TRAÇOS DA IDENTIDADE CULTURAL PORTUGUESA EM CANTOS CERIMONIAIS SEFARDITAS

June 16, 2017 | Autor: Alexandre Weffort | Categoria: Identity (Culture), Sefardic studies, Cante Alentejano
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TRAÇOS DA IDENTIDADE CULTURAL PORTUGUESA EM CANTOS CERIMONIAIS SEFARDITAS Alexandre Branco Weffort Investigação realizada junto da Cátedra de Estudos Sefarditas da Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, no âmbito do curso de mestrado em Ciência das Religiões da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.

Introdução Um cidadão português, jornalista de profissão, oriundo o Alentejo e residente na cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos da América, autor de um em língua portuguesa sobre o judaísmo (intitulado “A Rua da Judiaria”1), fez-se recentemente eco de uma petição pública onde se defende o propósito da “Restituição da Nacionalidade Portuguesa aos Judeus Sefarditas Portugueses”. No espaço do mesmo , o seu autor havia publicado anteriormente um texto acerca das semelhanças por ele detectadas entre o canto cerimonial judaico (com que contacta desde que o próprio assume judaísmo como religião) e os cantos populares da sua terra natal, o Alentejo, fornecendo, inclusivamente, alguns exemplos sonoros para suporte dessa impressão partilhada com os eventuais frequentadores do 2. Estes dois gestos servem como pretexto a esta investigação: perscrutar o reconhecimento de um traço identitário comum entre exemplos da música tradicional portuguesa e a música cerimonial Sefardita, tendo em presença a petição para a restituição da nacionalidade portuguesa aos descendentes dessa comunidade que, em meados do milénio passado, foi sistematicamente perseguida e obrigada à diáspora. 1.

A música no antigo ritual judaico As informações mais antigas sobre a música no ritual judaico encontram-se nos textos bíblicos, oferecendo um panorama alargado do papel da música tanto na vida religiosa como na da sociedade em geral. Encontram-se referências aos instrumentos em uso nos tempos antigos, tais como a lira, vários instrumentos de sopro e de percussão, bem como a rudimentar trompa em “corno de carneiro – o –

1

Acedido em http://ruadajudiaria.com/. Acedido em http://ruadajudiaria.com/?p=574. Os exemplos sonoros dos cantos Sefarditas referidos constam do suporte sonoro que acompanha este trabalho. A “moda” Alentejana indicada pelo autor do texto em apreço, intitula-se “Meu Querido Alentejo” e está reproduzida no CD anexo (exemplo nº 13). 2

único sobrevivente da panóplia de instrumentos ainda hoje utilizado no rito sinagogal” (Shiloah 2005, pp 360). “A actividade musical desapareceu definitivamente após a destruição do Segundo Templo de Jerusalém pelos Romanos no ano 70 AEC e a dispersão ulterior do povo de Israel pelos quatro cantos do Mundo” (Shiloah, 2005, pp 362). Com a assunção da sinagoga no centro de referência do culto, surgem novas concepções e normas para a regulação da liturgia e da música no culto, renunciando à arte instrumental e assumindo a oração vocal e o canto como elementos que sublinham a devoção e a participação da comunidade de fieis. Algumas formas praticadas no culto do Templo, como a recitação da e os cânticos responsoriais com a participação dos leigos que assistiam aos sacrifícios, poderão ter servido de fonte para a nova liturgia. A evolução da música ritual passa por uma transformação com a introdução da poesia cantada, o , que dá origem a um novo género poético-musical. O desenvolve-se em todos os centros judaicos atingindo, no início do segundo milénio da era comum, a sua mais elevada expressão na Espanha muçulmana, revelando grande influência da poesia árabe. Mas a prática musical é alvo de oposição, nomeadamente no âmbito do judaísmo rabínico. O papel da música no culto bem como em outras esferas da vida é questionado, debatendo-se posições radicalmente antagónicas, que vão da sua aprovação ao banimento total. Num processo (de oposição e contra-oposição) que se mantém vivo nos tempos actuais, um dos aspectos em que radicava a oposição à música no culto era o da introdução de canções exógenas na música utilizada na sinagoga pelos cantores (os ). 2.

