Traços: o que é ser pessoa negra (no Brasil)

May 26, 2017 | Autor: Robson Lousa | Categoria: Identity (Culture), Identidade Negra, Pessoas negras
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Traços: o que é ser pessoa negra (no Brasil)

Róbson Lousa dos Santos Por diversas vezes me vi questionando o que é ser negar/negro (no Brasil) e também me vi questionado por outras pessoas sobre esta mesma dúvida. Como Milton Santos (2000) constata em suas muitas viagens a diferentes países como pesquisador e intelectual, “as realidades [de ser negro] não são as mesmas” em diferentes países. Ser negro no Brasil se difere de muitos outros lugares devido a [...] o fato de que o trabalho do negro tenha sido, desde os inícios da história econômica, essencial à manutenção do bem-estar das classes dominantes deulhe um papel central na gestação e perpetuação de uma ética conservadora e desigualitária.

Os

interesses

cristalizados

produziram

convicções

escravocratas arraigadas e mantêm estereótipos que ultrapassam os limites do simbólico e têm incidência sobre os demais aspectos das relações sociais. (SANTOS, 2000).

Contudo, para se falar sobre o que é ser negro (no Brasil) é interessante ressaltar dois vieses distintos, um viés fenotípico e outro mais social/político. Como ressalta Munanga (2004, p. 52), a questão do ser negro no Brasil se torna complexa e “trata-se de uma decisão política” devido a sua formação histórica fazer com que a maioria dos brasileiros tragam “marcadores genéticos africanos” (MUNANGA, 2004, p. 52). Sendo assim, embora aqui seja tratado (brevemente), o viés fenotípico é bastante simplório e insuficiente quando se trata de definir o negro no Brasil. Pelo viés fenotípico, o negro é aquele definido pela sua cor, pelo seu cabelo (crespo), odores, pelos “lábios grossos, nariz esborrachado, seios enormes e pés chatos” (CUNHA, 1988, p. 124, apud BENTO, 2002, p. 34). Ou seja, “o homem negro [assim como a mulher negra] é representado como um corpo negro, o seu próprio corpo […] como se fosse separado da autoconsciência do negro. O corpo negro é outro corpo” (PINHO, 2004, p. 67). Tais características fenotípicas são insuficientes, já que uma negra ou um negro ao reduzir algumas destas características, seja por alisamento do cabelo, seja cirurgias plásticas, seja por outros procedimentos estéticos, não deixam de ser (ou são menos) negra ou negro, tendo em vista que estas pessoas carregam em seu DNA os traços de sua negritude e sua herança africana.

Por outro viés, ser negro (no Brasil) é receber um salário menor realizando as mesmas atividades (que os brancos) como pode ser observado em estatísticas consideradas por Gonzalez (1984) e em pesquisas mais recentes (quando se traça um recorte de gênero, vê-se que situação semelhante também acarreta às mulheres como observam Gonzalez (1984) e Bento (2002)). É também possível observar que “os negros já nascem com menos chances de chegarem ao segundo grau e praticamente nenhuma de atingirem a universidade” (GONZALEZ, 1984, p. 4). Tais fatos provocam determinados problemas sociais, tal como o trabalho infantil, fazendo com que as crianças (principalmente) negras mal consigam cursar o primeiro grau e tal fato não se trata, como pensam e dizem alguns, de uma ‘incapacidade congênita da raça’ para as atividades intelectuais, mas do fato de que, desde muito cedo, [as crianças] têm que ‘ir à luta’ para ajudar na sobrevivência da própria família. (GONZALEZ, 1984, p. 6)1

Sendo assim, “no registro que o Brasil tem de si mesmo, o negro tende à condição de invisibilidade” (HASENBALG, 1982 apud GONZALEZ, 1984, p. 6), fazendo com que ser negro (no Brasil) seja ser fadado à invisibilidade. Com a invisibilidade imposta às pessoas negras e devido ao preconceito que este grupo étnico sofre, é comum observar o processo de branqueamento das pessoas negras. Este branqueamento se dá principalmente pela suavização/redução das características fenotípicas vistas como próprias do povo negro. Seja alisando o cabelo (HOOKS, 2005), cortando-o, seja através de excesso de maquiagem, plásticas e/ou outros procedimentos estéticos, pois “branquear é uma aspiração universal. Negros, mulatos escuro e mulatos claros, todos querem branquear” (IANNI, 1972, apud BENTO, 2002, p. 47). Ser pessoa negra (no Brasil) é estar fadada a cair no ostracismo quando se sobressai e supera a invisibilidade, pois “um preto sabedor de si incomoda muita gente. Se, além disso, for sofisticado, incomodará muito mais” (Cidinha da Silva, 2011, p. 29). A escritora faz tal afirmação em sua crônica Wilson Simonal de Castro, sobre o cantor que superou a invisibilidade lhe imposta por/a sua etnia. Ela ainda afirma que “um preto que diz ao mundo – eu sou e me basto – é um preto condenado à morte” (2011, p. 29). Ser negro é estar sempre consciente de que se é negro, para que não se caia no ostracismo

