz o arroz sem deixar queimar. Sem ninguém precisar acudir. O cheiro de queimado, a porta escancarada. A vizinha ainda sem entender nem saber de nada. Do acerto de contas. De tráfico de drogas. Dos filhos do vizinho executados. Mesmo torta e encardida pra sempre, a panela salva. Dias depois. A vizinha toca seu braço. Abraça o homem. Entende a sua dor. Ele balança a cabeça. Sim, sim. É, Deus. Obrigado. Fecha a porta. Senta à mesa. No fogão, a panela salva. Sem fome nem forças. Levanta e pega a panela. Logo senta, o chão falta. Pega um garfo, cavouca o arroz. Solta os poucos grãos claros do fundo queimado. Amargo. Sabe, sem precisar experimentar. Cavouca por horas. Muitas. Todas que ainda restassem. Se pudesse. Cavouca respostas pra perguntas teimosas. E se. E se a mulher não tivesse ido embora. Quem sabe um presente, um perfume. Um lugar pra dançar, baile da terceira idade. Mas ainda não eram assim velhos. Podia

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ofender a mulher. Vai saber. Vai que ela não tivesse ido embora. Todos juntos no almoço de domingo. A mesa cheia. O filho polícia e a filha enfermeira. De folga, sem uniforme. E mesmo sem presente nem perfume nem baile. E se ela tivesse ido embora mesmo assim. Mas então, se em vez do arroz, ele tivesse feito macarrão. Com molho pronto de latinha, esse mesmo que estava ainda no armário. Podia ter chamado os filhos. Comeriam juntos. Naquele dia. Uma quarta-feira de janeiro. Os meninos iam sujar a mesa. De molho de tomate. E folgados, não lavariam os pratos. Dariam risada falando gírias que ele não sabe. O homem mais velho, mas contente com o apetite dos filhos. O de 19, um rapaz bonito. Mais do que ele na sua idade. Quem sabe não levariam o pai pra uma volta de carro. No carro zero deste seu filho de 19. Uma oferta imperdível. Destas de comercial de televisão no intervalo da novela. Em 60 prestações. É. Juro zero. Talvez. Foi o que pensou. Muitas vezes. Até acabar. De cavoucar e comer. Horas. O arroz queimado e amargo, grudado na panela. Engolido a seco, sem linguiça nem farofa.

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