Travestis Brasileiras em Portugal: Percursos, Identidades e Ambiguidades

May 27, 2017 | Autor: Francisco Luis Luis | Categoria: Gender and Sexuality, Migration Studies, Power relations
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Travestis Brasileiras em Portugal: Percursos, Identidades e Ambiguidades

Francisco José Silva do Amaral Luís

Tese de Doutoramento em Antropologia Cultural e Social

Versão corrigida e melhorada após a sua defesa pública

Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Antropologia Social e Cultural, realizada sob a orientação científica da Professora Doutora Susana Trovão, do Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Pesquisa financiada pela FCT

Maio 2015

Agradeço à minha orientadora Dr.ª Susana Salvaterra Trovão o apoio prestado e a abertura de horizontes a diferentes perspectivas e enquadramentos, que tentei aplicar no desenrolar desta pesquisa. Agradeço aos meus professores da licenciatura em antropologia o modo como cada um à sua maneira me ensinou, que mais do que as respostas, o importante é a capacidade para fazer perguntas, pois só obteremos respostas às questões que temos a visão necessária para colocar. A todos os que de alguma forma deram o seu contributo pessoal para que me empenhasse num novo projecto. À minha esposa Vanúsia Luís e ao nosso falecido amigo Bonga, que nos abandonou em 2011 e que sempre me fez acreditar que era possível. Agradeço também aos que não estando presentes, acredito que estejam. Agradeço aos meus pais Maria de Fátima do Amaral Luís e Francisco Maria Luís a paciência. À comunidade travesti na pessoa de alguns dos seus elementos, agradeço a disponibilidade revelada, sem a qual o presente trabalho não teria sido possível. Foram a fonte, a razão última e primeira deste empreendimento. Sem elas, não haveria tema. Ao Dr.º Miguel Vale de Almeida a celeridade com que me forneceu contactos de académicos com trabalhos realizados nesta área em Portugal. À Dr.ª Sandra Saleiro a disponibilidade e voluntarismo que demonstrou ao enviar-me todos os seus trabalhos na área da transexualidade. À FCT por ter financiado este projecto. Gostaria de dedicar este trabalho à Dona Teresinha da Silva que me mostrou o quanto o povo brasileiro é afável e transparente, ao receber-me como se me conhecesse desde sempre em sua casa na cidade de Feira de Santana, Salvador da Bahía.

I

II

Travestis Brasileiras em Portugal: Percursos, Identidades e Ambiguidades no Âmbito da Prostituição. Brazilian transvestites in Portugal: Itineraries, Ambiguities and Identities in the Framework of Prostitution. Palavras-chave - Travesti, Prostituição, Antropologia Urbana, Brasil/Portugal/E.U., Globalização, Identidades Queer, Fluxos e Transnacionalismos. Keywords – Travesti, Prostitution, Urban Anthropology, Brazil/Portugal/E.U., Globalization, Queer Identities, Flows and transnationalisms. RESUMO: Os séculos XX e XXI corresponderam ao agudizar de processos globalizantes potenciados pelas novas tecnologias, quer no âmbito comunicacional, quer industrial, sublinhando dinâmicas de desruralização e de construção de tecidos urbanos densos onde o anonimato se tornou possível na vivência de experiências, outrora reconduzidas ao silêncio do sujeito

socialmente

isolado.

A

diferença,

enquanto

experiência

vivida,

tornou-se

comunitariamente possível, surgindo grupos que delimitam geograficamente determinadas áreas urbanas a que correspondem afinidades eróticas ou de práticas sexuais, inicialmente de gays e lésbicas. Quebra-se na prática a uni-direccionalidade entre sexo e género, entre sexo e sexualidade, questionando-se esquemas de relações assimétricas e modelos de pensamento enraizados (heterossexualidade, patriarcado, machismo, etc.). Rubin (1975 in Lewin 2006, in Vance, 1984) propõe a existência de dois sistemas diferenciados de sexo e género que tornam plausível, sob o ponto de vista analítico, a não correspondência entre sexo, género e sexualidade. O paradigma máximo desta autonomia sistémica alcança-se na construção de uma identidade travesti. Esta identidade mutante, mutável e instável parece acompanhar um mundo de fluxos intensos e interdependências múltiplas. É na sociedade global que as travestis encontram espaço para a vivência comunitária da sua experiência, constituindo-se como um grupo com práticas transnacionais, marcado pela mobilidade de género e geográfica, primeiramente dentro das fronteiras brasileiras e depois para a Europa. Cidade, prostituição e migração surgem como factores chave da disseminação geográfica e identitária desta comunidade. Este projecto tomado sob uma perspectiva global mantêm ou reinventa relações com a estrutura, que aparentemente as apaga enquanto actores sociais e da qual, aparentemente, se auto-excluem.

ABSTRACT: The XX and XXI centuries corresponded to the stretching of globalizing phenomena enhanced by new technologies, either within communication, whether industrial, stressing processes of deruralization and consequent construction of dense urban networks where III

anonymity was possible to achieve concerning to living different social and erotic experiences, once closed in a silent self, socially isolated by his own difference. The difference, as lived and living experience, was made possible communally, emerging groups that geographically delimited certain urban areas, to which corresponded erotic affinities or sexual practices, initially gays and lesbians. Break up the practical uni-directionality between sex and gender, between sex and sexuality, questioning schemes of asymmetric and structural relations and models of thought rooted (heterosexuality, patriarchy, sexism, etc.). Rubin (1975 in Lewin 2006, in Vance, 1984) admit the existence of two different systems of sex and gender, under an analytical point of view, that made possible mismatch between sex, gender and sexuality. The paradigm of this maximum systemic autonomy is achieved in building an identity transvestite. This mutant identity, changing and unstable seems to accompany a world of intense flows and multiple interdependencies. It is in the global society that transvestites find space and viability for the communal living experience, constituting themselves as transnational group, marked by gender and geographical mobility, first within Brazilian borders and, than at another stage of the project, to Europe. City, prostitution and migration emerge as key factors of geographical spread and identity construction of this community. This project taken at a global point of view maintain or reinvent relations with structure, which seems to erasure them and from which, apparently travestis are self-excluded.

IV

V

Índice Agradecimentos

I

Resumo

III

Índice de imagens

XII

Introdução

1

PARTE I – CONCEITOS E DIMENSÕES ANALÍTICAS Cap. 1 – SOBRE A NOÇÃO DE TRAVESTI E OUTRAS AFINS

5

1.1. Trans/transexuais/transgéneros

7

1.2. Migrações de género. Viagens

11

1.3. Travestis e a transgressão da dicotomia moralizante: “Silicone, a dor da beleza”

12

1.4. Crossdressers e drag-queens

15

1.5. Transexuais

18

1.6. Hermafroditas

21

1.7. O Papel da linguagem e da gíria na incorporação de modelos e a estruturação

24

da experiência

Cap. 2 - SISTEMAS SEXO E GÉNERO

28

2.1. Critério Genital/ Gender assignment

28

2.2. Perturbação de género e orientações sexuais minoritárias. Estudos queer

33

2.3. A Utopia de uma sociedade sem géneros e sua impossibilidade prática

36

2.4. Desvio e anomia. Reforço da normalidade estrutural

39

VI

2.5. A lei como natureza. A ficção estrutural biologizante

40

2.6. Sexo e género; produtos da interacção

42

Cap. 3 – PERFORMANCE, PERFORMATIVIDADE E ESTRUTURA

48

3.1. Poder e hierarquia

48

3.2. Performatividade e linguística

50

3.3. Performatividade e emergência do sujeito

55

3.4. Discurso e identidade

59

3.5. Performatividade/discurso e o sujeito político

62

Cap. 4 - ESTRUTURA/AGÊNCIA

64

4.1. Pós-Estruturalismo. O desvio e a fronteira do poder

64

4.2. Teoria da acção. Agência, estrutura e processos

70

Habitus e capitais sociais. Campos e condicionamentos 4.3. Poder diferencial e dualidade da estrutura

72

4.4. Interesse e constrangimento. Capitais sociais e estratificação

73

4.5. Estrutura e acção: balanceamentos teóricos, numa teoria das práticas

77

4.6. Giddens e Bourdieu. Teoria da acção: convergências e divergências

81

PARTE II – UMA ETNOGRAFIA SOBRE MOBILIDADES TRAVESTIS Cap. 5 - PRIVAR E APRENDER A COMUNICAR: ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS VII

85

5.1. Observação participante e etnografia do quotidiano

85

5.2. Dados recolhidos da internet

86

5.3. Travestis – rede social e grupo

87

5.4. Observação não participante

88

5.5. Clientes

90

5.6. Desconstruindo a desconfiança

91

5.7. Negociando a presença

92

5.8. As interlocutoras

98

Cap. 6- DA CASA À CIDADE GRANDE

104

6.1. A saída de Casa

104

6.2. A chefe de rua

111

6.3. Prostituição. Rua e a mãe

113

6.4. Mitos, Histórias e realidades

120

6.5. Silicone a dor da beleza e a reinvenção multi-estruturada de um sujeito

126

dinamicamente posicionado. “Travesti sem silicone, não é travesti!” (Camila Garcês) 6.5.1. Silicone e a materialização do corpo

132

6.5.2. Silicone, corpo, prostituição e sexualidades

135

“(…) se eu fosse passiva era x, se eu fosse também activa era x mais x, então era muito mais dinheiro.” (Adriana) 6.6. Usos biográficos e contextuais do género masculino e feminino. O sujeito em devir VIII

141

6.7. Gírias e contextos; a produção de sujeitos

143

6.8. Disputas e reinvenção de afectividades

144

6.8.1. Marido. Estratégias de legitimação. Pragmatismo, bens materiais e grupo

149

6.8.2. Prostituição e afectos restruturados

151

6.9. Discriminação, violência e o projecto migratório

155

Cap. 7 - DIÁLOGOS TRANSNACIONAIS E REDES SOCIAIS

159

7.1. “Vida de trans... é sempre assim...estilo cigana aff!” (Thalter)

159

A caminho da Europa (por Portugal) 7.1.2. Portugal e Brasil. Manejos de uma proximidade distante

160

7.1.3. Redes sociais travestis

162

7.1.4. Empréstimos/Ajudas

169

7.2. Portugal: leis migratórias e a legislação para minorias sexuais

172

7.2.2. Portugal e as redes de auxílio à imigração ilegal

176

“O problema é você entrar na comunidade europeia, depois que você está dentro. fica bem mais fácil tudo!” (Larissa) 7.2.3. Vantagens e oportunidades contextuais

179

7.2.4. Permuta de habitações

183

7.3. A Prostituição em Portugal e noutros contextos de europeus

185

7.3.1. Densificação e imbricamento de redes.

190

Mobilização de recursos e exibição de capitais 7.3.2. “O trabalho tá mau” (Thalter).

205

Entre Lisboa, Porto, Braga, Aveiro, Leiria e outros destinos IX

7.4. Apresentações transnacionais e transnacionalismos

211

“(…) feminino, Belém, Barcelona, Milão, Porto e Lisboa, me liga!” (Thalter) 7.4.1. A Internet e a vida de todos os dias: proximidades, distantes

215

7.4.2. Ganhos materiais e identitários no contexto de origem

218

7.4.3. As remessas e a sua função social, familiar e económica

219

7.5. Bens materiais, grupo e competição

222

7.6. Brasilidades. Algumas reflexões

224

PARTE III – CONCLUSÕES

Cap. 8 – CONCLUSÃO

227

Anexo 1- Informantes

235

Anexo 2- Glossário

237

Anexo 3- Acrónimos

239

Bibliografia

240

X

XI

Índice de imagens Sociograma 1-Apresentação das informantes (pp.99) Sociograma 2-Apresentação das informantes (pp.100) Sociograma 3-Apresentação de informantes (pp.102) Figura 1 – Indivíduos, campos, capitais e recursos (pp. 74) Figura 2 – Poder diferencial e capitais sociais (pp.76) Foto 1 - Frasco de silicone líquido e seringa de uso veterinário (pp. 129) Foto 2 – Seringa de uso veterinário para aplicação clandestina de silicone (pp.130) Figura 3 – Homossexualidade e referentes de género (pp.137) Figura 4 – Níveis de intermediação da comunicação entre indivíduos (pp. 164) Figura 5 – Escalas de redes sociais (pp. 168) Gráfico 1 – Anúncios do sítio Desire 2008/2009 - o primeiro a anunciar serviços sexuais travestis em Portugal (pp. 190) Gráfico 2 – Anúncios do sítio Desire 2009/2010. (pp.191) Gráfico 3 – Anúncios do sítio Desire 2010 até Dezembro de 2011quando sucumbiu perante a concorrência de novos sítios. (pp.192) Gráfico 4- Anúncios no sítio Relax de 2008/2009 (pp.194) Gráfico 5- Anúncios no sítio Relax de 2009/2010 (pp.195) Gráfico 6- Anúncios no sítio Relax de 2010 até Dezembro de 2010 quando termina face à concorrência emergente no sector (pp.196) Gráfico 7- Anúncios no sítio VripT de Agosto de 2008 a Abril de 2009. Este sítio iniciou-se online em Agosto de 2008 (pp.197) Gráfico 8- Anúncios no sítio VripT 2009/2010 (pp.199)

XII

Gráfico 9- Anúncios no sítio VripT 2010/2011 (pp.200) Gráfico 10- Anúncios no sítio VripT 2011/2012 (pp.201) Gráfico 11- Anúncios no sítio TG 2009/2010 (pp.202) Gráfico 12- Anúncios no sítio TG 2010/2012 (pp.203) Gráfico 13- Anúncios no sítio TG 2011/2012 (pp.204) Gráfico 14- Anúncios no sítio Desire 2008 tentando a internacionalização (pp.206) Gráfico 15- Anúncios no sítio Relax 2008 tentando a internacionalização (pp.207) Gráfico 16- Anúncios no sítio VripT 2008 revelando o seu domínio no mercado (pp.208) Gráfico 17- Anúncios por totais por sítio (pp.209)

XIII

INTRODUÇÃO A presente pesquisa procura captar e analisar as estratégias e modalidades de acção desenvolvidas por um segmento de travestis brasileiras que emigraram para Portugal a partir de finais da década de noventa e cuja subsistência material é viabilizada pela manutenção de um grau significativo de mobilidade intranacional e transnacional. Suportados por estudo etnográfico, tentaremos mostrar como a acção/agência travesti é construída adentro e entre várias estruturas e por relação a elas, numa dupla vertente de expressão de um género não compatível com o seu sexo biológico e, mediante projectos migratórios e mobilidades várias que viabilizam em diversas escalas essa construção identitária. Para tanto, mobilizaremos lentes analíticas que assentam nos sujeitos, as quais permitem descortinar características e limites estruturais que definem um espectro condicionado de possibilidades discursivas e performativas aos sujeitos travestis e, por outro lado, ainda adentro dessa mesma estrutura, oportunidades aparentemente inesperadas, crítica e estrategicamente aproveitadas para a sua viabilização enquanto identidades e sujeitos em viagem. Mobilizando os conceitos de performatividade, discurso e negociação (Butler, 2007, Kulick 1998, 2003 in Cameron e Kulick, 2006, Ortner, 1984) começaremos por interrogar as construções de género e os idiomas performativos das travestis brasileiras que estudámos. Em que medida estas travestis incorporam e perpetuam modos dominantes de conceber e agir o masculino, o feminino e a heterossexualidade ? Em que extensão, todavia, resignificam e reperformatizam desempenhos de género e papéis sexuais hegemónicos, tornando-os fluídos e plásticos, moldáveis e adaptáveis às circunstâncias concretas ?

Em que situações a relação entre expressão/identidade de género e

performatividade sexual se apoia na normatividade heterossexual? Em que outras situações é renegociada ou, se preferirmos, se constitui como uma relação pragmática, e que combinatórias pode apresentar ? Esta ambiguidade na relação entre género e performatividade sexual pode ser apenas concebida como uma estratégia de sobrevivência económica, accionada em cenários de prostituição projectados e desenvolvidos em contextos particularmente adversos, quer no Brasil, quer na Europa ? Poderemos entrever nesta ambiguidade uma terceira via de género (Kulick, 1998:226) ou um sublinhar dos existentes ?

1

Embora a migração para a Europa de travestis integradas na indústria do sexo se tenha iniciado nos anos setenta do século XX, com entrada preferencial por Paris (Kulick, 1998:166) e posteriormente Milão (Kulick, 1998, Pelúcio, 2005), Portugal só se apresenta enquanto contexto migratório e trampolim para trajectos transnacionais associados à prostituição travesti em finais dos anos noventa do mesmo século, em resultado de novos contextos políticos ao nível global, regional e local, bem como das interdependências entre eles geradas.1 Que motivações e expectativas orientam o fazer e refazer das trajectórias transnacionais das travestis brasileiras ? Que redes e interconexões operam nos seus processos de circulação ? Que recursos e estratégias são mobilizados ? Que margem de manobra é, por elas, aproveitada a seu favor ? Em que medida encontram possibilidades agenciais alternativas no âmbito de fluxos e processos mais ou menos globalizados e semi-incontrolados ? Que contextos migratórios são equacionados alternativamente ao português e que continuidades ou descontinuidades revelam face a este ? Em que medida a mobilidade travesti se converte em capital social no contexto de origem e que dinâmicas promove nos contextos de acolhimento ? Através de que formas se processa a maximização dos capitais sociais e em que domínios sociais revelam a sua eficácia ? Que continuidades ou especificidades agenciais distinguem migrantes travestis e não-travestis de nacionalidade brasileira na concepção e execução dos seus processos migratórios e no modo como se relacionam com múltiplas estruturas ? A teoria da acção revelou-se uma grelha analítica pertinente para trabalharmos sobre as questões acima enunciadas. Faremos, por isso, uma breve incursão aos seus variados modelos, buscando a clarificação dos seus fundamentos (Ortner, 1984), historicamente situados ainda nos anos 60, que se prolongam à década de 70 e seguintes (Bourdieu, 2002, Butler, 2007, Coleman, 1990, Giddens, 1984, Ortner, 1984, Rubin 1975 in Lewin, 2006, Rubin in Vance, 1984, etc.). Dedicaremos, nesse sentido, uma especial atenção às perspectivas que realçam quer o posicionamento dos sujeitos (objectivos, competências, recursos, estratégias, etc.), quer a tensão implícita nas acções dos actores sociais – que neste âmbito ultrapassam a mera racionalidade tendo em vista a prossecução de objectivos pragmáticos (Coleman, 1990) – quer ainda os constrangimentos e as

1

Entrada na então E.E.C. em 1986 e posteriormente a criação do espaço Schengen, inicialmente apenas Convenção de Schengen, em 1997 incorporada na ordem jurídica e política europeia dos estados aderentes através da subscrição do tratado de Amesterdão. Não obstante, nem todos os países da U.E. aderiram a este espaço de livre circulação de pessoas, o que determina também em certa medida as estratégias de mobilidade das travestis. 2

oportunidades que caracterizam os contextos sociais e culturais adentro os quais os sujeitos desenvolvem as suas acções (Ortner, 1984). Esta perspectiva exige um enfoque especial direccionado às práticas do quotidiano e aos dilemas, contradições e aspirações que emergem nas e das relações dos sujeitos com múltiplas estruturas socio-culturais e políticas. Adentro do quadro problematizante que traçámos, abordaremos uma vasta gama de construções e expressões de género trans (transexual, transgénero, transvestite, travesti, crossdresser ou dragqueen) afirmadas e assumidas publicamente (Plummer in Gameiro, 2000). Este extravasar do âmbito privado na vivência das dimensões de género, sexualidade e desejo erótico tem sido potenciado por um actualizar comunitário da experiência. Categorias como espaço e tempo revelam-se fulcrais para a assunção da diferença de forma negociada e sua relação com outros factos históricos, nomeadamente a emergência dos Estados-Nação, o despoletar das industrializações e a crescente urbanização operada no período pós-segunda guerra mundial. O devir destes fenómenos em processo propiciam não só o assumir comunitário das diferenças, como também o confronto com as ordens e modelos de pensamento secularmente instituídos. (Rubin in Vance, 1984)2 Nesse sentido, procuraremos estabelecer um nexo de causalidade entre um êxodo rural decorrente das industrializações e propiciador da emergência das grandes cidades e a contemporaneidade moderna e pós-moderna, afirmando-se a possibilidade da cidade se constituir como o locus privilegiado de vivência e afirmação da diferença (Woodward, 1997), não só pelo anonimato que propicia mas também pelo maior ou menor grau de mobilidade que lhe subjaz. (Rémy e Voyé, 1994). Como veremos, é nas grandes cidades que as nossas interlocutoras procuram o anonimato e a possibilidade de viverem a sua sexualidade ou expressar um género trans (Cf. Green, 1999). Como consequência surgem novas espacialidades e temporalidades (Ledrut, 1979)3, inseparáveis nos seus 2

Culminando nas décadas de 50 e 60 em perseguições violentas nos Estados Unidos, por exemplo à população gay (Rubin, in Vance 1984). O carácter não universal, apesar da tendência universalizante de algumas perspectivas decorrentes de esquemas de pensamentos correntes e recorrentes, expressa-se pela manutenção no séc. XXI de algumas dessas perseguições em países como a Rússia, em que se mobilizam inclusivamente milícias populares que vigiam e punem a orientação sexual, homossexual dos indivíduos através do uso da violência, infligindo-lhes humilhações várias. (Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=J0yW6JgsBdQ, acedido a 30 de Junho de 2014) 3

Correspondem a diferentes apropriações das categorias universais e simultaneamente relativas - espaço e tempo - porque comuns a todas as sociedades, embora demarcadas historicamente por diferentes práticas e comportamentos. Os comportamentos decorrem de novas apropriações do espaço e relações construídas 3

fundamentos e dinâmicas, das novas tecnologias da comunicação e transporte, facto que para alguns autores se constitui como uma terceira industrialização4 potenciadora da proliferação de ethnoscapes a uma escala global (Appadurai, 2004). É, portanto, num quadro gerador de transnacionalismos vários (Waldinger and Fitzgerald, 2004, Vertovec, 2009) que procuraremos entender as estratégias de mobilidade de um grupo de travestis brasileiras para Portugal e para a Europa, mostrando como novas geografias configuram dinâmicas potenciadoras de mobilidades socialmente ascendentes, capitalizadas e negociadas na relação com estruturas, grupos e indivíduos multi-situados. A pesquisa realizada procura contribuir para a problemática dos identidades trans a qual tem vindo a suscitar novos debates e a adquirir uma visibilidade que lhe foi historicamente sonegada5. Constitui-se ainda como móbile desta pesquisa, o facto da produção académica nesta área ser notoriamente reduzida (Almeida, 2010 in Pinto e Moleiro, Saleiro, 2009, 2009ª, 2012, 2013) ou maioritariamente confinada ao âmbito de acção das ciências médicas. Estas ciências evidenciam, ainda nos dias de hoje, competências na produção de sujeitos (Pinto e Moleiro, 2012:160, Saleiro, 2009:1, 2009ª:1) pelo que se tornam relevantes e pertinentes novas abordagens.

com, no e sobre o tempo. Em processo dialógico tempo e espaço reflectem o modo como esses comportamentos se exercem sobre eles. (Ledrut, 1979) 4

Uma terceira industrialização que permite a emergêngia gradual de uma sociedade onde tempo e o espaço são comprimidos – reestruturados – mediante influência prática da inovação tecnológica de ponta, denotando correlação com as espacialidades e temporalidades de Ledrut. (1979) 5

Em 2014, um/uma cantor/a Áustriaco/a ganha o festival da Eurovisão. Travesti que usa barba, não só durante a sua performance artística, mas também no seu quotidiano, levando ao extremo o carácter contraditório das sinalizações emitidas para o exterior pelo corpo. O facto de aparecer em público e para milhões de espectadores deixa entrever como o travestismo procura o seu lugar no sistema mundo, deixando de ser um fenómeno social escondido, marginal ou auto-relegado para um plano da invisibilidade, em processo que evidencia um encontro voluntário e deliberado com o poder. (disponível em https://www.youtube.com/watch?v=_MUsEaxGx7Q, acedido a 15 de Julho de 2014) 4

PARTE I – CONCEITOS E DIMENSÕES ANALÍTICAS Capítulo 1 - SOBRE A NOÇÃO DE TRAVESTI E OUTRAS AFINS Antes de avançarmos na discussão dos conceitos e das dimensões de análise que subjazem às questões empíricas formuladas, urge apresentar uma breve nota sobre o conceito de travesti utilizado ao longo desta reflexão e figuras discursivas afins, susceptíveis de serem analiticamente confundidas com aquela e que não relevam directamente para os propósitos deste trabalho. De acordo com literatura disponível (Adelman, 2003, Benedetti, 1998, 2005, Borba, 2006, Bussinger, 2008, Carrara e Viana, 2006, Carvalho, 2006, Duque, 2008, Ferreira, 2003, Kulick, 1998, 1999, Loise, 2006, Luís e Trovão in Trovão, 2010, Nascimento e Lara, 2003, Pelúcio, 2005, 2006, 2006ª, 2007, Peres, 2006, etc.), o termo travesti é aplicado a um indivíduo com sexo biológico masculino, o qual adopta todavia, uma série de práticas, posturas e marcas sinalizadoras, compatíveis com o género feminino, nomeadamente cuidados corporais (tais como maquilhagem, cabelos ou unhas pintadas), recorrendo para o efeito numa outra fase do seu trajecto a cirurgias para colocação de implantes mamários, labiais, faciais, etc. e/ou à ingestão de hormonas (Cf. a produção cultural do corpo em Goellner, 2003, Gómez, 2002, Mauss, 1974).6 Esta última acção farmacológica geralmente associada a uma fase inicial da transformação, não só por ser de mais fácil acesso no mercado clandestino, mas também por ser financeiramente menos onerosa.7 A indumentária utilizada é igualmente feminina, assim como uma série de outros adereços associados ao quotidiano feminino – reflectindo e

6

A produção cultural do corpo pode ser relacionada com um outro conceito utilizado por alguns autores, nomeadamente o de fenomenologia do corpo. Segundo este, o sujeito pode construir uma relação diferenciada com o seu corpo, especialmente com os genitais, destituindo-o de qualidades que lhes são atribuídas estruturalmente. Saleiro exemplifica com uma relação entre um cissexual e um transgénero, este último destitui o seu sexo de valorações vigentes na heterossexualidade, permitindo assim que para esse sujeito em especial, a sua relação não seja entendida como homossexual. (2013) 7

No meio travesti é recorrente a sua hierarquização através de um discurso tendente a discriminar as várias fases da transformação, coexistentes ou não, nos processos de feminização dos corpos. Expressões como ela é travesti hormonizada ou operada - credibilizam o indivíduo no meio, expressando a vontade de se transformarem, o que envolve muitas vezes profundo sofrimento físico quando se submetem a aplicações de silicone clandestinas. As hormonas são geralmente utilizadas numa fase inicial do processo de transformação, alterando a voz e permitindo a emergência do peito. Mais tarde, após as operações, algumas mantêm a ingestão de hormonas, essencialmente para que a voz seja emitida num tom mais feminino, geralmente de falsete. Todavia as hormonas podem retirar o desejo sexual, motivo pelo qual no âmbito da prostituição, tal seja um factor a ter em consideração pelas travestis. 5

vigiando modos de ser homem e modos de ser mulher (Cf. Freire, 1964, 1987)8. Todavia devemos realizar uma ressalva, na literatura anglo-saxónica a palavra transvestite não é correspondente a travesti e encontra-se geralmente associada a uma outra categoria trans, a de crossdresser (Saleiro, 2013:195), pelo que por exemplo para autores como Ekins e King a referência à travesti conforme nós a abordamos não existe (2005, 2006). Assim, tendo em atenção a enorme quantidade de produção antropológica brasileira que denomina por travesti o actor social e político que mantém o pénis num corpo repleto de referentes femininos, associando-o muitas vezes ao exercício da prostituição e por outro lado, a ausência desta categoria na produção anglo-saxónica pode-se levantar a questão se a travesti conforme a vamos debater, não tem um contexto geográfico restrito de produção, emic e etic. É necessário, neste contexto, realizar uma outra distinção conceptual entre duas realidades susceptíveis de produzir equívocos. Referimo-nos ao conceito de transgénero e de homossexualidade. Efectivamente são termos que se referem a realidades distintas. A homossexualidade é um conceito relativo à orientação sexual, enquanto, que a transexualidade9/transgénero se refere a questões de identidade e construção de género. A orientação sexual sublinha a atracção sexual por homens, mulheres ou ambos; a identidade de género diz respeito à forma como os indivíduos sentem, vivem e expressam o seu género (Saleiro, 2009:1-2, 2013). Esta distinção entre orientação sexual e identidade de género é relevante no decorrer desta exposição visto fundamentar duas áreas distintas da coercibilidade socio-estrutural perante o desvio.10

8

O termo travesti pode também qualificar indivíduos de sexo feminino com desemprenho de género masculino. Não é, todavia, o caso desta pesquisa. 9

O termo transexualidade é por vezes usado numa vertente similar à de transgénero, como categoria aglomerante de todas as identidades trans. (Saleiro, 2013) 10

A homossexualidade está sujeita ao critério da orientação sexual, pelo que se refere à atracção sexual por indivíduos do mesmo sexo, não existindo no caso das pessoas homossexuais descoincidência entre sexo biológico e género social, entre corpo e mente; por isso um homossexual pode manter o seu género, sem exteriorizar o objecto da discriminação, mantendo a sua orientação sexual no domínio da esfera privada dos seus comportamentos. Já as pessoas transexuais/transgéneros podem ser, tal como as pessoas cissexuais (ou seja, aquelas em que há uma coincidência entre sexo e género), hetero, homo ou bissexuais (Saleiro, 2009ª:2) e pansexuais. (Saleiro, 2013) 6

1.1.Trans:transexuais/transgéneros Em Portugal, dados relativos à existência de pessoas transexuais são praticamente inexistentes (Pinto e Moleiro, 2012:161, Saleiro, 2009, 2009ª, 2012, 2013) e a informação disponível resume-se na maioria dos casos a artigos das ciências médicas (Saleiro, 2009ª:3) e a dados recolhidos com profissionais de saúde nos serviços a que pertencem (Albuquerque 2006 in Pinto e Moleiro, 2012:161) e relativos aos processos que no âmbito do seu desempenho profissional acompanham.11 Neste sentido, sob um ponto de vista analítico, estas identidades mais do que construídas pelos indivíduos são-no a partir de uma perspectiva que envolve a medicalização do social.12 No domínio das ciências socias e médicas, alguns autores incluem as travestis no grupo das transexuais quando usam o termo “transexual” (Arán, 2006, Bento, 2006, Granner, 2006, Lionço, 2006, Namaste, 2000, etc.), reflectindo de alguma forma a imprecisão implícita no modo generalizante como muitas vezes se menciona o movimento social GLBT (Saleiro, 2009:5). Todavia salienta-se que para Saleiro esta aglomeração numa comunidade assume vantagens enquanto potenciadora da capacidade reivindicativa desses vários grupos, podendo no entanto revelar um menor poder e visibilidade do movimento T dentro do grupo GLBT de forma correspondente ao seu mais reduzido número, quando comparado com os restantes componentes da referida comunidade (2013) e, dentro do movimento T a menor organização política de travestis, por exemplo, quando comparadas com as transexuais. Colocadas estas ressalvas, neste estudo, o termo travesti qualificará apenas sujeitos que não recorrem a cirurgia genital (mudança de sexo), embora noutros contextos de abordagem à temática trans existam indivíduos que se concebem como transexuais fora da categoria médica correspondente, optando tal como as travestis, por manter o pénis e dele retirando igualmente prazer sexual (Saleiro, 2013). No entanto as nossas interlocutoras auto-representam-se e apresentam-se maioritariamente (por exemplo na internet, onde anunciam serviços sexuais) como travestis - encontrando a sua subsistência económica na prostituição, em que “o pénis se converte no elemento central do seu trabalho” (Loise, 2006:19). Neste contexto de

11

Os relatos são, no geral, demonstrativos da maior utilização dos serviços por transexuais femininos, comparativamente aos transexuais masculinos. 12

Neste sentido Saleiro argumenta que muitas identidades transexuais assim assumidas pelos indivíduos, ficam fora da categoria médica de transexual. (Saleiro, 2013) 7

prostituição, a ambivalência que emerge de um corpo montado com referentes femininos, onde é mantido o órgão sexual masculino do qual retiram prazer (Kulick, 1998), não inviabiliza o termo transexual no sentido em que a transexualidade ultrapassa ela própria a definição médica da mesma, não obstante e privilegiando a forma como os próprios sujeitos se expressam e produzem utilizaremos a categoria travesti para nos referirmos aos indivíduos que constituem o nosso universo de estudo. Todavia, subsidiariamente o prefixo trans constitui-se como um recurso apetecível nos anúncios, usado por algumas para se auto-descreverem e cativarem clientes. Tal, não consubstancia qualquer contradição visto que o termo trans pode também referir-se a transgéneros ou a contextos em que as práticas e construções sociais identitárias ultrapassam os limites estruturalmente impostos, funcionando como um termo que agrega todas as identidades de género fora dos cisgéneros/cisexuais. (Cf. Saleiro, 2013) A palavra transgénero tem também indicado historicamente uma aspiração de união entre todas as minorias trans, agregando-as em torno de reivindicações comuns. Sob outra perspectiva, reflecte essencialmente uma transgressão ou a não correspondência entre sexo, género e sexualidade (Ekins e King, 2006:20). Estes autores referem também que a palavra trans configura um chapéu-de-chuva albergando várias comunidades transgénero e sexualidades tidas como minoritárias (Cf. Namaste, 2000, Saleiro, 2013).13 O termo transgénero foi utilizado pela primeira vez em 1969 por Virginia Prince num artigo por si publicado na revista que fundou - transvestia (Ekins e King, 2006:13). Acrescentamos ainda uma outra perspectiva - especialmente importante para uma das questões subjacentes à realização deste trabalho e consistindo na relação entre sujeitos e estruturas -construída a partir da constatação do facto destas categorias trans serem também em grande parte produzidas estruturalmente enquanto categorias médicas. É o caso paradigmático da transexualidade. Não obstante, verifica-se igualmente um preenchimento do vazio implícito na abstracção médica, quando os indivíduos através das suas práticas vão além dessa dimensão institucional. Nomeadamente e a título de

“The subject of transsexuality falls within the scope of the LGBT (Lesbian, Gay, Bisexual and Transgender) movement, which means that the issue of gender identity is part of a “package” that also includes sexual orientation – it is a minority within a minority.” (Saleiro, 2009:5). Com esta frase a autora pretende demonstrar a menor visibilidade do movimento T, constatando a existência de margens no seio de grupos, eles próprios já marginalizados. 13

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exemplo, quando o termo travesti que também encontra a sua origem na medicina qualificando uma disforia de género - alcança um outro patamar quando os indivíduos através das interacções se co-produzem de forma dialéctica por relação à estrutura, enquanto categorias trans. Motivo pelo qual, a dado momento, as travestis para se diferenciarem de outras travestilidades, co-produzem a categoria de crossdresser (Cf. Ekins e King, 2006 e Saleiro, 2013). Várias são portanto as acepções da palavra trans as quais, insistindo no seu carácter polissémico, podem também indiciar uma migração, trajectória (Ekins e King, 2006:90) ou, num outro sentido, uma viagem de género, sexo ou ambas. 14 (…) It is important to remember that on our sociological, processual and relational understandings of these issues, meanings of narratives and their constituents emerge within the frameworks they are placed. Within the migration mode of transgendering, the sub-processes of erasing, concealing, implying, and redefining are variously co-opted and implicated in the service of the privileged sub-process of substituting. (Ekins e King, 2006:95).