Registos da música no cerimonial Sefardita Ao referirmo-nos à música no cerimonial Sefardita, temos em vista o que foi praticado pelas comunidades judaicas que partiram de Portugal após a sua expulsão em 1496, nomeadamente, para Marrocos, Grécia, Inglaterra e Holanda, dos quais alcançamos documentação seja em suporte escrito, seja por registos sonoros. No que refere à música propriamente dita, encontrámos elementos que nos permitem estabelecer comparações (tendo sempre em vista a questão inicial descrita na introdução) ao nível da percepção auditiva, considerando as semelhanças 2

encontradas entre espécimes da música tradicional portuguesa e alguns cantos registados junto de comunidades Sefarditas em Marrocos e Grécia. Por outro lado, pudemos ainda comparar esses registos, de âmbito etnográfico, como outros, nomeadamente, os realizados por cantores profissionais () e que se debruçam sobre o repertório de cantos cerimonias judaicos. Por outro lado, no que respeita às descrições sobre a música portuguesa e a sua influência no rito sinagogal, alcançamos registos sonoros de eventos surpreendidos na sua expressão natural (de carácter etnográfico), como registos que resultam de uma intenção já elaborada, no sentido de uma prática erudita. 2.1.

Registos etnográficos de comunidades judaicas de Marrocos e Grécia No caso dos registos realizados na Grécia3, deles seccionamos dois exemplos.

(exemplo nº 1), cantado em voz masculina, a solo, onde ressalta o timbre nasal característico de diversos cantos populares encontrados na orla do mediterrâneo (e também em Portugal). Algumas inflexões melódicas bem como o modo como é estabelecido o ritmo, sugerem também analogias com alguma música tradicional portuguesa. O registo (exemplo nº 2) é realizado por um coro, geralmente em uníssono, com momentos de harmonização à terceira superior (nas conclusões de frase). Dos registos oriundos de Marrocos seleccionamos (exemplo nº 3), que evidencia a forma responsorial, com o canto iniciado por um solista (ocasionalmente dobrado por outros cantores), ao qual se junta a intervenção (também ocasional) de uma voz superior que, em jeito de interjeição, desencadeia momentaneamente a resposta coral (com breves episódios de polifonia paralela). Outro registo de âmbito etnográfico, um (exemplo nº 4) registado em Tânger, cantado por uma voz masculina solista, apresenta no seu início momentos que sugerem o tipo de vocalização solista no canto tradicional alentejano (no seu carácter de improviso e nalgumas formulas de ornamentação em que os melismas são claramente diatónicos); há, todavia, momentos em que a melodia é desenhada recorrendo a alterações da escala diatónica, através do recurso a intervalos característicos dos árabes. 3

Editados em CD pela Folkways Records, com o título “Greek-Jewish Musica Tradition”, FE 4205, 1978, NY USA.

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2.2.

Registos de proveniência não determinada Através da internet4, obtivemos acesso a dois registo de um canto cerimonial

Sefardita () em duas formas de execução, uma extraída da tradição oral (em Marrocos) e outra elaborada sob a forma coral (exemplo nº 5). Este último, efectuado junto da Sinagoga Espanhola e Portuguesa de Nova Iorque, revela o processo de transformação operado no século XIX na Europa, onde as Sinagogas Sefarditas se esforçavam por acompanhar o modelo das suas congéneres de orientação Ashkenasi5. O registo da tradição oral daquele cântico interpretado segundo a tradição marroquina (exemplo nº 6), permite estabelecer uma comparação directa tanto com o registo anterior, como com o registo realizado em 1960 na Europa, na Sinagoga de Londres (exemplo nº 7), onde o mesmo , desta feita cantado em coro em uníssono, é apresentado com absoluta coincidência seja a nível rítmico, melódico ou vocal. A possibilidade de comparação destes registo afigura-se de particular relevância para este questionamento pois são demonstrativos da estabilidade dos elementos essências do canto sefardita e da sua conservação nos locais de culto que as comunidades sefarditas edificaram, nomeadamente, em cidades europeias como Amsterdão e Londres, e, cruzando o Oceano Atlântico, nos Estados Unidos da América. Na história Sinagoga Bevis Mark estabelece-se, em inícios do século XVIII, um elo directo entre os Sefarditas portugueses em Londres e o cripto-judaísmo no Baixo Alentejo. O médico Jacob Castro Sarmento (nascido em Bragança, com o nome Henrique), numa família de cristãos-novos. Residente em Mértola, no Alentejo, na sua infância, vê a sua família ser atingida pela Inquisição (seu pai foi preso em 1708, 4