1

Vale ressaltar que se passaram 32 anos(!) desde a publicação de Gonzalez, em 1984, contudo estudos mais recentes podem comprovar as conclusões tidas pela intelectual, obviamente com algumas ressalvas (BENTO, 2002; HOOKS, 2015). Por exemplo, as políticas de ações afirmativas que se tornaram mais contundentes e facilitaram o acesso de pessoas negras à universidade, modificando a realidade de tais afirmações, porém não as revertendo totalmente.

como ocorreu com Simonal, que “esqueceu-se de que era um preto reinando entre brancos” (p. 30), pois, “se o negro, nas relações cotidianas, aparece como igual, a interpretação é de exibicionismo, de querer se mostrar” (BENTO, 2002, p. 40), “quanto mais ascendente, mais o negro incomoda” (p. 49). Ser negra/negro (no Brasil) é ser mais forte que a/o branca/branco. Como Cidinha da Silva (2011) narra em sua crônica A dúvida, que conta a história de uma prostituta, Paula, que é obrigada, juntamente com outra amiga preta, a fazer 15 programas diários enquanto as companheiras brancas são obrigadas a fazer 10. Quando questionado por Paula o motivo da diferença, o cafetão responde “que é assim porque preta aguenta mais” (p. 53). Paula, em uma conversa com uma assistente social, questiona: “Eu não aguento, não senhora. Nem a minha colega […]. Eu vim saber por nós duas, se eu e ela estamos doentes, porque preguiçosa a gente não é. Mulher preta precisa aguentar mais, mesmo?” (p. 53). Desta forma, “ser negro [negra] é ser o corpo negro, que emergiu simbolicamente na história como corpo para o outro, o branco dominante. Assim, o corpo negro masculino [e feminino] é fundamentalmente corpo-para-o-trabalho e corpo sexuado” (PINHO, 2004, p. 67). A mulher negra com seu corpo negro com a cor do pecado, suas curvas, sua força; o homem negro com seu corpo negro, com seu falo gigante e sua força animal. Tendo em vista que a individualidade é uma conquista demorada e sofrida, formada de heranças e aquisições culturais, de atitudes aprendidas e inventadas e de formas de agir e de reagir, uma construção que, ao mesmo tempo, é social, emocional e intelectual, mas constitui um patrimônio privado, cujo valor intrínseco não muda a avaliação extrínseca, nem a valoração objetiva da pessoa, diante de outro olhar. (SANTOS, 2000),

tal busca da individualidade da pessoa negra que é vista como corpo negro é ser/tornarse mais, pois, “sem dúvida, o homem [e a mulher] é o seu corpo, a sua consciência, a sua socialidade, o que inclui sua cidadania” (SANTOS, 2000), para que “ser negro no Brasil, seja, também, ser plenamente brasileiro no Brasil” (SANTOS, 2000).

Referências BENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e branquitude no Brasil. In: CARONE, Iray e BENTO, Maria Aparecida Silva (Org.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 2558.

CIDINHA DA SILVA. Oh, Margem! Reiventa os rios! São Paulo: Selo Povo, 2011. GONZALEZ, Lélia. Mulher negra. 1984. p. 01-13. HOOKS, Bell. Alisando nosso cabelo. 2005 ______. Escolarizando homens negros. Estudos Feministas. v. 23, n. 3. 2015. p. 677689. MUNANGA, Kabengele. A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil. Estudos Avançados. v. 18, n. 50. 2004. p. 51-56. PINHO, Osmundo. Qual é a identidade do homem negro? Democracia Viva. n. 22. 2004. p. 64-69. SANTOS, Milton. Ser negro no Brasil hoje. Folha de São Paulo. 2000.

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