Essa viagem exige meios e a submissão a tecnologias de acção sobre o corpo. As cirurgias e a ingestão de hormonas não são apenas os recursos disponíveis para tal, como paralelamente se constituem como indicadores das aspirações travestis relativamente ao seu corpo - de certa forma reflectindo rituais de iniciação e passagem de um estado a outro – à sua identidade e à estrutura, no sentido que esta última legitima ou repudia coercivamente determinadas práticas. Dir-se-ia, neste sentido, que o corpo se constitui como uma forma de linguagem privilegiada pelas travestis (Benedetti, 2005, Kulick, 1998) através da qual pretendem comunicar/sinalizar e construir socialmente o seu género (que pode inclusivamente consistir na ambivalência de géneros), emergindo por essa via como sujeitos e, numa perspectiva mais lata, construindo uma identidade da qual têm consciência posicional quanto à sua inserção e evolução num espectro condicionado de possibilidades ou impossibilidades sociais; em quaisquer dos casos, mantendo relações com o exterior social, mediante processos de identificação ou desidentificação. Por

14

Se a migração tende a sublinhar fluxos de pessoas implicando alguma continuidade no tempo, já o turismo, enquanto mobilidade, evidencía a passagem de fronteiras com um carácter transitório seguido do respectivo regresso às origens. Tal como nas migrações ou turismos de género, a sociedade não os percepciona de igual modo. Os autores estabelecem uma analogia entre a mobilidade de pessoas e de género (Ekins e King, 2006:98). Na verdade as migrações de género, ao serem tendencialmente definitivas, trazem às sociedades novos problemas a resolver, por exemplo, a aspiração a novas conjugalidades e pretensões sociais, nomeadamente a reivindicação do direito à adopção por parte destas cambiantes familiares (Melo, 2005) ou a emergência de factos decorrentes da construção de uma cidadania – alteração de nome, registo de um novo género e sexo, etc. (Peres, 2005, 2006, Saleiro, 2013) 9

acréscimo, numa outra escala de análise (Cf. escalas, Silvano, 1997), não raramente somos confrontados com a elaboração de diferenciações e hierarquizações dentro do grupo, em função por exemplo da existência de peito15, da ingestão de hormonas (ou não) ou das aplicações de silicone.16 Pelo que, diferentes escalas de abordagem tendem a convocar de forma diversa e estrategicamente reordenada, os referentes que servem de base à construção desses repertórios, os quais são determinados por um posicionamento identitário específico e escalonado face ao outro. Assim, mesmo que uma travesti possa não recorrer a cirurgias e hormonas numa fase ainda imberbe do seu percurso, apresentar-se-á sempre o mais próxima possível do seu ideal feminino, vivenciando experiências relativas a transgéneros mas não a transexuais, não só na forma como se entendem, mas também no modo como são descritas na bibliografia brasileira, essencialmente. De certa forma, se um/uma transexual será sempre um transgénero, um transgénero não será necessariamente transexual. No âmbito das migrações ou turismos de género – processos analiticamente distintos - destacam-se certos conceitos chave como substituição, conciliação, implicação/insinuação, redefinição ou apagamento (Ekins e King, 2006). Substitui-se o que denota um género por características primárias (peito e/ou genitais, conforme a circunstância) e secundárias (penteados, cortes de cabelo, tratamento de unhas, ornamentos) que evidenciam a pertença a outro género, conciliando disparidades, apagando incongruências, substituindo ou insinuando sinalizações e redefinindo papéis. De acordo com a terminologia utilizada por estes autores, a oscilação de género (a qual se opõe a uma mudança tendencialmente permanente, maioritariamente caracterizada pela substituição) é equiparada ao turismo na medida em que a substituição, sendo tendencialmente irreversível, detém por isso um menor peso no trans turismo, sendo suplantada por apagamentos, implicações, insinuações ou conciliações17 associadas ao 15

Nomeadamente e a título de exemplo, travestis sem peito são muitas vezes denominadas por aquelas que fazem cirurgias, como gaysinhos, pelo que hormonas e silicone se constituem como elementos materiais privilegiados de uma identidade colectiva e individual, e nalguns casos (como veremos no decorrer deste trabalho), condição para admissão no grupo em determinados contextos de prostituição urbana ainda em território brasileiro. A ausência de silicone e hormonas será o grau mais baixo na pirâmide hierárquica travesti em contextos de prostituição. 16

Estas fases configuram-se como rituais de passagem dentro das fronteiras simbólicas do grupo e como condição de aceitação em determinadas cidades brasileiras para o exercício da prostituição, nomeadamente a aplicação uma quantidade mínima de silicone no corpo. 17

Na verdade, estes conceitos expressam apenas uma tendência observável, visto que nas migrações de género/sexo também se constatam apagamentos e conciliações. O acto de insinuar pode em certos casos 10

desempenho de papéis em espaços privados, regressando à esfera de género original em espaços públicos.18 1.2. Migrações de género. Viagens Aprofundando as migrações de género por contraponto às meras viagens/turismo, Ekins e King realizam um paralelo entre migrações de género e o conceito de viagem (2006). A noção de oscilação entre uma casa (de género) e um fora de casa (metaforicamente um contexto de acolhimento) sublinha a diferenciação que estabelecem entre migração e turismo. A primeira implica a mudança de um estilo de vida; a segunda uma viagem temporária com um consequente regresso a casa a muito curto prazo, uma casa que na verdade nunca se chegou a abandonar. Numa primeira dimensão muda-se de casa, na outra fazem-se as malas e parte-se - com bilhete de ida e volta - para um trans turismo perfeitamente delimitado no tempo e espaço. Nesta segunda perspectiva, o turismo de género implica práticas extraordinárias propiciadoras de novas experiências – desejáveis e apetecíveis para os actores sociais - por oposição a uma migração em que essas práticas extraordinárias se convertem em práticas quotidianas, substitutivas das originárias que tendem a apagar. (2006:98-99) Algumas práticas impossibilitam o regresso a casa, revelando-se como aspectos que evidenciam uma migração ou um sair de casa permanente. Esta panóplia de substituições ou implicações/conciliações tendentes a estruturar uma migração ou turismo de género e/ou sexo parecem observar algumas regras fundamentais apontadas por Garfinkel (1967, Cf. Ekins e King, 2006:45, Kessler e McKenna, 1978:113, Zimmerman e West, 1987) na abordagem realizada ao caso específico da transexual Agnes que acompanhou durante vários anos. Agnes constituiria à luz dos paradigmas contemporâneos um caso de intersexo, visto que aparentemente apresentava simultaneamente traços físicos masculinos e femininos. (Garfinkel, 1967)

traduzir a acção de enganar ou fingir, nomeadamente quando travestis numa fase pré-cirurgia, colocam enchumaços nos peitos ou no rabo (Alencar, 2007). Como se diz na gíria, aprendendo a dar o truque. (Pelúcio, 2005) 18

Tudo o que indica a pertença à categoria política homem e consequente género socialmente estruturado deve ser conciliado e/ou apagado, e tudo o que indica a pertença à categoria mulher deve ser implicado/insinuado. (Ekins e King, 2006:100) 11

Garfinkel constrói uma argumentação sustentada numa inovação conceptual, implícita no facto de nunca utilizar o termo género/s, substituindo-os pela designação “população moralmente dicotomizada” (Garfinkel, 1967, Cf. Ekins e King, 2006). Segundo ele, desta dicotomia resultavam princípios heteronormativos delimitadores e distintivos de género, assentes essencialmente em oposições de carácter binário que conferiam grande rigidez ao processo e que viriam também a influenciar outros autores, embora com abordagens distintas. 1 - Há apenas dois géneros. 2 - Todos os indivíduos pertencem a um ou a outro. Invariabilidade de género. 3 - As transferências de um género para outro não são socialmente permitidas. Neste encadeamento, Kessler e McKenna, corroborando os três eixos normativos anteriores acrescentam: 1- Os genitais constituem a sinalização essencial de género.19 2- Excepções a estes dois géneros são patologias.20 (1978:113)

1.3.Travestis e a transgressão da dicotomia moralizante: “silicone, a dor da beleza” Parecendo contrariar alguns pressupostos vigentes em esquemas de pensamento dominantes, as intervenções sobre o corpo são o início da migração de género no caso travesti. Muitas vezes executadas no âmbito da clandestinidade, estas intervenções negligenciam os saberes institucionalmente produzidos e colocam em risco muitas das travestis que nestas condições se submetem a cirurgias, que consistem na aplicação de silicone industrial (líquido) adquirido e ministrado ilegalmente (Cf. Alencar, 2007 e Andrade e Maio, 1985).21 Estes procedimentos são realizados com recurso a seringas de 19

Quando não são exteriormente visíveis, pressupõe-se a sua existência em função de associações com outras sinalizações emitidas pelos indivíduos. 20

Ver-se-á mais à frente como no séc. XXI em Portugal, o Sistema Nacional de Saúde - que presta cuidados médicos à população “transexual”- faz depender o início do processo do reconhecimento médico de alguém como um/uma transexual de um “diagnóstico da perturbação de género.” (Saleiro, 2009ª) 21

Aconselhamos vivamente a visualização destes dois documentários, devidamente referenciados no fim deste trabalho. Através do seu visionamento podemos captar os dilemas e estratégias das travestis e, principalmente, a crueza das aplicações clandestinas de silicone, filmadas e documentadas pelos autores. 12

uso veterinário para animais de grande porte - como cavalos - e culminam muitas vezes na morte dos indivíduos que a eles se sujeitam, em consequência de complicações supervenientes desse processo cirúrgico.22 O risco implícito no acto de ser bombada, pode ainda ser ampliado em situações protagonizadas por bombadeiras menos escrupulosas que misturam no silicone outros produtos nocivos ao ser humano. Esta estratégia visa unicamente aumentar os lucros retirados do exercício dessa actividade. (Alencar, 2007) Estas acções sobre o corpo são motivadas por factores variados mas confluentes: o querer ser travesti de corpo feito (completa), o querer dedicar-se à prostituição ou o querer ser aceite no grupo travesti como uma travesti de verdade e não como um mero gay23 (Benedeti, 2005, Kulick, 1998, Loise, 2006, Luís e Trovão in Trovão, 2010, Pelúcio, 2005, 2006, 2006ª, 2007). Neste sentido, parecem também confirmar a ideia de que há apenas dois géneros (Garfinkel, 1967), visto que aparentemente procuram alcançar a substituição de características primárias e secundárias de um género pelas do outro estruturalmente admissível. Em casos extremos, alguns autores como Pinto e Bruns (2005) apontam situações de incompatibilidade entre corpo e mente, conducentes não raras vezes ao suicídio. No caso masculino, quando não se mostram psicologicamente capazes de viver e conviver com o seu pénis; e no feminino, quando se constata como objecto principal dessa incompatibilidade, o útero – facto, no primeiro caso, não observado relativamente às travestis que constituem o universo de estudo desta pesquisa.24 Confluentemente, Virgina Prince argumentava que apenas em casos de incompatibilidade entre mente e sexo é que as cirurgias correctivas seriam admissíveis. (Ekins e King, 2005)

22

O cirurgião plástico Ariosto Santos alerta que é proibido injectar silicone industrial, argumentando que é líquido e se move pelo corpo, apesar de após a aplicação se tornar gelatinoso. Não obstante, pode introduzirse na corrente sanguínea e como produto tóxico, afectar fígado, rins, causando infecção, abcessos e até embolia pulmonar, levando muitas vezes à morte, para além de causar assimetrias no corpo. (http://travestisdeportugal.blogspot.pt/search?updated-max=2010-0610T08:26:00%2B01:00&maxresults=7). 23

Gay, termo jocoso e depreciativo. Utilizado no grupo travesti para se referirem a indivíduos que se afirmando como travestis não têm peito feminino e implicitamente ainda não têm o restante corpo feito. Não se identificando com homens homo orientados, a utilização deste termo pode em certas circunstâncias também ter uma função de exclusão do grupo. 24

Durante os cerca de 8 anos em que esta pesquisa decorreu, entre as travestis com anúncios na internet apenas duas das que fomos observando, realizaram cirurgia ao sexo. Embora na fase pós-cirurgia tenham optado por anunciarem na secção de anúncios de prostituição travesti, acabaram por cessar os seus anúncios nessa secção e passaram a anunciar nas páginas relativas às mulheres. 13

O nosso universo de estudo é portanto, constituído por sujeitos que fazem recair sobre os seus corpos uma série de tecnologias disponíveis (legais e ilegais) para os moldar com atributos femininos, por vezes exagerando-os (peitos grandes, ancas largas, lábios proeminentes, cinturas acentuadas retirando para o efeito algumas costelas, silicone nos lábios, sobrolho, bochecha, testa, etc…), mantendo, não obstante - e dele auferindo ganhos identitários e materiais - uma das partes do seu corpo, o pénis25 (Benedeti, 2005, Kulick, 1998, Loise, 2006, Luís e Trovão in Trovão, 2010, Pelucio, 2005, 2006, 2007). Neste caso, a incompatibilidade é sentida ao nível da mente e do corpo numa dimensão de construção de género, não da mente e sexo. Nesse sentido, alguns autores afirmam que as travestis se constituem como uma outra possibilidade de feminino (Silva, 1993). Para além de terem consciência de não serem mulheres, a sua construção de género assenta no querer ser mais que as mulheres (Kulick, 1998). Tal é constatável no exagero com que por vezes se elaboram26, quer no plano das marcas físicas, quer no plano dos adereços, mantendo (e voltamos a frisar) um marcante e distintivo elemento masculino: o pénis que, no entanto, fora da esfera privada e da prostituição, procuram apagar face ao olhar alheio. As travestis que acompanhámos empreendem claramente uma migração de género através da qual as práticas compatíveis com a sua casa originária são permanentemente modificadas ou substituídas, ultrapassando o patamar da mera performance oscilatória ou turismo de género (Ekins e King, 2006), que no entanto, em certas circunstâncias parece emergir, nomeadamente e a título de exemplo quando no exercício da prostituição são convocadas a desempenhar o papel masculino na relação sexual. Não se referindo Ekins e King às travestis quando elaboram sobre migrações e oscilações de género, nós, optámos por realizar uma analogia

25

Segundo Kulick, no trabalho realizado com travestis em Salvador, o pénis não é apenas encarado como uma ferramenta adicional no mercado da prostituição mas também, como uma parte do corpo que proporciona prazer, pelo que a grande maioria das travestis observadas não entende o porquê da realização de cirurgias ao sexo. (Kulick, 1998:85, Cf. Saleiro, 2013 e o receio de alguns candidatos ao processo de transsexualidade de perderem o prazer sexual ao redefinirem o sexo) Surgem ainda outros equívocos, incluindo no grupo “travestis” (ou reversamente) outras variáveis associadas a este contexto; não só o caso das transexuais que, como se verificou, recorrem à amputação da genitália, mas também relativamente às drag-queens (relativamente a drag-queens, Cf. Damásio 2006) que adoptam padrões da masculinidade hegemónica durante o dia e uma identidade que recorre a referentes femininos durante os seus espectáculos, geralmente nocturnos. Estes espectáculos estabelecem uma relação entre espaço privado e turismo/transferência momentânea (oscilação) de género, enquanto a sua masculinidade surge associada ao dia e ao espaço público. 26

14

a partir da qual nos parece existir uma forma intermédia, liminar entre migração e turismo de género a operar nas travestis e trabalhadoras do sexo brasileiras. Em suma, utilizaremos o termo travesti quando nos referimos a indivíduos que não recorrem a cirurgias de redefinição sexo e que vivem o seu dia-a-dia montados (Benedetti, 2005) com referenciais femininos (alguns irreversíveis), dedicando-se maioritariamente ao exercício da prostituição em domicílio. Para tal, recorrem a anúncios na internet pagos.27 O seu dia-a-dia - “montadas” ou produzidas tendo como referentes determinadas definições de situações (e sub-situações estruturadas e estruturantes) de género - traduz as suas práticas quotidianas, ao invés de práticas extraordinárias que implicam um regresso a casa, a masculinidade. Existem, no entanto, outras situações que podem consubstanciar alguns equívocos sobre o que é ser travesti. Vamos aprofundá-las.

1.4. Crossdressers e drag-queens A oscilação de género28 é constatável em casos como o das crossdressers e drag-queen. As crossdressers desenvolvem implicações, insinuações e conciliações temporárias de elementos definidores de género. Por sua vez, as drag-queens surgem num contexto dramatizado, de espectáculo e audiência. Actor/performance e público são neste caso conceitos chave (Ekins e King, 2006:133). Não obstante, as performances artísticas, como se verá adiante, não estão excluídas do universo travesti, todavia, surgem associadas ao espectáculo nocturno e seus consumos segmentados (Cf. Gameiro, 2000), bem como a estratégias identitárias e processos de identificação elaborados nesse âmbito. No caso de uma crossdresser ou de uma drag-queen, assistimos a performances e não a performatividades, pois as suas práticas e discursos não implicam a aspiração a emergirem enquanto sujeitos que assumem, vivem e constroem publicamente essa diferença. Esta diferença é apenas “experimentada” de forma temporária e socialmente A prostituição no domicílio não invalida que, em certas circunstâncias, (quando “o trabalho tá mau” ou sobretudo no caso de travestis com menores recursos) a rua se apresente como solução alternativa, comutativamente com o recurso a anúncio em jornais, mais baratos, que permitem alcançar uma clientela tendencialmente diferente. No Brasil, ao invés de Portugal, a prostituição em domicílio aparenta ser mais elitista, exercendo a grande maioria a prostituição de rua. 27

28

À qual não corresponde necessariamente uma oscilação identitária, visto que o indivíduo não emerge como sujeito identitariamente posicionado através dessa oscilação de género; não implica necessariamente comunidade, nem consciência política ou identidade dado o carácter transitório dessa mobilidade de género. Todavia essas oscilações criam interacções específicas marcadas por também específicas estruturações. 15

compartimentada (Saleiro, 2013), não afectando com carácter permanente a esfera identitária exteriorizada de quem as executa. Num certo sentido invertendo papéis e não confrontando na maioria das vezes, publicamente a estrutura29, acabam por a confirmar dado

o

carácter

extraordinário

dessas

práticas

e

consequente

retorno

à

heteronormatividade cissexual masculina. Segundo Saleiro o elemento distintivo das crossdressers face a transgéneros como as travestis, reside essencialmente no facto de viverem o masculino e o feminino, separadamente, carecendo as suas práticas do hibridismo que em muitos contextos caracteriza as travestis. (2013:264) Sintetizando, embora a travesti operacionalize substituições de carácter tendencialmente permanente não apresentam na sua larga maioria a aspiração de se submeter a uma cirurgia à genitália, convivendo de forma ambivalente com o seu sexo e não se identificando com homens homo - orientados (Bussinger, 2008:40, Pelúcio, 2006:524-525). A este nível, a sua diferença mais evidente é vivida ao nível da sua expressão de género, mais do que relativamente, à sua orientação sexual e a homossexualidade - per si - não implica nova construção de género (Cf. Em sentido complementar, Saleiro 2009, 2009ª, 2013).30 Para tal, procedem à ingestão de hormonas e recorrem a tecnologias de acção sobre o corpo mediante aplicações de silicone. E se as hormonas as aproximam da feminilidade, o silicone31 é tido como a dor da beleza. (Pelúcio, 2007:9) Na aquisição de competências no âmbito de um projecto de feminilidade, a ingestão de hormonas constitui um dos primeiros passos nesse percurso (Benedetti, 1998, 2005, Bussinger, 2008:41, Loise, 2006, Luís e Trovão in Trovão, 2010, Pelúcio, 2005, 2006). Não obstante, no discurso para dentro do grupo, outras ambivalências se constatam; se, para umas, ser realmente travesti implica tomar hormonas (Pelúcio, 2006:525); para outras, ser travesti é o resultado da aplicação de silicone no corpo

29

As suas oscilações de género são maioritariamente experimentadas no espaço privado. (Cf. Saleiro, 2013)

30

Este constitui-se como um dos fundamentos da diferença entre ser-se travesti e ser-se homossexual. Neste sentido e segundo o operador construção de género, uma travesti não é homossexual. Face à multiplicidade de relações sexuais mantidas no âmbito da prostituição, a orientação sexual que mais facilmente se aplicaria às travestis seria a pansexualidade no sentido em que experienciam a relação sexual com indivíduos independentemenete da sua expressão de género. Contudo, como veremos a partir dos discursos particulares abordados a partir da parte II desta tese, nem sempre tal se verifica. 31

Nome genérico de substâncias análogas aos corpos orgânicos, em que o silício substitui o carbono. 16

“criando um feminino particular, com valores ambíguos” (Silva, 1993:117).32 Um feminino que se constrói e se define em relação ao masculino (Cf. Kessler and McKenna, 1978). Citando Benedetti, vivem “um gênero ambíguo, borrado, sem limites e separações rígidas.” (2005:132). É neste sentido um feminino falocêntrico porque elaborado tendo como arquétipo o centro de masculinidade, sustentado numa perspectiva binária do seu contrário - o feminino - que assim, socialmente estruturados, se constituem como sustentáculos do centro heteronormativo e suas relações de assimetria e dominação. (Cf. Freire, 1964, Santos, 1997, Vale de Almeida, 2000) Por seu turno, a drag-queen33 (Cf. Damásio, 2006) é o indivíduo que num espectáculo ou em contextos específicos, se veste de mulher mas sem necessariamente, inscrever no corpo marcas permanentes do feminino (cirurgias, hormonas, etc). Chidiac e Oltramari (2004) afirmam que “as drags se apresentam no quotidiano como homens” (posturas, gestos, roupas e comportamentos entendidos como inseridos no âmbito da masculinidade), manifestando e caracterizando a feminilidade nas personagens que criam e representam, geralmente em espaços de diversão nocturna destinados a consumos de clientelas com construções de género e orientações sexuais minoritárias, face à cissexualidade e heterossexualidade dominantes.34 Desta forma, apresentam uma modalidade mais flexível de travestidade (no sentido literal do travestir-se), exibindo o género feminino nas suas performances e mantendo‐se masculinos em seu dia-a-dia (Bussinger, 2008:40), isto é, não alterando a sua identidade (Ekins e King, 2006). Não obstante, e ainda que com carácter de reversibilidade, parecem mais uma vez confirmar a existência de apenas dois géneros, entre os quais oscilam sem no entanto, os misturar.

32

No âmbito de etnografia que realizou, com travestis na Lapa, bairro do Rio de Janeiro.

33

Noutro contexto a drag-king, quando alguém do sexo feminino realiza performances marcadas por referenciais masculinos. (Saleiro, 2009ª:3) 34

Esta inversão espácio-temporalmente realizada denota algumas semelhanças com o conceito de cismogénese de Bateson (1971), a partir da sua observação dos Iatmul e dos seus rituais. Nomeadamente daquele em que homens e mulheres se travestiam com adereços e ornamentos estruturalmente permitidos ao género/sexo oposto, reforçando através desse ritual de inversão, comportamentos socialmente normativos, mediante a sua confirmação num contexto extraordinário de performances ritualizadas. Esta abordagem será objecto de aprofundamento num outro trabalho do mesmo autor, em que este argumenta que a comunicação não se resume à verbalização, ao invés, abrange a tautologia, cinética e para-linguística, formas de comunicação que sublinham a importância dos sistemas simbólicos operantes em determinados contextos socioculturais. (2000) 17

De uma forma geral, a análise dos autores aponta para que, quando montadas (Benedetti, 2005) as drag-queens unam características físicas e psicológicas masculinas e femininas num único corpo, postura que relativiza a tendência à essencialização no conceito de identidade/performance dado o seu carácter andrógino, a que Saleiro chama de hibridismo. (2013) Neste enquadramento o nosso entendimento relativamente à categoria transgénero é o de alguém que empreende uma outra construção social de género, que à luz da estrutura não é compatível com o seu sexo biológico, permitindo conceber no plano das práticas, indivíduos do sexo masculino vivendo como mulheres e vice-versa. Salientamos ainda que nesse experienciar de expressões de género, as formas de viver o feminino e/ou masculino não são idênticas. Como temos vindo a referenciar há indivíduos que se concebem como transexuais sem pretenderem alterar o sexo, há transexuais que apenas se concebem como tais após a cirurgia, há crossdressers hétero e homossexuais, etc. Há portanto diversas combinatórias de expressão do masculino e feminino. E entre os transgéneros existem pontos de contacto e de diferenciação, nomeadamente nos casos em que verificamos, que se nas crossdressers e drags se aplica de forma mais ou menos consensual o conceito de turismo de género, e nas transexuais operadas uma migração de género, nas travestis constatamos um estado de liminaridade em que operam ambos, migração e oscilação/turismo. 1.5. Transexuais Temos vindo a discorrer sobre entendimentos possíveis do que é um/uma transexual, segundo abordagens mais emics ou etics, há todavia, bibliografia que o/a considera como o indivíduo que “visualiza a cirurgia como a única possibilidade capaz de eliminar sua discordância

sexual”

(Bruns

e

Santos,

2006:3).

Entenda-se

cirurgia

de

reconstrução/transformação do órgão genital masculino em feminino ou vice-versa. No mesmo sentido, para Bussinger, “a transexualidade pode ser definida num primeiro momento como sentimento de não correspondência ao sexo anatómico, sem delírios ou causas orgânicas, apontando para uma incomunicabilidade entre corpo, sexo e género.” (2008:40, Cf. Ekins e King, 2005). Corresponde esta abordagem essencialmente operada a partir das ciências médicas considerada como um posicionamento mais clássico perante a temática, sendo a tendência observável, quer nas ciências sociais, quer na produção de leis, a de afastar a temática da transexualidade do âmbito mais ou menos restrito das 18

práticas médicas, reconduzindo-a a uma categoria produzida essencialmente a partir da acção e aspiração dos sujeitos que se classificam como transexuais. Nesse sentido Saleiro refere que na Argentina surgiu uma lei em Abril de 2012 que não faz depender o reconhecimento legal de uma identidade de género de qualquer apreciação médica (2013). Todavia, não é esse ainda o panorama generalizado e a transexualidade é ainda um processo iminentemente médico, mais do que uma questão de agenciamento do self.35 Em Portugal representam um grupo de pessoas remetido a alguma invisibilidade, na medida em que o seu escasso número a isso induz. Segundo Saleiro, não haverá mais que 210 homens e mulheres transexuais em Portugal. No mesmo sentido, a administração do Hospital Júlio de Matos (espaço clínico onde se procede à prestação de cuidados médicos na área da transexualidade), afirmava - em 2007 - que a fila de espera em termos de cuidados dirigidos a transexuais era constituída por cerca de 70 indivíduos, enquanto o Hospital de Santa Maria referia ter seguido apenas 50 indivíduos na década precedente (Saleiro, 2009:2). Estes dados são-nos fornecidos por fontes médicas, pelo que mencionamos de novo o facto de haver muitos indivíduos que se entendem como transexuais e que estão fora da alçada do processo medicamente assistido de transexualidade. Contudo e como veremos no decorrer desta exposição, passaram mais travestis brasileiras dedicando-se à prostituição por Portugal, do que transexuais recorrendo ao SNS português o que poderá significar que a categoria de transexual autorizada pelo SNS não é aquela com que a maioria dos transgéneros se identifica. Na verdade, entre Agosto de 2008 a Abril de 2012, 389 travestis anunciaram no sítio mais procurado para o efeito em Portugal, o Vrip T. Tal revela não só a dimensão deste fenómeno migratório quando ajustado à escala portuguesa, como também o facto de travestis e transexuais apresentarem diferenciações no modo como dialogicamente se produzem e são produzidas por relação à, e pela estrutura, e numa outra escala, entre elas próprias enquanto categorias diferenciadas. Nesse sentido Saleiro afirma que as 35

No domínio da orientação sexual e da assunção de identidades transgéneros alguns progressos no sentido da inclusão tem-se verificado m Portugal, nomeadamente em 2003 com a contemplação no Código do Trabalho da igualdade no acesso ao emprego e trabalho independentemenete da orientação sexual, em 2007 o Código Penal inclui a orientação sexual como motivo de discriminação a par de outras dimensões do indivíduo (raça, etnia, etc), em 2004 na Constituição da República Portuguesa é acrescentada a orientação sexual ao art. nº 13 princípio da igualdade, embora sem referência à identidade de género. Ao nível europeu verificamos algumas recomendações no âmbito do Issue Paper (2009) e no Estudo do conselho da Europa indicando a necessidade da criação de estruturas nacionais especificicamente orientadas para a promoção da igualdade de género e orientação sexual, etc. Ao nível das práticas médicas algumas directrizes internacionais continuam a considerar maioritariamente as identidades transgénero, como doenças mentais. É o caso da DSM – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. (Cf. ao nível das dinâmicas sociais médicas, legais e associativismo da temática transgénero, Saleiro, 2013:150-170) 19

transexuais se encontram no “topo da hierarquia” dos transgéneros, não só por se revelarem como a categoria mais estabilizada, mas também pelo facto de ser aquela que é estruturalmente mais valorizada e respaldada. (Saleiro, 2013:251) Ainda no âmbito das identidades/corpos travestis e transexuais, e à luz de uma análise que deixa entrever a necessidade da sua realização em diversas escalas, Pelúcio vislumbra no contexto brasileiro uma outra diferenciação: as origens sociais tendencialmente distintas de umas e outras. Como refere, a grande maioria das travestis é proveniente de classes médio-baixas enquanto, que as transexuais são maioritariamente pertencentes às classes média e média alta (Pelúcio, 2006:525). Em Portugal, e concebendo os sujeitos como identidades em processo, no caso de uma travesti desejar ultrapassar a sua condição de indivíduo com perturbação de identidade e regularizar a sua socio-construção de género, ela pode nos termos da Lei n.º 7/2011 de 15 de Março no seu art.º 3, nº 1 e 2 e através de requerimento enviado a uma conservatória do registo civil, solicitar procedimento de alteração de sexo e nome, da mesma forma, em que nesses serviços se solicitam a nacionalidade portuguesa ou a realização de casamento civil. Não obstante, estes actos administrativos apenas podem ser consumados após apresentação do sujeito a um painel constituído por 2 médicos, que o diagnostiquem como um indivíduo com uma perturbação de identidade género compatível com a transexualidade.36

“Pela Lei 7/2011, de 15 de Março, tornou-se possível proceder à alteração de sexo e de nome no registo de nascimento sem necessidade de prévio processo judicial. O procedimento criado é da competência das conservatórias do registo civil. Têm legitimidade para requerer os cidadãos portugueses, maiores de idade, que não sejam interditos ou inabilitados por anomalia psíquica e aos quais tenha sido diagnosticada perturbação de identidade de género. Documentos a apresentar para iniciar o processo: - Requerimento do interessado que necessariamente deverá conter a indicação do seu número de identificação civil e do nome próprio com que pretende vir a identificar-se, além dos demais elementos próprios dos requerimentos. - Relatório que comprove o diagnóstico de perturbação de identidade de género, elaborado por equipa clínica multidisciplinar de sexologia clínica, o qual deve ser, pelo menos, assinado por um médico e um psicólogo.” Esta matéria é regulada pelo Instituto dos Registos e do notariado. (Disponível em http://www.irn.mj.pt/IRN/sections/irn/a_registral/registo-civil/docs-do-civil/procedimentos/#nome. Acesso em 14 de Agosto de 2014). Neste contexto não só os médicos produzem um conceito sobre a transexualidade, como os próprios indivíduos podem produzir um discurso compatível com o que outro espera, de alguém que verdadeiramente corresponda à categoria médica de transexual. 36

20

1.6. Hermafrodita/intersexo Por se revelar uma situação de desconforto social e pessoal - um não lugar (visto que nem dentro dos parâmetros heterossexuais se encaixa num feminino ou num masculino), a solução para os hermafroditas (que possuem características genitais de ambos os sexos) passa muitas vezes, por uma cirurgia de correcção (Lima, 2006:1).37 Tal verifica-se também no caso abordado por Garfinkel quando argumentava que não é possível perpetuar a indefinição de sexo, pois ela terá consequências ao nível da construção do género, a qual mais tarde ou mais cedo será empreendida pelo actor social. Ou se pertence a um ou a outro, nunca aos dois (1967). Em quaisquer dos casos anteriores, e visto que o corpo e o sexo marcam indivíduos e delimitam a frequência de espaços sociais, masculino e feminino reflectem papéis social e historicamente (politicamente) atribuídos, pelo que o seu desempenho se realiza em espaços e áreas socialmente confinados a cada um deles. (Lima, 2006:1) Vários autores referem essa ambiguidade como um dos maiores dilemas humanos: o sexo com que se nasce e o género não compatível em que se integra “semeia a dúvida no seio da sociedade, constituindo um dos conflitos mais radicais a que se pode expor uma pessoa” (Gómez, 2002). Nos casos de mera inconformidade genital, ela pode actualmente ser corrigida pela biotecnologia médica. Ressalvam-se todavia, alguns aspectos éticos e deontológicos quando essa inconformidade é detectada precocemente. Não há forma de assegurar com antecedência que a decisão assumida em relação à correcção do sexo da criança será a mais adequada, sem incluir nesse processo variáveis (que só mais tarde) confirmarão quer o posicionamento sexual, quer a construção de género dessa criança, permitindo que ela se viabilize satisfatoriamente (Ferrari, 2002:470). Este princípio assume o carácter construído do género e tal só se realiza no palco social e não num momento prévio a essa actuação pública/interacção.38 Caso o pressuposto previamente citado não seja observado e nas situações em que o envolvido é uma criança, dir-se-ia que o seu corpo constitui pertença da sociedade segundo os desígnios da heteronormatividade, à luz desse padrão estabelecido e

37

No caso da cirurgia ao sexo - sex-reassignment - em sequência da terminologia gender assignment usada por Kessler e Mckenna. (1978:8) 38

Daí também a nossa opção por utilizar o género feminino quando nos referimos às travestis. 21

moralmente dicotomizado. Ao invés desta perspectiva, a posição adoptada nos dias de hoje vai no sentido de aguardar pela autodefinição identitária de género do sujeito, sendolhe atribuído o direito a inscrever no corpo e mente a sua própria história, através da e na interacção social. O que sublinha um outro aspecto de extrema relevância - o corpo entendido como repositório e veículo de sinalização de uma parte da história do indivíduo (Ferrari, 2002), facto, de inquestionável relevância também para as travestis, como veremos adiante. No entanto, existe uma outra dimensão desta escolha ou imposição resultante de processos de identificação e desidentificação. Agnes, por exemplo, - que segundo Garfinkel e os médicos que a acompanhavam, seria actualmente considerada como um caso de intersexo (Cf. intersexo, Lima, 2006) - considerava repulsiva a ideia de que alguém a enquadrasse na categoria dos homossexuais ou travestis;39 inclusivamente afastava-se deles no seu dia-a-dia, pois não queria ser confundida com essas identidades, assumindo-se segundo a ciência médica como alguém com ambiguidade sexual. No entanto e na medida em que procurou alcançar a sua legitimação estrutural, nos momentos prévios à realização da cirurgia de correcção, experimentou a angústia decorrente da espera necessária à realização das várias entrevistas com psicólogos e psiquiatras, das quais resultaria a decisão sobre se observava ou não, as condições para ser uma mulher transexual. Finalmente foi submetida a cirurgia e apenas nessa altura, tal como hoje em muitos contextos o momento da luz verde estrutural e legitimante da sua identidade de género foi activada. (Garfinkel, 1967) Contudo, Agnes que sempre buscara a naturalização discursiva da sua narrativa de género (a qual, segundo tal argumentação, nunca poderia ser uma opção ou construção) e que dera a entender a Garfinkel que todos os sinais impressos no seu corpo tinham nascido com ela, confessa após a cirurgia que, afinal, desde os 12 anos recorria a hormonas para que os peitos se desenvolvessem e a voz ficasse mais feminina. Na verdade, discursivamente sempre buscou a naturalização mas na prática produziu a sua feminilidade. Em quaisquer dos casos, contudo, elaborou um discurso sobre si, sobre o

39

Ver Saleiro e os discursos diferenciadamente produzidos entre sujeitos concretos inseridos em diversas categorias trans com o objectivo de legitimarem a sua autenticidade e num certo aspecto, a sua superioridade ontológica face a outras categorias (2013). Reafirmamos a necessidade de contextualizar categorias como transvestite no âmbito da literatura anglo-saxónica de um modo que não corresponde na íntegra ao conceito de travesti que usamos. 22

outro e para os outros, revelador da eficácia da pressão estrutural sobre ela actuante.40 Assim, Agnes - que inicialmente se apresentou como uma intersexo41 - era uma travesti que mediante cirurgia de correcção passou a ser uma transexual. Três aspectos relevantes deste episódio que sublinham a dimensão processual aqui presente: 1- O corpo sinaliza e legitima aspirações dos sujeitos perante a estrutura ou perante si próprios. 2- O uso de mecanismos tecnológicos que actuam sobre o corpo - transformando-o - permite por esse meio integrar os indivíduos numa ou noutra classificação estrutural e paralelamente, fornece-lhes os referentes para se auto-entenderem e serem entendidos na relação consigo próprios e na relação com os outros. 3- A legitimação de uma determinada classificação conceptual de transexualidade pela medicina, faz sobressair notoriamente o facto de que esta categoria se encontra nessa dimensão, enquadrada na estrutura. 4- A natureza ilegítima de uma construção de género travesti - em que sexo e género não correspondem – descontinuidade - nem os indivíduos estão interessados que corresponda – colide de forma evidente com o poder.42

40

De alguma forma Agnes estrategicamente produziu um discurso sobre ela própria, mas que lhe permitia – na sua perspectiva – aceder com maior facilidade à chancela legitimante da estrutura sobre o género e identidade que pretendia produzir/construir. 41

Os conceitos de hermafrodita e de intersexo não são coincidentes. Apresentam no entanto, pontos confluentes. Intersexo designa nos seres humanos, qualquer variação de caracteres sexuais incluindo cromossomas ou órgãos genitais que dificultam a identificação de um indivíduo como totalmente feminino ou masculino. Hermafrodita é alguém que possui órgãos sexuais dos dois sexos. Optámos por colocar a questão dos intersexo junto com a dos hermafroditas pela ambiguidade que ambos os casos revelam, pelas dificuldades similares que estruturalmente são colocadas a esses indivíduos, bem como devido à similitude de condições através das quais se processa a sua construção ou reconstrução de género. 42

Para Garfinkel (1967) e para esquemas de pensamento socialmente dominantes nos dias de hoje, a viabilidade social só é possível quando existe correspondência entre sexo e género. Sob um ponto de vista estrutural, o processo que leva a que alguém se torne num transexual, é no fundo um processo que procura a correspondência entre sexo e género e a eliminação de incongruências. Noutro sentido e como já verificámos anteriormente há autores que enquadram a transexualidade fora da sua produção enquanto categoria médica, e nesse sentido a cirurgia aos genitais não é condição para que alguém expresse uma identidade de género transexual. (Cf.Saleiro, 2013) 23

5- A dimensão negociada de todas as categorias trans, quer entre sujeitos e estrutura, quer entre sujeitos com afinidades identitárias transgénero, quer entre sujeitos com especificidades trans diferenciadas. 1.7. O Papel da linguagem e da gíria na incorporação de modelos e estruturação da experiência No contexto travesti a incorporação de modelos de subjectividade - que ligam de forma idealmente coerente, género, sexualidade, personalidade e emoções - ressurge quando as travestis se auto-elaboram como pessoas em múltiplos contextos relacionais, recriando significados e instituindo eficácias legitimadoras das suas práticas. Essa multiplicidade de contextos relacionais exige das travestis uma plasticidade de desempenhos que reflecte a relação ambivalente desenvolvida e mantida com a estrutura.43 Estes desempenhos encontram na linguagem e nos seus corpos transformados, referentes que organizam a experiência concreta que orienta as suas práticas de um modo que pretendem credível, para si e para os outros. Este perfil de constante actuação sobre o corpo traduz aquilo que Lopes designou por “metáfora da transitividade e fluidez inscrita nas sexualidades contemporâneas.” (2002:68) Esta forma de afirmação social reflecte uma busca incessante de coerência ontológica em práticas altamente mutáveis que, precisamente por serem mutáveis, geram instabilidades performativas, quer no self, quer no interlocutor não-travesti com quem interage - resolvidas pelas travestis através da linguagem verbal e não-verbal, mediante as quais buscam legitimidade e autenticidade para as suas especificidades contextualmente vividas e dirimidas na interacção. Todavia, contraditoriamente, esta mutabilidade de práticas que repousa em enunciados discursivos fluídos, torna-se um traço identitário estável, enquanto estratégia de acção e sobrevivência travesti. Enquanto, que nas drag-queens ou crossdressers detectamos uma mutabilidade reversível por definição, dado o carácter socialmente extraordinário dessas acções, nas travestis a mutabilidade é uma prática ordinária do