No site da “Hebrew Union College — Jewish Institute of Religion”, em http://huc.edu/sephardic. Diz o autor do texto que acompanha os registos aqui referidos: The Western Sephardic singing of Nishmat Kol Chai is taken from the choir singing in the Spanish and Portuguese Synagogue in New York City. The choral singing is hymn-like in that the melody is harmonized; this is the only Sephardic tradition that has a choir. Since Spanish and Portuguese synagogues were located in Western European and American cities (like Vienna, Hamburg, London, Amsterdam, New York) they were in proximity in the late 19th century to Ashkenazi synagogues that used choirs. In an effort to remain upto-date, Spanish and Portuguese synagogues used choirs so their congregants would not seek out other synagogues for worship. In this rendition of ‘Nishmat Kol Chai’ the scale is Western, the rhythm is a steady and regular pulse and the melodic range is moderate (em Mark KLIGMAN. Introduction to Sephardic and Mizrachi Liturgical Music. S.d., acedido em http://huc.edu/sephardic/media/Intro.pdf). 5

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saindo em um Auto de Fé em 1710), Henrique de Castro Sarmento (vem a adoptar o nome Jacob apenas quando se fixa em Londres) estuda Artes na Universidade de Évora, indo depois para a Universidade de Coimbra, onde se forma em Medicina em 1717, actividade que pratica em Beja e em Lisboa. Sai de Lisboa em 17216, escapando à Inquisição, com destino a Londres. Com Jacob de Castro Sarmento fica demonstrada a sobrevivência de práticas cripto-judáicas no Baixo Alentejo ainda no primeiro quartel do século XVIII. A sua ida para Londres, passando a integrar a comunidade sefardita congregada na Sinagoga Bevis Mark, pelos laços identitários que revela, permite supor haver alguma relação entre os cânticos praticados naquela Sinagoga e as formas de canto praticadas pelos cristãos-novos em Portugal, nomeadamente no Alentejo. Outro aspecto relevante que ressalta da história da Sinagoga de Londres é revelado pelas crispações noticiadas entre a comunidade constituída pelos primeiros grupos de sefarditas que chegam a Londres vindos de Amsterdão (e que fundam a Sinagoga Bevis Mark), e os judeus sefarditas que aportam a Londres vindo de Marrocos. A informação provém do relato do Rabi Moses Caster, extraído de “History Ancient of the Spanish and Portuguese Jews”, onde descreve a vida da comunidade Sefardita de Londres organizada na Sinagoga Bevis Mark (na longa citação em rodapé são referidos os processos de adaptação da comunidade Sefardita, até então desenvolvendo-se em relativo isolamento, às transformações impostas pela história moderna, bem como a chegada de novos elementos provenientes de Marrocos)7.