43

A marginalidade instituída das travestis como mulheres desviantes sublinha e reforça as normas sociais de género, mas paralelamente evidencia o carácter construído do género ao desafiar fronteiras ou redesenhando-as. (Cf. Jenssen, 2003:97) 24

quotidiano visto que não envolve um regresso a casa44. De alguma forma, parte dos alicerces dessa nova casa identitária são constituídos e tornados viáveis por essa fluidez. O carácter inacabado do “fazer” e “re-fazer” do corpo45 enquanto veículo de linguagem reflecte essas instabilidades e gera uma eficácia dupla. O corpo não é apenas uma linguagem por si, como também se constitui como objecto de produção de um discurso sobre si. Neste sentido, o corpo não enquadra apenas as experiências enquanto linguagem que as reflecte e organiza, como ele próprio se converte em experiência estruturada pela linguagem. Deste modo, corpo e linguagem emergem como elementos basilares da construção da narrativa identitária travesti ou nas palavras de Ekins e King – do gendering - um processo inacabado e contínuo de fazer o género, gerido na e pela interacção diária (2006). Citar as práticas é fazê-las emergir como acções de sujeitos políticos (Coates, 1998:301) num determinado contexto social e, paralelamente produzilas enquanto sujeitos travestis concretos. Este carácter construído do género nas travestis aponta colateralmente para essa mesma natureza processual e construída da heteronormatividade, espelhada no modo como adoptam reversamente o discurso dominante hétero. No mesmo sentido, Eckert e McConnell-Ginet sustentam que a linguagem é um veículo de simbolização; ela investe ou desinveste os sujeitos de poder, conota-os e arruma-os ou, ao invés, desestabiliza-os através dessa mesma conotação ou denotação. A performatividade existe porque o discurso e a estrutura lhe conferem inteligibilidade (1992:483). Por sua vez, esse discurso emerge num sistema de interacções concretas, as quais, ao serem citadas e performatizadas colocam o sujeito no plano da existência social e política, reforçando paralelamente um determinado esquema de relações ou de pensamento. Em suma, institui, reproduz ou produz um modelo, actualizando-o contextualmente mediante hierarquização de pessoas e valores. No desenrolar deste

44

Sublinhamos que o termo travesti pode designar outras formas de construção social dos sujeitos, todavia o nosso universo de estudo é constituído por indivíduos que através das acções promovidas sobre corpo, tendem a impossibilitar qualquer componente oscilatória no processo. De qualquer modo estas margens por vezes indefinidas justificaram o aparecimento etic e utilização emic do termo travesti por necessidade de diferenciação face a outras figuras, como por exemplo as crossdressers. (Cf. Ekins e King, 2006, Saleiro, 2013) 45

Cf. Zimmerman e West (1987) e o doing gender. Para estes autores o género é uma estrutura e não um papel social. No nosso entender o género constitui um princípio estruturante, todavia como construção/expressão social apresenta igualmente uma dimensão estruturada a que correspondem papéis sociais e estatutos. 25

processo, a linguagem pode ser utilizada como um marcador de inclusão do outro no grupo ou de auto-exclusão de grupos constituídos pelo outro/s. Num enquadramento marcado por aberturas e fechamentos a contextos socioestruturais maioritários, Marcos Benedetti ao trabalhar com travestis em Porto Alegre (2005), considerou que as mesmas, no decorrer de um processo de busca pela sua legitimidade ontológica, têm procurado exercer através da linguagem uma tentativa de naturalização da travestidade, indo ao encontro de uma causa biológica para a sua assunção de género e desejo erótico. “Não é uma opção, é algo que nasce com agente”, afirma Júlia Vellaskes, convergindo involuntariamente para a representação da sociedade relativamente a elas, como padecendo de uma psicose, patologia ou anomia – desvio da natureza. Não obstante, e em simultâneo, verifica-se por esta via a elaboração de uma das muitas estratégias concebidas e accionadas pelas travestis com o intuito de obstar à estigmatização de que são alvo. O uso da naturalização pretende a legitimação nos mesmos moldes em que se fundamenta a heteronormatividade - a norma ficticiamente elevada ao plano da natureza - que nos reconduz ao ponto de partida deste tópico: linguagem e corpo feito constituem-se como catalisadores dessa naturalização de género. Numa outra escala, são as transexuais que concebem na naturalização um modo de se diferenciarem das travestis, afirmando que ser travesti é uma opção, ao contrário do que sucede com elas/eles, que nesceram assim. (Saleiro, 2013) Nesta perspectiva biológica/naturalizada, a mulher nasce mulher - ao contrário do argumento de Simone de Beauvoir, segundo o qual ninguém nasce mulher mas sim, tornase mulher (in Butler, 2007, Cf. Santos 2006). Contrariando este argumento construtivista de Simone de Beauvoir, a perspectiva naturalista assume que o ser não é uma opção. Assistimos, no primeiro caso a um re-significar estratégico, a um operacionalizar de instrumentos identitários explicáveis face ao facto de tanto as identidades como as experiências serem conceitos variáveis e posicionais. (Hall et all, 1996, Hall in Silva, 2000, Kulick 2003 in Cameron e Kulick, 2006) A identificação contextual do posicionamento dos sujeitos na interacção permite descortinar os repertórios convocados para a construção e afirmação das suas identidades. Como tal, os indivíduos estão organizados discursivamente e nas suas práticas de forma contextual (Scott, 1994:18), buscando um topus social, uma inteligibilidade “objectiva” para a subjectividade do concreto. Existe, portanto, no caso travesti uma distorção da 26

lei/normatividade heterossexual que ambiguamente se constitui como referente dessa subversão (Foucault, 1978),46 dependendo da execução circunstancial de estratégias e do posicionamento das mesmas face à estrutura, perante a qual se pretendem legitimar a vários níveis e em diversas escalas de agenciamento do concreto. Neste sentido Kulick afirma ter documentado: Como as travestis pensam e estrategicamente organizam as suas vidas, em termos que invertem, distorcem ou reordenam configurações de género, de um modo que para o outro não travesti se revela inimaginável. (1998:191)

Todavia a existência de referentes que fazem do género aquilo que ele é em determinado momento – também na vertente cultural do corpo - é para alguns autores que subscrevemos, decorrente da importância da história no estudo, institucionalização e desempenho socialmente conformado da categoria género (Cf. Scott, 1994, 1995, 1998).47 A identidade de género, enquanto constructo cultural, torna-se assim mais rica e polissémica que a identidade de sexo, confinada à genitália. Por isso, alguns autores sublinham que a psicanálise “segundo a apreendemos, destitui o sexo anatômico da garantia de direção inequívoca para a constituição psíquica.” (Lionço, 2006:2). Para tal tornam-se essenciais às travestis as acções tecnológicas sobre seus corpos para sinalizar e comunicar as suas diferenças ou convergências: Assim é possível perceber, como as entrevistadas reflectem a noção de que os seus corpos são também a sua linguagem, já que é também, através deles que as travestis se produzem e se constroem como sujeitos. (Carneiro, 2009)

Neste sentido, as dimensões psíquicas e simbólicas convertem-se em vectores que conferem enquadramento à experiência do corpo, à história nele escrita e inscrita

46

A lei ao criar a ficção ontológica de um sujeito que lhe pré existe, fá-lo no intuito de poder invocar discursivamente esse estatuto de sujeito natural, de modo a legitimar-se num patamar que se confunde com a própria natureza. (Cf. Foucault 1978) 47

Joan Scott é historiadora e feminista. A sua obra relaciona paradigmas históricos e políticas do sexo com a construção e desempenho contextual de determinados papéis e posicionamentos de género, por exemplo a teoria patriarcal, a marxista e a psicanalítica (1995). Estas teorias, produtos de determinados contextos sociais determinam o maior ou menor relevo de cada género, podendo inclusivamente levar à invisibilidade de algum deles (1998), traduzindo diferentes relações de poder nas quais a variável género constitui também uma forma de exercer esses poderes (1994). Conferir relativamente à influência do sistema patriarcal, marxismo e psicanálise sobre o género, Gayle Rubin. (1975 in Lewin, 2006) 27

(Bussinger, 2008), fornecendo às acções e discursos uma notável plasticidade, constatável na fluidez com que as travestis se elaboram narrativamente. (Lionço, 2006)

28

Capítulo 2 - SISTEMAS SEXO E GÉNERO 2.1.Critério genital/ Gender assignment No âmbito e seguimento do que tem vindo a ser argumentado relativamente à ambiguidade de sexo e género, o género enquanto construção e expressão social constituise como um marcador que exige do indivíduo actuação no palco social e não a mera submissão a uma cirurgia ou a um acto citacional prévio (ecografia) ao nascimento ou imediatamente após o parto (através de classificação técnica verbalizada).48 Não obstante, sublinhe-se que as cirurgias exercem uma função de marcação do corpo, inseparável da afirmação social do indivíduo enquanto sujeito performativo e citacional. Assim, o indivíduo emerge como sujeito de desejos, erotismo e como “portador” de um género, ao produzir um discurso sobre si mesmo e sobre os demais, estando esse enunciado mais ou menos alinhado com a comunidade com que realiza o processo de identificação através da interacção e, mediante o qual negoceia o seu topus social e se assume numa vertente política colectiva.49 A diferença é entre identidade, que na sociolinguística e na linguística antropológica nos é apresentada como uma maior ou menor consciência de um determinado posicionamento sociológico e identificação, a qual é relativa a um processo ou conjunto de operações através das quais o sujeito é constituído. (Kulick 2003 in Cameron e Kulick, 2006:293)

A identificação resulta portanto, da relação processual estabelecida entre um conjunto de operações relacionais construídas a partir de uma maior ou menor consciência socio-antropológica do sujeito, a partir da qual o mesmo emerge – enquanto tal - na interacção (Kulick 2003 in Cameron e Kulick, 2006). Nessa dinâmica, vários são os factores a ter em consideração, nomeadamente variáveis como classe, raça, etnia, cor, género ou sexo (Lima, 2006:3, Cf. Fry e McRae, 1993), não obstante passíveis de valorações subjectivas em função de diferentes contextos geográficos e socioculturais. (Anthias e Gabriela, 2000)

48

Aqueles que se identificam em termos de género com o sexo com o qual nasceram são considerados cissexuais. (Saleiro, 2013) 49

Contrariamos nesta perspectiva a existência de proibições interiorizadas pelo indivíduo, antes mesmo de ser sujeito, como argumentava Butler relativamente à proibição da homossexualidade. (2007) 29

Parece constatar-se a este nível, a importância que assume para o indivíduo - com aspirações e desejos - o facto de não ter lugar ou de se auto entender ou ser entendido como um sujeito heterotópico.50 A ambiguidade de género confere ao indivíduo um não lugar na sociedade ou uma alteridade heterotópica com todas as consequências que isso aporta socialmente, nomeadamente a incompreensão pelo outro. A heterotopia que aplicamos à travesti reflecte a coexistência num espaço corporal, de sinais e normatividades justapostas, as quais, noutro âmbito, se revelariam lógicas totalmente incompatíveis entre si. Estas heterotopias - conceito que por analogia usamos sobre o sujeito travesti, seu corpo e posicionamento social - implicam um sistema de abertura e fechamento, o qual, simultaneamente as isola e torna penetráveis (Foulcaut, 1967:7). Esta alternância de estados de receptividade perante o que lhes é exterior permite que esta contradição inicial se prolongue na forma como aglutinam no seu corpo e repertórios que se enquadram mutuamente - transitividades fluídas múltiplas (Lopes, 2002), as quais, não obstante, sustentam e permitem a coexistência dessas lógicas aparentemente incompatíveis. Contudo, e ainda neste quadro de alternâncias dialécticas entre aberturas e fechamentos, argumentamos no sentido de que a eficácia heteronormativa e seus princípios, é reapropriada nos seus elementos estruturantes pelas travestis de um modo que reflecte um estado de liminaridade, visto que se produzem no campo social ambíguo de dois géneros entre os quais vão negociando e actualizando a sua identidade. Os atributos de liminaridade, ou de personae (pessoas) liminares são necessariamente ambíguos, uma vez que esta condição e estas pessoas furtam-se ou escapam à rede de classificações que normalmente determinam a localização de estados e posições num espaço cultural. As entidades liminares não se situam aqui nem lá; estão no meio e entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial. (Turner, 1974:117)

É como se dois sub-modelos estruturantes conferissem inteligibilidade à sua identidade em simultâneo ou em regime de alternância, um traduz a submissão à estrutura e seus saberes, outro emerge, alternando com o primeiro, sob a forma de ambiguidades estruturais, visto que não reproduz posicionamentos autorizados, antes os, mistura,

50

É um conceito de geografia humana introduzido por Foucault. Distintos das utopias, as heterotopias são espaços localizáveis que justapõem várias lógicas incompatíveis. As heterotopias, enquanto espaços localizáveis, embora revelem a justaposição de lógicas incompatíveis entre si, reflectem paralelamente modos de organização e hierarquização humana alternativas e coexistentes. 30

condensa ou apaga. É neste sentido que Victor Turner distingue communitas de comunidade/estrutura. Este entendimento assenta numa visão dialéctica do social: De tudo isso, concluo que, para os indivíduos ou para os grupos, a vida social é um tipo de processo dialéctico que abrange a experiência sucessiva do alto e do baixo, de communitas e estrutura, homogeneidade e diferenciação, igualdade e desigualdade. A passagem de uma situação mais baixa para outra mais alta é feita através de um limbo de ausência de "status". Em tal processo, os opostos por assim dizer constituem-se uns aos outros e são recíprocamente indispensáveis. (Tuner, 1974:120)

Na verdade, é nesta relação entre estados e categorias contextuais, que quando o indivíduo nasce, pertence a uma determinada classe social, a uma determinada raça e/ou etnia, é cidadão de um país e todas as suas relações sociais vão sendo tecidas nessa rede de contactos partilhados e emaranhados relacionais estruturalmente formatados também pela oposição ao outro. Em paralelo, através de um acto médico51 prévio ao emergir de um sujeito performativo, o técnico de saúde exclama: “é menino!” (Bento, 2006).52 E após o nascimento, no decorrer da negociação actuante na arena social, verifica-se que o sexo desse “menino”, pouco tem a ver com a forma como se insere na “sua” categoria de género identificada linearmente e originariamente com o seu sexo – cissexualidade “menino”/masculino. Kessler e Mckenna referem-se a este momento único como gender assignment (1978:8), resultante de uma inspecção técnica aos genitais imediatamente após o nascimento da criança, fazendo corresponder sexo e género. Por seu turno, Zimmerman e West designam-no por critério genital. (1987:121, Cf. Em sentido complementar Saleiro, 2009a) Neste contexto, a partir das primeiras evidências de que os sinais emitidos para o exterior não traduzem uma correspondência com o posicionamento de género estruturalmente atribuído - decorrente da eficácia simbólica esperada do signo “menino” - não é apenas posta em causa a inclusão do indivíduo num género mas também a sua pertença a todos os outros vectores de interacção social, levando muitas vezes à exclusão familiar, ela própria produto da norma que o “menino” não actualizou. Nesse momento, 51

Citado através da linguagem que enquadra e estrutura normativamente a experiência.

52

Segundo Bento, antes de nascer, o corpo já está inserido num campo discursivo e de práticas, determinado. Esse campo aguarda-o para proceder à socialização no seu âmbito, do qual emerge um conjunto de expectativas estruturadas mediante uma rede complexa e compulsiva de pressuposições “sobre comportamentos, gostos e subjectividades que acabam por antecipar o efeito que se supunha causa.” (2006:2) 31

o indivíduo é remetido à condição de um errante de género, pois renunciou a uma condição de género socialmente compatível com o seu sexo, no sentido em que literalmente vagueia nas margens do socialmente aceitável e classificável (Ferrari, 2002:469). Este processo reflecte e justifica a analogia realizada com as heterotopias de Foucault (1964) ou a communitas de Victor Turner (1974), visto que o corpo e identidade travesti condensam realidades normativas justapostas, noutros espaços e lógicas, incompatíveis entre si- ser simultaneamente, homem e mulher. Nestes casos, essas identidades podem ser repudiadas coercivamente, sonegando aos indivíduos a possibilidade de emergirem como sujeitos nas relações com os outros – inviabilizando por exemplo actos como o de pedir empréstimo a um banco ou realizar a inscrição numa escola em que é solicitada a apresentação da sua documentação institucional - passaporte ou bilhete de identidade - relativa a uma identidade que enjeita (Namaste, 2000). Para tornear estes apagamentos, seria necessária a submissão ao contrato social estrutural que lhe é imposto, assumindo ainda que temporariamente uma identidade na qual não se posiciona, mediante atribuição de um cartão de identidade, passaporte ou outros, que conferem ao sujeito uma existência institucional, ou seja uma determinada viabilidade pessoal e estrutural. Neste contexto disfuncional, muitas vezes a solução encontrada reside na saída de casa e procura do grupo (Benedetti, 2005, Kulick, 1998, Loise, 2006, Pelucio, 2005, 2006, 2006ª, 2007, Silva, 1993),53 no seio do qual possam alcançar um topus com referências relacionais e antropológicas que lhes permitam aparecer socialmente como sujeitos de interacções sociais, através de processos de identificação e sentimentos de pertença.54

53

Tal reflecte, por um lado, a emergência da puberdade e o desenvolvimento das características sexuais secundárias – muitas vezes acompanhadas por sentimentos de isolamento e de repulsa pelo próprio corpo (Korell e Lorah, 2007); por outro, os abusos psicológicos e físicos que podem caracterizar as relações interpessoais nesta fase da vida associados aos comportamentos e às expressões de género percebidas por outros/as como não normativas. (Nuttbrock et al., 2010 in Pinto e Moleiro, 2012, Cf. Mead, 1969) Assiste-se à emergência de mercados da diferença – mesmo ao nível identitário o importante pode consistir em ser-se diferente - e os actores sociais, caracterizados por pertenças múltiplas e identidades cada vez mais partilhadas e divididas, questionam dogmas e paradigmas, monitorizando-os e agindo criticamente sobre eles. “Os problemas mais complexos da vida moderna decorrem da vontade do indivíduo preservar a sua independência e individualidade perante os poderes supremos da sociedade (…) Resistência do indivíduo à uniformização e à submissão perante as engrenagens sócio- tecnológicas.” (Simmel in Fortuna 2001:31, Cf. no mesmo sentido Castells, [1997] 2004, Wileviorka, 2002). Neste caso concreto, a fronteira desenhada relativamente a travestis e crossdressers mais não é que a separação no plano das práticas, entre aqueles que exercem uma determinada orientação sexual e os outros que actuam de forma a construir um outro género não correspondente ao seu sexo. 54

32

2.2. Perturbação de género e orientações sexuais minoritárias. Estudos queer Com o intuito de demonstrar como operam as dinâmicas mais ou menos sub-reptícias de construção de género e sua relação com orientação sexual, ultrapassando a questão clássica do desvio perante a heteronormatividade, sua vigilância e coercibilidade latente, a etnografia de Oliveira (elaborada a partir da observação da clientela numa discoteca no Rio de Janeiro) regista que os homossexuais não pagam entrada, sendo esta apenas exigida àqueles que demonstrem um desempenho feminino, nomeadamente travestis e Crossdressers. Parece evidente, neste caso, que são desenhadas fronteiras entre identidades, separando um nós de um eles, também no plano dos consumos identitários.55 Este estabelecimento é frequentado maioritariamente pelo que o autor designa camadas populares, cruzando portanto mais uma vez as variáveis género e sexualidade com posicionamento de classe (2006:1).56 Tais grelhas analíticas demonstram a complexidade dos processos identitários, bem como o carácter processual das teias intermináveis em que se constroem identificações e se assumem desidentificações, assentes na sobreposição de fronteiras, por vezes ténues, mas necessárias à emergência dos sujeitos num emaranhado de redes que se opõem e sobrepõem ou que outras vezes – voluntária ou involuntariamente - se confirmam.57 Se por exemplo, os/as transexuais e travestis estão incluídos no grupo GLBT58, onde se procede a uma amálgama entre construção de género e orientação sexual por relação a uma estrutura tendencialmente hegemónica e sempre opressora, a outros níveis constituem-se como minorias dentro das minorias (Cf. Saleiro, 2009 e 2013), opondo-se 55

Em Portugal, Gameiro refere a existência e emergência de um mercado cor-de-rosa a partir dos anos 80 (2000), em que os consumos ultrapassam a esfera objectiva da satisfação de necessidades imediatas para se converterem em marcadores identitários, através de um processo no qual aquilo que se consome transmite algo acerca das pessoas que o fazem (Rosales, 2002) e em que as coisas passam a ser elementos constituintes de repertórios identitários. Os mercados da diferença identitária surgem intimamente ligados a um modelo capitalista de satisfação de necessidades, em que num momento prévio a esse processo se institui uma indústria que produz social e simbolicamente necessidades. 56

Fry e MacRae chamam à atenção para que diferentes posicionamentos sociais em função do capital intelectual, financeiro, político ou de classe, podem conduzir a uma diferente forma de viver e representar a homossexualidade (1993). Nomeadamente um prostituto masculino que vende serviços sexuais a homens, por exemplo, terá uma visão muito mais pragmática do sexo praticado, comparativamente com a de um universitário homossexual e este, por comparação terá uma narrativa acerca da sua homossexualidade, igualmente distinta da de um indivíduo do meio rural e sem percurso académico. 57

Mais uma vez sublinhamos a importância dos espaços, na forma como projectam em si próprios através de lógicas comportamentais actuantes, fronteiras identitárias de grupo – espacialidades. (Ledrut, 1979) 58

Lésbicas, gays, bissexuais e transexuais. 33

entre si demarcando fronteiras que lhes conferem diferentes consciências do seu posicionamento social e antropológico e por isso, identidades específicas que desenvolvem estratégias próprias, as quais podem muitas vezes ser reciprocamente conflituantes. Tais lógicas promovem o eclodir de situações em que aliados políticos, podem

tornar-se,

noutros

contextos,

adversários,

dirimindo

contextualmente

especificidades identitárias e agendas reivindicativas próprias.59 Neste quadro de abordagem introdutória às fronteiras simbólicas de género, listamos ainda noutra escala e a título de exemplo, categorias como bicha ou viado associadas a vivências de travestis, crossdressers e homossexuais. Tais, reflectem uma eficácia simbólica dentro dessas comunidades, entre as comunidades e entre os indivíduos que as constituem. Neste sentido, para uma travesti pertencente ao universo que abordamos, bicha será sempre a alteridade do homem de verdade, o qual se caracteriza por ser activo (Cf. Fry e MacRae, 1993, Green, 1999, Pelúcio, 2006) e dominador (Cf. Vale de Almeida, 2000 - modelo patriarcal e modelo central de masculinidade). Bicha qualifica portanto o parceiro passivo de uma relação sexual, desinvestindo-o de atributos valorizados num homem, “talvez pela carga de abjeção implicada” (Oliveira, 2006:2), na medida em que as práticas sexuais não correspondem ao esperado do género verdadeiramente masculino. Noutro contexto, poderá ser apenas uma provocação jocosa entre manas, a qual todavia, não deixa de ser um instrumento de hierarquização entre travestis de corpo feito e sem corpo feito. Por outro lado para uma transexual ser chamada de travesti pode revelar-se quase um insulto, quando pesados os graus de autenticidade presentes nos repertórios de umas e outras (Cf. Em sentido complementar Saleiro, 2013:251-252).60 Será nesta ambivalência de significados e significantes, de práticas e 59

A observação de debates em espaços como o facebook deixa entrever fissuras profundas entre a comunidade LGBT. Aghata Lima activista travesti expõe de forma clara esses conflitos, os quais traduzem relações de poder implícitas: “Recadinho para a DOMINADORES do MOVIMENTO GLBT do Estado de SÃO PAULO! NOS PESSOAS TRANS ESTAMOS CANSADAS DE SERMOS MASSA DE MANOBRA DE VCS. #lgbt(disponível em mhttps://www.facebook.com/photo.php?v=742830365740786&set=vb.100000414880299&type=2&theat er , acedido em Agosto de 2014). Neste enquadramento aferimos como apesar de as travestis não se autoidentificarem a vários níveis com as transexuais, se unem neste contexto específico de luta e negociação com as comunidades formadas sob o arquétipo da orientação sexual, assumindo o que as une; a construção de um género fora da casa original. 60

Neste contexto, em que a linguagem e as suas performatividades produzem sujeitos em condições específicas de interacção onde se erguem distintas e igualmente específicas relações de poder, a palavra travesti assume uma valoração socialmente negativa (Cf. Kulick 2003 in Cameron e Kulick, 2006). Traduz ainda outra classificação, ser travesti é querer chocar e dar nas vistas, ser transexual feminina é ser mulher, é ser igual (Saleiro, 2013) 34

discursos que, Kulick aponta um facto relevante: a incompreensão patenteada pelas travestis em Salvador quando colocadas perante a problemática das cirurgias de alteração de sexo. Sempre que o tópico da transexualidade surge em conversa, a reacção geral é de incompreensão. Ninguém consegue entender esse objectivo (…) amputar o pénis apenas as limitará nas possibilidades de obter prazer sexual. (…) Mais, consideram que as cirurgias não só não produzem mulheres, como também as impedem de ter prazer sexual podendo levá-las à insanidade. (1998:85-86)

Esta última abordagem reflecte de imediato uma outra diferenciação face às transexuais, a qual justifica por extensão a outros contextos, a elaboração estratégica de representações múltiplas e por vezes ambivalentes de figuras discursivas como gay, transexual, bicha, viado, homem de verdade, maricona ou outras que abordaremos em detalhe mais à frente. Sublinham igualmente a relevância de uma outra problemática associada e omnipresente nas relações / interacções sociais, nomeadamente a relativa ao género e às práticas sexuais assumidas como intrinsecamente compatíveis ou até linearmente correspondentes à luz estrutural, as quais paralelamente se constituem como referentes da produção de discursos de diferenciação entre grupos não-heterossexuais. Nesse sentido, Saleiro considera possível a emergência de um equívoco quando se incluem transexuais e travestis na “comunidade” GLBT ou se confunde transexualidade com homossexualidade (Cf. 2009, 2009ª), no decorrer de um processo histórico e social em que genericamente sexo e género têm sido entendidos - enquanto esquemas de pensamento correntes (influenciados por classificações médico-científicas com reflexos nas práticas ordinárias do quotidiano) - como correspondentes. Tal, de certa forma, equivale a dizer que a um género corresponde não só um sexo mas também uma orientação sexual e correspondente identidade.61 A volatilidade e minuciosidade de tais conceitos, bem como de outros com estes relacionados exigem da nossa parte um enfoque que incida nos actores sociais concretos mais do que em meras abstracções discursivas ou identidades medicamente atribuídas e

“A assunção tem sido e em muitos casos ainda é, a de que os homens são biologicamente masculinos e se sentem sexualmente atraídos por mulheres, ao passo que as mulheres são biologicamente femininas e se sentem sexualmente atraídas por homens.” (Ekins e King, 2006:46). Regista-se nesta citação o modo como os sistemas sexo e género operam em conjunto na sociedade, ainda que sejam teoricamente distintos, fazendo com que, estruturalmente sexo e género coincidam, também ao nível da sexualidade. 61

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legitimadas. A referência já realizada à abordagem de Saleiro justifica-se pela especial atenção que dedicaremos doravante a sistemas concretos que vigiam, quer a construção de género, quer a orientação sexual.

2.3. A Utopia de uma sociedade sem géneros e sua impossibilidade prática Ao enunciar a dada altura do seu percurso a utopia de uma sociedade sem géneros Rubin (1975 in Lewin, 2006) parece ter menosprezado inicialmente a autonomia e distinta eficácia dos sistemas género e sexo - na qual assenta a análise de Saleiro relativamente a conceitos como homossexualidade ou transexualidade previamente mencionados (Cf. 2009, 2009ª). Contudo, essa argumentação teórica foi ultrapassada por Rubin (in Vance, 1984) quando assumiu uma eficácia social específica de ambos os sistemas, cortando não só o nexo de linearidade naturalizada entre sexo e género (ao separar sexo e género sob a perspectiva de uma vigilância estrutural) como, paralelamente, permitindo descortinar dois aspectos distintos quer no plano da análise, quer no plano da actuação prática dos sujeitos: orientação sexual e construção de género. Analítica e socialmente, ambos os sistemas actuam de forma autónoma, embora revelem influências recíprocas ao nível das práticas e da estrutura. Deste modo, a orientação sexual será submetida ao crivo do sistema sexo e a construção de género à censura do sistema género. No entanto, em Thinking Sex (1975 in Lewin, 2006) a base do seu argumento residia no facto de que considerava que tanto as teorias de Freud como as de Strauss forneciam ao movimento feminista todo o fundamento e consequente capacitação para a correcta leitura dos mecanismos de reprodução e opressão socioestruturais (casamento, exogamia, complexo de Édipo, crise de Édipo, fase pré Édipo, parentesco, dominância, phallus, troca de mulheres). Nesse enquadramento, Rubin propunha que talvez esses movimentos feministas seus contemporâneos62 devessem ousar algo mais, como Marx fizera ao estabelecer a luta

62

Em função de uma análise escalonada (Silvano, 1997) entre os movimentos feministas dos anos 60, constatam-se divergências e facções constituídas a partir de diferentes posicionamentos perante as políticas do sexo, sexualidades ou movimentos libertadores da opressão de género, por exemplo, feministas lésbicas focalizadas numa liberalização de práticas sexuais ou feministas que constituíam um movimento antipornografia, preocupadas com a redução da mulher a mero objecto de diversas formas de prazer sexual. (Rubin in Vance, 1984 [Cf. Oliveira, 2013]) 36

de classes como um meio para atingir uma sociedade sem classes. Talvez devessem utilizar o conhecimento que haviam já adquirido relativamente às operações de poder e processos que estruturam e mecanizam a divisão de géneros, e ousar reclamar uma sociedade sem géneros. “Nós não somos apenas oprimidas enquanto mulheres, nós somos oprimidas por ter que ser mulheres, ou homens, conforme os casos. (…) Devo sonhar com a eliminação das sexualidades e seus papéis sexuais compulsórios.” (Rubin 1975 in Lewin, 2006:102) O paradigma biológico surge como o produto naturalizado de uma realidade que reflecte uma outra, a reprodução humana imbuída e imiscuída de religiosidade, moralidade, ciência e política: masculino produz esperma, feminino produz óvulos e ambos permitem a reprodução da espécie mediante coito vaginal (Cf. Kessler and McKenna, 1978:45). Neste sentido, a divisão de géneros provém do parentesco, o qual por sua vez assegura e vigia a instituição casamento (proibição do incesto e homossexualidade) e ambos transformam social e politicamente masculino e feminino em homens e mulheres. (Rubin 1975 in Lewin, 2006:94)63 Assim, este argumento implica o facto de que sendo o género e sua arrumação social uma consequência das políticas do sexo - uma imposição tida e transmitida como natural pela organização estrutural – estas, produzem social e politicamente homens e mulheres (estratificando-os e gerando assimetrias) num processo que reflecte paralelamente, a existência de um status quo dominante com capacidade para o fazer. Este paradigma estruturante, segundo Rubin, apenas seria ultrapassável ou transformável mediante processo análogo à luta de classes. (1975 in Lewin, 2006) Ao serem reproduzidas e actualizadas estruturalmente, estas políticas do sexo passam a reflectir para a população em geral, mediante incorporação a natureza das coisas, colocando em igual patamar ontológico natureza e norma. Mais do que cultura, as imposições estruturais aparecem sob a forma da própria natureza. Homem e mulher, feminino e masculino são natureza e as suas diferenças e papéis decorrem dela. Esta concepção dual de masculino e feminino (moral, religiosa, jurídica, política, biológica, etc.) vigia e classifica o comportamento dos indivíduos, traduzindo uma expectativa

63

Se, se alterar esta bipolarização entre masculino e feminino, muitas outras áreas do social serão igualmente alteradas, por exemplo a divisão social do trabalho ou a outro nível, os tipos de família socialmente admitidos. (Cf. Santos, 2005 e a parentalidade em famílias homossexuais) 37

social perante o comportamento individual e um constrangimento deste perante tal expectativa estrutural e estruturante. Não é apenas a reprodução humana que está na base da legitimação ontológica naturalizada da heterossexualidade, mas também todo um status quo que historicamente tem colocado o ênfase na assimetria das relações de poder em sentido lato e entre géneros, em particular. Butler afirmava nesse sentido supor o terror e ansiedade despoletada nos indivíduos pelo receio de se tornarem gays e o medo de perderem um enquadramento na classificação de género estrutural (Butler, 2007:XI-XIII), concebendo nesse processo os fundamentos da heterossexualidade. Este posicionamento potencialmente assimétrico dos indivíduos perante a norma reforça a sua hipotética natureza heterossexual, que tem legitimado, entre outros fenómenos, a dominância de um género sobre o outro, de determinadas sexualidades sobre outras ou de determinadas formas de casamento sobre outras. Ainda neste enquadramento teórico, a naturalização da equação entre sexo e género foi também produzida no âmbito da academia em articulação com outras formulações de poder institucional (Foucault, 1978). Assim como o foram designações como transexual, travesti ou outras neste âmbito (Ekins e King, 2005, 200664, Foucault, 1978) as quais, contextualmente localizadas e conceptualmente assimiladas adquiriram contornos de maior aceitação ou, ao invés, de repúdio social dos visados. Em quaisquer dos casos traduzindo sempre hierarquização e implicitamente, assimetria e dominação.65

64

Neste sentido, as identidades travestis e trans são em muito estruturadas na relação estabelecida com as categorizações médicas (Ekins e King, 2006:187). Na medida em que essas designações começam por ser elaboradas no âmbito da medicina como figuras retóricas, conferindo-lhes assim algum tipo de viabilidade estrutural, ainda que inicialmente inseridas no domínio das patologias. Esta constatação sublinha a relação entre teorias da acção e as estruturalistas; se, por um lado, a dialéctica operada produz figuras discursivas; por outro, os sujeitos reais em interacção com estas e outras classificações, produzem-se enquanto tais numa vertente agencial. 65

Neste contexto, Rubin afirma que transexuais e trabalhadoras do sexo estão no ranking mais baixo das perversões e patologias sociais (1975, in Lewin 2006). Da hierarquização social descendente ao pânico social dista um pequeno passo. O pânico social segundo Rubin (in Vance, 1984) é um processo através do qual, após as instituições captarem o receio que a população tem perante determinadas práticas sexuais (em muito devido ao empolgamento atribuído às matérias pela imprensa) legisla sobre elas, criminalizando-as judicialmente e não apenas socialmente. (Cf. Mazzieiro, 1998) 38

2.4. Desvio e anomia; reforço da normalidade estrutural Na perspectiva analítica que temos vindo a enfatizar, de pendor intencionalmente diacrónico, constata-se que já na segunda metade do século XIX se assistia a uma tendência generalizada para classificar as práticas sexuais, delimitando uma fronteira entre prazer saudável e prazer anómico, também denominado por perversão ou perversidade (Leite, 2006, Cf. no mesmo sentido Ekins e King, 2006:119, Saleiro, 2009, 2009ª perturbação de género). Tal paradigma fez com que determinados comportamentos ditos anómicos, fossem catalogados como patológicos - perturbantes, perturbadores e eles próprios perturbados - mediante um processo de medicalização do social. Neste contexto, para fazer face a uma sexualidade patológica, foram criados manicómios/asilos onde estes indivíduos pudessem ser tratados e observados (Leite, 2006:1) ou, noutra perspectiva, institucionalizados e dessa forma incorporados na estrutura, como a sua “anormalidade” acomodada - o desvio criado e reconhecido pela estrutura.66 Por outras palavras, realçase como o processo mediante o qual a norma naturalizada é quebrada, reforça através da actualização coerciva sobre o desvio, quer a sua eficácia social, quer a seu pretenso patamar de natureza. A produção de um eu institucional e patológico, do ponto de vista estruturalista, sublinha a existência de uma natureza metafísica e ontologicamente legítima, com a qual se colidiu. Essa natureza confunde-se com a expectativa do grupo normativo perante o indivíduo, e como tal, com a própria norma. Assim, e no decurso da evolução histórica e social constata-se a emergência de um fenómeno de exotização do anómico/anormal, para o qual a ciência médica não produziu outra classificação que não fosse a de uma deformação de cariz biológico - naturalizando desta forma não só o legítimo mas também o anómico, ilegítimo (Leite, 2006, Cf. queer

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Durante o Séc.XIX os hermafroditas eram expostos e observados pelo público, integrados em espectáculos de horrores e monstruosidades num circuito de circos e feiras, sendo catalogados pela ciência como erros da natureza. No século XXI, a tecnologia permitiu novas formas de acção sobre o corpo travesti e em paralelo novos espectáculos “queer”: os “espectáculos de aberrações”, a fascinação elitista para com o estranho e a estigmatização do considerado “anormal” não desapareceram com os antigos freak shows, mas foram remodeladas pela cultura de massas e pela ciência. Tanto nas persistentes concepções “científicas” de “perversão” ou “parafilia” quanto nos programas de auditório que colocam travestis em cena para o público descobrir se são “homens” ou “mulheres” e assim as “desmascarar”. A espetacularização estigmatizante continua presente. Ainda neste sentido, a pornografia auto-intitulada bizarra ou she-male é um exemplo atual deste nebuloso campo onde se unem o sexo, o riso e os corpos incríveis com suas práticas “maravilhosas”. (Leite, 2006:7) 39

Butler, 2007). Ambos resultantes da natureza produtiva e legitimante de identidades do poder/poderes. Neste cenário, Leite estabelece um paralelismo entre os espectáculos de cultura popular dos séculos. XVIII e XIX em que sujeitos com anomalias psíquicas e físicas eram exibidos perante o público como monstruosidades e as travestis: “o corpo das travestis representaria antes de tudo algo “fora da ordem do mundo.” (Leite, 2006:4). O monstro corporificaria um construto de práticas sexuais não legítimas e aberrantes, esquisitas (queer Cf. Butler, 2007]), reforçando através desse carácter aberrante e esquisito o status quo vigente. Tal expressa um posicionamento originariamente/naturalmente desviante face a uma hipotética natureza estrutural, heterossexual, bem como perante o paradigma da correspondência estrutural e estruturante entre género e sexo, que necessitava portanto de classificação correspondente e segundo esse padrão, compatível.67

2.5. A Lei como natureza. A ficção estrutural biologizante Embora a tendência maioritária tenha sido a da naturalização da equação de correspondência entre sexo e género, a sua correlação unilinear tem vindo a ser gradualmente problematizada. Segundo Butler, “a lei não é simplesmente uma imposição cultural sobre uma heterogeneidade social inata, ela exige também conformidade com a sua própria noção de natureza.” (Butler, 2007:143-144)68 É, neste sentido, um natural inventado que prevalece sobre a natureza por acção de um sistema vigilante e produtor de conformidades/inconformidades que recorre a um

Nos anos 70 emerge um conceito que qualifica a descontinuidade entre sexo e género – disforia de género. (Saleiro, 2013:28) 67

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O bizarro, esquisito, desviante, anormal, motivo de riso e atenção especial constituiu-se como a base para o erguer da Queer Theory no âmbito dos movimentos feministas do século XX (década 60/70). Não se procurava apenas reivindicar direitos sexuais e uma sexualidade queer, mas também alterar o esquema de relações de poder secularmente estabelecidas, em que a assimetria caracterizava as relações entre homem e mulher. Partindo da sexualidade, colocava-se em causa a inevitabilidade de género como correspondendo sempre a um sexo, e com ela minavam-se os fundamentos do poder masculino difundidos pela família patriarcal, branca e de classe média. Na actualidade, outras abordagens são avançadas. Por exemplo, a de uma consultora técnica do Ministério da Saúde brasileiro: “Supor a possibilidade da inclusão social de indivíduos que apresentem discordância entre seus corpos anatômicos e o sexo com o qual se reconhecem subjetivamente, desde que se construam outros referenciais simbólicos que sustentem a transexualidade como experiência possível, e não apenas como um desvio, em relação a um padrão de normalidade, que deveria ser corrigido.” (Lionço, 2006:1) 40

aparelho de poderes sancionatórios e se legitima por acção da sofisticação cultural e dos seus sistemas simbólicos, implícitos. Esta vigilância institucional produz estigma e discriminação e em simultâneo, faz emergir um sujeito anómico institucional que de alguma forma contrariou essa noção de natureza69 (Butler, 2007, Foucault, 1978, 2003, Leite, 2006). Essa assimetria na relação entre estrutura e indivíduo decorre desde logo do facto de Butler considerar que o desejo erótico não surge como causa inicial do género produzido ou sexualidade praticada (Butler, 2007). Antes pelo contrário, sexualidade e a identidade de género começam por ser modelados pela interiorização operada no indivíduo – ainda não sujeito - da proibição da homossexualidade, que nesse processo de estruturação do desejo e género precede o tabu do incesto. (Vale deAlmeida, 2008:6 comentando Butler, 2007)) Neste patamar analítico, a natureza é identificada com norma, quando na verdade a norma poderá ser considerada um produto da acção humana sobre a natureza, ou viceversa e nunca a própria natureza. Não obstante, a partir da perspectiva de Butler, a proibição da homossexualidade incorporada na estrutura do pensamento como algo que permite a noção de um sujeito pré-existente, é natureza e é sobre essa proibição que se funda a heterossexualidade e o desejo erótico. Segundo Butler e em concordância com Foucault, “a lei produz e depois concilia a noção de um sujeito que lhe pré-existe, de modo a invocar um enunciado discursivo como fundamento naturalizado da premissa que esse mesmo discurso legitima; a hegemonia reguladora da lei.” (Foucault 1978 in Butler, 2007:3). Estruturalmente portanto, é pela conformidade com a natureza cultural (ficcionada) que se acede mais facilmente à gestão dos recursos potenciados pela pertença a redes sociais onde os seus membros possam aceder a capitais sociais valorados e obtidos na gestão dos recursos mediados pelas interacções sociais. Este processo gere as expectativas de macro e micro grupos socio-históricos, mediante sanção e penalização dos desvios. (Cf. Bourdieu, 2002, Coleman, 1990, Vertovec, 2009)

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Mesmo no contexto português (quando a partir de 1995 a proibição da cirurgia genital foi levantada e se autorizou o acompanhamento psicológico, hormonal e cirúrgico a transexuais), o processo inicia-se com o diagnóstico da perturbação de identidade de género. (Saleiro, 2009ª:11). O diagnóstico da perturbação indica à partida uma patologia. “Este pode decorrer nas consultas de Psicoterapia Comportamental do Hospital de Santa Maria ou Hospital Júlio de Matos ou ainda nos Hospitais da Universidade de Coimbra, por médicos e/ou psicólogos. De referir que não existe especialidade de sexologia na medicina nacional.” (Saleiro, 2009ª:11) 41

Butler (2007) revela-se, neste ponto, uma pós-estruturalista com evidentes influências de Foucault. Esta lei mais não é que uma das facetas da própria estrutura (e num sentido lato a própria estrutura, criando a ficção de a subject before the law e confundindo-se neste plano com a própria natureza [Foucault, 1978]), citando sujeitos, produzindo e nominando identidades desviantes que reforçam a própria estrutura. Esse sujeito ficcionado que pré-existe à lei, acaba portanto por pré-existir ao desejo e ao género, moldando-os mediante a incorporação de tabus, assumidos como natureza. (Cf. Vale de Almeida, 2008 comentando Butler, 2007) Uma vantagem analítica sobressai imediatamente do exposto nesta perspectiva – o carácter estratégico e inventado da conformidade entre norma e natureza, implicitamente afirmando a sua não universalidade e por consequência o seu circusntancialismo cultural, decorrentes da relação mantida entre sujeitos, estrutura e história. Nesta ordem de pensamento, homem e mulher são categorias políticas e não factos naturais (Wittig in Butler, 2007:157, Cf. Rubin 1975 in Lewin 2006, in Vance, 1984).70 São portanto, conceitos estruturantes da, e simultaneamente estruturados na interacção, isto é, estruturam a interacção social pela atribuição de papéis e seu desempenho consoante estatutos (determinando a um certo nível identidades), bem como agem sobre o fragmento do real no qual se integram mediante a interacção (Zimmerman e West, 1987:131), dirimindo na arena social a negociação de identidades e seus repertórios. Tal processo confere algum grau de previsibilidade às acções e interacções humanas. Rubin actualiza o alcance prático desse paradigma em domínios associados: Como acontece com outros aspectos do comportamento humano, as formas concretas e institucionais de sexualidade, num determinado tempo e espaço, são produtos da acção humana. Enquanto tal estão imbuídas de conflitos de interesse e manobras políticas, ambas deliberadas e/ou acidentais. Nesse sentido, sexo é uma categoria sempre política. (in Vance, 1984:143)

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Nos anos setenta do século XX a disseminação das tecnologias mediáticas potenciou o surgir de locus privilegiados para o recrudescer de micropolíticas de resistência à escala mundo, momento em que a criação de áreas alternativas de produção e construção da subjectividade, semiótica e discursivamente subversivos das hegemonias da sexualidade, do género, da classe e raça. “O feminismo radical lésbico insurgia-se então na vanguarda da teoria crítica norte-americana, fazendo dos modos periféricos de edição e distribuição dos seus textos uma tecnologia de combate, uma rede textual de contradiscursos que circulavam não apenas nas antípodas do pensamento académico malestream mas também do reduto heterossexista que transpirava de alguns sectores do feminismo cultural da época.” (Oliveira et.al., 2009:14) 42

A partir de um outro ângulo de análise, distinto do pós-estruturalismo de Butler (2007) e Foucault (1978, 2003), sexo e género apresentam-se como aspectos negociados e contestados na arena social ou seja áreas de formação identitária em processo – já não apenas meras consequências matemáticas de estruturas que conformam o pensar, o sentir e o desejo dos sujeitos, mas, adquirindo nesta perspectiva uma dimensão causal relativamente a essas mesmas estruturas. Essa negociação buscando inteligibilidades diferenciadas, quando analisados à luz de Goffman (1993) e de conceitos como palco social, estatutos, papéis ou definição de situação71, indicia que numa relação social estão muito mais aspectos presentes do que somente os indivíduos nela, actuantes.

2.6. Sexo e género: produtos da interacção De acordo com esta abordagem, para se dar uma interacção são necessários mais do que um sujeito, sendo essa interacção regulada pelo que está socialmente construído por um “nós” implícito numa série de significados partilhados (estruturados). Como argumentavam Zimmerman e West, os participantes na interacção organizam as suas variadas actividades de modo a reflectir e exprimir o género, e estão dispostos a entender o comportamento dos seus parceiros de interacção de forma similar (1987:127). Estas autoras ressalvam, todavia, que as questões ligadas ao desempenho de género, ao contrário de outros papéis sociais, não têm um contexto específico no qual se produzem.72 No entanto, estas sinalizações não se reproduzem de forma mecânica ou meramente mimética, são passíveis de reinterpretação e reactualização pelos indivíduos em interacção: “Nós argumentamos que que o género não é um conjunto de traços, nem uma variável, nem um papel, mas sim o resultado de produções sociais atingidas e desenvolvidas na interacção.” (1987:127-129). A nosso ver, o facto de serem social doings of some sort (Zimmerman e West, 1987) não implica que não sejam papéis,

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Conhecedores da estrutura e sua normatividade, porque nela, socializados e através dela, estruturados como sujeitos sociais, os indivíduos definem vários campos do social (definição da situação) e o papel a adoptar em cada um deles, tendo em vista a obtenção de resultados. O palco social e os seus campos representam áreas estruturadas nas quais os sujeitos elaboram estratégias e as executam. Um papel surge associado à figura do estatuto. O papel social de pai atribui-lhe um estatuto social, tanto na relação hierarquizada com os filhos, como também na relação com o estado que o reconhece como legítimo detentor desse papel e estatuto. (Cf. Goffman, 1993) 72

As autoras argumentam o exemplo dos médicos que desempenham um papel no contexto específico do hospital, os juízes no tribunal, etc. (Zimmerman e West, 1987) 43

variáveis ou produtos de consensos. Sendo produções sociais, inserem-se em processos que implicam papéis, consensos e variáveis, caso contrário seriam social doings aleatórios, desenraizados de um contexto concreto onde operam e simultaneamente se produzem, balanceando estrutura e acção. Nesse sentido, o nosso ponto de vista concebe género como uma variável que influencia outros papéis sociais, ele próprio um papel decorrente das políticas do sexo, embora com a característica de não lhe corresponderem contextos específicos onde se realiza, pelo contrário, fazendo-se sentir a sua presença e actuação em todos os contextos onde se processam, desenvolvem e estrategicamente se actualizam outros papéis sociais em interacção. Tal não invalida que se produza na interacção, desde que esta seja concebida como contendo a própria estrutura, na medida em que a interacção pressupõe socializações e como tal, a presença de factores estruturantes dessa interacção de forma nem sempre perceptível para os sujeitos. Daí que os próprios autores referenciem que numa interacção os interlocutores presentes, estão na disposição de entender o que o outro comunica. Não basta a disposição ou a vontade de entender, há que partilhar princípios ou pelo menos, conhecê-los de alguma forma. (Zimmerman e West, 1987) Nesta linha de argumentação, sexo e género são concebidos como produções culturais, sendo que cultura é acção e agenciamento humano, na qual se inclui a capacidade de agenciamento travesti conducente à construção de uma identidade de género específica, a qual na sua idiossincrasia auto-legitimadora poderá reforçar (sem carácter voluntário) uma hipotética universalidade heterossexual. Concebidos portanto, enquanto produtos culturais que por definição são construídos e representados, sexo e género buscam a sua eficácia em subsistemas concretos inseridos e actuantes num contexto sistémico mais vasto, constituído pela estrutura num sentido lato (ideologia, religião, medicina, leis, jurisprudência, doutrina, comunidade, etc.). Gayle Rubin designou-os por sistemas sexo/género.73 Para esta autora, todas as sociedades desenvolvem sistemas sexo/género.

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Gayle revela-se pioneira na separação entre sexo e género, criticando Lévi Straus e o seu sistema de parentesco, em que as diferenciações de género são exacerbadas. Por exemplo na diferenciação social do trabalho, culminando naquilo que considera ser uma estrutura de género exclusivamente heterossexual, visto que a homossexualidade não aparecia na exogamia, apenas as mulheres eram objecto de “troca”. Em "Traffic in Women" (1975), o objectivo de Rubin foi mostrar a naturalização da heterossexualidade presente em abordagens antropológicas e psicanalíticas, embora não deixe de considerar a centralidade da sexualidade ligada à reprodução, e a íntima conexão entre género e sexualidade. Em "Thinking Sex" (in 44

Mediante os quais, um conjunto de convenções modela material biológico em estado bruto, por acção da intervenção e interacção social, transformando e moldando cultural e politicamente factos como a sexualidade humana ou a procriação. Tais processos tornam a sua satisfação possível em moldes convencionais, independentemente de quão bizarras possam ser essas formas de satisfação e as convenções que as legitimam” (Rubin 1975 in Lewin, 2006:90).

A actuação destes sistemas realiza-se por intermédio de instituições como a família, igreja, escola, estado, parentesco, poder patriarcal, poder judicial e judiciário, maternidade ou através da existência de um hipotético centro de masculinidade institucionalizado. (Vale de Almeida, 2000, Winck, 2006)74 Face a tais convenções, Gayle Rubin proclamava a necessidade de “ousar pensar numa sociedade sem géneros”, negando deste modo radicalmente o estruturalismo e o pós-estruturalismo (Rubin 1975 in Lewin, 2006:102), embora reconhecesse tacitamente que os géneros existentes tinham uma natureza essencialmente estrutural e estruturante. Ou seja, a luta por uma sociedade sem géneros era feita por relação a uma estrutura social de géneros dominantes que, como tal, tinham e têm uma existência social.

Vance, 1984), longe de pensar em parentesco, a preocupação da autora foi a defesa política da diversidade sexual, o que hoje denominaríamos por sexualidades alternativas ou queer, bem como a criação de ferramentas analíticas para as pensar. No contexto do debate anti- pornografia revela-se uma activista, levando seriamente em conta os efeitos dos argumentos apresentados nesse debate em termos de perseguição das minorias sexuais, a proposta da autora é oferecer elementos de um marco descritivo e conceptual para pensar sobre sexo e sua política, tentado contribuir para criar um corpo de pensamento libertador sobre a sexualidade (Cf. Oliveira, 2013). Cada um desses dois escritos de Rubin levantam questões intrigantes, embora não necessariamente relacionadas. É Judith Butler em Is Kinship always already heterosexual? (2000) que articula os insights desses dois textos, retomando o lugar que a naturalização da heterossexualidade ocupa na relação entre natureza e cultura estabelecida pelos saberes contemporâneos. Ao articular parentesco e sexualidade, Buttler alarga os alcances teóricos e políticos dos escritos de Gayle Rubin. “Neste sentido, não podemos entender gênero enquanto uma mera delimitação biológica entre homens e mulheres, mas sim como uma construção, que também é social, cultural e histórica, acerca das relações entre homens e mulheres.” (Winck, 2006:2) 74

A naturalização decorrente de um determinismo biológico dominante que faz corresponder sexo e género não só legítima papéis sociais de homens e mulheres como determina a naturalização de instituições como a família as quais, no entanto, se revelam também elas um produto de um contexto sociohistórico dinâmico: “O modelo patriarcal, assim, passou a sustentar-se em uma relação conjugal fundamentada em rígidos pressupostos de “moralidade”. Temas como virgindade, heterossexualidade e resignação feminina passaram a constituir o modelo institucionalizado para a família “normal” - o que transformou em tabu o diálogo sobre sexualidade(s). Desta forma, marginalizaram-se todas as demais configurações de orientação sexual que diferissem do padrão social vigente, justamente por procurar emparelhar sexualidade com moralidade. Os valores patriarcais, por conseguinte, naturalizaram-se através da família e, geração a geração, preserveram-se ainda como padrões à estrutura familiar.” (Winck 2006:2-3). A família enquanto instituição social dominante transforma-se num lugar antropológico com referências que promovem e integram o indivíduo na norma. De tal forma a sua naturalização se processa que, quem não seguir o padrão instituído, poderá enfrentar o isolamento social e auto-excluir-se de redes. 45

Tal postura era quase uma convocatória para a luta que deixava entrever as suas influências marxistas (luta da qual Rubin não se exclui): “o sistema de género não é imutável, perdeu funções tradicionais, mas não desaparecerá sem resistência” (Rubin 1975 in Lewin, 2006:102). Ao postular a correlação entre sistema sexo/sexualidade e sistema género, e a sua separação em termos de análise em trabalho posterior (in Vance, 1984), parece ela própria reconhecer o carácter utópico de uma sociedade sem géneros.75 Rubin vê assim a sua utopia também contraditada na prática por um ethos travesti que assenta essencialmente no masculino e feminino estruturais - ainda que, como se verá, de forma ambígua. Esse essencialismo construtivista travesti não deixa no entanto, de revelar a necessidade da presença de um masculino e um feminino na formulação da sua autonarrativa identitária.76 No mesmo sentido, aponta Christine Damásio. No âmbito de uma pesquisa realizada nas ruas de Natal em 2005/2006 com travestis em contexto de prostituição, ela mostra como a fabricação desse corpo eminentemente feminino se produz por referência a um ideal de feminilidade e masculinidade naturalizados.” (Damásio 2006:4) Contudo, ao argumentar no sentido de um sistema de género que perdeu funções tradicionais (1975 in Lewin, 2006), Rubin contextualiza essas funções e torna possível que (analiticamente) essas mesmas funções saiam da esfera exclusiva da acção dos sujeitos, sublinhando paralelamente a inviabilidade de uma sociedade sem géneros. Acrescentando igualmente que sexo e género apenas adquirem eficácia porque existe orientação sexual/práticas sexuais e géneros performatizados e construídos pelos actores

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Todavia a separação e autonomização entre sistema sexo e género realizada por Rubin, distancia-a de Butler (2007), quando para esta última, o género era ele próprio consequência da proibição da homossexualidade, ou seja o género era moldado pela orientação sexual. Sob esta perspectiva sexo e género seriam, aparentemente, a mesma coisa. A ausência de “lugar” (neste sentido, de inteligibilidade) revela a tensão que se estabelece entre o universal (natural) e o local (cultural), tal como observado por Bruns e Santos, elementos do grupo de pesquisa “Sexualidadevida” USP na área da psicologia. A visibilidade a que nos remete hoje a problemática das questões de género e das práticas sexuais é, tal como a sua construção social, produto de um determinado contexto sócio-historico. Mais precisamente emerge com a maior autonomia do self, sujeito e suas subjectividades, com os movimentos feministas, gays e lésbicos, com a maior atenção dispensada à questão pela academia e com a globalização e informatização do sistema -mundo. Este conjunto de factores criou as condições necessárias para o questionar da heteronormativididade e, por consequência, das problemáticas associadas ao género enquanto não linearmente correspondente a um sexo biológico (Bruns e Santos, 2006:1). “Dessa perspectiva, transexuais, homossexuais, travestis, drags entre outros, cruzam as fronteiras das “normas regulatórias” de gêneros e expõem um universo de diversidades sexuais, ora submetem o corpo a um processo de feminização, não sem dor e sofrimento, ora expõem o desejo de constituir família e desse modo, as consideradas “minorias” vão inscrevendo outros olhares em direção à desnaturalização da heterossexualidade.” (2006:1-2) 76

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sociais, sublinha também que estas práticas e construções são modeladas por convenções e não fruto de uma capacidade construtivista espontânea e ilimitada desses sujeitos. Neste sentido, Kulick vai mais longe e considera que o recurso travesti a referentes hegemónicos redunda num construtivismo essencialista (1998), o qual se analisado à luz de uma teoria de acção que inclua os constrangimentos estruturais como parte dessa acção, não poderá ser concebido como um mimetismo linear desses referentes, como alguns autores argumentavam no âmbito do estruturalismo (Butler, 2007).77 Com efeito, o género produz-se a partir da interacção e simultaneamente estrutura a interacção (Zimmerman e West, 1987:131) de uma forma que se pode considerar transversal, o que implica diferentes experiências dos sujeitos e não mera reprodução mecânica de experiências ou ausência de enquadramentos sociais contextualmente actuantes que incorporam em si uma série de outras variáveis presentes na interacção. Pelo contrário, outros papéis sociais desempenhados em cenários mais ou menos determinados e por isso mais facilmente identificáveis - por exemplo pela forma como se relacionam com um estatuto profissional, caso da sala de audiências e o juiz - acabam por ser interpenetrados e condicionados por essa variável histórica e socialmente mais abrangente que é o género. Não obstante e por consequência, se é verdade que a variável género é transversal a toda a interacção social, também o é que por esse motivo não lhe correspondem palcos ou cenários específicos, razão pela qual a sua eficácia social assume uma outra relevância.

Neste enquadramento, Namaste (2000) afirma: “Claramente, como académicos e activistas, é nosso dever desafiar a negação de Butler da existência de uma identidade transexual. Mais, temos que equacionar as fronteiras implícitas no seu trabalho: drag queens expose compulsory sex/gender relations, while transsexuals can only offer “an uncritical miming of the hegemonic [sex/gender system].” (Namaste, 2000:14). Neste contexto pos-estruturalista que, quase usurpa uma especificidade identitária travesti/transexual (Butler 2007), releve-se ainda o facto de o desaparecimento de um sistema de género como o referido por Rubin (1975 in Lewin, 2006), não se revelar coincidente com o desaparecimento de toda e qualquer forma de géneros socialmente instituídos como igualmente refere, “…the dream i find most compelling is one of an androgynous and genderless” (Rubin 1975 in Lewin, 2006:102). O primeiro seria a derivação dinâmica de um sistema de géneros que não comporta automaticamente a supressão dos mesmos, apontada na segunda parte da frase. 77

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Capítulo 3 - PERFORMANCE, PERFORMATIVIDADE E ESTRUTURA 3.1. Poder e hierarquia Butler, inspirada no insight de Rubin (Rubin in Vance, 1984) - segundo o qual os sistemas sexo e género se influenciavam, condicionando também os actores sociais e suas narrativas identitárias - desenvolve uma teoria da performance e performatividade (Butler, 2007, Cf. Vale de Almeida, 2008 comentando Butler, 2007). Segundo ela a ideia de que as práticas sexuais destabilizavam o género surge ao ler “The Traffic in Women” (Rubin 1975 in Lewin, 2006), num momento do percurso de Rubin em que género e sexo/sexualidade não tinham ainda atingido autonomia sob o ponto de vista analítico. Esta perspectiva parte do pressuposto que o género é a expressão social da desigualdade entre sexos e a sexualidade a forma como se processa essa hierarquização ao nível das relações entre pessoas (Catherin MacKinnon in Butler, 2007: XII). Na visão de Butler esta hierarquização surge desde logo a partir da capacidade de produzir género operada pelo discurso que define à partida o que é ou não aceitável. Segundo Vale de Almeida “um modo institucionalizado de pensar, uma fronteira social que define o que pode ser dito sobre um determinado tópico.” (2008, comentando Butler, 2007). O que equivale a dizer que para Butler a identidade de género é produzida pelo discurso e o discurso é poder. Primeiramente, deste modo, a performatividade de género surge através de uma metalepsia em que a antecipação de uma essência de género a produz efectivamente e a coloca como estando fora do plano interiorizado dessa mesma antecipação. Em segundo lugar, a performatividade não é um acto isolado, mas sim um conjunto de actos repetidos e ritualizados, cuja eficácia é alcançada através da sua naturalização no contexto do corpo. Entendido em parte como algo de culturalmente produzido e situado num tempo. (2007:XV)

De acordo com a autora portanto, as práticas sociais reiteradas e por essa via naturalizadas nos corpos, conformam e confinam uma determinada identidade de género. “O género é uma forma de identidade tenuemente constituída no tempo, instituída num espaço exterior mediante uma estilizada repetição de actos.” (Butler, 2007:191). Deste modo o género apresenta-se como estruturalmente inteligível quando assume a coerência entre sexo, género, sexualidade e desejo, dimensões do sujeito que se interpenetram com outras variáveis, nomeadamente as de raça, classe, idade, etc. Butler entende portanto que a inteligibilidade resulta da manutenção de um determinado esquema de pensamento e das relações de poder por ele e nele instituídas. 48

Desconstruindo os constrangimentos que fundamentam um determinado sistema de géneros e alcançando inclusivamente a sua dimensão política, peca quanto a nós por não relativizar esses mesmos constrangimentos enquanto passíveis de negociação e crítica por parte dos indivíduos, assumindo ao invés o seu poder para determinar sujeitos quase que unilateralmente, sendo os comportamentos socialmente percepcionados como esquisitos/queer nada mais que paródias que confirmam o próprio discurso e a estrutura. Neste sentido percepcionam-se críticas por parte da autora ao entendimento do género como uma questão política, contextual, posicional e por isso sempre relacional. Através destes posicionamentos sociológicos e antropológicos que entendem o género como resultado de relações constituídas por sujeitos e objectos específicos, em contextos igualmente específicos, produz-se uma concépção relacional do conceito que sugere que o que a pessoa “é”, e portanto, o que o género “é”, é sempre relativo às relações construídas que o determinam. (Butler, 2007:14)

Esta teoria da performatividade pré enunciada discursivamente foi desenvolvida e concretizada por Kulick (2003). Tal como Butler, Kulick atribui também grande relevância ao discurso, não obstante faz deslocar o foco da sua análise para fora do âmbito estrutural (Kulick, 1998) e quando observa as travestis em Salvador não o faz a partir de um determinado ponto de vista institucionalmente actuante, médico ou legal, por exemplo. Pelo contrário estabelece como seu objectivo analisar as suas práticas corporais e sociais, bem como as “palavras usadas para falar das suas vidas.” (1998:14) Neste contexto de abordagem emic direccionada a discursos não hegemónicos, bem como à capacidade dos sujeitos de agirem fora de um determinismo estrutural absoluto, Kulick começa por distinguir dois conceitos, igualmente importantes em Butler (2007), por ela sublinhados e reciclados por Kulick. “Performance é algo que o sujeito faz. Performatividade por seu lado é o processo através do qual o sujeito emerge.” (2003 in Cameron and Kulick, 2006:286).78 Desta afirmação conclui-se que performance pode qualificar um acto/acção desligado de uma intenção temporal mais vasta e nesse sentido, desenquadrado de um contexto político, social e de interacção determinada por poderes negociados e simbolicamente mediados. Provavelmente com origem numa acção passada, passível de ser reproduzida no futuro e por isso susceptível de ser definida com 78

Todavia se tomarmos a performatividade como um conceito ligado ao posicionamento negociado na interacção, esta performatividade de Butler que mais não é que uma repetição de actos pode facilmente passar por performance e vice-versa. (Cf. Kulick 2003 in Cameron e Kulick, 2006) 49

maior rigor analítico ao espelhar um determinado posicionamento sociológico do sujeito, fora da interacção concreta. Performance pode ainda referir-se a alguém que desempenha um papel perante um público – o caso inicialmente abordado dos drag-queens, os quais para Butler não passam de imitações parodiadas dos géneros estruturais (2007).79 Ao invés a performatividade é processo e como processo é algo que envolve constante negociação. O próprio posicionamento sociológico do sujeito mais facilmente apreendido na performance, é através da performatividade objecto de negociação entre sujeitos intervenientes que criam campos relacionais específicos e se recriam enquanto sujeitos organizados em múltiplas relações de poder. Não há em Butler a concepção de um conjunto de operações através das quais se potencia a emergência de sujeitos agencialmente activos, mas sim um conjunto de prédeterminismos discursivos interiorizados e materializados nos corpos via mimetismo. Os corpos reflectem a incorporação da norma e a repetição de actos estilizados, reprodu-la. Kulick considera que nas análises realizadas por críticos de Butler algo de suma importância foi esquecido nas suas conclusões, o facto de que para Butler a performance é apenas uma dimensão da performatividade e tal sucede porque na performatividade existem aspectos que não podem ser performados. Os aspectos sociais que não podem ser objecto de performances são mediados performativamente e simbolicamente pela linguagem. (Kulick 2003 in Cameron e Kulick, 2006:286)

3.2. Performatividade e linguística Kulick, chamando à atenção de que a performatividade em Butler surge no contexto académico da filosofia e não da linguística antropológica argumenta no sentido de se conceber a performatividade como um processo (2003 in Cameron e Kulick, 2006), em certo sentido um conjunto de performances ligadas entre si que não excluindo um hipotético experimentar emocional da situação, inclui uma intenção que abrange um hiato 79

Deslocando a análise da performance para a performatividade em Butler, esta acaba por ser uma sucessão de práticas reiteradas discursivamente pré-existentes ao agente e que como tal o determinam. A performance como algo que o sujeito faz não está por si só excluída de sistemas simbólicos e sociais, no entanto aparece desligada de contextos interactivos em que os sujeitos se vão produzindo. De certo modo a performance é uma consequência de um determinado sistema social, enquanto, que performatividade é a acção crítica sobre esse sistema social e simbólico em que o próprio significado social das performances é estrategicamente questionado na interacção pelos sujeitos, que ao fazê-lo se constroem em processo e produzem novos campos de ordenação social. 50

de tempo e um contexto social mais alargado. Neste enquadramento tempo e campo são monitorizados por um sujeito, efectivamente sujeito e em interacção. Através deste conjunto de operações particulares mediadas por poderes que emergem na especificidade da interacção concreta, procura-se alcançar objectivos, não meramente imediatos ou de satisfação primária de um sujeito isolado, mas de sujeitos em interacção. Este processo faz igualmente sobressair o pendor iminentemente politizado e comunitário das acções que o vão actualizando, o qual raramente é pacífico e muitas vezes se revela identitariamente doloroso por ser essencialmente um produto do confronto com o outro. Um outro que essencialmente reflecte as tais práticas reiteradas e não desconexas no tempo e no espaço – uma cultura hegemónica. Todavia essa hegemonia facilmente confundida com coerência pode ser beliscada nessa sua aparência pelo posicionamento concreto dos sujeitos face a ela. Esse posicionamento não é estático. Kulick exemplifica no âmbito da performatividade linguística como a palavra Não, dita num contexto de convite erótico entre homem e mulher pode criar sujeitos específicos e relacioná-los com circunstâncias social e hierarquicamente mais latas. Dentro duma cultura patriarcal em que se processe um convite masculino ao sexo dirigido a uma mulher, a palavra Não proferida como resposta pode ser entendida pelo homem como SIM. Inúmeros elementos simbólicos presentes nessa interacção permitirão que o homem argumente não ter entendido que o Não, era realmente um não. Entendendo-o portanto como um SIM. Dizer SIM é um atributo do homem neste contexto sexualizado das relações entre sexos e géneros, não da mulher. A sociedade sempre dividiu o sexo feminino em dois grupos: as mulheres-esposas-mães e as prostitutas. Às primeiras, respeitadas, reservam-se as tarefas nobres da procriação e educação no seio dum casamento, enquanto, que às segundas, desprezadas, se destinam as margens da sociedade e a imoralidade do sexo venal (imoral, entenda-se, para as mulheres, não para os homens que as procuram…). Apesar das mudanças ocorridas durante o século XX, no sentido dos direitos e liberdades das mulheres, nomeadamente a nível sexual, ainda é assim que as mulheres são pensadas pela generalidade das pessoas, independentemente do género. (Oliveira, 2007:1)

A forma como em contextos específicos se produzem sujeitos particulares revelase nitidamente, segundo o autor, pelo facto de o SIM dito por uma mulher a uma proposta de sexo, poder colocá-la fora do âmbito estabelecido pela heteronormatividade. “A yes to sex can also produce female subjects as being outside heteronormativity.” (Kulick 2003 in Cameron e Kulick, 2006:287). O dizer SIM num determinado sistema sociolinguístico

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marca sujeitos específicos. O homem deve dizer SIM e a mulher deve dizer NÃO, embora o seu NÃO possa ser entendido como um SIM. A mulher que diga SIM poderá deixar de ser apenas mulher – heteronormativamente integrada - e passar ser muitas outras coisas, maioritariamente pejorativas – heteronormativamente excluída pelos sistemas sexo e género. O que ressalta deste exemplo é o facto de que da mesma forma que existem sujeitos diferenciados, existem também derivações linguísticas e simbólicas específicas em função do posicionamento concreto entre sujeitos80 e entre estes e uma estrutura. Assim dentro do mesmo sistema patriarcal, segundo o mesmo autor, um homem que seja convidado por outro homem para algum tipo de encontro sexual, está marcado por esse sistema linguístico para dizer Não, assumindo nesse campo erótico a formulação discursiva destinada à mulher no âmbito da heterossexualidade.81 Segundo Kulick - referindo-se aos exemplos mencionados - mais do que a concentração excessiva na performance do NÃO ou do SIM, o que é importante questionar é a forma como interacções sociolinguísticas particulares produzem posicionamentos específicos dos sujeitos, posicionamentos esses que inclusivamente desconstroem a suposta coerência entre o binómio sexo e género, ao criarem novas relações de poder constantemente renegociadas e de certo modo produzindo novas variáveis nos sujeitos que dialogicamente reordenam novamente esses posicionamentos na interacção. Face a Butler quatro conclusões principais se impõem: 1) Para Kulick, tal como para Butler o discurso desempenha nas identidades um papel de relevo na produção de sujeitos. 2) Para Butler existe um discurso que produz sujeitos: o heteronormativo assente na proibição da homossexualidade que produz a coerência entre sexo, desejo, sexualidade e género. 3) Para Kulick o essencial a captar no discurso é forma como produz performativamente sujeitos em função do seu posicionamento na interacção, 80

Sexo, género, raça, cor, classe social, idade, etc.

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O interesse do autor recai sobre o processo como os mesmos indivíduos se produzem como sujeitos de modo diverso em condições de poder diferenciadamente actuantes. 52

posicionamento, esse, no qual estão implícitas relações de poder. Não obstante, até essas relações de poder entre sujeitos podem ser revertidas em função do posicionamento concreto dos actores sociais numa outra interacção. 4) Para Kulick a existência de múltiplos discursos e a forma como circulam socialmente justifica que as travestis se produzam identitariamente com especificidades, relegando a coerência das práticas e da sua análise para o plano da mera aparência. Um corpo com traços femininos convivendo com um pénis.

Segundo Vale de Almeida é importante realizar uma distinção entre performance e performatividade no enquadramento dado por Butler. “A performance necessita de um sujeito pré-existente, a performatividade questiona a própria noção de sujeito que préexiste.” (2008:7 comentando Butler, 2007). E tal sucede porque em Butler o sujeito aparece-nos mais como uma consequência do que como uma causa (Cf. Valde de Almeida, 2008:5 comentando Butler, 2007), todavia, qualquer processo mimético pressupõe um original que se mimetiza, original, esse que nunca se reproduz na íntegra. Ao desvio à norma que se pretende tornar objecto de performance acresce o facto de como processo e com o natural decorrer do tempo, essa acção de mimetização passar a ser realizada tendo como referentes cópias de um determinado original, sendo a tendência o afastamento desse mesmo referente normativo. The law produces and then conceals the notion of a “subject before the law” in order to invoke that discursive formation as a naturalized foundational premise that subsequently legitimates that law´s own regulatory hegemony. (Butler, 2007:3)

Neste encadear de ideias Butler argumenta no sentido de um sujeito que se reproduz e produz discursivamente através da performatividade, a qual consiste numa repetição estilizada de actos realizada num determinado tempo e espaço (2007). No que diz respeito à performance em Butler, esta pressupõe a existência de géneros (Cf. Vale de Almeida, 2008:4 comentando Butler, 2007) construídos socio-normativamente pela ideia de um sujeito que é natureza e que sob a óptica pós-estruturalista, é também estrutura, simplesmente porque pré-existe à interacção assumindo uma dimensão discursiva. Através da performatividade de Kulick (2003 in Cameron e Kulick, 2006), os indivíduos não buscam apenas a satisfação de necessidades primárias de comunicação 53

imediata ou a intenção de uma conformidade estrutural acrítica; antes buscam um campo, um espaço simbólico onde possam emergir como sujeitos de interacções politicamente contextualizadas e onde se encontrem representacionalmente legitimados e posicionados numa estrutura (e na relação concreta), construindo uma identidade exteriorizada e em interacção negociante (Kulick, 1998). Neste quadro, a performatividade implica grupo, comunicação, ethos e uma consciência sociológica e antropológica de si que o posiciona perante os outros em processo contínuo de negociação.82 Performance estará assim no plano da identidade, enquanto performatividade no plano da identificação, concebida como conjunto de operações que possibilitam a emergência do sujeito que exterioriza a sua identidade e a exerce na interacção (Kulick 2003 in Cameron e Kulick, 2006:293). A identidade desloca-se do plano da consciência individual de um determinado posicionamento sociológico e relaciona-se, fazendo escolhas enquanto sujeito em interacção com outras identidades, as quais, paralelamente a estruturam dialogicamente. Como afirma Vale de Almeida: O Sujeito só pode conhecer-se através de Outro, mas no processo de se reconhecer a si mesmo e de se constituir tem que superar ou aniquilar o Outro, sob pena de colocar a sua existência em risco. O Self e o Outro não estão apenas intimamente relacionados, eles são Um e o Outro, e é através do mútuo reconhecimento que cada um passa a existir. (2008, comentando Butler, 2007)

Nesta sequência de argumentos para Kulick um estudo linguístico da performatividade não deve estar interessado em determinar quem pode dizer isto ou aquilo, mas sim como usos particulares da linguagem, sejam eles autorizados ou não, produzem efeitos sociais concretos e sujeitos específicos adentro campos sociais orientados por matrizes de poder que se actualizam dinamicamente (2003 in Cameron e Kulick, 2006). Nesta perspectiva e pegando novamente no encontro entre o self e o outro referido por Vale de Almeida (2008, comentando Butler, 2007), Kulick considera que esse encontro definido como identificação, cria determinados campos de poder e sujeitos no âmbito dessas relações específicas, sujeitos esses, maioritariamente estruturados pela recusa ou rejeição (2003 in Cameron e Kulick, 2006:293). Nessas relações que produzem sujeitos integrados em dinâmicas específicas de poder, a performatividade

82

O ser-se sujeito através de performatividades e emergir enquanto tal por seu intermédio, assume uma vertente de sentimentos de pertença a um grupo, não obstante, esse mesmo sujeito também surge enquanto tal ao opor-se ao outro exterior ao seu grupo. Kulick argumenta inclusivamente que a recusa se revela muito mais actuante na performatividade do que o consentimento. (2003 in Cameron e Kulick, 2006) 54

sociolinguística de Kulick foca-se nos processos mediante os quais determinadas identificações são autorizadas e legitimadas, e outras não. O acto de legitimar envolve poder, poder esse que por sua vez decorre do discurso, todavia, também concebido enquanto veículo de valorações simbólicas. Motivo pelo qual Kulick considera a performance como um conceito ligado à identidade e performatividade uma dimensão dos processos de identificação, relacionais, posicionais e envolvendo sempre relações de poder entre os polos intervenientes. Ao contrário do observado em Butler, a performatividade de Kulick (1998) não decorre de um enunciado discursivo pré-existente ao sujeito, mas sim da relação negociada entre sujeitos que discursivamente se produzem, produzem um campo onde se gerem poderes e paralelamente, actuam sobre o próprio discurso em contextos específicos, dinâmicos e posicionais, assim como sofrem influências estruturantes desse mesmo discurso.