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Cf. José Pedro Sousa DIAS. Jacob de Castro Sarmento e a sua fuga para Londres em 1721. Em Cadernos de Estudos Sefarditas, nº 5, 2005, pp. 53-61. 7 Moses CASTER, History Ancient of the Spanish and Portuguese Jews, Londres, 1901 (tem aposta na capa a indicação “Not Published. For Presentation only”): Diz o autor: “Two hundred years separate me from H. Nieto, who opened this Synagogue. He begins and I close”. E, descrevendo a vida dessa comunidade, refere as tensões a que aludimos: To the members of the Community, although living here in a state of isolation, there came new ideas, new notions which stirred the congregation to its depths. The revolution in France, the Napoleonic wars, the peace of Frankfort, the emancipation of the Jews on the Continent, the new spirit manifested therein, the desire to identify the political emancipation with religious changes, had created a state of unrest and dissatisfaction in the ranks of Jewry, and had brought about great troubles in the religious life. The cry for reform grew ever louder and louder and became more and more reckless when it passed from men of learning to men of ambition, who joined with it a false note of assimilation with their nonJewish neighbours. This cry was taken up, though faintly at the beginning, by that section of the Community which had lived so long in London, as to feel themselves entirely English, and who therefore could be in sympathy with that movement on the Continent and were stimulated and encouraged by it.

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No acervo desta sinagoga consta uma colecção de cânticos dos Sefarditas portugueses8, editado juntamente com uma introdução da autoria de D. A. De Sola, onde são identificadas 46 cânticos, segundo o autor, compostos em Espanha e introduzidos em vários países pelos judeus Sefarditas. Dos cantos noticiados como anteriores à influência ibérica, consta (exemplo 8)9. Este canto hebraico10 está também na base do cântico Sefardita (exemplo nº 9), oração que se encontra espalhada pelos quatro cantos da Diáspora Sefardita11.

Thus to the jealousy which was growing up between the two sections of the Community, the one which had lived longer in England, and which had come directly from Spain and Portugal, and those who, although of Spanish and Portuguese descent, were comparatively new comers, was now added a difference of religious conception the one was less strict and the other very strict in the obedience to the Law; the one demanded changes and the other resisted all manner of change whatsoever; the one took the law into their own hands and the other refused to allow strange hands to meddle with old and sacred traditions. A small incident gave occasion for the latent animosity to break out in an acute form. Some of the new members, especially those who had come from Gibraltar and North Africa, had brought with them customs and traditions, which were not well known or not practised here. Thus in accordance with their tradition a certain number of them, among whom were the Benoliels, Abecasis, Guedallas, Aloofs, Pintos, &c., gathered together in order to read on the eve of the feast of Shebuoth a certain portion of the Bible and of the Zohar, at the close of which, after they had formed a Minyan, they read prayers, at the dawn of the clay, without for a moment thinking that by so doing they were transgressing one of the most jealously guarded laws of the Community. 8 Emanuel AGUILAR. The Ancient Melodies of The Liturgy of The Spanish and Portuguese Jews. Londres, 1857, Wessel and CO. 9 Retirada da internet em http://www.archive.org/details/PsalmsOfDavidInHebrew. Disponibilizada sem informação sobre data, condições de registo ou identificação dos informantes. 10 Cuja letra reporta à travessia do Mar Vermelho, conforme o livro do Êxodo. 11

Cf. Edwin SEROUSSI. Livorno: A Crossroad in the History of Sephardic Religious Music, em “The Mediterranean and the Jews: Society, Culture and Economy in Early Modern Times", editado por Elliott HOROWITZ and Moises ORFALI, 2002, Ramat-Gan: Bar Ilan University Press; Jonathan COHEN. Bendigamos (Draft 0.5 Dec. 2004), documento on-line acedido em http://sites.google.com /site/londonsephardimusic/home, que informa: Claims that Bendigamos is an old Marrano song may be wishful thinking, as the song is not in Ladino, but (I am reliably informed) comparatively modern Spanish. However, according to Rev. Cardozo, Hazan of Shearith Israel, NYC1: "Bendigamos was first discovered in Bordeaux, France where a Marrano community [had] existed in the 17th century". It was imported from there to the USA via Curacao and Jamaica. I know the hymn from the S&P Community of London in the 1970s, to where it had presumably been imported from the US, as I am told that it was unknown in London in the 50s. E, por último, Cássia SCHEINBEIN, Línguas em Extinsão: O hakitia em Belém do Pará, 2006, Belo Horizonte, onde o conhecimento dessa oração é documentado no Brasil.