3.3. Performatividade e emergência do sujeito Baseados nestes conceitos, podemos aferir que a performatividade insere os sujeitos em contextos políticos e sociais, produzindo-os enquanto tais ao mesmo tempo que os posiciona face a uma estrutura e perante os seus pares como actores sociais e políticos em interacção. Na performatividade realçam-se não só as práticas mas também os discursos que as citam, ultrapassando uma concepção do acto como tendencialmente mimético e acrítico, acto que dessa forma executado implica um sujeito determinado, mas nunca determinante. (Butler, 2007) Performatividade é tudo o que torna o sujeito efectivamente sujeito, ser social e politicamente inteligível, para si e para os outros (discurso, cinética, adereços). A questão central aqui reside no modo como alguém se torna sujeito emissor de uma identidade de género. Será pela repetição condicionada e estilizada de actos (Butler, 2007)? Será através da total ausência de condicionantes estruturais resultando numa sociedade sem géneros (Rubin 1976 in Lewin, 2006)? Ou será na interacção entre indivíduos que de algum modo pressupõe desde logo a estrutura onde são iniciados socialmente, mas a qual se torna passível de ser monitorizada e reflexivamente criticada ainda que as relações sociais que

55

se desenrolam no seu âmbito sejam em termos de poder dos participantes tendencialmente assimétricas e dinâmicas? Parece-nos mais plausível derivar para um entendimento de um sujeito que estando inserido num determinado contexto social e político, pode mediante o seu agenciamento - processado na interacção - colocá-lo em causa e agir sobre esse contexto do qual é parte e não mera consequência, bem como subverter o status quo que o sustenta. Assim, sob um ponto de vista que concebe uma liberdade dialogicamente condicionada por parte do sujeito, este pode afrontar criativamente a estrutura, ultrapassando a mera reprodução mimética dos seus preceitos. No entanto, por isso ele pagará um preço. Num enquadramento em que admitimos a capacidade do sujeito de se criar e autorecriar, como nos parece ser o caso das travestis, sublinhamos no entanto verificar-se a necessidade da existência de ideais-tipo aglutinadores da multiplicidade, elementos de identificação que possam gerar sentimentos de pertença, entre indivíduos que apesar de identificados entre si em alguns aspectos, mantém a um outro nível uma identidade individual, que pode em certos aspectos conflituar com as expectativas do grupo sobre ele, depositadas.83 Estes ideais tipo - de alguma forma normativos - cumprem a função de harmonizar a multiplicidade de posicionamentos socio-antropológicos de sujeitos que mantêm, no entanto, entre eles algumas afinidades. Esta análise possibilita um entendimento que concebe a existência de múltiplas estruturas, mediadas entre si por relações de poder e distintas relevâncias políticas e não a existência de uma estrutura totalitária que absorve no seu colectivo e na totalidade o sujeito individualizado. Esta última concepção encara o sujeito como destituído de qualquer dimensão criativa ao dissolvê-lo coercivamente no colectivo estrutural. Nesta perspectiva politizada, a linguagem opera no consenso e consequente entendimento mútuo entre participantes nessas interacções, dispostos e capacitados para

83

No contexto abordado por Pinto e Moleiro acerca da transexualidade em Portugal, não relativo às travestis brasileiras em eco-sistema de prostituição, constata-se que se mantêm afinidades relativamente à necessidade de construir e participar em redes sociais geradoras de sentimentos de pertença. “A participação em grupos de apoio, mais ou menos formais, está relacionada com diferentes dimensões (Hinnes 2007b in Pinto e Moleiro, 2012): a possibilidade de ser honesto/a no que respeita à sua identidade de género e de a assumir perante outros/as; a procura de apoio, não apenas emocional mas também informativo/educativo; ou ainda, a possibilidade de não só receber apoio, mas também o ministrar. Os grupos de apoio que frequentemente partem de (ou se limitam a) comunidades online (Lev 2007 in Pinto e Moleiro, 2012) são muitas vezes identificados como vitais no colmatar da insuficiência de informação e de recursos educativos prestados pela comunidade médica. (Hinnes 2007b in Pinto e Moleiro, 2012) 56

entender e ser entendidos (passíveis de reinterpretação/negociação). O consenso a que muitos autores (Cameron e Kulick, 2006) se referem assenta na existência de um código linguístico partilhado pelos intervenientes – que pode ser uma gíria - a partir do qual se tornarão possíveis diferentes interacções, de partilha ou diferenciação, de pertença ou exclusão (com referência a comportamentos, emoções, papéis, posicionamentos sexuais, etc.). Tal implica uma concepção processual da construção de género e do discurso com ele, dialogicamente estruturante e estruturável, aliás como alguns autores explicitamente referem: Consideramos útil pensar o género não como algo que as pessoas têm, mas sim como um processo de produção identitária e social de género, ou seja uma construção em processo; algo que está continuamente a ser feito e produzido. Por isso usamos o verbo “gendering” para nos referirmos ao processo mediante o qual as pessoas se produzem em termos de género através dos seus actos quotidianos. (Ekins e King, 2006:33)84

Esta questão remete para uma outra. A problemática da linguagem pressupõe comunicação e esta pressupõe consenso no sentido de código partilhado (mas também num outro sentido contestação e negociação). Um consenso “tenuemente constituído no tempo e instituído num espaço” (Cf. relativamente ao género e discurso Butler, 2007:191).85 Este tipo de consenso negociado é inexistente em Butler, pois eleva os sujeitos ao plano do grupo onde se geram e gerem pertenças através do discurso e das práticas comunitariamente partilhadas. Estas práticas adquirem nesses contextos significados específicos e identitariamente estratégicos (Cameron e Kulik, 2006), ao mesmo tempo que conferem significação às interacções e aos papéis desempenhados. No fundo a linguagem viabiliza a inteligibilidade da experiência e a sua partilha no grupo, constituindo-a como um referente identitário estruturante da performatividade

86

e da

própria identidade. (Cf. Vale de Almeida, 2008 comentando Butler, 2007)

84

Podemos construir um paralelismo entre conceitos, nomeadamente se relacionarmos o que temos vindo a apresentar, por um lado sexo, identidade e performance e por outro, género, identificação e performatividade. 85

Embora para Butler esse consenso seja iminentemente macroestrutural.

86

Não basta utilizar uma gíria, para que um conjunto de indivíduos seja considerado um grupo social, para tal são necessárias relações recorrentes e partilhadas em diversas áreas do social: vivência em comum, trabalho comum, ressocialização comum, práticas comuns, etc. Afinidades também referidas por Vertovec como estruturantes das redes sociais. (2009) 57

Quando operacionaliza o conceito de performance, Judith Butler (2007) desliga-o de alguma forma de sujeitos reais inseridos em contextos concretos, geralmente associando-os a figuras discursivas como lésbicas, homossexuais, drag queens ou transexuais, todos eles produzidos enquanto noções de sujeito a partir da proibição da homossexualidade e dos géneros por ela discursivamente determinados. Tal argumento permite-lhe apreendê-los mediante esquemas de operações de poder que os produzem, sendo por isso unanimemente considerada uma pós- estruturalista. No entanto, a sua teoria da performatividade implica a capacidade do sujeito de existir socialmente, instituindo timidamente uma abordagem construtivista de género, no entanto incompatível com a performatividade actuante e concreta de Kulick (2003 in Cameron e Kulick, 2006:286) ou com a performatividade que questiona a própria noção de um sujeito que ficticiamente pré-existe, invocada por Vale de Almeida (2008 comentando Butler, 2007). Na verdade a performatividade em Butler assume o género como construção, todavia esta construção é realizada não pelo indivíduo mas por um enunciado discursivo hegemónico e institucional – heterossexualidade compulsória – que materializa nos corpos e ritualiza através de comportamentos a correspondência entre sexo e género. Neste sentido, o construtivismo constitui para Butler (2007) um mimetismo linear de outras práticas (Cf. Namaste, 2000), o qual, no entanto, não deixa de assumir inequivocamente o carácter inventado, reinventado e naturalizadamente ficcionado do género enquanto produto social que emerge no âmbito dos limites estruturais, situados num determinado espaço e instituídos num certo tempo.87 Atento a esta teoria da performatividade, Kulick contextualiza-a no interior de grupos específicos, prestando especial atenção à produção dos discursos (gírias) e sua imbricação nas performances e performatividades, integrando as questões atinentes à produção grupal de linguagens no âmbito dos comportamentos sociais por elas abrangidos e respectivas estratégias identitárias. (1998) No estudo de caso realizado com 13 travestis em Salvador, ao longo do qual regista das suas vidas quotidianas, o modo como vivem, falam, agem e como se pensam a si e

87

Quando argumentamos no sentido de que esse carácter inventado do género, enquanto construção social, pode ter transpirado involuntariamente em Butler, fazemo-lo porque figuras discursivas não constroem ou inventam algo, quem o faz são sujeitos reais e esses estão presentes em Kulick (1998), mas dificilmente podem ser descortinados em Butler. (2007) 58

aos outros (Kulick, 1998:7-8), supera as abstracções discursivas de Butler (2007) ao atribuir pela primeira vez no âmbito da temática travesti, a importância devida às práticas quotidianas e aos actores concretos que as executam, fazendo-os emergir como sujeitos políticos e não meras formalidades linguísticas sem conteúdo ou figuras retóricas que reflectem a estrutura enquanto paródias que a confirmam. Nesta abordagem etnometodológica, a linguagem desempenha um papel relevante, quer no que concerne à limitação de linguagens minoritárias/gírias pela acção estrutural vigilante, quer no que concerne à sua capacidade de alargar horizontes e criar novos contextos de interacção e comunicação, que contribuem para a emergência de sujeitos e novos campos sociais. Neste processo, também as linguagens se revelam como boas ou más, como inferiores ou superiores (Kulick, 1999, Cameron e Kulick, 2006), acompanhando dinâmicas e estratégias de quem as usa e produz ou, ao invés, de quem é por elas visado de forma vigilante. A linguagem não é portanto, apenas um meio de afirmação social dos indivíduos que estrutura processos de autonomização, mas também veículo de coercibilidades estruturais.

3.4. Discurso e identidade O discurso e sua relação com identidade desempenha uma função relevante para todos os autores abordados até ao momento, seja Butler (2007), Rubin (1975 in Lewin, 2006, in Vance, 1984) ou Kulick (1998, 1999), entre outros. O que varia efectivamente é a forma como o tema á abordado, nomeadamente se o é em função de uma análise de discursos produzidos estruturalmente que expressam esquemas de pensamento politicamente hegemónicos ou se esse objecto de estudo é apreendido heuristicamente no seio de grupos minoritários ou em contextos específicos e situacionais. Se é verdade que o discurso regula, também é verdade que o discurso pode contestar essa mesma regulação e neste caso a linguagem é encarada como uma dimensão do agenciamento. (Kulick 2003 in Carmeron e Kulick, 2006) Na sequência de uma focalização direccionada ao discurso88, Kulick e Deborah Cameron (2006) compilaram diversos textos de autores especialmente atentos à produção 88

Falar de discurso, implica conceber a um outro nível as práticas que ele cita e os comportamentos nelas, implícitos. 59

da linguagem no seio de grupos divergentes em termos de orientação sexual, face ao modelo hegemónico. Segundo eles, a elaboração de um discurso no interior de um grupo discriminado (pela estrutura e seus agentes), pode revelar contextos de fechamento ou abertura ao exterior. O incentivo para o uso da linguagem provém unicamente do desejo natural de comunicar, de nos darmos a conhecer e ser entendidos pelos outros, particularmente por outros que partilham a nossa linguagem e se sentem estigmatizados de forma similar àquela que nós sentimos. A linguagem especializada une as pessoas e para os homossexuais pode ser uma via para a auto-afirmação e para a rejeição do tabu. A linguagem especializada congrega os indivíduos e paralelamente responde à sociedade. (Crew in Cameron e Kulick, 2006:56)

Ainda neste âmbito, Pelúcio regista os usos e eficácias retirados da linguagem como factores estruturantes do grupo e de elaboração das suas fronteiras simbólicas, mediante gestão dos seus comportamentos. Fá-lo concretamente quando aborda os relacionamentos entre travestis e clientes, entre travestis ou entre travestis e seus namorados (2005, 2006), os quais parecem evidenciar nos diferentes contextos, comportamentos que sublinham a existência e concreta influência de referentes héteroestruturais. Essa abertura das travestis à estrutura poderá ser apreendida a partir do papel hegemónico que masculino e feminino (Kulick, 1998) assumem na construção das suas identidades - condensadas em características associadas a cada um deles como activo ou passivo (o SIM e o NÃO)89 por exemplo - os quais, apreendidos pela linguagem, se referem a comportamentos, aspirações, emoções ou posicionamentos sexuais. Numa outra perspectiva a qual todavia sublinha a importância que temos vindo a atribuir aos enunciados discursivos, Saleiro ao entrevistar transexuais portuguesas a dada altura apercebe-se que o seu discurso, o qual se refere sempre a comportamentos, visava a sua distinção das brasileiras, quando uma das entrevistadas afirma que “NÓS as transexuais portuguesas sabemos como nos vestir e comportar de acordo com a situação.” (Saleiro, 2013:254). Este nós mais não é que a tentativa de auto-legitimação na sua especificidade a partir da abertura ao outro.

89

Embora o NÃO possa ser noutros enquadramentos, socialmente muito mais activo que o SIM. 60

Assim e retomando o nosso tema, num enquadramento travesti de grande fluidez e transitividade, o uso de termos como o marido90 traduz uma tentativa de legitimação dos afectos e relações em moldes socialmente (institucionalmente) aceites, embora os operacionalizem num posicionamento antropológico e sociológico periférico. No caso das travestis, a sua sexualidade (que justifica num outro nível o uso do termo marido) fornece os referentes básicos para a construção da sua narrativa identitária, a qual, no entanto, não exclui e antes pelo contrário absorve, valores morais e sociais (naturalizados) atribuídos a cada género. Este processo de incorporação e simultaneamente de aparente distorção de preceitos estruturais, processa-se sob o ponto de vista de Pelúcio mediante “(…) um sistema marcadamente binário, por meio do qual elas accionam elementos explicativos para se entenderem a si mesmas.” (2006:526). Para além de moldarem os seus corpos com atributos femininos com o intuito de se construírem socialmente em moldes entendíveis, para si mesmas, fazem-no para se sinalizarem perante o outro não travesti, de uma forma que Pelúcio considera essencialista no modo como se socorrem de referentes heteronormativos ou, como argumenta Kullick (1998), acabando por fazer redundar a sua narrativa identitária num “construtivismo-essencialista.”91 Se, ao moldarem corpos masculinos com qualidades naturalizadamente inerentes ao feminino cortam o nexo linear e estrutural entre sexo e género, reforçam todavia e paralelamente, o binarismo heterossexual ao construírem a sua travestidade baseada em “preceitos morais” e sociais que reforçam o que é ser homem e o que é ser mulher (Pelúcio, 2006:526, Cf. Pelúcio, 2005).92 Apesar da aparente subversão/distorção normativa que empreendem, esperam de um homem que seja másculo, empreendedor ou agressivo. Delas, na forma como se auto-elaboram discursivamente, não esperam o mesmo pois não são homens de verdade. Nem tampouco são mulheres, pois não têm útero nem a capacidade de por seu intermédio reproduzir. Não obstante, numa outra escala, “nas relações conjugais envolvendo travestis está claro quem é a “mulher” e quem é o 90

Marido é o namorado da travesti.

91

É de referir que o próprio Kulick estabelece como objectivo do seu trabalho com as travestis em Salvador, mais do que captar as diferenças perante a heteronormatividade, as suas confluências. Tal objectivo previamente definido pode ter condicionado a conclusão de um construtivismo essencialista. (1998) 92

Butler diria que esta acção sobre os corpos mais não é que uma materialização nos corpos de um determinado enunciado discursivo estrutural – um construtivismo mimético. 61

“homem”, uma vez que dentro do sistema simbólico próprio das travestis as relações com o mesmo sexo só podem ser entendidas/experimentadas se masculino e feminino estão presentes em um casal.” (Pelúcio, 2006:524)93 O enquadramento prévio aplicado às relações entre travestis vai no sentido de considerar um erro admitir a possibilidade de “atribuir aos sujeitos a capacidade heróica de se posicionarem fora das normas socialmente impostas como se fosse possível atribuir a si mesmo uma categorização diferente daquelas disponíveis no seu contexto sóciohistorico.” (Pelúcio e Miskolci, 2007:257)

3.5. Performatividade/discurso e sujeito político De acordo com o que temos vindo a argumentar, performatividade é tudo o que os sujeitos elaboram estrategicamente para se produzirem enquanto tais e se posicionarem num espaço e num tempo sociais, perante si e perante os outros. Discurso, postura, gestos, falas, linguagens ou fronteiras simbólicas constituem-se como meios essenciais a esse processo de afirmação. As acções discursivas dos actores sociais, mais ou menos concertadas, mais ou menos legitimadoras e legitimadas, mais ou menos evidentes ou implícitas,

autorizadas

ou

negadas,

constituem-se

como

performatizações

e

simultaneamente formas de linguagem que elevam o indivíduo ao plano da comunidade e abandonam o âmbito restrito da mera performance isolada, desligada de um contexto social vasto e apenas sinalizadora de um determinado posicionamento socioantropológico individual. Performatividade no nosso trabalho pressupõe um contexto comunitário e nesse sentido político, que confere reciprocamente sentido às práticas e inteligibilidade aos sujeitos que as executam, através de relações e práticas reiteradas – embora fluídas - num âmbito, mais ou menos restrito de indivíduos, que se encontram por esse motivo unidos por traços identitários comuns discursivamente orientados. Um indivíduo que nas suas práticas e interacções associadas não seja entendido pelo outro e que como tal, não esteja disposto a entender o outro mediante processo similar, não emerge como sujeito em interacção. É neste ponto, portanto, que a dimensão política da identidade individual exige

93

Em sentido confluente Hopkins argumenta que as relações de género são construídas em relação a e contra o outro- género- e não por um sujeito pré-existente à interacção/construção. (2009) 62

grupo social ou comunidade - mediante identificação, partilha ou negação - que o processo de exteriorização pública e reivindicativa dessa identidade colectiva, distinta das identidades individuais que a formam, pode adquirir contornos agonísticos. Esse contexto político em que se esgrimem diferenças pode envolver negociação, reivindicação e execução de estratégias com vista à prossecução de fins sociais e culturais comuns (reconhecimento institucional, luta por direitos, etc.), dos quais não se excluem emoções e expectativas, sofrimento ou prazer. Neste sentido, a performatividade pode produzir idiossincrasia de grupo ao instituir discursivamente as performances de género. É num contexto de globalização potenciador de transnacionalismos vários que as performatividades alcançam sob uma perspectiva teórica maior riqueza e sob uma perspectiva prática maior variedade. Neste enquadramento e sob uma perspectiva estrutural sublinha-se o acentuar da prevalência de interacções multi-situadas que imprimem instabilidades várias, quer à estrutura, quer às práticas que com ela se relacionam dialogicamente, por oposição, confirmação ou tão só flutuação estratégica. Como afirmam Pelúcio e Miskolci relativamente à performatividade travesti, mais do que apenas subversão ou confirmação da heteronormatividade, ela reflecte em determinado sentido a sujeição a parâmetros heteronormativos que lhes permitam ser entendíveis enquanto seres humanos e sociais (2007:264). Não obstante, do ponto de vista analítico a visão sobre estes fenómenos não tem sido uniforme e a relação entre estrutura e sujeito tem sido apreendida de diversas formas e segundo múltiplos modelos. Passaremos de seguida a dedicar-lhes uma especial atenção.

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Capítulo 4 -ESTRUTURA/AGÊNCIA 4.1. Pós-Estruturalismo. O desvio e a fronteira do poder A dialéctica entre sujeito e estrutura tem sido problematizada por vários autores e com pendores diversos, não só porque os objectos de estudo não são idênticos mas também porque o não são os grupos e sujeitos que os compõem, nem tampouco os momentos da história da própria prática antropológica que sobre a temática se debruçou, determinandose em consequência diferentes conjugações avaliativas entre ambos os vectores (Ortner, 1984). Uns privilegiam um quase poder absoluto da estrutura sobre o indivíduo (Butler, 2007, Foucault, 1978, 2003, num certo sentido Bourdieu, 2002), não descurando no entanto a análise desse sujeito e suas subjectividades; enquanto, que outros sugerem uma capacidade agencial quase ilimitada do sujeito (Cf. Rubin 1975 in Lewin, 2006 relativamente à utopia da sociedade sem géneros); outros ainda articulam sujeito e estrutura enquanto lentes indissociáveis de análise. (Giddens, 1984, 1990, 1997, 2000, 2004, Ortner, 1984) No âmbito de um destes polos de abordagem que pode ser designada por pósestruturalista, Foucault (1978, 2003) não nega a existência de processos de diferenciação identitária ou até a postura desviante dos indivíduos face aos poderes; no entanto, sob o ponto de vista analítico, o enfoque é direccionado à forma como os poderes se abatem sobre os sujeitos, como os vigiam, classificam e lhes conferem visibilidade apenas no “encontro com o poder”, a partir do qual emergem enquanto sujeitos institucionalizados (Foucault, 2003). Este olhar atento da estrutura sobre os indivíduos, procurando descortinar comportamentos desviantes, reflecte de alguma forma a imagem do panóptico elaborado por Jeremy Bentham em 1791 (Foulcault, 1975), onde através da arquitectura se constatam e reforçam relações assimétricas de poder. Nesta estruturação espacial do poder, em cada cela estaria um indivíduo constantemente vigiado por uma entidade, para ele invisível, a partir de uma torre central, equidistante e situada no mesmo plano relativamente a cada uma dessas celas, dispostas de forma circular relativamente a esse centro vigilante – a torre. A torre simboliza o poder que todos têm consciência que existe. Um poder que actua pela vigilância constante dos desvios à sua norma, sendo essa vigilância impossível de detectar, pois os vigiados não vislumbram o que faz quem lá está dentro, ou sequer, quando está alguém lá dentro.

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A eficácia do poder residiria precisamente em vigiar sem ser percepcionado pelo vigiado. Transpondo este processo para o plano socio-antropológico, dir-se-ia que a capacidade vigilante do poder se encontra alicerçada numa construção socio-simbólica de um sujeito que pré-existe à lei (Foucault, 1978, Cf. Butler, 2007), o qual se identifica com a natureza / fundamento ontológico dessa mesma norma que o vigia. Essa noção de estar a ser vigiado, sem no entanto, ver quem o vigia, é consciente, o que reforça a sua eficácia sobre a acção e comportamento dos sujeitos. Neste sentido, Ortega citando Habermas, afirma em Foucault a impossibilidade de uma resistência para além dos limites do próprio poder, reflectindo uma dialéctica em que a uma nova tese se segue uma outra antítese. Seria assim, igualmente com a construção de género. Este teor dialéctico (em que a tese comporta os dois momentos anteriores, antítese e síntese) sublinha o devir histórico de toda a resistência e permite concebê-la, segundo o pós-estruturalismo de Foucault, como uma resistência que se processa e age dentro dos próprios limites contextuais - das relações de poder instituídas (Ortega, 1999:242). Não obstante, salientese que este carácter dialógico da resistência apontada por Ortegas acaba por colocar o sujeito dentro da estrutura. Qualquer resistência ou movimento de transformação social terá sempre que operar por relação a um status quo que pretende alterar. Neste enquadramento, estabelecemos como objectivo descortinar adentro das fronteiras do poder, em que medida e alcance os indivíduos elevados ao plano de sujeitos em interacção - eles próprios geradores de relações de poder dinâmicas e mutáveis em função da assunção de posicionamentos particulares em cada uma delas - podem ir além desses limites institucionais impostos? Em que termos a dimensão dinâmica dos sujeitos se revela e permite a descoberta de possibilidades que emergem adentro de uma estrutura essencialmente vista e sentida como castradora, as quais, lhes são todavia, no caso das travestis – sem visibilidade social para além das classificações médicas que se lhes referem - inadvertidamente disponibilizadas? Quais as consequências, supervenientes para os actores sociais dessa ousadia identitária? Alguns autores alegam que a natureza produtiva de identidades por parte do poder assume implicitamente uma outra dimensão, nomeadamente a de que o que não é estruturalmente viabilizado se encontra remetido para o plano da não existência legítima pelo apagamento ou constrangimento de que se torna objecto (Namaste, 2000). Nesse caso, essas acções apenas emergem socialmente como um desvio ou patologia, que

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confirma a regra (naturalizada).94 Como afectam estes apagamentos ou invisibilidades institucionalmente manipuladas, a identidade das travestis brasileiras e em que circunstâncias podem ser verificados? Tomando a heterossexualidade como um dado estrutural normativo, estruturado e estruturante, actuante num quadro social e cultural em que a população travesti surge maioritariamente desinvestida de uma especificidade de género e como tal, não legitimada e reconhecida ao nível das práticas quotidianas, Namaste utiliza o conceito de apagamento para se referir ao modo como a estrutura constrange por omissão e acção estes sujeitos. “Os/as transexuais são contínua e perpetuamente apagados do mundo institucional e cultural.” (Namaste, 2000:2) A partir de dados recolhidos no Canadá, a autora considera que o apagamento pode ser aferido a partir da ausência de políticas de acção social específicas para travestis e transexuais ou através da omissão dessas categoriais, em estatísticas sobre a incidência de HIV nas variadas populações. Essa ausência de especificação condu-las à inclusão no grupo dos homossexuais e ao despojamento de uma pretensa identidade específica trans e consequentes necessidades particulares.95 Neste sentido, transexuais e travestis são homossexuais, misturando expressão/identidade de género e orientação sexual. (Saleiro, 2009ª)

Ver neste sentido Saleiro: As práticas médicas pós 1995 e as leis em 2011 “desbiologiza ao tomar como independentes a identidade de género e as características físicas “encarnadas” - mas não “desmedicaliza” ao exigir como requisito para o reconhecimento legal o diagnóstico de “perturbação de identidade de género”, o que significa que o recurso ao reconhecimento legal está dependente do reconhecimento médico de que se trata de um caso de transexualidade.” (Saleiro, 2012:7, Cf. 2013). Esta postura clássica e estruturalista indicia, segundo a autora, a necessidade de se investir em profissionais médicos especializados na área do género e direitos e necessidades de transexuais (Saleiro, 2012:11), numa fase em que o SNS não possui ainda especialidade nessa área concreta. (Saleiro, 2009) 94

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Segundo Namaste, estes estudos são polarizados no binómio homem/mulher (homossexual, lésbica, heterossexual, bissexual) [Namaste, 2000:52)]. Esta autora aponta também, ao nível da queer theory, uma lacuna: o facto de as travestis e transsexuais nos serem apresentadas de forma geral, desenraizadas do contexto social e afectivo em que se produzem como sujeitos (Namaste, 2000:51-52). “Esta é com certeza uma preposição importante e sem dúvida que o trabalho de Butler foi instrumental e pioneiro no avanço dos estudos de género, mas falhou ao negligenciar a atenção devida ao contexto em que se processam as performatividade e performances. (Namaste, 2000:10) … de tal modo que transvestites e transexuais desempenham nos seus textos uma função de meras figuras de retórica (…). A apresentação da temática dos transgéneros na teoria queer despreza totalmente as condições de vida quotidianas desses sujeitos.” (Namaste, 2000:16) 66

Sob um ponto de vista pós-estruturalista o que é realmente importante perceber nestas categorias, são os modos como elas criam os seus próprios objectos. No caso exposto por Gobeil e Ross, a ausência de transgéneros no âmbito das estatísticas de seropositividade (in Namaste, 2000:41) …obsta ao reconhecimento da existência de necessidades específicas desta população, visto que as técnicas disponíveis para obter conhecimento acerca da incidência do vírus HIV exclui à partida transexuais e corpos transgéneros. (Namaste, 2000:44)

Nesta lógica de “apagamento” a autora concebe três vectores essenciais: - Apagamento não apenas de um contexto social em que se inserem os/as transexuais, mas também dos próprios, que são reduzidos a uma dimensão figurativa do discurso, enquadrados num plano formal e não material. Esse apagamento estrutural constata-se também ao nível escolar e académico, em que a sua identidade não é reconhecida. Finalmente e no âmbito da corrente pós-estruturalista, nomeadamente as abordagens realizadas por Butler (2007 in Namaste, 2000:51-52), em que a autora se mostra mais interessada em entender como as categorias médicas de travesti ou transexual produzem socialmente os seus próprios objectos, desligando-as dos indivíduos concretos que vivem e constroem essas identidades. (Namaste, 2000:41). - Apagamento de transexuais e transgéneros no domínio das políticas públicas, desta forma tornadas/os invisíveis enquanto cidadãs/ãos com especificidades identitárias. (2000:52) -Apagamento como acto de anulação dos/das transexuais e transgéneros, por exemplo através da categorização binária: homem/mulher, homossexual/lésbica nas estatísticas de HIV, realizada pela própria ciência. (2000:52)96 Namaste poderá eventualmente ir longe demais nalguns exemplos a que recorre ou nos dados utilizados. No entanto, sublinha de forma evidente a necessidade de situar os sujeitos nos contextos socio-históricos e simbólicos em que se produzem, sob pena de esses indivíduos se auto-excluírem da realização de alguns dos direitos mais básicos concedidos aos cidadãos na contemporaneidade em virtude do não reconhecimento social da sua especificidade.97

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Este último aspecto constitui um exemplo de como a estrutura pode actuar através da ciência ou, por outras palavras, como a ciência pode ela própria ser uma ramificação da estrutura em determinados contextos, produzindo ou apagando sujeitos. 97

Casos em que os sujeitos se auto-excluem do sistema de ensino ou abdicam de contrair empréstimos para habitação por não estarem dispostos a assumir o seu eu institucional. (Namaste, 2000) 67

Em contexto migratório por nós observado, outras variáveis se cruzam colocando aos actores sociais travestis novos obstáculos ou propiciando o emergir de novas oportunidades. Provavelmente, uma travesti e imigrante ilegal não se deslocará a uma esquadra de polícia com o intuito de fazer valer um direito no qual se considere lesada ou a um hospital público para resolver um problema de saúde, a não ser em situações extremas. Cruza-se assim, não só o facto de serem travestis e de muitas vezes renunciarem a um eu institucional (com que forçosamente serão confrontadas em determinadas situações), com o facto de na sua maioria serem imigrantes indocumentadas em Portugal, bem como noutros países da Europa. É reforçada deste modo a clandestinidade ou a marginalidade social, sublinhada ainda por contextos de alta mobilidade intra e trans fronteiriça. Essa maior exposição - inclusivamente no espaço público - potencia, segundo Miriam, o despoletar de situações paradigmáticas de inadequação entre sexo e género e de respectiva confrontação com uma identidade normativa masculina - casos que se revelam no acto eleitoral ou no serviço militar ainda no Brasil (2003, Carvalho, 2006:3).98 Neste quadro onde se afere a presença de inúmeros factores de ordem emocional que pressionam os indivíduos, a estrutura poderá não negar – no caso português - cuidados de saúde a sujeitos como as travestis, os quais em paralelo são maioritariamente imigrantes sem papéis; no entanto, cria as condições para que elas se sintam constrangidas no momento de decidir se recorrem ou não a esses serviços. Nestes casos, os indivíduos sentem-se obrigados a renunciar ao seu eu mais autónomo e reflexivo, se quiserem optar por determinado tipo de possibilidades estruturais ou, ao invés, renunciam a esses mesmos serviços. Estas situações reflectem a existência de uma combinatória entre autonomia dos sujeitos na prossecução dos seus interesses, com o modelo analítico da tensão, sempre atento a factores emocionais e de sofrimento que delimitam as condições em que os sujeitos vivenciam a experiência concreta e real. Na verdade, na análise das acções dos sujeitos não podem ser suprimidos inúmeros factores emocionais implícitos; medo, sofrimento, expectativas, desejos, necessidades, etc. (Ortner,1984:151). Estes factores emocionais são assim potenciados por uma prevalência acentuada de relações assimétricas entre estrutura e sujeito, como é o caso da relação entre travestis e estrutura

“É constante a referência à humilhação de ter que apresentar seus documentos com fotos masculinas.” (Peres, 2006:5). Algo que também verificámos a partir das observações que desenvolvemos. São exemplos disso a apresentação dos seus passaportes no aeroporto, hospital ou na esquadra de polícia. 98

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ou entre os próprios sujeitos, das quais sobressaem elementos tipicamente observados em contextos de luta. Quer a perspectiva se centre directamente na interacção (ou até “luta”) entre actores assimetricamente relacionados, quer se debruce com maior incidência sobre o que define os actores sociais (o que quer que estejam a fazer) em termos de papéis sociais e estatutos que derivam das relações sociais assimétricas nas quais participam, as abordagens tendem a sublinhar, a assimetria social como a dimensão mais importante das teorias da acção ou estruturalistas. (Ortner, 1984:147)

Neste enquadramento, procuraremos determinar em que circunstâncias esse confronto voluntário (estratégico) ou involuntário com o eu institucional, bem como o apagamento (que emerge transversalmente em e de muitas situações do eu agenciador) se processa e as consequências dele resultantes para sujeitos travestis concretos (Cf. capitulo VI). Essa dialéctica pode culminar em casos extremos na renúncia a direitos tidos como imanentes à condição de cidadão nas sociedades contemporâneas, impelindo alguns indivíduos, não raras vezes, em direcção a contextos dramáticos que muitas vezes conduzem à morte.99 Uma das nossas entrevistadas padecendo de tuberculose, apenas se dirigiu a um hospital público quando se encontrava com 30kg e num estado de saúde lastimável que se prolongou por meses a fio. Apenas recorreu a este serviço quando começou a temer pela própria vida. Neste quadro socialmente sinuoso e tumultuado, renunciarão as travestis a direitos ou procurarão vias alternativas à sua realização? Ou flutuarão – tal como se produzem discursivamente no feminino ou masculino - entre uma e outra situação, consoante a leitura realizada do contexto em que interagem as aconselhe? Será a estrutura sempre opressora ou permitirá, ainda que involuntariamente, que sujeitos por ela proscritos, encontrem nela, ainda assim, meios para estrategicamente se viabilizarem activamente? A teoria da acção será uma ferramenta útil no sentido de esclarecermos estas questões. Dentro da teoria da acção passaremos agora a dedicar atenção às correntes produzidas a partir dos anos 60 do século XX, algumas no contexto dos movimentos feministas de onde emergem os estudos queer, os quais rapidamente adquirem outras proporções e dimensões quer académicas, quer sociais.

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Morte por complicações advenientes da aplicação clandestina de silicone, em virtude da relutância de algumas travestis em recorrerem aos serviços de saúde estatais. 69

4.2. Teoria da acção. Agencia, estrutura e processos Habitus e capitais sociais. Campos e condicionamentos No âmbito das abordagens que privilegiam estrutura ou agenciamento, Bourdieu (2002) concebe os sujeitos como sendo dotados de uma capacidade agencial (relativa), a qual lhes permite aparentemente delinear trajectos, narrativas identitárias e projectos de vida. Admite, no entanto, que o habitus e relação estabelecida com os campos, através dos quais interagem simbolicamente, posiciona esses actores sociais numa estrutura limitativa da sua acção. Tomando o género como um papel social a que corresponde um determinado campo de actuação social, produtor de um habitus de género (Saleiro, 2013) e praxis estruturalmente compatíveis, poderíamos dizer que para Bourdieu a acção e a interacção implícita, fruto do habitus (estruturas estruturantes [Ramos e Januário, 2007:260]) são acções imediatamente inscritas no presente (Bourdieu, 2002:164), tendendo a ser valorizadas mais no seu imediatismo do que num prazo longo de tempo e nesse sentido estrategicamente mais elaborado (Ortner, 1984). Esse mesmo habitus tende, paralelamente, a configurar-se como um produto essencialmente do passado (Bourdieu, 2002), não só porque radica na socialização primária mas também pelo facto de ser um conceito analítico mais facilmente aplicável a sociedades tradicionais onde a mudança e o dinamismo social se processam de forma mais lenta, não compatível com as sociedades contemporâneas onde a transformação, opera, de forma mais intensa potenciando confrontos entre diferenças várias, por vezes no âmbito do posicionamento instável do próprio indivíduo repartido em pertenças múltiplas. Essa socialização num determinado habitus, reflectida segundo o autor em “princípios inconscientes do ethos ou os improvisos regulados” (Bourdieu, 2002:165, 169) e traduzidos numa expectativa do “por vir” (Bourdieu, 2002:164) estrutural que condiciona o encadeamento de significados produzidos num determinado campo (estruturas estruturadas Cf. Ramos e Januário, 2007:260) são condições da reprodução ou produção estrutural. Neste sentido o género surge como elemento estruturante e simultaneamente estruturado. Porém, estes condicionamentos sedimentados no inconsciente não resumem por completo a acção a um modo de respostas mecânicas a modelos, papéis ou normas (Bourdieu 2002:167), também no que concerne ao género. O que nos permite dizer que adentro das possibilidades conferidas pela estrutura, as acções do sujeito podem produzir transformação. Todavia, o sujeito não é nunca totalmente 70

autónomo ou autor único da acção, no sentido em que as suas experiências são organizadas (estruturadas) e percepcionadas através de estruturas estruturadas (campo) e estruturantes (habitus) [(Ramos e Januário, 2007:260)]. Nem tão pouco é totalmente passivo, visto que a sua capacidade enquanto sujeito permite a acção sobre a estrutura no âmbito das relações sociais mantidas no seu domínio, a competição por capitais sociais no campo onde se insere e ainda, a hierarquização mediada face a outros campos e práticas com os quais de alguma forma se relaciona. Neste quadro, transformações radicais seriam apenas possíveis em situações de crise aguda, em que o campo não correspondesse às práticas sociais - o habitus. Todavia, estas situações de crise latente, impulsionadas pelo dinamismo da inovação tecnológica e cognitiva, merecem pouca atenção de Bourdieu. Não obstante, mesmo em momentos de relativa harmonia, os campos constituem sempre espaços simbólicos de luta e busca de reconhecimento, obtido na gestão de recursos e acesso a capitais sociais conquistados no seu âmbito - simbólicos, intelectuais, económicos, etc. (Bourdieu, 2002, Ramos e Januário, 2007:263)] Sublinhamos igualmente o facto de que em Bourdieu o sujeito nos aparece em grande medida como estando limitado pela estruturação de que é objecto em determinado campo social, todavia sublinhamos ainda com maior veemência o facto de podermos descortinar aqui a semente do conceito da dualidade da estrutura (Giddens, 1984). Assim, se é verdade que em Bourdieu estamos perante um sujeito limitado na sua autonomia, também não é menos verdade que ele faz parte do processo que o limita ao ser socializado – e socializar - num determinado conjunto de princípios. Mais do que acentuar a limitação dos sujeitos ou a capacidade limitativa da estrutura, urge aqui ressaltar como o sujeito nos aparece como parte integrante daquilo que o limita e não somente como uma consequência (2002). Como veremos com mais detalhe no decorrer desta exposição (cap. VI), tendo as próprias travestis sido socializadas primariamente no modelo heterossexual de que são por isso conhecedoras, tal não impediu que a dada altura agissem criticamente sobre os princípios que lhes haviam sido transmitidos como naturalizadamente imutáveis.

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4.3. Poder diferencial e dualidade da estrutura Num outro sentido, Giddens argumenta que “a acção humana se processa num devir contínuo, um constante fluxo de práticas e conhecimentos, reflexivamente monitorizadas e questionadas em tempo real, que se influenciam mutuamente.” (1984:3). Esta continuidade encadeada e em processo da acção humana traduz não só a instabilidade dos contextos onde ela se desenrola, como também, revela as pressões endógenas à sua mudança através da acção que reflecte criticamente sobre si própria, monitorizando-se. O sujeito não age simplesmente: pergunta-se porque age desta ou daquela forma, questiona as regras e quem as transmite, procura informação e seleciona conhecimento, em suma, produz-se no próprio processo que questiona. Deste modo, em Giddens não só o enfoque não é direccionado ao passado e às suas estruturas estruturantes e inconscientes (embora a experiência passada faça parte do conhecimento e da capacitação reflexiva) como coloca o indivíduo no centro de uma tarefa cognitiva constante, consciente e direccionada ao presente, de alguma forma percepcionando um futuro próximo (quase presente) dado o carácter dinâmico como entende as sociedades e as acções humanas. As práticas tornam-se neste contexto indissociáveis do conhecimento e da tarefa reflexiva/crítica, que ele possibilita ao dotar o indivíduo de competências nesse âmbito poder diferencial - assim como objectivamente inseparáveis da estrutura onde se executam. Esta relação processual entre estrutura e agência reflecte um conceito que Giddens designou por estruturação, no qual está implícito o devir dessa relação dialógica, operando num contínuo dinâmico, no qual, por exemplo as travestis se produzem por relação à estrutura, mesmo que em determinadas áreas a ultrapassem ou subvertam, retomando-a de imediato quando os elos condutores necessários à sua narrativa são o masculino e feminino hegemónicos. Aliás, esta constitui-se como uma das questões fundamentais a que pretendemos responder neste trabalho. Será que as travestis realmente subvertem a estrutura ou antes a confirmam? De qualquer modo, ainda que a subvertam não deixam de fazer parte dela, pelo que esclarecer este e outros pontos que nalguns casos assumem implicitamente o seu posicionamento como exterior à estrutura, é para nós essencial. Paralelamente, o carácter dialógico desse processo implica um outro conceito, o de dualidade da estrutura que designa precisamente o facto da reprodução ou transformação social não serem produzidas pela estrutura ou acção isoladamente, mas 72

sim mediante a relação entre ambas (1984), algo que implicitamente temos vindo a deixar vincado como se constituindo como um dos nossos pontos de partida para a realização deste trabalho, a partir do qual verificaremos mais aprofundadamente (Cf. CAP. VI) como a própria marginalidade se converte em estrutura e vice-versa.

4.4. Interesse e constrangimento. Capitais sociais e estratificação A perspectiva do interesse implícito numa acção acentua a busca e realização dos objectivos pragmáticos dos sujeitos, em que o êxito da conduta reside na concretização desses interesses mediados por um habitus. Não obstante, esses interesses são determinados por uma acção valorizada dentro dos padrões estruturais e estruturantes de um determinado campo, condição para o acesso à gestão/mobilização de recursos e competição por capitais sociais (Bourdieu, 2002, Coleman, 1990, Vertovec, 2009). Por outro lado nas acções dos indivíduos os interesses podem consistir na realização emocional e de desejos marcados por subjectividades apenas decifráveis casuisticamente: fazer o corpo, assumindo uma perspectiva pragmática na estratégia montada para o efeito e relacionada com a prostituição, assume paralelamente uma vertente identitária e emocional porque inserida em contextos simbólicos específicos onde os indivíduos se inserem, produzem e perseguem, por exemplo, não só auto-estima, mas também autoexplicarem-se enquanto seres sociais em constante interacção. Neste sentido, os campos são concebidos por Bourdieu como áreas específicas de organização do social institucional, geradores de capitais sociais correspondentes a essas especificidades valorizadas, capitais esses facilitadores do acesso à gestão dos recursos situados nas relações sociais (Coleman, 1990) ou, consoante a perspectiva que não subscrevemos, detidos pelos indivíduos (Bourdieu, 2002).100 Desta forma, o campo de Bourdieu coloca os agentes como não iguais, instituindo a dominância de uns sobre os outros (Vasconcelos, 2002), mediada pelos campos onde se estruturam e agem, tendo em atenção a realização de expectativas, suas e do grupo. Os elementos hierarquizantes

100

Mais uma vez nos deparamos aqui com a questão clássica estrutura vs acção. Dizer que os recursos residem nos indivíduos é afirmar relativamente a estes uma grande autonomia, dizer que flutuam nas relações entre os indivíduos é afirmar a relevância das normas, constrangimentos e deontologias no processar da interacção. Todavia e na medida em que apenas perspectivamos sujeitos que existem a partir da interacção nas quais efectivamente participem, não há interacção sem sujeitos, nem sujeitos sem interacção. Ou seja não há sujeitos e acção sem poderes que de alguma forma os condicionam. 73

operando entre campos são os capitais sociais alcançados e sua diferente valorização estrutural, decorrentes também dos recursos aos quais os indivíduos têm acesso no âmbito dessa área concreta da acção humana.

Figura 1 – Indivíduos, campos, capitais e recursos

Cada campo produz/reproduz deste modo e classifica, de forma coerente com os seus pressupostos ontológicos, as acções, finalidades e capitais por ele valorizadas, enquanto, que paralelamente esses pressupostos criam as condições, limites e possibilidades da incorporação de princípios reguladores das interacções no seu âmbito, um habitus (disposições duradouras), de certa forma confirmando a possibilidade de resistência, apenas dentro das fronteiras do próprio poder (Foucault, 1978, 2003). Admitindo oposições no seu seio, mas simultaneamente delimitando a medida dessas oposições, um determinado campo legitima-se ontologicamente e paralelamente, reactualiza-se. Neste sentido, a conflitualidade e a dominação jogam-se mais entre campos e indivíduos que actuam neles do que directamente entre os sujeitos. Por outras palavras, a assimetria e a tensão é mediada pelos campos onde os actores sociais se encontram

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inseridos (Vasconcelos, 2002). Se, adentro um campo se processa a competição pela busca de capitais e capacidade de mobilização de recursos mediante a gestão dos mesmos pelos indivíduos que o compõem, entre os campos produz-se estratificação social e dominância de capitais sociais, uns sobre outros. Justificando-se desse modo as desigualdades sociais e hierarquizações consequentes. 101 Neste enquadramento a construção de género travesti constitui-se como um campo social, assim como o é, a prostituição que exercem. Nesse âmbito existem recursos como alojamento na cidade para onde emigram, local na rua onde lhes é permitido prostituirse, competição com outros grupos dedicados à prostituição como a feminina e masculina, competição por especificidades identitárias face a outras figuras como drag-queens e crossdressers, confronto com os princípios heteronormativos – em suma hierarquização de campos e capitais sociais, neles produzidos, atingidos e valorizados nos seus vários domínios. Todas estas áreas de acção implicam estratégia e interesses, quer pragmáticos, quer simbólicos e por outro lado um modelo social que exerce a mediação do acesso a esses capitais por parte dos actores sociais. Embora o interesse implícito numa acção seja relevante na teoria de Bourdieu, ele, não concebe os sujeitos como racionais/conscientes ao ponto de calcular a maximização de ganhos na prossecução dos seus objectivos numa dada situação (Aquino, 2000:20, Coleman, 1990). Ao invés, esse sucesso almejado e equacionado na acção resulta de um senso prático, o habitus. Sendo o habitus constituído essencialmente pelas experiências primárias, ele tende a ser guiado por princípios inconscientes102 e colectivos inerentes ao campo/s onde foi produzido (Aquino, 2000:23), sem que da parte dos agentes exista o menor cálculo ou estimativa das possibilidades de sucesso. (Bourdieu, 2002) Esta perspectiva implica uma primazia das redes estruturantes sobre o sujeito na teoria da acção, visto que a acção sendo padronizada (estruturada) para fazer face a situações do mesmo cariz se encontra em muito formatada pela subestrutura onde o indivíduo se insere e pelas experiências vividas por ele nesse campo. Esse processo limita 101

Por seu turno, Giddens (1997) concebe as desigualdades como sendo criadas e potenciadas pelas diferentes capacitações de conhecimentos (poder diferencial), ou seja, o conhecimento não está distribuído de forma homogénea por todos os indivíduos, pelo que diferentes capacidades reflexivas produzem desigualdade entre sujeitos que as detêm em diferentes graus. 102

Ao contrário do carácter consciente dos indivíduos, relativamente ao facto de serem cientes de estarem constantemente a ser vigiados pela estrutura, em Foucault. (1975, 1978, 2003) 75

não só o acesso a recursos como também as possibilidades concretas de planeamento e execução de projectos de vida, bem como o leque de experiências possíveis, a viver pelos indivíduos.103 De algum modo os objectivos e interesses não são os dos sujeitos, mas sim os da própria estrutura que os incorporou, através de um habitus nos sujeitos, sob a aparência de serem seus. Não obstante, a partir desta perspectiva duas elações se tornam possíveis. Uma concebe os grupos socio-históricos como relativamente estáveis e harmoniosos, em que a estrutura é pacificamente incorporada e quase perpetuada; a outra, admitindo a estrutura como pólo dominante da equação, sublinha a conflitualidade latente na relação dialógica entre ela e os actores sociais, o que de alguma forma pressupõe a capacidade dos sujeitos de contestarem activamente uma incorporação estrutural passiva. Bourdieu e Giddens, como se tem vindo a explanar, partilham com a antropologia dos anos 60 um entendimento da estrutura e seus poderes como dominação simbólica ou hegemonia; no entanto, para Giddens “os aspectos acima mencionados, relativos aos constrangimentos estruturais e estruturantes, não podem ser resumidos a operações de poder no plano social.” (1984:173) Figura 2- Poder diferencial e capitais sociais

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Limitando o acesso dos indivíduos a outros campos mais prestigiados, por incapacidade do habitus no qual foi socializado. 76

4.5. Estrutura e acção: balanceamentos teóricos, numa teoria das práticas Em Giddens (1984), mantem-se a perspectiva de um sujeito não totalmente livre104, porque inserido em condições específicas (históricas, sociais, económicas, religiosas, ideológicas, filosóficas) e estruturais, em que o actor social age interessadamente e munido de uma capacidade reflexiva que pressupõe a construção e agenciamento de um, eu em condições de risco e incerteza (Ramos e Januário, 2007:265). A reflexividade assim concebida estende-se ao plano das práticas do quotidiano nas sociedades modernas; o inesperado, fruto de um acentuado dinamismo social torna-se a regra e não a excepção. Nesse contexto, o actor social auto questiona-se sobre o que faz e porque o faz “agindo e reagindo desta forma sobre o social.” (Giddens, 1997). De certa forma, a acção do indivíduo, não estando completamente dissociada do seu passado, age tendo em vista a superação do inesperado que lhe proporciona o presente, num quadro em que o futuro próximo se afigura imprevisível pela intensificação das mudanças imprimidas, por múltiplos factores sociais, às sociedades contemporâneas. Não obstante, esta reflexividade implica consciência autocrítica e paralelamente, capacidade de monitorizar o fluxo estrutural.105 Neste âmbito, perante uma sociedade repleta de modernismos paralelos e intersectada por interdependências várias que retalham geografias, aparentemente determinadas e localizadas, surgem as condições potenciadoras da emergência de situações de crise a partir das quais Giddens assume que a acção dos indivíduos já não

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Para uma perspectiva que valoriza ideias de dominação simbólica e hegemonia, bem como de uma dialéctica resiliente, sublinha-se o contributo de Marx, consubstanciado no facto de segundo ele, as relações serem entendidas como assimétricas ou como relações de dominadores/dominados, sendo estas formas de acção ou/e interacção as que melhor explicam a própria origem da estrutura, bem como as suas transformações em qualquer momento e circunstância. (Ortner, 1984:147) 105

Pelo contrário, Lash (1997) constata o individualismo como emergente de categorias impensadas de práticas partilhadas. Denotando neste aspecto influência do habitus de Bourdieu (2002), distancia-se de Giddens quando reconhece aos saberes/poderes especializados e às instituições reduzida relevância na emergência e concretização da reflexividade. Estas sociedades divergem das tradicionais no aspecto em que se encontram assentes nas estruturas de comunicação e informação, às quais, nesta perspectiva, as instituições são alheias. Tal pressupõe, igualmente, um distanciamento do sistema democrático imanente ao pensamento de Giddens (1997), em que sendo atribuído especial relevo às estruturas da comunicação e informação, são os leigos que elegem os grupos competitivos de saberes especializados, os quais, mediante sistemas de comunicação fazem circular a informação que os dota de capacidade reflexiva, nesse sentido, estruturada (a própria sociologia como um produto da modernidade [Giddens, 2004]). Lash chama a estas sociedades passíveis de gerar várias modernidades (já não apenas concebidas como inerentemente de progresso) sociedades de risco. (1997) 77

pode ser moldada pela tradição (1997) – “ela própria, objecto de reflexividade e de reinvenção a cada geração.”106 A primazia atribuída por Giddens aos saberes especializados (1991) pode numa primeira abordagem induzir em erro, no sentido em que um conhecimento científico aprofundado propiciaria à partida maiores certezas e não o contrário, às sociedades onde é produzido. Não obstante, esses saberes especializados estão eles próprios submetidos ao crivo da reflexividade e as práticas sociais por seu intermédio sujeitas a auto-reflexão. Nesta concepção, o sujeito faz parte da construção da estrutura e simultaneamente posiciona-se nela – dualidade da estrutura. É a reflexividade portanto, que está na base de reprodução do sistema. (Giddens, 1991)107 No âmbito desta primazia analítica atribuída à reflexividade, à incerteza, ao risco, à inovação e consequente dinamismo social, Giddens vislumbra na emergência dos Estados Nação108 as condições para o eclodir dessas contradições estruturais, em grande medida fruto dessa reflexividade dialogicamente crítica.109 A organização em Estados-Nação das sociedades modernas, uma das dimensões da globalização, assenta na desestruturação das comunidades locais tendencialmente tradicionais e mais avessas à mudança.110 Neste quadro, a reflexividade institucional 106

Beck vai mais longe e considera que as acções do quotidiano são elas próprias participativas de construção política (subpolítica): “as sociedades seriam moldadas de baixo para cima.” (Beck, 1997:35). Lash critica em Giddens e Beck, a excessiva relevância atribuída às instituições e especialmente, no caso de Giddens, aos grupos de saber especializados, criticando por inerência o seu conceito de reflexividade. (1997) 107

Diverge neste aspecto de Bourdieu, que sustentava que a reflexividade crítica era exclusiva do campo científico (Ramos e Januário, 2007:265). Essa centralidade atribuída por Giddens (1984, 1991, 1997) ao sujeito no processo de reprodução da estrutura está patente no facto de que, mesmo no caso de ausência de reflexividade e exercício de monitorização, ele é concebido como fonte dessa mesma estrutura. Esta argumentação não concebe sujeitos e estrutura como pólos opostos, mas sim como integrantes de um todo que progride dialecticamente. 108

Alguns autores relacionam a pós-modernidade com o aparecimento de inovadoras construções de género e modificações corporais. (Ekins e King, 2006:30) 109

Giddens considera que a condição estrutural surge com a emergência dos Estados, relacionados por sua vez, com o proliferamento e desenvolvimento das cidades (Giddens, 1984:195). Estas formas de organização social e política conferem novas estruturações de espaço e tempo, incluindo por exemplo as relações entre Estados, o aparecimento de empresas transnacionais, grupos religiosos diaspóricos e globais, comunidades de intelectuais que quebram as fronteiras da soberania territorial, etc. (Giddens, 1984:196) 110

A globalização é um conjunto de processos paralelos (Raposo e Togni, 2010) que como tal comporta diversas facetas e perspectivas, nomeadamente os usos de “novas” tecnologias (internet, telefones móveis, etc.), o devir constante das relações de trabalho em permanente transformação, a que corresponde a desindustrialização nuns países e a industrialização noutros, com mão-de-obra naturalmente mais barata, a 78

tornou-se o principal inimigo da tradição; o abandono dos contextos locais de acção ocorreu em paralelo, com o crescente distanciamento e simultaneamente compressão do tempo e espaço (desincorporação Cf. Giddens, 1997:115). 111 Como argumentava Lédrut: Não há espaço nem tempo por si só, existindo autonomamente e desligados do comportamento humano, ao invés, espaço e o tempo são produzidos, são resultado das práticas e comportamentos dos indivíduos. Os movimentos a partir dos quais são produzidos – ao mesmo tempo que a sociedade, ela própria, se produz – podem ser chamados de espacialidades e temporalidades. (1979:122)

Em paralelo e como consequência, a noção de distância não é uniforme e a uma distância geográfica pode não corresponder uma distância cultural, emocional ou outras – tempo e espaço adquirem sob esta perspectiva uma outra dimensão, assim como a relação dos indivíduos com essas categorias, diferencia e concretiza contextualmente esses conceitos, reflectindo de alguma forma a sua relação com a estrutura ou estruturas. O que equivale a dizer que quer espaço, quer tempo são categorias organizadas culturalmente de forma contextual, correspondendo por exemplo a uma forma específica de organização em Estados-Nação, vivência nas cidades, relação com as instituições ou tecnologias, com o conceito emocional de casa, vizinhança, nacionalidade ou lealdades duplas em contexto migratório, etc. Tal ocorre na contemporaneidade, tendencialmente em campos sociais caracterizados por desenraizamentos vários ou pertenças múltiplas (Hall, 1996), associados à urbanização e a uma crescente mobilidade dos indivíduos que transportam com eles inúmeros factores de mudança (culturas, comodidades, força de trabalho, etc.)112 Neste contexto de mobilidades e fluxos variados, caracterizadas pela produção de novas espacialidades e temporalidades (Lédrut, 1979, Cf. mobilidades Rémy e Voyé, 1994), que fazem colapsar velhas temporalidades e espacialidades, mais limitadas e centradas sobre si, nada é certo e geracionalmente transmitido como inquestionável. O self abandona o isolamento recatado das sociedades tradicionais, estáveis e no âmbito do

feminização das migrações e da mão-de-obra, a flexibilidade laboral, deslocalizações, etc. Como diria Vertovec, “É claro que há inúmeras maneiras de abordar os aspectos da globalização.” (2009:2) 111

Uma das primeiras expressões do colapso das comunidades tradicionais são os movimentos feministas dos anos 60 do século XX, sinais da modernidade e capacidade crítica do sujeito sobre as suas acções e sobre a própria estrutura. (Butler, 2007, Rubin 1975 in Lewin, 2006, in Vance, 1984) 112

Ao que poderia ser contraposto, o argumento relativo a situações de reduzida mobilidade tendencialmente mais comuns em espaços não urbanizados, em que “a habitação, o lugar de trabalho e o lugar de lazer concentram-se num espaço restrito de interconhecimento.” (Silvano, 2001:57) 112 79

Estado-Nação moderno - mais ou menos contemporâneo da emergência das grandes urbes industriais - auto questiona-se, questiona o outro, bem como os constrangimentos de que sente ser alvo. O criticismo e a reflexividade convertem-se na substância essencial da produção da diferença, assentes também em distintas formas de produzir e gerir espaços e tempos, a que correspondem novas sociabilidades e comportamentos, dos quais resulta a emergência de novos campos sociais (Bourdieu, 2002), como os mercados da diferença, s0ecundados em muitos casos por processos de fetichização da mercadoria.113 (Harvey, 1989) Salientamos ainda que ao falar-se de estrutura não nos referimos a uma entidade única e a-histórica, mas sim a várias estruturas contextualizadas num espaço e tempo, que entre elas estabelecem igualmente relações assimétricas que resultam em estruturas dominantes e hegemónicas, face a outras mais frágeis, mas igualmente estruturadas face à dominante e estruturantes dos indivíduos que actuam no seu campo. Se entre campos se produz estratificação, tal ocorre porque entre as estruturas correspondentes a esses campos sociais o poder não está distribuído de forma idêntica nem a sua valorização social é a mesma. Umas são meras especializações socio- institucionais da dominante, outras aparentam sair da sua esfera de poder e influência. Por esse motivo o campo social onde se produz o género se subdivide em derivações diferenciadas de masculino e feminino heteronormativo; transexuais e travestis, travestis masculinos e femininos, trabalhadoras do sexo travestis e femininas, etc. Cada um destes campos sociais onde os indivíduos agem, embora se revelem estruturas mais frágeis e constituídas por um menor número de indivíduos, não deixam de possuir as suas normatividades que de alguma forma estruturam os comportamentos daqueles que agem no seu âmbito, culminando em relações que posicionam os sujeitos entre si de modo diferenciado.

4.6. Giddens e Bourdieu. Teoria da acção; convergências e divergências

113

Consideramos as travestis como inseridas nos novos mercados da diferença, onde competem pelo reconhecimento e legitimação dessa mesma diferença, paralelamente no âmbito da prostituição, elas próprias se convertem numa mercadoria, de resto constatação patente na frase de um anúncio na internet de Erika Carr.:Sou o seu sonho de consumo. 80

Entre Giddens e Bourdieu existem assim diferenciações teóricas axiais. Uma delas reside no facto de que para Bourdieu os sujeitos agem na estrutura e não sobre, porque conhecedores (inconscientemente) dos princípios da acção num determinado campos através de um habitus correspondente, procurando interessadamente - embora de forma inconsciente e sob aparência de uma acção lógica - granjear capitais (simbólicos, económicos, sociais, etc.). Tais sujeitos encontram-se investidos de uma maior passividade, comparativamente com o que ocorre no “sujeito” em Giddens, no sentido em que esse campo institui o limite à sua crítica e acção (Aquino, 2000, Bourdieu, 2002), incorporado num habitus que embora teoricamente dinâmico, a longo prazo potencia mais a actualização dos seus princípios e as desigualdades entre campos, do que situações de crise e cisão entre habitus e campo. Pelo contrário, para Giddens (1984) as sociedades modernas potenciam as situações de crise, pelo que estas adquirem neste contexto um carácter mais ordinário do que extraordinário. Assim, em vez dos elementos estruturantes e estruturados de Bourdieu, Giddens contrapõe o conceito de estruturação que confere uma maior capacidade reflexiva - actuante sobre o social e simultaneamente produtora deste - ao sujeito. Adicionalmente sublinha o seu carácter processual e constantemente inacabado.114 Essa capacidade reflexiva é indissociável de uma consciência histórica e de um estado de alerta permanente perante o movimento progressivo do social, moldado por esse mesmo estado de alerta associado a uma concepção processual da estrutura e da acção, onde o sujeito e estrutura não são pólos dicotomizados, mas sim termos dialógicos de uma relação dialéctica por definição em constante movimento - raramente harmonioso. Como refere Giddens num dos seus trabalhos, o estudo das práticas não se apresenta como

114

Em Giddens (1984) sublinha-se portanto, uma maior atenção analítica direccionada ao conceito/ideia de mudança ou situação de crise, como elemento preponderante nas sociedades modernas. Ideias como risco, incerteza ou outras que tais, englobadas na tarefa reflexiva do sujeito moderno (pertenças múltiplas, identidades fragmentadas, multiplicidade de papéis, estatutos e saberes especializados [Hall, 1996]), apontam para um processo de estruturação por meio da reflexividade potenciador de dinâmicas de diferenciação (dualidade da estrutura), mais do que para as disposições duradouras de Bourdieu. Não obstante, não as negando, visto que para Bourdieu a dinâmica social era também observável na relação dialógica entre estruturas/campos e sujeito. Em ambos a centralidade das suas investigações reside no aprofundar das relações entre estrutura e sujeito, e embora os dois autores atribuam à teoria da acção, papel de relevo no plano da análise, o indivíduo comum em Giddens aparece dotado de reflexividade crítica, exclusivo da ciência para Bourdieu. Nesse sentido o sujeito é concebido como mais capaz de se autodeterminar e de agir sobre e em uma estrutura que está em contínua transformação, por acção também, da sua capacidade de a monitorar (competência auto-reflexiva). Deste modo, para Giddens uma teoria da acção implica os efeitos da estrutura sobre o indivíduo e o reverso. 81

uma alternativa antagonista ao estudo das estruturas, mas sim como um complemento necessário a este último. (Giddens, 1984, Ortner, 1984:146-147)115 Quanto mais capacitado estiver o actor social, em termos de conhecimentos e de possibilidades de acesso à informação, produto também da especialização de saberes – poder diferencial – mais apto se encontra para monitorizar quer as suas acções, quer as dos outros, quer a um outro nível, a estrutura. Neste contexto, Giddens (1984) atribui às tecnologias como factor de dinamismo social gerador de fluxos múltiplos, uma importância que simplesmente inexiste em Bourdieu. Parece-nos ser de fácil consenso o facto de que testemunhamos um período em que processos sociais globalizados retiraram às sociedades a estabilidade116 de dinâmicas operantes em que repousaram durante séculos, o que por si não se constitui como algo novo. Nova é a intensidade com que a cada dia esses processos de trocas múltiplas se instituem e actualizam. A informação acompanha a intensidade com que os indivíduos se deslocam entre continentes – a maioria das vezes com uma rapidez superior à mobilidade desses actores sociais - quebrando as barreiras de uma tradição quase religiosa que assentava no desconhecimento do outro e na reprodução acrítica de modelos de organização social e seus valores. Nesse sentido a teoria da acção de Bourdieu assente num habitus condicionador e inconscientemente estruturante perdeu espaço (2002). Pelo contrário, o indivíduo age sobre a estrutura e faz parte dela quando ousa rasgar o consenso socializante que o instituiu como indivíduo conformado e inserido numa determinada estrutura, até porque na contemporaneidade ele não actua ou é socializado num número necessariamente restrito de campos. A multiplicidade de campos nos quais o indivíduo se projecta, alguns deles geradores de contradições entre si117 (reflexivamente detectadas mediante monitorização empreendida) imprimem no indivíduo um cunho de dispersão identitária e de desenraizamento que reforçam uma apetência pelo questionar de valores, práticas e 115

Salienta-se ainda que para Giddens (1984), aspectos como o desenvolvimento da impressão e as novas tecnologias da informação e comunicação – indissociáveis das migrações e do anonimato urbano (Rubin, 1984, Green, 1993) - não são alheios a esse facto. (Cf. monitorização Giddens, 1984:203 e no mesmo sentido Vertovec, 2009) 116

No sentido dos valores duradouros que ciclicamente reproduziam essas sociedades.

117

Por exemplo, os fluxos migratórios que gerando novos campos de actuação ao indivíduo, podem, igualmente potenciar o emergir de situações em que se constatam posicionamentos/hierarquizações translocalizados. (Cf. translocational positionality: Anthias e Gabriela, 2000) 82

seus modelos. Não há na actualidade, instituições inquestionáveis ou imunes à crítica e à mudança (Cf. Giddens, 1984, 1997). O género na sua vertente de instituição, também não é excepção. As travestis brasileiras em contexto de prostituição agem reflexivamente sobre os géneros institucionais, conhecem-nos, desmontam-nos e reinventam-nos na vertente do seu posicionamento na interacção de forma crítica, colocando em causa o campo de género onde foram inicialmente socializadas. Imprimem-lhes novas espacialidades e temporalidades, desconstroem-no e ousam exteriorizar a estruturação empreendida sob a forma de identidade, contrariando a observação de Butler em Corpos que Pesam (2007ª in Vale de Almeida, 2008:8 comentando Butler, 2007) segundo a qual os corpos apenas adquirem uma dimensão material mediante acção unilateral do discurso hegemónico. Essa vertente materialmente corporificada do discurso resultaria da incorporação pelo sujeito de uma série de princípios, princípios esses que adquiriam nos corpos viabilidades e inteligibilidades sociais. Não nos parecendo que as travestis se limitem a reproduzir um determinado discurso dominante, embora imprimam nos seus corpos marcas do feminino e masculino conforme os padrões que os tornam estruturalmente entendíveis e identificáveis, actuam criticamente sobre esse discurso quando minam um dos seus fundamentos base, a correspondência entre sexo e género na qual se sustenta a heterossexualidade. Este é o motivo pelo qual, embora fazendo parte da estrutura e a tenham de algum modo incorporado, são por esta, maioritariamente apagadas enquanto grupo e enquanto campo social de acção, socialmente valorizado, como consequência de terem agido criticamente sobre os fundamentos duma das suas áreas específicas de organização social, a correspondência entre sexo e género. Neste sentido entende-se também o porquê de tendencialmente, apenas adquirirem visibilidade social enquanto objecto que emerge de classificações médicas, as quais, não deixam de reflectir uma forma de coercibilidade sobre o desvio, ainda que este seja originariamente, estruturado. E mesmo nos casos em que se procede a algum tipo de integração das travestis na estrutura, ela apenas pode suceder após o reconhecimento pela própria de que padece de uma perturbação que necessita de algum tipo de acompanhamento médico ou em alternativa, pela assunção de um, eu, institucional.

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Dentro de um quadro em que operam vários constrangimentos, as travestis decidem-se a permanecer travestis. Dentro desse condicionamento estrutural as suas estratégias adquirem particularidades que sublinham a visão de muitos autores (Kulick 2003 in Cameron e Kulick 2006, Hall, 1996), das quais sobressai no plano das práticas a dimensão posicional dos sujeitos em interacção e a capacidade de em processo dialógico envolvendo todos os elementos participantes, serem produzidos novos campos relacionais orientados por diferenciadas e particulares relações de poder – mediadas pela performatividade - estrategicamente accionadas pelos actores sociais, mas, não obstante, de forma não isolada das múltiplas normatividades onde e por relação às quais efectivamente emergem enquanto sujeitos.

84

PARTE II – UMA ETNOGRAFIA SOBRE MOBILIDADES TRAVESTIS Capítulo 5 - PRIVAR E APRENDER A COMUNICAR: ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS 5.1. Observação participante e etnografia do quotidiano Para a realização desta pesquisa optou-se por uma perspectiva que privilegia as práticas do quotidiano, a sua observação e o que estas nos revelam, não só ao nível da relação dos indivíduos com a estrutura, mas também da sua relação com o outro e entre os próprios membros do grupo, relações a partir das quais resulta, grosso modo, a especificidade identitária de travestis brasileiras. Esta idiossincrasia de um ethos travesti é desenvolvida em grande parte no seio de relações intra-grupo, num contexto micro de prostituição e migração/emigração. Este enfoque direccionado ao quotidiano será contextualmente analisado com referência a padrões macro, quer das performances dos indivíduos, quer das estruturas onde e por relação às quais se inserem e agem, em contextos vários que reflectem fluxos globais multi-direcionados e pluri-estruturados. Esta pesquisa exigiu muitos anos de trabalho persistente, assentando numa observação etnográfica realizada presencialmente no contexto da prostituição domiciliária travesti em Portugal, através de estadias prolongadas na residência de uma interlocutora privilegiada (Adriana), quer no Porto, quer em Lisboa.118 Nessas residências, foram por vezes observados imbricamentos entre a prostituição (também masculina e feminina) e a vida familiar119 ou entre sociabilidades não directamente ligadas à prostituição. Para tal, a focalização etnográfica dirigiu-se ainda a outros quotidianos como as idas ao shopping no domingo - o qual, não sendo dia de folga, é geralmente dia de saída e compras - as festas de aniversário, as viagens de táxi (com taxistas com o “exclusivo” de transportá-las), as interacções informais com indivíduos que alugam casas para depois subalugar quartos a travestis, as visitas sociais de manas

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Passámos igualmente por outras cidades como Coimbra ou Aveiro, no entanto sem lá permanecermos mais que umas horas. Essas viagens visavam acompanhar as dinâmicas de permuta de habitações promovidas no seio do grupo e neste âmbito, por exemplo, acompanhámos Júlia Vellaskez numa viagem de Lisboa a Coimbra, onde iria ficar alojada e trabalhando. 119

Adriana não financiou apenas a chegada de colegas, também o fez relativamente a familiares, nomeadamente o sobrinho, ao qual providenciou alojamento e alimentação, enquanto este procurava trabalho com o intuito de trazer a esposa. Pouco tempo depois do casal se reunir em Portugal e após algum tempo vivendo com Adriana, separaram-se. 85

muitas vezes estrategicamente orientadas por objectivos pragmáticos,120 a presença em residências nas quais o atendimento aos clientes se realiza e onde simultaneamente habitam - ainda que na maioria dos casos temporariamente, porque em trânsito para outras cidades ou países. Nestes vários espaços e contextos, procurámos igualmente observar as relações entre travestis, incluindo muitas vezes, interacção com as próprias, no âmbito da observação participante accionada.

5.2. Dados recolhidos da internet Subsidiariamente foram também recolhidos dados mediante registo realizado durante quatro anos, a partir de quatro sítios na internet em que se anunciam préstimos sexuais de travestis brasileiras em Portugal – embora com o decorrer dos anos, também as portuguesas passassem a anunciar nesses espaços na internet. Por um lado, estes anúncios permitiram uma análise do conteúdo dos discursos produzidos pelas travestis sobre elas próprias e, em paralelo, para os clientes. Por outro, complementaram a informação maioritariamente qualitativa presente neste trabalho com dados quantitativos referentes às cidades portuguesas onde se exerce este segmento de prostituição, sua distribuição em termos numéricos, totalidade de anunciantes por ano e totalidade de anunciantes no final do registo, findos os 4 anos em que foram realizados estes registos. A análise destes dados revela não apenas o mapeamento geográfico da prostituição em Portugal, como também algumas dinâmicas de grupo implícitas nessa distribuição geográfica. Pretendeu-se ainda através destas informações, descortinar uma tendência quanto à permanência mais ou menos prolongada em Portugal de travestis, ou ao invés, a utilização deste como interface de chegada a outros países Europeus. O recurso a estes sítios na internet procurou também chegar a travestis que de outro modo não poderiam ser contempladas no âmbito desta pesquisa, por impossibilidade logística decorrente da sua elevada mobilidade geográfica e permitiu-nos ainda a observação de dinâmicas associadas à imigração de travestis para Portugal – emergência de sítios de anúncio na

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Recordamos algumas situações em que Adriana espeitando pela janela e conseguindo ver quem a visitava, deixava a campainha tocar até que se fossem embora. Muitas vezes essas visitas tinham como objectivo providenciar habitação para uma outra mana ou a estadia temporária para uma amiga ou amigo, não necessariamente directamente relacionados com a prostituição. Tal, não invalida que muitas das visitas tivessem como objectivo tão, somente a mera convivência e sociabilidade. 86

internet, competição entre eles e, nalguns casos, o seu desaparecimento em virtude dessa concorrência. A análise das pontes facilitadoras de fluxos vários para outras cidades europeias, realizou-se com recurso à internet e aos seus canais de comunicação (Messenger, Facebook ou Orkut)121. Através deles acompanhámos travestis que entrando em Portugal se direccionaram posteriormente para outras cidades no espaço Schengen - como Barcelona, Paris, Milão, Atenas, Frankfurt ou Bruxelas, entre muitas outras - onde mais uma vez permanecem maioritariamente na ilegalidade ou recorrendo às hipóteses conferidas pela estrutura - por exemplo o casamento gay ou o heterossexual, entre algumas outras possibilidades legais, que deixam entrever um razoável conhecimento (e uma eficaz troca de informação) relativamente aos contextos multi-situados onde se inserem ou vão inserindo. Este conhecimento dos contextos de acolhimento é também em grande medida fruto de trocas de informação entre elementos do grupo através dos canais disponibilizados pelas novas tecnologias, não envolvendo nalguns casos sequer contacto pessoal directo – porém intermediado por conhecimentos comuns - mas recorrendo quase sempre a uma travesti que inicialmente faz o “reconhecimento” de novos territórios, tidos como potencialmente apetecíveis para o exercício da prostituição, a qual transmite posteriormente informação às demais.