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Parte do cântico Az Yashir Moshe (exemplo retirado da colectânea editada por Emanuel AGUILAR, The Ancient Melodies of The Liturgy of The Spanish and Portuguese Jews, editada em Londres, em 1857). Nas notas que servem de introdução a esta colectânea de antigas melodias sefarditas, este cântico é expressamente indicado como sendo de proveniência anterior ao da constituição da comunidade sefardita em Portugal e Espanha, não, naturalmente, na sua forma coral, mas apenas da melodia patente na voz superior.

Outro cântico, que utiliza em traços gerais a mesma configuração melódica de , intitula-se , e trata-se de um (oração judaica). Neste caso, através dos exemplos sonoros que alcançamos, são perceptíveis algumas formas melódicas e cadenciais semelhantes às que ocorrem no canto alentejano, que podemos observar. Os exemplos cobrem o desempenho solista (exemplo nº 10), a coro em uníssono (exemplo nº 11)12, desta feita num registo coral moderno. 2.3.

Registo da Sinagoga de Londres Os registos da Sinagoga de Londres apresentam também carácter etnográfico13,

no sentido em que registam o canto realizado pela congregação, onde ressalta a semelhança do timbre vocal com os registos oriundos de Marrocos (e mesmo da Grécia). Dos registos da Sinagoga de Londres já referimos , com que realizámos a comparação com o registo marroquino do mesmo tema, e (exemplo nº 12), tema proposto no a que aludimos no início deste trabalho. Como sugere o autor da proposta que nos serviu de pretexto a esta investigação, o ambiente psicológico do canto cerimonial sefardita apresenta uma 12

Extraído do CD “Jewish Voices In The New World”, 2001, NAXOS, NY. Embora não no sentido estrito, pois a atmosfera do canto congregacional foi reconstruída, como informa o editor do registo: “Normally, the choir sing in toup-part, Victorian harmony, but the recordist persuaded the Elders of the Synagogue to allow him in this case to have the tunes as they would originally have been heard” (Texto do libreto que acompanha o CD “Music of the Spanish and Portuguese Synagogue”, Folkways Records FR 896, 1960, NY USA). 13

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dimensão de feição ritual que se pode apreciar de forma análoga no canto alentejano (exemplo nº 13), além do modo responsorial e das características musicais semelhantes. 2.4.

Interpretações mais recentes de cânticos Sefarditas A pesquisa em torno da questão colocada no início, da possível relação entre os

cânticos cerimoniais Sefarditas e formas de canto conservadas na tradição portuguesa (nomeadamente, do Alentejo), conduziu ao contacto com os produtos discográficos de cantores profissionais especializados (). Do CD intitulado Hazzanut, interpretado por Mordechai Bouzaldo e Yossef Shriki, escolhemos duas faixas respeitantes a exemplos de cantos referenciados à tradição marroquina: (exemplo nº 14) e (exemplo nº 15). É notória, na comparação entre os dois exemplos, a diferença entre uma expressão mais próxima à música envolvente à comunidade judaica residente em Marrocos (vulgarmente designada por “música árabe”) patente no primeiro exemplo e o traço mais próximo às tradições ibéricas observável no segundo exemplo, resultante da proveniência dessa comunidade. Dois aspectos devem ser especialmente retidos na observação deste exemplo: a sua regularidade rítmica e a escala utilizada. 3.