5.3. Travestis - rede social e grupo Este esquema de relações instituídas entre os elementos do grupo (por eles conhecidas e incorporadas) leva-nos a adoptar o termo grupo social quando nos referimos às travestis brasileiras em contexto transnacional de prostituição, mormente quando a identidade individual travesti é moldada pelo grupo, através das expectativas criadas sobre os indivíduos e de esquemas de vigilância vigentes e operantes relativamente à correspondência perante aquelas, das acções executadas fruto de uma ressocialização paralela num mundo travesti de prostituição e de rua. Este sistema de reciprocidades expectáveis e vinculações interpessoais decorrentes assenta num passado repleto de 121

O orkut era uma rede social brasileira anterior ao facebook e Twitter que, com o aparecimento dessas novas virtualidades comunicacionais, perdeu espaço. Inicialmente, era a rede social preferida pelas travestis (e brasileiros em geral) para estabelecerem contactos entre elas e com as famílias. 87

experiências mais ou menos comuns a partir das quais se instituem um conjunto de normatividades informais que regulam a integração no grupo, na prostituição e o acesso aos meios necessários para a realização de objectivos no seu âmbito. Um grupo que ultrapassa a mera rede social dinamizada por interesses contextuais que une os seus membros, vinculando-os entre si e os direcciona para uma interacção com fins mais ou menos específicos decorrentes de algum tipo de afinidade – de género, socioprofissional, idade, ideologia, etc… - reflecte um outro patamar de estruturação. Nomeadamente a incorporação de um conjunto de convenções, atitudes e valores colectivos que se sobrepõem aos interesses privados de cada um dos elementos que o constitui (Coulon, 1992) e aos interesses pragmáticos do próprio grupo, que sendo importantes incluem uma outra vertente, a identitária. Neste sentido, os indivíduos não devem ser confundidos com o grupo onde se inserem, formando através dessa pertença comum uma identidade colectiva que lhes confere visibilidade exterior e viabilidade social. Esta opção por utilizar os termos comunidade ou grupo resulta ainda não apenas da sua dimensão numérica mas do facto de partilharem experiências de vida comuns numa fase pré-transformação e num período de ressocialização que opera na rua para a qual são despejadas após expulsão de casa. Parece-nos igualmente útil referir que a constituição destes indivíduos como grupo permite reivindicações sociais por direitos e reconhecimento do mesmo como um grupo particularmente fragilizado.122 Esta incorporação de novas informalidades concretiza-se na relação com outras travestis e trabalhadoras do sexo, pelo que a indústria do sexo mais do que uma actividade se converte num marco identitário ao qual associaremos uma construção de género, coadjuvada por intervenções sobre o corpo e sexualidades circunstanciais, que as molda em parâmetros estruturais, que todavia não lhes são estranhos. Por estes motivos, optámos por não as considerar somente uma rede social.

5.4. Observação não participante Neste quadro de pesquisa, a observação participante foi complementada pela realização de entrevistas semi-directivas que se revelaram muitas vezes, difíceis de obter, quer por

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Ver Cap. VI e as dinâmicas sociais anti discriminação travesti no Brasil. 88

falta de tempo das potenciais entrevistadas, quer pela relutância que demonstravam em falar para um gravador ou ainda, por verem na sua realização uma outra possibilidade de ganhar dinheiro.123Acresce também ao role de dificuldades, o facto de a prostituição se constituir como uma actividade essencialmente nocturna (embora não exclusivamente), fazendo com que durante o dia as travestis descansem e durante a noite se focalizem quase por inteiro em atender clientes. Nesse sentido Felina relata-nos o seguinte relativamente à prostituição: Sim…pois…eu sempre gostei de trabalhar, mas tem pessoa que gosta do convívio porque acordam tarde, não tem hora para dormir, trabalha das 10 às 4 da manhã…eu não, chega às 22 eu fecho e acabou!

Este horário não é todavia a regra e raras são as que param de atender às 22. As nossas interlocutoras encontram-se ainda maioritariamente inseridas em cenários de clandestinidades múltiplas, geradoras de desconfianças face ao que vem de fora, do outro, que maioritariamente e historicamente as estigmatiza. Precisávamos também de ultrapassar este obstáculo. A aproximação inicial aconteceu em casa de Adriana, no Porto, e verificou-se também a outros níveis mais difícil do que à partida nos poderia parecer. Nomeadamente, as dificuldades de comunicação entre pessoas que falam português do Brasil e português de Portugal fizeram-se sentir e foram acentuadas pelo uso recorrente de gírias pelas travestis observadas - inicialmente imperceptíveis para nós, assim como o eram as dinâmicas grupais a que eles se referiam e as quais citavam (tal ocorria principalmente, com travestis recém-chegadas a Portugal). Por outro lado, os horários implicados na actividade da prostituição ditaram que a maior parte das conversas e entrevistas decorressem madrugada dentro, após terminar o horário habitual de atendimento a clientes - geralmente a partir das 3 da manhã - exigindo da nossa parte, múltiplas esperas sem garantia de serem bem-sucedidas. Não sendo um trabalho com horário determinado, as entrevistas poderiam nem sequer ser durante a noite, mas antes, quando calhava. Algumas entrevistas levaram semanas ou meses a ser obtidas e algumas delas, não passaram de sucessivos adiamentos que ainda hoje permanecem como tal. Em contraponto à noite, o dia foi essencialmente utilizado para a observação contextual, sendo dividido em duas fases: uma correspondente ao período em que descansavam, fracções do dia usadas para registar dados e conversar com pessoas

123

Por opção, nunca realizámos entrevistas pagas, embora algumas vezes nos tivessem pedido entre 50 a 100€ para realização das mesmas. 89

que gravitavam na órbita do universo travesti (empregadas de limpeza, donos de mercearias onde faziam o seu abastecimento, taxistas, amigos e amigas, donos de sítios de anuncio de serviços sexuais, familiares, etc.); e uma outra fase, direccionada para a observação interactiva com as próprias, nomeadamente quando acordavam e conviviam entre elas ou com clientes (nunca antes das 12.00h, mas geralmente a partir das 15.00h).124 Pelos motivos previamente descritos não havia nunca garantia de que aquilo que havíamos planeado para o dia em termos de trabalho, fosse atingido. Por esse facto fomos tendendo para uma observação mais discreta, até porque a presença de clientes a isso também obrigava.

5.5. Os clientes Os clientes, nesta pesquisa, nunca se constituíram como um foco etnográfico. Todavia, constituem-se como uma dimensão incontornável a ter em conta por quem durante anos observa e estuda este universo. Pelo que a título meramente de enquadramento adicional, podemos afirmar que o recurso à prostituição travesti se realiza de forma ainda mais camuflada comparativamente com o que sucede com a prostituição feminina, pelo que a tentativa de incursões nesse âmbito iria levantar uma série de problemas com as travestis, ciosas e guardiãs da sua fonte de rendimento e do essencial sigilo. O sigilo é uma espécie de acordo tácito entre prestadores de serviços sexuais e clientes, acentuado no contexto da prostituição travesti pela eficácia social dos sistemas sexo e género. Neste sentido dados sobre clientes não foram nunca por nós solicitados e os que obtivemos decorreram apenas ou da vontade das travestis em falar ou da nossa observação. Todavia, durante as longas horas de espera por uma entrevista ou simples conversa, observámos de uma janela que nos fornecia uma panorâmica geral da rua e da entrada do prédio em especial, homens na casa dos 40/50 anos, completamente dissimulados a tocar à campainha de Adriana. Bonés com grandes palas, bem enfiados na cabeça, casacos grandes e no caso de ser dia, óculos escuros. Muitas outras vezes

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No que diz respeito aos clientes foi sempre tido um especial cuidado para que não se apercebessem da nossa presença nas casas. Enquanto Adriana recebia clientes, simulávamos não se encontrar mais ninguém na casa. Não só por motivos de discrição mas também para afastar possíveis receios dos clientes relativamente à segurança (medo de serem assaltados, violência, etc.). Convém também referir que o atendimento fora das horas mencionadas está sempre muito dependente de necessidades financeiras contextuais. 90

confrontámo-nos com jovens na casa dos 20 anos ou menos. Quando as travestis dormiam e não atendiam as ligações que persistiam em não se silenciar, esses homens deambulavam pelas redondezas da casa, até que elas acordassem, enquanto os telemóveis continuavam a entoar “toques” de forró brasileiro ou os mais recentes êxitos de Shakira ou Beyoncé. A partir de certa altura, tornou-se quase um jogo em que apostávamos se aquele seria ou não mais um cliente. Com o decorrer do tempo, fomos acertando cada vez mais nos nossos prognósticos. A privacidade ao nível da prostituição travesti é muito valorizada, tanto por elas, como por clientes. Todavia, relativamente a estes últimos, embora não sendo objecto de estudo desta pesquisa, parecem configurar um conjunto de pessoas bastante heterogéneo a todos os níveis, tanto mais que as travestis também são procuradas por casais ou por mulheres.

5.6. Desconstruindo a desconfiança Uma outra dificuldade foi a desconfiança inicial: quem é este ocó que aqui anda? Apercebemo-nos dessa desconfiança numa das vezes primeiras vezes que chegámos a casa de Adriana e nos deparámos com outras duas travestis que lá se encontravam, uma delas em trânsito para a Alemanha e outra hospedada por uns dias. Tentando realizar uma entrevista com elas, a reacção foi ambígua e dilatória, remetendo a realização da mesma para mais tarde e deixando transparecer uma óbvia desconfiança. Mais tarde, após acordar, já tarde dentro, Adriana confidenciou-nos que lhe tinham perguntado o que queríamos na realidade, quais os nossos objectivos e o que pretendíamos delas. Tanto Luciana como Alexandra se esquivaram à entrevista. Esta nossa tentativa foi conscientemente orientada: quisemos verificar o que aconteceria se naquela fase da investigação tentássemos agir fora do âmbito do patrocínio de Adriana. A resposta foi clara e inequívoca. Naquele momento, não o conseguiríamos fazer. Com o decorrer dos meses e depois dos anos, o quadro alterou-se e o contacto com outras travestis fora desse patrocínio tornou-se possível. Como em toda a rede social, novos contactos passaram a gerar novos contactos e o facto de sermos vistos com frequência atenuou os receios iniciais. Em casa de Adriana, a confiança que depositava em nós era tal que nos foi inclusivamente permitida a entrada quando duas travestis se 91

restabeleciam de aplicações de silicone realizadas por ela de forma clandestina, permitindo-nos não só invadir a sua privacidade a esse nível mas também a privacidade das travestis intervencionadas. Uma dessas travestis era portuguesa e uma das primeiras a anunciar na internet. Numa outra ocasião constatámos a presença de uma outra travesti portuguesa, na altura ainda iniciante e sem corpo feito. Mortinha como era conhecida devido à sua aparência magramente carregada e pouco saudável, negociava com Adriana a sua bombação, embora o pai tivesse falecido no dia anterior. Não sabemos se o seu semblante adoentado, evidente naquele momento para nós, se devia ao falecimento do pai ou se sublinhava apenas o motivo da sua alcunha. Extremamente magra voltou poucos dias depois e fez a desejada aplicação de silicone na mão de Adriana. Nunca conseguimos trocar uma palava com ela. Assim, no começo desta pesquisa a nossa grande vantagem no terreno adveio, portanto, de termos conseguido estabelecer uma óptima relação de confiança com Adriana, que de resto foi mantida até ao fim, acentuando um processo que ocorreu noutros estudos e que foi descrito por Loise: “para ela representava uma amiga que a escutava.” (2006:8), uma condição essencial para se ter acesso a todo o tipo de informação sobre factos que se processam e ocorrem num universo que opera na clandestinidade. Paralelamente, era útil que a confiança depositada em nós passasse para fora e fosse constatada pelas demais, travestis. Nessas trocas de informação, muitas vezes nos foi solicitada ajuda relativamente a contractos de arrendamento, diversos tipos de apoio em situações dramáticas125, pagamentos de anúncios por homebanking, etc.; inclusive, foi-nos proposto que alugássemos esta ou aquela casa (que se encontrava disponível em determinado momento) e a subalugássemos depois a travestis.126 Embora apenas acordassem tarde dentro, as manhãs também nos forneciam dados interessantes quando, em casa de Adriana podíamos interagir com a sua empregada portuguesa que de modo informal nos transmitia informações sobre como, por exemplo, ela própria alugava o apartamento da sua filha – emigrada na Alemanha - e quartos a travestis.

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Por exemplo, quando um dos clientes de Adriana faleceu durante o convívio sexual, episódio que abordaremos adiante com algum detalhe ou quando Larissa não tinha como pagar a renda e nos pediu dinheiro emprestado para esse fim. 126

Em suma, propostas para que o pesquisador se inserisse no universo de estudo pesquisado como cafetino. 92

Essa estadia prolongada em casa de Adriana possibilitou-nos ainda demarcar dois momentos do seu quotidiano: um, o que correspondia ao período em que se encontrava totalmente “montada” e preparada para atender clientes; outro, quando o expediente acabava e permanecia frente ao computador através do qual mantinha contactos com família e amigos, uns no Brasil, outros em Portugal. Nesse momento, retirava a peruca que a acompanhava desde que acordava. Embora agisse sempre o mais próximo possível do seu ideal de feminidade, após o trabalho terminar, retirava alguns adereços mais incómodos. O dia tinha acabado. Eram umas 3 ou 4 da madrugada. Mantinha-se impreterivelmente acordada até às 5/6h. Quando o dia recomeçava, acendiam-se luzes vermelhas num quarto repleto de objectos sexuais e um vídeo pornográfico rodava sem cessar. O dia começava. Após reunidos os requisitos básicos mencionados anteriormente, as entrevistas assumiram uma orientação semi-directiva e foram suportadas por um guião temático: a infância das travestis, a relação com os pais e a escola, a saída de casa, a migração para cidades brasileiras, a subsistência fora de casa, a violência contra as travestis, a prostituição, a transformação do corpo, o silicone, a emigração para a Europa, os percursos, as redes sociais, os recursos materiais e sociais no contexto de acolhimento, a relação à distância com familiares e com sociedade brasileira, entre outros tópicos. Embora não tivéssemos realizado todas as entrevistas projectadas pelos motivos já apontados, as que conseguimos realizar encontraram ainda assim alguns obstáculos. Devido às dificuldades comunicacionais (que apesar de todo o esforço de ambas as partes, nalguns casos ainda se mantinham) foi utilizada a estratégia de deixar, aparentemente, falar livremente as entrevistadas.127 A natureza profundamente emotiva das temáticas abordadas exigia confiança por parte das nossas interlocutoras e tal não se compadecia, em nosso entender, com entrevistas que pudessem ser experienciadas como uma intromissão ou pressão desnecessárias, efeito que podia ser ampliado por uma abordagem excessivamente técnica. Também por este motivo algumas das entrevistas não foram

127

Estas pessoas querem ser aceites e escutadas. Querem sentir que existe efectivo interesse em ouvi-las. Uma abordagem demasiado formal e orientada por objectivos pretendidos, poderia dificultar a relação de confiança essencial neste tipo de entrevistas e comutativamente, como já referimos, possibilitava um melhor entendimento dos relatos, visto que a aparente informalidade nos permitia deambular pelos vários pontos a abordar na entrevista, permitindo-nos recuar ou avançar consoante a mensagem fosse ou não correctamente entendida, por nós ou pelas entrevistadas. 93

realizadas de uma só vez e nesse caso eram retomadas dias depois, quando tal fosse conveniente para ambas as partes. Sublinhe-se também que nem todas as travestis possuem as mesmas aptidões escolares ou intelectuais. De forma geral a escolaridade é muito baixa e o tipo de comunicação foi adequado circunstancialmente a cada uma delas. Para tal e com o avançar da pesquisa, recorremos muitas vezes a gírias que paulatinamente íamos dominando, como forma de as deixar mais à vontade para falar de temáticas emocionalmente dolorosas e marcantes ou que, pela clandestinidade e sigilo envolvidos, não deveriam ser objecto de conversa. A referência (no decorrer das entrevistas) a contextos de prostituição travesti no Brasil (apreendidos também através de bibliografia disponível) pretendia não só revelar o nosso conhecimento da sua realidade, como também evidenciar um interesse genuíno na sua forma de vida, nos seus problemas e nas suas raízes e ainda evitar histórias ou relatos sensacionais, mas sem correspondência à verdade.

5.7. Negociando a presença No âmbito da observação etnográfica, optámos por acompanhá-las a alguns jantares de aniversário ou outras formas de relacionamento e convívio social quotidiano. Tal tornou possível não apenas registar os relacionamentos no seio do grupo, como a relação das travestis com os espaços públicos e, nalguns casos, a reacção da comunidade de acolhimento à sua presença. Nesta área específica verificamos como o seu relacionamento se estreita com proprietários de estabelecimentos vizinhos às residências onde se encontram, talvez pela frequência com que fazem nesses restaurantes as refeições e com os taxistas que escolhem para as transportar.128 Muitos dos contactos estabelecidos neste âmbito passam a ser presenças assíduas em suas casas - era também o caso do farmacêutico que lhes providenciava hormonas e outros produtos em troca dos seus serviços. A nossa interacção com estes indivíduos era absolutamente normal, no sentido em que não sentíamos necessidade de nos apresentarmos e eramos nesse sentido apenas

128

As travestis andam sempre de táxi e um taxista que consiga manter contactos profissionais privilegiados com elas, tem muito a ganhar. 94

mais um dos presentes naquela casa. Se por algum motivo alguém se tornasse presença regular, então nesse caso a relação seria negociada se tal se proporcionasse. Num quadro em que as proximidades na interacção de investigação eram por nós e por elas constantemente negociadas, a confiança construída a partir desse consenso diariamente atingido foi a dada altura beliscada, quando em Lisboa Adriana nos comunicou que um dos seus clientes estava morto em sua casa. Pediu-nos que nos deslocássemos lá, visto que ela era ilegal, travesti e trabalhadora do sexo e tal podia complicar bastante a sua situação. Foi também para nós um dilema profundo ir ou não ir em seu auxílio. Optámos por não ir. Processados os ensinamentos da distância parece ter sido uma má decisão não auxiliar Adriana. Sem sabermos realmente o que tinha acontecido e correndo o risco de sermos colocados no meio de um caso de homicídio, a decisão não foi difícil de tomar. Todavia nesse caso um cliente idoso tinha falecido de ataque cardíaco e não por qualquer outro motivo doloso. Ao desenvolvermos esta pesquisa e ao acompanharmos cada vez com maior regularidade a vida destas travestis, não negligenciamos o facto de que o nosso posicionamento na interacção com as informantes, pode ter assumido relevância na forma como atingimos ou não os objectivos definidos. Assim o facto, do pesquisador ser homem parece-nos ter sido um dado que facilitou mais o seu trabalho, do que dificultou. É com as mulheres que competem, não com os homens, pelo contrário os homens são objecto de competição. Ao ganharmos a confiança das entrevistadas ou apenas observadas e não se auto-identificando as travestis como homens, nem sequer como homens homo-orientados sexualmente, a nossa presença não passava despercebida e em certo grau determinava uma certa curiosidade entre as travestis, circunstancialmente presentes. Ainda que esta atenção não tivesse directamente a ver com entrevistas ou outras conversas informais; em muitos casos notava-se que as interacções entre elas eram mantidas com constantes olhares para nós, no sentido de verificarem se estavam ou não a ser alvo de atenção. Recordamos um episódio ocorrido com duas travestis portuguesas – que será desenvolvido no Cap. IV - quando em Lisboa, se deslocaram a casa de Adriana para negociar as condições de aplicação de silicone a uma delas. Embora nunca nos tenham dirigido uma palavra, durante a interacção com Adriana e Paula – a outra travesti brasileira presente – os olhares lateralizados eram recorrentes.

95

Na realidade, nos casos em que a receptividade a conceder entrevistas se revelou diminuta, não consideramos que o motivo se tenha devido ao facto de o investigador ser homem, mas sim ao facto de ser naquele momento específico e naquela interacção concreta, alguém exterior ao grupo e estranho para a maioria delas. Por outro lado, quando buscávamos sujeitos interessados em conceder entrevistas ou simplesmente falar, não o fazíamos de um momento para o outro. Primeiro seleccionávamos potenciais entrevistadas com base em factores que pudessem facilitar a realização da entrevista; disponibilidade, predisposição, tempo disponível para aproximação e construção de uma relação mínima de confiança, etc. Por esse motivo, para além de trabalharmos com travestis, tínhamos a noção que trabalhávamos com pessoas em que umas facilitariam o nosso trabalho e outras não. Todavia a não disponibilidade ou uma disponibilidade diferenciada assumida constituem-se igualmente como informações, não obstante serem fornecidas de forma involuntária. Recordamos como o facto de nos pedirem dinheiro para conceder entrevistas, podia para além da consequência imediata de impedir a realização dessa mesma entrevista, constituir um dado relevante a ser conjugado com outros, obtidos com recurso a outras técnicas. A relutância em conceder entrevistas pode ainda advir de experiências prévias negativas, como a que nos foi referida por algumas travestis relativamente a uma entrevista concedida por uma delas ao Correio da Manhã. Segundo elas, essa entrevista passou uma imagem negativa das travestis, como ganhando muito dinheiro e não respeitando os clientes. Segundo Day. L. a travesti que concedeu essa entrevista viu-se obrigada a sair de Portugal por ter perdido todos os seus clientes. Por todos estes motivos, uma parte substancial dos dados por nós recolhidos foram obtidos através de contactos telefónicos ou conversas mantidas fora do âmbito formal de uma entrevista, pessoalmente ou via Messenger. Todavia e apesar de todas estas desconfianças, mais ou menos presentes, no caso de Adriana particularmente, ela evidenciava alguma vaidade perante as demais ao assumir o papel de uma informante privilegiada na realização de um trabalho académico. Algo, que algumas não sabiam sequer o que era, pelo que a palavra investigador deva ser utilizada com prudência e dependendo dos contextos. Muito facilmente esse vocábulo pode ser conotado com investigação de polícia ou SEF – por isso nunca usámos a palavra investigador ou sequer, pesquisador. Estávamos apenas a realizar um trabalho para a

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universidade, o que mesmo assim podia permanecer no plano representacional do suspeito. Com outra travesti qualquer, mais jovem e com menos biografia no meio, esse estatuto de informante exibido por Adriana poderia ser radicalmente revertido para o seu oposto em termos de valoração do grupo, quer na vaidade exibida por Adriana, quer nos seus reflexos sobre o pesquisador e seu trabalho de campo. Só o facto de Adriana ser das travestis mais conhecidas - muitas vezes tratada por mãe - por ter sido cafetina no Brasil, por trazer muitas outras para a Europa e lhes conceder alojamento, lhe permitiu assumir a presença de alguém que estava a realizar uma pesquisa sobre elas – o que quer que cada uma delas entendesse acerca disso - e ao investigador, paulatinamente densificar o seu acesso à rede social travesti sem dificuldades inultrapassáveis (Cf. relativamente ao posicionamento dos pesquisadores na investigação Hopkins, 2009). Na interacção diária com todas elas e ao assumirmos o género como construção social, sempre nos referimos a elas, com o género gramatical feminino e as tratámos como tais. Não obstante, parece-nos que quando o investigador está no terreno, embora tenha o seu próprio posicionamento perante a temática e universo que observa, esse posicionamento não deve ser evidenciado em demasia, visto que ele próprio vai mudando com o aprofundar da investigação e o sublinhar do mesmo pode tornar o pesquisador refém desse posicionamento previamente revelado. Esse facto poderá como consequência condicionar a postura dos observados. Recordamos o episódio em que Adriana nos propõe que alugássemos uma casa e a subalugássemos a travestis - um apartamento em Benfica que naquela altura estava disponível. Essa proposta integra-se num processo relacional caracterizado por uma constante negociação do sentido (Cf. “betweenness” Hopkins, 2009:5), esgrimida na interacção entre informante e investigador. A nossa posição perante situações deste tipo vai no sentido de não se dar uma resposta (ou fornecê-la de forma evasiva) pois será através dessa mesma resposta – e outras dadas a questões do mesmo tipo - que o interlocutor procura entrar no domínio do posicionamento do pesquisador, vinculando-o de certa forma às perspectivas implícitas nessa e noutras respostas, afectando o futuro da investigação e a recolha de dados. Não é só o pesquisador que observa, ele é também observado. Por isso, acreditamos que o papel do antropólogo ao recolher dados através das várias metodologias disponíveis, não se compadece com o falar muito, mas sim o de criar condições para que os observados e 97

entrevistados, falem e ajam com o mínimo de constrangimentos possível. Como em tudo, o contexto determinará cambiantes relativamente a este entendimento e a adaptação a novos universos e interlocutores. Para melhor retratar os contextos em que estes actores sociais se produzem e representam o outro, optámos nas situações em que realizámos citações de afirmações escritas de travestis, por as transcrever sempre no modo em que elas próprias o fazem e no caso das entrevistas por nos mantermos fiéis ao modo como se expressam oralmente no seu português. Os materiais empíricos recolhidos resultam de uma pesquisa iniciada explorativamente em Outubro de 2006 e situada geograficamente em algumas cidades portuguesas, essencialmente Porto e Lisboa, com deslocações esporádicas a cidades de menor dimensão como Aveiro ou Coimbra. Dando-se por terminada a recolha de dados em 2014, concluiu-se a parte escrita em 2015.

5.8. As interlocutoras Os esquemas seguintes caracterizam de forma sucinta, as travestis biografadas em função de algumas variáveis socio-antropológicas. Proveniências geográficas (locais) comuns indiciam a existência de redes sociais construídas com base em afinidades eróticas e profissionais, como também de naturalidade. Cumulativamente, em função de afinidades de orientação sexual e género, muitas frequentaram (no âmbito da prostituição) as mesmas cidades e ruas ainda no Brasil ou então conheceram-se através de contactos no orkut ou facebook, meios privilegiados através dos quais as suas estratégias são accionadas e a rede se densifica. Entre algumas delas constataremos também a construção e conservação de relações especiais, nomeadamente nos casos em que travestis mais velhas iniciam as mais novas na transformação e/ou na prostituição. O processo de emigração, como veremos, produzirá algumas alterações na estrutura das redes sociais, especializando-as e densificando-as com novos imbricamentos.

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Sociograma - 1

Alexandra

34 anos 25 anos quando emigrou

Natural de Belém do Pará

Emigrou em busca de conquistas materiais e poder ajudar família

Actualmente em frankfurt, após passagem por Portugal e muitos outros países europeus.

legal em virtude de matrimónio

Emigrou com empréstimo de Adriana

Abandonou a escola cedo

Prostituição domicílio

Adriana

Armanda Parllatori.

47 anos 33 anos quando emigrou

28 anos 22 quando emigrou.

Vanessa. N

30 anos 24 quando emigrou

Natural de Belém do Pará

Emigrou em busca de conquistas materiais e poder ajudar família. Tem um sobrinho em Portugal a quem ajudou inicialmente. Já não vive com ela.

Permanece em Portugal há 14 anos, em Espanha esteve duas semana no início.

Natural de Ceará

Natural do Rio de janeiro

Emigrou em busca de conquistas materiais e poder ajudar a família

Busca conquistas materiais

Portugal, Espanha, Grécia, Holanda, Itália, França, etc...

Portugal, Alemanha, Reino Unido

Casada com Espanhol, mas sem socilitar legalização

Indocumentada. Processo em tribunal por casamento branco

Financiou o projecto migratório com poupanças adquiridas no exercício da prostituição no Brasil

Emigrou após reconhecimento do território realizado por Ludermika a quem emprestou dinheiro em 1999

Abandonou a escola cedo

Abandonou a escola cedo

Prostituição. Financiamento da entrada em Portugal de novas travestis. Negócios no Brasil. Aplicações de silicone.

Prostituição domicílio

Corpo c/silicone

Corpo c/silicone Corpo c/silicone

99

Legal via casamento com portuguesa

Emigrou c/ empréstimo de amiga

Abandonou a escola cedo

Prostituição domicílio e de rua

Corpo c/silicone

Sociograma - 2

Soraya

Tamara

Júlia Vellaskez

Thalter

46 anos 36 anos quando emigrou

48 anos 33 anos quando emigrou

35 anos 23 anos quando emigrou

Natural de Aracaju

Natural de Aracaju

Natural de Belém do Pará

busca de conquistas materiais

Portugal -Porto

indocumentada

Emigrou com empréstimo

Abandonou a escola cedo

Prostituição domicílio

Corpo c/silicone

Emigrou em busca de conquistas materiais e poder ajudar família

O seu objectivo era fugir à violência no contexto brasileiro

Portugal até 2008, depois Espanha, Grécia, França. Itália, etc. Regressa a Portugal pelo Natal e passa com Adriana

Portugal e Espanha

Nunca ultrapassa a validade do visto turístico.

legal em virtude de matrimónio

Emigrou com empréstimo da prima Soraya, mas sem juros

Emigrou com empréstimo de Adriana

Fez a escolaridade até ao vestibular no Brasil

Abandonou a escola cedo

Prostituição domicílio e espectáculos nocturnos

Prostituição domicílio

34 anos 25 anos quando emigrou

Natural Fortaleza

Emigrou em busca de conquistas materiais e de poder ajudar família.

Esteve em Portugal em 2007, 2008 Mardrid. Retornou ao Brasil e em 2015 voltou a Espanha- Barcelona.

indocumentada

Emigrou com empréstimo de Ludermika, a mesma que recebeu empréstimo de Adriana

Abandonou a escola cedo

Prostituição e espectáculos nocturnos

Corpo c/silicone

Corpo c/silicone

Corpo c/silicone

100

Como podemos verificar, entre Adriana e Alexandra no sociograma 1 e Thalter no sociograma 2, existe uma proveniência comum. São todas de Belém do Pará. Essa origem local comum permite que ainda em 2015 e apesar de Thalter e Alexandra estarem fora de Portugal há muitos anos, se reúnam em ocasiões festivas como o Natal ou passagem de ano. Foi Adriana quem fez o corpo a ambas e as trouxe para a Europa.129 Já relativamente a Felina, Larissa e Vanessa N., embora sejam todas naturais do Rio de Janeiro não há entre elas qualquer vínculo especial, para além do facto de se conhecerem no âmbito da rede que integram. Já no que diz respeito a Tamara e Soraya, verificamos que são ambas naturais de Aracaju ao que se acrescenta um laço familiar. São primas. Constatamos igualmente que a maioria emigra motivada pelo desejo de mobilidade social e económica ascendente e que a ajuda às famílias se constitui como objectivo de uma grande maioria. Neste ponto apenas diverge Tamara, a qual vem pela primeira vez para a Europa num momento em alguns dos seus amigos homossexuais foram assassinados no Brasil. Outro aspecto em que Tamara se destaca das demais reside na escolaridade atingida, realizou o vestibular, o que contrasta com a baixa escolaridade patenteada pelas suas colegas. Como destinos eleitos para o desempenho da sua profissão observamos, que todos os países referenciados nos quadros pertencem à E.U. e que apenas o Reino Unido, entre os escolhidos, não aderiu ao espaço Schengen. Relativamente ao estatuto das migrantes constata-se que a maioria está indocumentada, todavia e como veremos no decorrer deste trabalho, a legalização é um objectivo presente nas suas estratégias e o casamento, maioritariamente por conveniência (Raposo e Togni, 2009), um dos meios preferenciais para a atingir.

129

Este tipo de relações como veremos a partir do Cap. VI substituem as relações familiares quebradas e são preservadas para a vida. Como exemplo chamamos a atenção para uma mensagem deixada por Thalter no facebook aquando do aniversário de Adriana: “Sao anos te desejando sempre o melhor porque a senhora foi e é o melhor que Deus me deu quando o Raul deu lugar a Thalther de Belém!!” (Facebook 2015) 101

Sociograma - 3

Day.L

Felina

Larissa

34 anos 27 quando emigrou

Natural de Salvador

Tinha e tem família em Coimbral. Ajudar os pais.

Portugal a maior parte do tempo, deslocações esporádicas à Alemanha e espanha

indocumentada até 2011, documentada após casamento com Português

Entrou com meios próprios

Abandonou a escola cedo

Prostituição domicílio

Corpo c/silicone

30 anos 23 quando emigrou pela 1ª vez

Natural do Rio de janeiro

37 anos 30 anos quando emigrou

Natural do Rio de Janeiro

Veio para Itália com um cidadão Italiano que a trouxe após passar férias no Brasil. Ajudar família

Esteve em Portugal até 2012 e transitou então para Itália

Emigrou com o namorado, não pretendia prostiruir-se. Queria ajudar família

Está em Portugal e desloca-se frequentemente a Itália para estar com amigas.

Karime G.

35 anos 26 anos quando emigrou

Natural de Belém do pará

Emigrou em busca de conquistas materiais e poder ajudar família

Permanece em portugal. deslocaçõesn esporádicas a outros países europeus para revêr amigas.

indocumentada

indocumentada

indocumentada

Emigrou com ajuda do namorado Italiano

Emigrou sem empréstimo

Abandonou a escola cedo

Abandonou a escola cedo

Prostituição domicílio e de rua

Corpo c/silicone

Prostituição domicílio e trabalhos esporádicos em cozinhas ou limpezas

Corpo c/silicone

102

Emigrou com empréstimo de adriana

Abandonou a escola cedo

Prostituição domicílio

Corpo c/silicone

Na medida em que todas as nossas interlocutoras anunciam os seus serviços sexuais na internet em Portugal ou noutros países da Europa, existe pelo menos um conhecimento mediado entre elas. A internet e os contactos através dela, realizados e fomentados, desempenham uma função de congregação do grupo possibilitando a eficácia da rede social construída, dos recursos accionados, das estratégias mobilizadas e o emergir de um sentimento comunitário de pertença não circunscrito ao território da homeland ou ao contexto geográfico específico no qual se encontram. Por exemplo, Ludermika que foi financiada na sua primeira deslocação a Portugal por Adriana, foi quem anos depois emprestou dinheiro a Júlia Vellaskez para que esta emigrasse. As especificidades contextuais que vão sucessivamente operando nas suas vidas marcas irreversíveis de uma autobiografia tumultuada e sofrida atribuem aos indivíduos um enquadramento no grupo potenciado por inúmeras afinidades entre os seus membros, acabando por conferir viabilidade comunitária a projectos individuais. Passaremos de seguida à concretização dessas especificidades, nas e a partir das quais indivíduos concretos e reais em interacção procuram emergir como sujeitos reconhecidos e autoexplicados como tais. Estes actores sociais operam essencialmente no seio do grupo, facto que lhes permite maiores possibilidades de aproveitamento estratégico de oportunidades e isso revela-se desde muito cedo nas suas vidas. Quando as oportunidades são detectadas espoletam-se os devires operantes numa rede social em virtude de interesses comuns, afinidades de vária ordem ou interesses que não sendo comuns, se cruzam. O grupo será para muitas a única oportunidade de subsistência após serem expulsas de suas casas pela família, ainda adolescentes e o espaço social onde entre elas se desenvolverão relações substitutivas das familiares previamente quebradas. No próximo capítulo aprofundaremos os processos através dos quais um adolescente homossexual renegado pela família se transforma em travesti e trabalhadora do sexo após ser expulso de casa.

103

Capítulo 6 - DA CASA À CIDADE GRANDE 6.1. A saída de casa “Quando fugi de casa a primeira vez tinha 14 anos, quando fui de carona para S. Paulo tinha 16. Lá fiz o corpo com silicone.” (Armanda Parllatori). O momento da saída de casa, acrescido também pela ruptura com a escola e alguma vizinhança, relega estes jovens para a rua onde irão ser iniciados num ethos travesti130 que ultrapassa a questão do género/sexualidade e se converte num estilo de vida determinado pelas possibilidades que se lhes deparam a partir desse momento. “Saem cedo de casa, em torno dos 14 anos, e geralmente iniciam uma vida noturna sustentando-se através da prostituição.” (Pelúcio, 2005:235). Larissa afirma sem rodeios nunca ter exercido qualquer outra profissão, “é assim, eu não preciso esconder de ninguém, sou uma pessoa independente! sempre trabalhei com prostituição e no início comecei no Brasil,” Inicialmente procuram a subsistência em pequenas cidades limítrofes - fugindo aos olhares da família e vizinhança - como no caso de Adriana que montou um salão de cabeleireira em Belém do Pará de onde é natural; ou de Armanda Parllatori que fugiu pela primeira vez de casa com 14 anos e migrou para São Paulo com 16, tendo entretanto rodado entre o Ceará, de onde é natural, e Fortaleza. Como afirma, “fiz tudo ali na zona de Fortaleza e Ceará.” Algumas não se dedicam de imediato à prostituição, como se revela o caso de Felina que “trabalhava numa loja de sucos…fazia muita faxina, trabalhava em bacalhau, carregava e minha mãe passava a ferro” ou de Júlia Vellaskez que ajudava uma senhora na confecção de “salgadinhos”. Mais tarde, viria a actuar em sessões de transformismo ou como drag-queen, executando playback musical em discotecas - plágio como a própria designa. No entanto, quando chegava a hora de descansar: Eu tinha que esperar, todo o mundo dormir, para mim escolher uma escada de algum prédio, e dormir naquela escada, porque eu tinha que esperar todo o mundo dormir. Porque eu tinha vergonha, e tinha que acordar antes de todo o mundo, porque eu não queria que ninguém me visse,

130

Parece ser um ponto consensual entre estudiosos da matéria, que este marco das suas vidas se converte como um dos elementos cruciais na perspectivação do seu futuro.“ (…) deixar o lar parece ser um momento crucial em seu processo de construção. Quase todas fazem isso entre os 11 e 14 anos (…), essas histórias costumam ser caracterizadas por muitas aventuras na rua, como dormir ao relento, mendigar, brigas, violência e embates com a polícia, bem como a descoberta de novos espaços e práticas.” (Benedetti, 2005:102). “A rua pode se apresentar como um ambiente de acolhimento quando meninos efeminados são violentados e colocados para fora dos espaços domésticos.” (Pelúcio, 2007:3). Neste momento não são ainda travestis e segundo o critério da orientação sexual, são homossexuais, pois ainda não iniciaram uma outra construção de género. 104

ou seja, não queria que ninguém soubesse o que eu estava passando, porque eu tinha vergonha! (Júlia Vellaskez)

Em quaisquer dos casos, as funções laborais exercidas numa fase pré prostituição, parecem observar uma conotação histórica de género, ao serem tradicionalmente e maioritariamente exercidas por indivíduos do sexo feminino, aos quais se pretendem aproximar em termos de identidade - faxina, salões de beleza, culinária - seguindo os padrões da heteronormatividade, das suas políticas do sexo/género e consequente divisão social do trabalho. (Cf. Rubin 1976 in Lewin, 2006) Esse momento da saída de casa é geralmente precedido pelas primeiras experiências sexuais com indivíduos do mesmo sexo. Assim, quando já tiveram a primeira experiência sexual como passivas – “com 9 anos de idade, um relacionamento, eu vi com um rapaz, dali para a frente começou, né? Descobri aquilo que eu gostava!” (Felina) - passam a usar adornos femininos: roupa, maquilhagem, deixam as unhas e cabelo crescer, tentam apagar resquícios da barba masculina e fazem depilação. Contudo, enquanto não empreenderem a construção de género feminina, serão apenas submetidas ao critério da orientação sexual, segundo o qual, aquando da sua primeira experiência sexual são consideradas homossexuais. Magdala saiu de casa com 16 anos, tendo a primeira experiência sexual aos 12, após a qual conheceu outras bichas, começando a falar e a vestir-se como elas. Larissa, uma das nossas entrevistadas afirma que começou a sentir atracção por indivíduos do mesmo sexo aos 7/8 anos de idade, sublinhando a perspectiva de Júlia Vellaskez que a sexualidade no Brasil se inicia muito mais cedo do que na Europa. Quando as suas famílias se tornam cientes da sua “homossexualidade” são violentamente expulsas de casa (Kulick, 1998:58). Esse momento da expulsão é geralmente precedido por episódios de violência familiar física e psicológica. Como nos confidenciou Armanda Parllatori “muitas vezes quando o seu pai chegava a casa, não lhe dizia absolutamente nada, nem lhe falava, mas quando vinha bêbedo batia-lhe com um pau nas costas, na cabeça, onde fosse!” Esta ruptura familiar chega em certos casos a durar toda uma vida: “sim…o meu pai nunca aceitou, no final, no dia em que tinha que partir para o outro mundo, pediu perdão e eu pedi perdão ao meu pai.”. Felina justifica esta dificuldade no relacionamento com o pai com um tipo de educação muito diferente, “meu pai era mineiro e tinha uma educação bem diferente de carioca, paulista e assim por diante.”