Os Sefarditas portugueses e a música sinagogal A presença de traços da música portuguesa na música sinagogal (na tradição Sefardita) é reconhecia desde finais do século XIX. Em Paris, no ano de 1874, o compositor de origem bávara Samuel Naumbourg, refere, na introdução à colecção de cantos religiosos e populares hebraicos ‘Aguddat Shirim’: Jews of the Oriental rite (Sephardim and Portuguese) have (…) a cantillation different which is very different (…) This way of chanting is slower and more rhythmic than the Ashkenazic. (…) In contact for fifteen centuries with the Moors and Christians, the Jews necessarily had to accept their arts, models of which were constantly before their eyes. This influence (...) must certainly have extended to religious poetry. This is observed in the songs of the Sephardic Jews, which often have Arabic melodies. Later, thousand of Spanish Jews had to adopt Christianity (at least in appearance) in order to escape the tortures of the Inquisition. These converts, know as Marranos, undoubtedly brought melodies and songs to the secret gatherings they held to celebrate te Jewish religion. That is why the music of the Sephardic Jews often recalls plainsong

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with its somber gravity. Even in the ancient rituals of the Portuguese Jews, there are chants and psamls which, following accompanying instructions, were to be sung to 14 popular and Spanish melodies.

O mesmo é colocado modernamente pelo musicólogo Mark Kligman15, ao analisar os cantos rituais das comunidades Sefardita e ‘Mizrachi’16: Music from Jewish communities in this region of the world mainly exists in the form of the oral tradition, and mainly the Western Sephardic traditions appear in written versions. There are significant limitations in determining the exact history of the music of Sephardic and Mizrachi Communities. The 10th-12th Centuries are referred to as the ‘Golden Age of Spain’. Under Muslim rule, the Jews interacted with Christians and Muslims in free exchange, often referred to as convivencia. With Muslim culture developing new forms of philosophy, logic, organization, grammar, and poetry Jewish cultured flourished with significant achievements in exegesis (Nachmonidies for example), philosophical works (such as those by Maimonidies) and poetry (Ibn Ezra, Halevi, Ibn Gabriol). These accomplishments forever influenced Jewry.17

Os dois autores referidos afiguram-se concordantes, nas suas afirmações, com os aspectos essenciais das conclusões que extraímos da audição comparada dos exemplos sonoros referidos neste ensaio, nomeadamente: -

haver traços musicais comuns em registos sonoros do canto cerimonial Sefardita, observáveis através da análise auditiva;

-

poderem, esses traços, ser assumidos como demonstrativos da relação de identidade cultural transportada pelos Sefarditas portugueses para os diversos locais da Diáspora.

Por outro lado, os elementos de ordem musical considerados, apontam para a possibilidade de alguns desses traços se terem conservado também em práticas da tradição popular portuguesa.

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Apud Harvey SPITZER. 1988-89. "Samuel Naumbourg's Introduction to his Agudath Schirim (Paris, 1874)." Journal of Jewish Music & Liturgy, 11: 17-34. 15 A quem devemos a disponibilização na internet dos exemplos nº 5 e 6. 16 O termo ‘Mizrachi’ é utilizado para designar os descendentes das comunidades judaicas do norte de África e do Médio Oriente. 17 Mark KLIGMAN. Introduction to Sephardic and Mizrachi Liturgical Music. S.d., Em http://huc.edu/sephardic/media/Intro.pdf. Do exposto, relativamente à permeabilidade do canto Sefardita à influência dos seus vizinhos árabes e cristãos, podemos ainda extrair outra ilação: terem os judeus Sefarditas conservado traços das tradições musicais árabes no decurso dos cerca de dois séculos e meio que medeiam entre o final da dominação árabe em território português e a expulsão dos judeus.

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Conclusão A comparação entre dados de universos culturais diversos coloca questões metodológicas específicas. Joseph Jordani analisa o diálogo entre estudos de âmbito regional e estudos comparativos. Enquanto o primeiro se baseia num paradigma de aprofundamento “vertical” do conhecimento, no seu todo, do sistema de interacções sociais e musicais, o segundo caracteriza-se por um método de cruzamento “horizontal”, onde são estudadas diversas regiões, embora sem o aprofundamento que se alcança nos estudos regionais (Jordani 2006, pp 178). No caso, procuramos surpreender correlações entre universos que têm em comum a movimentação das comunidades que lhes dão suporte. O deslocamento dos judeus Sefarditas de Portugal para o norte de África ou para outras paragens da Europa e os vestígios deixados permitem, interpretando o significado dos elementos constantes, estabelecer uma linha de continuidade e, em função dela, de identidade. Todavia, a correlação encontrada entre alguns exemplos do canto cerimonial Sefardita e da música tradicional portuguesa, não permite ainda concluir sobre a hipótese inicialmente aventada. Diz o autor do citado: Sempre ouvi dizer que as raízes dos cantares tradicionais alentejanos eram árabes, e que remontavam aos séculos de domínio muçulmano do Sul de Portugal mas, confesso, e apesar de conhecer bastante música árabe, nunca encontrara entre elas qualquer analogia. Inclusive, algumas tentativas de aproximação entre as duas empreendidas por músicos contemporâneos, apesar de agradáveis, tinham sempre um sabor a casamento forçado. Curiosamente, foi nas sinagogas sefarditas que encontrei melodias que me faziam de imediato lembrar as “modas” alentejanas das terras dos meus pais. As semelhanças encontram-se no todo, mas elas notam-se principalmente em pontos de contacto muito específico – o maior dos quais a sua forma “responsiva”, pois tanto na oração judaica como no cantar tradicional alentejano há um “líder” e um coro que responde. Mas é a forma como essa relação, esse diálogo melódico, se desenrola que parece deixar pouca margem para dúvidas acerca da evidente afinidade.18

Os dados que apuramos (tanto neste trabalho como em pesquisas mais amplas que desenvolvemos em torno da questão19) corroboram algumas das propostas patentes no texto citado, nomeadamente, da importância da forma responsorial do canto colectivo do Alentejo, forma essa muitas vezes presente no canto cerimonial

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Nuno Guerreiro JOSUÉ (2007). Raiz Judaica do Cantar Alentejano... Em http://ruadajudiaria.com/. Realizadas no âmbito do mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. 19

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judaico. Por outro lado, algumas melodias estudadas revelam fortes similitudes entre as ‘modas’ alentejanas e os cânticos Sefarditas. Mas, da mesma forma que o canto Sefardita não tem um único matiz (há também elementos musicais de origem árabe que se conservam na música Sefardita), o cantar alentejano também observa diversidades que devem ser consideradas antes de se poder tirar uma ilação mais conclusiva20. Uma correlação observada não estabelece necessariamente uma relação causal. Afigura-se neste momento mais pertinente outra explicação: nos caminhos trilhados na Diáspora, os judeus transportaram traços da música existente em Portugal aquando da sua partida; os dados apurados apontam para a existência de uma raiz comum ao canto alentejano hodierno e ao canto cerimonial sefardita.

Lisboa, 30 de Setembro de 2010

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Pode haver ainda espaço para o reconhecimento de vestígios da presença cultural “árabe” no canto alentejano, nomeadamente, ao nível da escala ou gama (com a eventual manifestação de uma afinação específica derivada das escalas ‘maquamat’).

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Conteúdo do CD anexo: Exemplo nº 1 Exemplo nº 2 Exemplo nº 3 Exemplo nº 4 Exemplo nº 5 Exemplo nº 6 Exemplo nº 7 Exemplo nº 8 Exemplo nº 9 Exemplo nº 10 Exemplo nº 11 Exemplo nº 12 Exemplo nº 13 Exemplo nº 14 Exemplo nº 15

‘Yom Shabbaton’ ‘Adonay Malakh’ ‘Treq In Hijaz El Kabir’ ‘Piyyut’ ‘Nishmat’ (versão coral) ‘Nishmat kol hai’ (Sinagoga de Londres) ‘Nishmat’ (versão de Marrocos) ‘Az Yashir Moshe’ ‘Bendigamos al Altíssimo’ ‘Baruch Aba’ (solo) ‘Barukh Habba’ (coro) ‘Quedusha’ ‘Meu querido Alentejo’ (‘moda’ alentejana) ‘Nichmat Kol Hai Tibarekh, Chimka ‘Et Cha Ari Ratson Li-hipattiah

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