105

Sublinhe-se ainda o facto de que a maioria das interlocutoras travestis provém de famílias onde os recursos materiais são extremamente escassos (Kulick, 1998:38, Pelúcio, 2006:524), o que poderá explicar a apetência futuramente evidenciada pelas conquistas materiais nas suas vidas. “Que eu também tenho os meus objectivos, eu quero ter a minha casa, as minhas coisas, entende?” (Júlia Vellaskez) Ou nas palavras de Armanda Parllatori descrevendo o momento em que saiu de casa: “quero ter minha casinha, minhas coisa! Aqui não vou ter nada!” Enquanto a sua família chorava à porta e lhe dizia para voltar. Até o pai que a havia expulsado de casa, disse: “Deixe ELE ir, ELE tem a porta sempre aberta quando quiser voltar!” A independência financeira e a emancipação é algo que surge no plano da conquista da adultidade, adultidade essa profundamente conotada com o exercício da prostituição. (Cf. Pelúcio, 2006:527) Morava numa casa que só deus sabe como era…metade da porta existia para cima, debaixo não existia. Ratos e mais ratos, sapos, água no chão…um barraco de madeira, molhava tudo quando chovia, quando ventava as telha voava…terreno imenso…e assim por diante e eu tou aqui! (Felina)

Apenas constatámos uma excepção a este cenário de precaridade que determinava as suas condições de vida, à qual corresponde também um outro tipo de projecto e percurso. Tamara, natural do Estado nordestino de Sergipe, cidade de Aracaju, veio para Portugal pela primeira vez em 2001 chamada por uma prima também travesti - Soraya. Veio motivada por um desejo de fuga a um clima de insegurança que culminou na época com o assassinato de vários amigos seus, gays (Cf. Green, 1999 e a violência dirigida a homossexuais). Até então tinha desempenhando competências no âmbito da função pública brasileira - dos 19 aos 33 anos. Até aos 33 anos manteve uma vida dupla em que conjugava a sua profissão com períodos de prostituição nocturna ou apresentações transformistas em discotecas do circuito nocturno gay. (Cf. oscilação de género Ekins e King, 2006, Cf. Gameiro, 2000: Lisboa e consumos identitários homossexuais) O pai era político. Foi educada no seio de uma família estruturada. A reacção mais incisiva da família perante os sinais que emitia da sua homossexualidade consistiu numa proposta feita pela sua mãe: a de aceitar ir viver para um grande centro urbano onde não constituísse um constrangimento familiar e social. Neste caso, quem procurava o anonimato era a família (Green, 1999, Rubin in Vance, 1984). No entanto, Tamara recusou, sendo a única das nossas entrevistadas que nunca foi expulsa de casa. Viveu sempre com a família até concluir o processo comum de emancipação. Apenas aos 33 106

anos vem para a Europa com destino a Madrid, fazendo escala em Lisboa. Posteriormente regressa 4 vezes ao Brasil onde passa temporadas, regressando depois à Europa novamente. Sublinhe-se que exercendo a prostituição através de anúncio na Europa (Portugal e Espanha), quando se desloca fá-lo em férias com o intuito de rever amigos e, como foi o caso em 2010, para assistir à defesa da tese de doutoramento de um amigo em Barcelona. A prostituição configura-se neste caso como um modo de vida muito ligado à travestidade, mas não como forma de subsistência primária, como é o caso da vastíssima maioria dos actores sociais que entrevistámos e observámos. Ao contrário de muitas outras, Tamara nunca ajudou financeiramente a família e os rendimentos provenientes de uma prostituição intermitente foram sempre canalizados, quer para a sua conta bancária, quer para o sustento das férias/trabalho passadas na Europa. As suas estadias nunca ultrapassaram a legalidade do visto turístico de 3 meses em Portugal. No Brasil, vive actualmente com uma irmã que a ajuda a administrar os bens, realizando ainda espectáculos de transformismo. Quando tem saudades da Europa e das pessoas que conhece, volta e aproveita para ganhar mais algum dinheiro. Todavia esta opção não se revela a regra. A mobilidade constitui-se como um denominador comum às biografias recolhidas. É iniciada, desde logo, no Brasil. É na cidade grande que se encontram os meios para realizar as sofisticações da transformação corporal. Adriana queria andar “24 horas vestida de mulher” e para tal tinha que recorrer a cirurgias. O objectivo era “fazer o corpo, queria as ancas, queria as coxas torneadas, não sei…seios grandes…queria estar mesmo uma mulher sempre! 24 horas que era para eu me sentir bem!” Tal objectivo não podia ser alcançado se permanecesse em casa e após muitos desentendimentos familiares e expulsão de casa é convidada por uma amiga com a qual mantinha afinidades eróticas e de práticas sexuais, para trabalhar em casa dela como cabeleireira. “Eu fiquei a trabalhar lá e de lá mesmo eu fiz meu local de trabalho que era salão de beleza.” Apesar dos muitos riscos envolvidos, a transformação é uma aspiração comum a todas as interlocutoras, a qual

apenas

adquire

viabilidade

financeira

no

âmbito

da

prostituição.

Concomitantemente, corpos transformados permitem auferir um maior rendimento nesta actividade e muitas vezes, são também requisitos das normatividades informais processadas pelo grupo.

107

(…) aí eu via minhas amigas que saiam de Belém, que é o norte e iam para sudoeste que é São Paulo. Chegavam lá, faziam as operações e cirurgias…voltavam para Belém…muito bonitas…voltavam do jeito que eu queria…voltar! (Adriana)

Com o escasso dinheiro obtido no salão onde se estabeleceu profissionalmente após sair de casa, Adriana toma uma decisão. Iria perseguir o seu sonho, fazer o corpo e dirigir-se à cidade grande. (…) eu não tinha conta em banco, nem nada nessa época…levei dinheiro na mão…geralmente as pessoas que faziam as cirurgias, que são geralmente aplicações de silicone…eram clandestinas e uma das pessoas que fazia isso era drogado…era um rapaz muito drogado e um dia consegui falar com ele para ele ir em casa fazer…ele tinha que se drogar primeiro para poder depois aplicar…ele se drogava na veia. Aconteceu que ele se drogou e passou mal, gerou-se aquela confusão na pensão…era uma pensão onde viviam drogados, tinha drogas dentro, traficantes…era mesmo uma pensão “mal” mesmo! Caíram em cima de mim, eu consegui me escapar, porque deu polícia e tudo lá! (Adriana)131

“Expulsas de casa”, desamparadas “e necessitando de dinheiro para se sustentarem, as travestis entram agora na fase seguinte da sua transformação.” Com esse intuito, “as travestis que ainda não a iniciaram começam por transformar os seus corpos através da ingestão de hormonas e aquelas que ainda não se tinham iniciado na prostituição, aprendem que o podem fazer e ganhar muito dinheiro com isso.” (Kulick, 1998:60). Como nos relata Adriana, (…) porque até então eu vivia à base de hormonas…hormonas faz o quê? As hormonas no nosso corpo elimina mais as hormonas masculinas e dá mais hormonas femininas, mas não cria ancas, bundas, aquelas coxas torneadas que quem faz isso são as cirurgias, não é? silicone e essas coisas…mas nós criamos mais feições femininas…dá mamas…peito pequeno, mas dá!

Desejando mais para o seu corpo, Adriana ao empreender a sua primeira migração para a cidade grande, rapidamente entendeu como poderia chegar a outro patamar na sua transformação e falando com uma amiga: (…) contei a situação para ela e ela disse – “ahh não se preocupa não…fica aqui, amanhã tu desce para a rua…”- então isso para mim foi um horror…imaginar que eu tinha que descer para a rua…trabalhar…fazer programa…para ganhar dinheiro para fazer o que eu queria…fiquei pensando…meu deus…o que é que eu vou fazer? Fiquei ali pensando…eu não queria isso…não 131

A polícia constitui-se como um dos piores receios das travestis, pelo que uma das estratégias mais comuns é a automutilação para não serem presas. Para tal, muitas colocavam uma lámina de barbear – partida ou não - na boca, para o caso de serem abordadas, auto-infligindo-se inúmeros cortes no corpo – ou na boca – com o intuito de serem hospitalizadas e não detidas. Bartô partia a lâmina de barbear ao meio e colocava uma em cada canto da boca. (Andrade e Maio, 1985) 108

queria isso…que eu nunca fiz…não sabia nem como é que era…o que é que tinha que falar para as pessoas…só que a vontade que eu tinha de ter a transformação era tão grande e para mim saber que ia voltar a Belém sem nada, do jeito que estava…ia ser uma vergonha…dos dois lados…do lado que o pessoal de lá ia ver que eu voltei da mesma forma e outra coisa…eu me ia sentir mal…se eu fui para um local para conseguir algo…seria uma frustração para mim…e perguntei para ela - e dá para ganhar dinheiro? Ela disse que todas as que fazem aplicação de silicone o faziam com dinheiro da rua. (Adriana)

Transformar-se e construir uma identidade travesti assente em referentes relacionados com essa travestidade exige recursos. O acesso a tais recursos ocorre principalmente nos grandes centros urbanos caracterizados pela existência de uma maior clientela, maiores possibilidades de realização de aplicações de silicone, maior dimensão e densidade das redes sociais, bem como um maior grau de possibilidades relativas à gestão de recursos, recursos, esses inacessíveis quer nos meios rurais, quer nos centros urbanos de menor dimensão.132 É neste enquadramento social que “muitas travestis deixam Salvador e se dirigem para Brasília e São Paulo, cidades com reputação de serem excelentes locais para fazer dinheiro.” (Kulick, 1998:38). Segundo Kulick, são maioritariamente provenientes do nordeste brasileiro caracterizado por elevados índices de incidência de pobreza, de tal modo que esse escasso capital económico as motiva a integrar-se e a aprofundar essa integração na rede social travesti. Por outro lado, esta mobilidade reflecte também a sazonalidade das migrações sexuais. É quando acaba o carnaval de Salvador que a maioria das travestis de desloca para Brasília ou São Paulo (Kulick, 1998). Embora o acesso a uma gama mais ampla recursos materiais se revele um dos motivos dessa mobilidade, a verdade é que ainda assim vivem em condições de grande pobreza. Kulick refere que a maioria das travestis em Salvador habita e trabalha (recebe clientes) em quartos de dois por três metros, em

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Neste quadro problematizante, Aquino (2000) questiona de modo pertinente os pressupostos que parecem fazer Coleman cair em contradição (1990). Nomeadamente ao afirmar a existência de um sujeito que calcula a maximização das suas possibilidades de sucesso dentro do âmbito de uma determinada acção e seus fins e, paralelamente deslocando sob uma perspectiva analítica, os recursos e capitais para fora do âmbito da sua detenção pelo indivíduo. Assim, Coleman utiliza um conceito de capital social que reside essencialmente nas relações entre os indivíduos e não nos indivíduos (1990) o que de alguma forma é corroborado por Vertovec - “os recursos em si, não são capital social; o conceito refere-se à capacidade dos indivíduos de os mobilizar e comandar em virtude da sua pertença a uma determinada rede social.” (2009:36). Divergindo de Bourdieu (2002) que argumentava no sentido de uma teoria da acção em grande parte produzida dentro dos limites estruturais e em que, curiosamente, o capital social se encontra na esfera de acção do indivíduo. (Aquino, 2000:25, Cf. Vertovec, 2009:36). 109

condições humanamente miseráveis. (1998:40, Cf. Andrade e Maio, 1985 “A casa de Bartô”) Discriminadas em casa, na escola, pela vizinhança e na rua, ansiando por transformações que apenas podem executar com dinheiro, que não possuem, a cidade grande afigura-se como destino provável e acima de tudo já experimentado por outras manas. Contudo, a vida na cidade grande não é fácil. Tem as suas regras, os seus códigos de conduta e suas informalidades, que tarde ou cedo se evidenciam como acentuadamente severas para aquelas que se iniciam na rua. Para estas não resta alternativa, senão a de tentar aceder a uma teia de relações sociais onde se gerem e disponibilizam recursos, o campo social onde as travestis o conseguem atingir é a prostituição. O que implica de certa forma uma nova socialização e incorporação de normas, comportamentos ou expectativas do grupo e o conhecimento das potenciais sanções, face a desvios perante o que delas é esperado. Assistimos neste momento das suas vidas a uma integração progressiva num grupo no qual desenvolverão a sua travestidade profundamente ligada com a actividade da prostituição. Sustentadas num passado mais ou menos comum de discriminação, encontram nas suas manas uma espécie de família substitutiva. Todavia esse processo de integração pode revelar-se bastante violento, não só para se fazer respeitar as regras do grupo que geralmente beneficiam as mais velhas, mas também na relação mantida com clientes ou polícia. É para as recém-chegadas um mundo novo no qual terão de ser ressocializadas e no qual desde cedo procuram aceder aos recursos disponibilizados na rede e convertê-los em capitais sociais vários. Esses capitais sociais, subdivididos em várias dimensões do social como sejam o simbólico, económico ou intelectual dependem da valorização produzida pelo grupo acerca deles e desta valorização depende a vontade dos indivíduos para atingir preferencialmente, cada um deles. Essa busca por capitais sociais não decorre isolada da gestão dos recursos que o grupo opera. Um maior acesso e capacidade de mobilização de recursos facilitados pelo ampliar das relações sociais nas quais o sujeito dinamicamente se insere, potencia o granjear desses capitais sociais, sendo o inverso igualmente verdadeiro. Os recursos em si, não são capital social; o conceito refere-se à capacidade dos indivíduos de os mobilizar e comandar em virtude da sua pertença a uma determinada rede social. (Vertovec, 2009:36)

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O exercício de estratégias com vista a atingir objectivos no seio do grupo implica de alguma forma a estruturação colectiva dos interesses individuais. Tratamos neste contexto de representações que condicionam, quer a percepção da situação em que se age, quer a percepção do modo como a própria acção é adoptada por mediação de processos de socialização (Aquino, 2000:26), nos quais a história do próprio indivíduo e as suas experiências passadas desempenham um papel de relevo. Neste âmbito, habitus, praxis, capital social e recursos manejados nas relações sociais encontram-se profundamente relacionados, visto que o capital social é atingido pelos indivíduos no campo onde agem – que valoriza de forma diferenciada, face a outros campos, capitais e acções - e é na relação social que encontram o meio para aceder à gestão desses recursos e actualizar efectivamente os capitais sociais valorizados (Coleman, 1990, Vertovec, 2009). Não obstante, nem os recursos, nem os capitais sociais são disponibilizados de forma aleatória, pelo que entre os indivíduos se processa uma competição para os atingir ou para lhes poder aceder. Daí a importância de uma gerontocracia travesti no modo como se recebem as novatas na cidade grande e na rua. O habitus torna-se o produto dessa mesma gestão de recursos e acesso a capitais sociais, que controlam o comportamento dos indivíduos e definem as expectativas do grupo, coercivamente impostas sobre eles. Isto é, o habitus será transmitido às mais novas através de processo de ressocialização orientado pelas mais velhas. A cidade grande é um mundo novo, como novas são também as ruas que passam a ocupar e as suas informalidades normativas que regulam a competição pelo acesso a recursos e capitais sociais.

6.2. A chefe de rua Toda a rua tem a sua “chefe”, conta-nos Adriana. Com 20 anos, na primeira vez que saiu do hotel Santana situado no Bairro da Santa Efigénia (também conhecido por Boca do lixo pela sua má reputação na cidade de São Paulo) e “desce” para a rua: (…) tinha umas seis assim na esquina conversando. Cheguei e fui falar com uma delas…cheguei e disse assim - oi gente, tudo bom? Boa noite para vocês! - Uma delas se virou para mim, fiquei sabendo que o nome dela era não sei quê Baiana, era da Baía…e cuspiu na minha cara! Ela escarrou catarro na minha cara! Falou que não tinha que estar naquele ponto, que ali era delas. Eu pedi desculpa, limpei o rosto porque lá é aquele negócio, quando se mata uma travesti a polícia

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agradece, até uma travesti que mata uma outra, a polícia nem sequer procura saber quem foi, fazem aquela cena da hora e depois abafam o caso.

Depois deste episódio, reconhece ter ficado apavorada e quase ter desistido dos seus projectos. No entanto a sua amiga e contacto inicial no hotel Santana insiste que tem que voltar a “descer na” rua. Acompanhando-a, leva-a à presença de Sandra Bolo - a chefe da rua. Esta permite que Adriana ocupe um espaço - um ponto - do lado mais distante relativamente ao sentido em que circulam os carros e potenciais clientes. Verifica-se portanto que num determinado sentido nem o corpo da travesti é completamente seu quando decide a operar no seio do grupo. O corpo enquanto recurso para um indivíduo concreto, apenas poderá ser acedido enquanto tal, se, se observarem as normatividades colectivas actuantes. Existiu desde logo uma hierarquização realizada em função da antiguidade, do capital social detido (ou ausência dele) por Adriana, dialogicamente imbricado numa escassa capacidade de gerir e aceder a recursos tendo em atenção a sua diminuta inserção na rede social travesti urbana, naquele momento. (Cf. Bourdieu, 2002, Coleman, 1990, Vertovec, 2009) Assim os capitais sociais atingidos pelos indivíduos na interacção podem permitir uma maior capacidade de mobilização dos recursos ou, ao invés, restringir o acesso aos mesmos. A dona da rua que um dia foi também uma recém-chegada ao mundo da prostituição - nesse momento igualmente introduzida e socializada num ethos marcado pelo respeito (coercivo) devido às normas do grupo, por muito injustas ou violentas que possam ser consideradas - é agora quem detém um acesso privilegiado à gestão dos recursos em função dos capitais sociais que foi desenvolvendo e atingindo nesse mesmo grupo. O momento em que Sandra Bolo autoriza Adriana a permanecer num determinado espaço, não só actualiza os seus capitais sociais, como reflecte a sua capacidade não só de mobilizar recursos, mas também de os gerir. Neste enquadramento, a restrição do acesso aos recursos disponíveis redunda numa forma de coercibilidade dentro de um grupo, visto que de alguma forma reduz as liberdades individuais, mediante controlo do comportamento dos seus membros (Portes 1998ª in Vertovec, 2009:36). Está portanto assente nas expectativas colectivas do grupo perante o indivíduo, afectando o seu comportamento. Neste caso, Adriana não se

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encontrava integrada numa rede de relações sociais na qual tivesse acedido a capitais sociais válidos que lhe permitissem gerir de forma vantajosa e na relação com as manas, o recurso rua e corpo. Não obstante, a partir da teia de relações sociais emergentes num novo contexto e da gestão relacional dos recursos aí presentes, consegue fazê-lo, ainda que de uma forma profundamente hierarquizada. Este episódio é revelador do facto de que os recursos e os capitais se encontram e se atingem nas relações sociais e não nos indivíduos, isoladamente (Bourdieu, 2002). Corroborando o argumento de Vertovec de que “o capital social não é uma propriedade inerente ao indivíduo, mas sim algo que existe e é retirado da rede de relações do indivíduo.” (2009:36, Cf. no mesmo sentido Aquino, 2000, Coleman, 1990) Esta hierarquização espacializada não é inconsciente e traduz uma actuação de comportamentos hierarquizantes sobre o espaço, espacialidade (Ledrut, 1979). Segundo Katherine Gregory, no âmbito da prostituição em contexto holandês, os trabalhadores do sexo mantêm a convicção de que diferentes locais/espaços de prostituição conferem diferentes níveis de capital simbólico aos que neles trabalham. Essa leitura dos espaços de forma sexualizada facilita os processos de hierarquização entre trabalhadoras do sexo, nomeadamente e como refere Gregory no que concerne ao grau de visibilidade perante a clientela (2005:95).133 Esta abordagem deixa ainda transparecer um outro facto relevante, o de que a gestão de recursos opera através de competição e a acção dos comportamentos humanos no âmbito da prostituição gera espacialidades específicas (Lédrut, 1979) decorrentes da selectividade no acesso aos recursos.

6.3. Prostituição, rua e a “mãe” A migração para os centros urbanos, sendo um traço marcante do ethos travesti não é, todavia, seu exclusivo. Muitas mulheres também migram tendo como objectivo o exercício da prostituição no mercado do sexo. No entanto, a pobreza nas zonas do nordeste brasileiro não só estimulou fluxos em direcção ao exterior, como também a existência de um turismo sexual proveniente de outros países e continentes. “Tornou-se claro que o Nordeste brasileiro se integrou no circuito mundial das trocas sexuais e

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No contexto de prostituição holandês, a autora abrange todo o tipo de prostituição, de rua ou em quartos, mas com exposição pública através de janelas, etc. 113

turismo que as procura.” (Piscitelli, 1996:1-2). O que revela, paralelamente, que esse turismo sexual é baseado e potenciado, entre outros aspectos, pelo desejo de mobilidade social ascendente das populações nativas. Pobreza e desejo de mobilidade convertem-se assim em factores determinantes no delinear de projectos nessa área do Brasil. “Desde os 10 anos de idade que eu trabalhava”, conta-nos Júlia Vellaskez, natural de Fortaleza. Larissa, natural do Rio de Janeiro, conta-nos como na primeira vez que veio para Europa o fez junto com um advogado Italiano que a trouxe, após relacionamento mantido entre ambos durante as férias de que ele usufruiu no Rio de Janeiro. Se consideramos ainda o desejo do anonimato das identidades queer, apenas possível nos grandes centros urbanos (Green, 1999134, Rubin in Vance, 1984), constatamos neste conjunto de factores algumas das motivações e fundamentos para esta acentuada mobilidade geográfica, também determinada em função da ocupação de espaços e orientada por afinidades eróticas e de desejo sexual. Geralmente, a escolha de um destino migratório obedece a padrões de inserção em redes sociais no seio das quais se trocam informações de todo o tipo. Júlia Vellaskez, quando esteve em Portugal, relatou-nos: Já soube algumas informações daqui, que aqui tem certas coisas, tem certos limites que são impostos para a gente, entende, por exemplo, é…é…é…é (pensando), tem pessoas que…que…que são mais agressivas, em relação à gente, do que em Coimbra. Coimbra, por exemplo, é…é…é…é aqui (Lisboa), as pessoas de cor e os homossexuais não se dão muito bem, para início de conversa. É…é. É assim, diz que eles…que eles procuram muito a briga, por exemplo, se você olha, de nós para eles já é um motivo para eles lhe agredirem, entende? E já no caso, em Coimbra, não tem isso. (Júlia Vellaskez)

No universo travesti há quem forneça informação, meios e apoio à partida ou à chegada, nalguns casos movidas por interesses e noutros, mais raramente, sem interesses, pragmáticos imediatos. “Contactos com outras travestis, com outras amigas…e sempre vai uma na frente, faz o território, faz conhecimento e depois uma chama a outra.” (Larissa). “Até então, não tinha contacto com o sexo pago, entende? Com o sexo por 134

Os padrões migratórios de homossexuais provenientes do Nordeste brasileiro, direccionados ao Rio de Janeiro e São Paulo ou das zonas rurais para as cidades, desafiam o paradigma de historiadores e sociólogos, segundo o qual as migrações se processam tendo como pólo dinamizador os laços de parentesco. Para a maioria dos jovens homossexuais, discriminados pela família e vizinhança, as redes sociais que operam com maior influência nas suas mobilidades são as identitárias e as relativas a afinidades eróticas e de práticas sexuais, as quais lhes permitem uma vivência anónima nos grandes centros urbanos e a fuga à coerção social dos meios geograficamente mais pequenos. (Green 1999:11)

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trabalho…então eu passei mais um ano em Fortaleza depois disso e passei… aí, recebi esse convite, né? Para ir para S. Paulo.” (Júlia Velaskez). Neste encadeamento de relações, o momento de entrada no mundo travesti é geralmente sublinhado pela construção de relações mais próximas, geralmente com uma travesti mais velha, uma tutora de rua designada de mãe. Estas relações são cíclicas e operam de cada vez que chega uma novata, em função de uma naturalidade comum ou de conhecimentos pessoais partilhados, tendendo a reproduzir um determinado esquema de organização social travesti. Estas figuras tutoriais desempenham essa função de passagem de informação e de iniciação num ethos travesti de rua. Havendo inquestionavelmente hierarquia nas ruas onde as travestis se prostituem no Brasil, o encontro com o poder acontecerá mais tarde ou mais cedo. É comum o processo de transformação das travestis se iniciar com a ruptura do mundo da casa, seguido pelo necessário apego ao universo da rua, onde encontram formas de sobrevivência e aprendem, ou potencializam, seu processo de transformação. Em busca de si mesmas, de sua “autenticidade”, vão inscrevendo seus sonhos em seus corpos. Para isso, precisam contar com a ajuda do grupo, é difícil se tornar travesti sem estar inserido em uma rede específica e, neste processo, o “amadrinhamento” é essencial.” (Pelúcio, 2005:232)

Neste quadro, a iniciação no mundo das ruas em contexto de prostituição imprime às relações mantidas no seu âmbito um carácter sistémico que sublinha as particularidades com que este processo viabiliza a reprodução das práticas no seu campo de forma mais ou menos duradoura, embora sempre, susceptíveis de análises escalonadas e compatíveis com o posicionamento dinâmico dos sujeitos em cada interacção particular. Um repertório identitário surge portanto, intimamente ligado a esses vários contextos e escalas – prostituição, sexualidade, sofrimentos e expectativas decorrentes da construção de género, corpo feito, aplicações de silicone, clandestinidade, migrações, etc. Neste sentido, a constatação de que existem outras pessoas que se assemelham a elas, no seu modo de vida e nas interacções estabelecidas, permite a construção de sentimentos de pertença, “tendendo à percepção de que já não estão mais sozinhas no mundo, criando cumplicidades e organizando estratégias de afirmação política e colectiva de suas singularidades.” (Peres, 2006:4, Cf. redes sociais e afinidades em contexto migratório: Green, 1999). Deste modo, a rua pode ser também representada como uma nova casa e as relações nela, emergentes podem surgir como substitutivas das familiares, previamente quebradas.

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É assim com essa tutora de rua – à qual são atribuídos nomes a que correspondem papéis desempenhados familiarmente – que aprendem mais, por exemplo sobre a ingestão de hormonas femininas. É também ela que as introduz num circuito estético clandestino e é igualmente com a sua ajuda que aprofundam o conhecimento das técnicas de manutenção corporal e das performances sexuais tidas como próprias de uma travesti. “Nessas narrativas, a “rua” aparece como locus privilegiado desse aprendizado.” (Pelúcio, 2005). Na relação com outras travestis informam-se sobre o que precisam para serem travestis, de como transformar o corpo através da ingestão de hormonas ou de aplicação de silicone, bem como sobre a aquisição de acessórios de feminilidade (perucas, roupas, sapatos), reafirmando o desejo de transformação e criando redes de transsocialização que despoletam os devires em acção. (Peres, 2006:5) Muitas travestis orgulham-se de serem mães ou madrinhas. “Amadrinhar” referese a proteger e ensinar a viver como travesti, cabendo às que desempenham o papel de mãe a iniciação na prostituição propriamente dita. As fronteiras entre estes dois termos são ténues e por vezes querem dizer exactamente o mesmo (Pelúcio, 2005:232). Mas nem todas podem ser mães ou madrinhas. Júlia Vellaskez explica porque Adriana é tratada por mãe: Exactamente. É assim, porque, em Campinas ela já era tratada dessa forma, porque ela tinha, é…ela tinha residência lá e que tinha muitas, elas iam para casa dela e no caso, ela era considerada como mãe, por causa disso, né? Entenderam como uma forma de respeito, por ela ser uma pessoa mais experiente, de ter um convívio maior com todas, entende? Ser uma pessoa que todas respeitam. (Júlia Velaskez)

Ou como conta Adriana: Uma das meninas que morava em minha casa, elas sempre foram muito amigas minhas, elas me tinham como mãe, sempre foram mais novas do que eu e eu era uma pessoa que ajudava, falava, aconselhava.

O tratamento por mãe traduz o reconhecimento da existência de determinados capitais sociais facilitadores do acesso aos recursos por parte das novatas. Como vimos no caso de Adriana - quando na Boca do Lixo necessitou de autorização de Sandra Bolo para estar na rua - existe uma permanente vigilância do grupo sobre os seus elementos, principalmente sobre os mais novos. Essa vigilância não só estabelece hierarquias, como também define pela via informal o que é ser travesti - o que o grupo espera do indivíduo 116

e, por consequência que comportamento o sujeito deve adoptar. Esta gestão de expectativas pode também observar a vertente sancionatória de promover a exclusão do acesso a recursos e capitais sociais, ao afastá-las dos centros onde eles podem ser geridos e alcançados (Vertovec, 2009). É o caso da restrição que opera sobre o acesso ao recurso rua ou numa outra escala, cidade. Quando Júlia Vellaskez chegou a Campinas teve que colocar silicone no corpo, caso contrário a sua presença não seria admitida e teria que mudar de cidade. No mesmo sentido, Adriana refere: A São Paulo eu não queria voltar porque era muito problema e existia uma cidade perto que era Campinas. Fui para essa cidade, cheguei na cidade e lá tinha normas…para ficar na cidade tinha que fazer aplicação de 3 L no mínimo com uma das cafetinas - aqui se diz chula - e se tinha que fazer uma conta no mínimo de $R1500 - (fumando) - eu queria ficar para trabalhar, tinha que fazer essa conta para deixarem a “gente” trabalhar lá. Fiz a conta e fui fazer aplicação de silicone. (Adriana)

Outra das regras instituída na cidade de Campinas consistia no facto de que as travestis recém-chegadas à cidade não podiam morar sozinhas. Assim, para além da aplicação de silicone a realizar com a cafetina, as travestis teriam de morar em casa de uma delas, pagando a diária imposta. “Lá em Campinas, a gente chega e nunca pode morar sozinha, tem que pagar a diária.” (Adriana). A possibilidade da mãe ser simultaneamente a cafetina permite que a jovem travesti acabada de chegar a São Paulo, conceba nessa restrição à sua liberdade individual um patamar alcançado de adultidade. Bruna, 24 anos, desde o 14 na prostituição travesti, diz: Quando eu cheguei em São Paulo, depois de fugir de casa de carona, fazer sete programas no caminho, procurar a casa da cafetina... Quando eu cheguei em frente ao prédio dela, eu olhei pro céu e pensei: “pronto, agora eu sou dona do meu nariz! Agora eu sou adulta”. (Pelúcio, 2005:236)

Ao fim de dois anos a pagar hospedagem, Adriana mostrou respeito pela hierarquia e sondou as cafetinas no sentido de poder ela própria alugar a sua casa. Não lhe levantaram nesse momento obstáculos. Os problemas surgiram quando em sua casa, Adriana começou a receber travestis chegadas recentemente à cidade, emergindo como um factor concorrencial, ameaçador para outras travestis no âmbito da cafetinagem. Chegou uma época que começou a chegar amigas que queriam morar comigo e aí elas não gostaram (as cafetinas), acharam ruim e vieram falar para mim. Eu disse que eram só aquelas pessoas e que dali não saía mais, só que eu já estava cansada de rua…de muita coisa. Conheci um rapaz em Campinas que era muito temido lá! Não usava droga nem nada, mas era uma pessoa de atitude se tivesse que matar um, matava! E ele se interessou por mim e eu para poder ter um local tendo pessoas a trabalhar para mim, eu tinha que ter uma pessoa forte do meu lado! (Adriana) 117

Ser cafetina permite o acesso e actualização na interacção de um outro capital simbólico e social no universo da prostituição travesti, não só pelo rendimento auferido, mas também pelo poder exercido sobre as outras travestis. O reforço da existência de relações assimétricas legitimado pelo grupo produz estratificação (Vasconcelos, 2002) ainda que, no interior de um grupo, já socialmente hierarquizado de forma descendente quando enquadrado no plano da sua hierarquização macroestrutural. Neste contexto citadino a cafetina, ao exigir diária, ao cobrar pela aplicação de silicone ou ao cobrar multa,135 pode deixar de se prostituir na rua em virtude de possuir outras fontes de financiamento. Começou a chegar amigas para morar lá…comecei a fazer a mesma coisa, a cobrar diária, porque não queria mais estar descendo para a rua e as cafetinas acharam ruim e começaram a ameaçarme de morte, me apareceram em minha casa para me matar. Foi uma confusão muito grande e resumindo a história, eu tomei a minha atitude, ele tomou as dele e saiu aquelas briga e como elas viram que eu era uma pessoa de atitude…que eu não deitava, entendeu? Me largaram de mão e deixaram minha casa sossegada, só que ser cafetina no Brasil, é muito difícil! Primeiro é assim, cafetina tem que ser má! Se tu não for má, tu tem que te tornar má! E eu era uma pessoa muito boa, uma pessoa boa de tudo, não aceitava o que elas faziam para as outras!

Em simultâneo, as relações de poder entre travestis podem alcançar níveis de extrema violência, exercida nas ruas pelas mais velhas sobre as mais novas ou entre travestis que disputam recursos, capitais e poder associado. Elas lá desciam na rua e davam com aqueles chicotes eléctricos nas travesti porque elas às vezes jogavam contas altas para cima das travestis que elas não podiam pagar e batiam nas travestis, davam choques com aquelas máquinas da polícia, batiam de ferro, batiam de corrente e eu não era assim. Só que eu também não aceitava que chegasse uma travesti e fosse morar sozinha, porque se eu fosse aceitando isso o que é que acontecia? Eu ia perder o meu local de trabalho, eu ia perder como ganhava o meu dinheiro e nessa parte eu comecei a tornar-me má e eu não era assim. Aqueles que me conhecem de Belém…sabem que eu era uma pessoa muito boa e me comecei a tornar uma pessoa má por causa disso. (Adriana)

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Multa é a designação para a quantia pecuniária extorquida ou recebida, cobrando um hipotético comportamento inadequado assumido por uma travesti com capital social inferior, por exemplo quebrar uma regra da casa ao ganhar dinheiro com clientes, que não declara à cafetina. “Cobrar “multa”, expediente comum entre travestis, seja a cafetina com suas filhas, as mais velhas com as que vão chegando na avenida, exigindo o “pedágio”, pagamento para que as novatas possam trabalhar no local, seja com clientes que descumprem o que foi tratado na “entrevista”. A “multa” é uma espécie de castigo – pago em dinheiro ou mesmo objetos (perfumes, roupas, acessórios são os mais comuns) – aplicado por infração de regras, má conduta, invasão de ponto e, no caso de clientes, por descumprirem o que foi acordado em relação ao programa.” (Pelúcio, 2005:233-234). O pedágio foi-nos referido por Larissa, nomeadamente no caso Italiano, em que nos referiu que chegavam a cobrar 3000€ para poderem ter um lugar na rua. Em Portugal, tudo era muito diferente e as quantias referidas relativamente ao pedágio cobrado por algumas travestis portuguesas, era de 50€. (Larissa) 118

Adriana assume como as expectativas do grupo perante o comportamento do indivíduo e a possibilidade implícita de sansão permitem a reprodução de um determinado modelo de relações na clandestinidade. Este processo explica as desigualdades no interior do grupo, bem como num outro plano e em processo análogo, da estrutura face às travestis. Ao referir que não podia deixar ninguém morar sozinha, Adriana afirma a necessidade de competir por capitais sociais que lhe permitiam gerir e aceder a recursos sob pena dela própria perder esse acesso, bem como os capitais sociais que deles advinham dialogicamente, como forma de sansão grupal. (…) e eu comecei a tornar-me má por causa disso, porque não deixava essas coisas acontecer, se chegasse lá uma nova eu dizia, tem que morar com cafetina, pode ser comigo ou com qualquer uma outra, mas tem que morar e eu achava isso errado. Meu deus! Eu dormia com um olho aberto e outro fechado, com medo. As outras me aceitaram, mas a “gente” nunca sabe se aceitam mesmo, elas podiam ter dito que me aceitavam da boca para fora, mas a qualquer hora podia vir alguém em casa e me dar uns tiros e eu morrer e acabou, acabou! (Adriana)

Nesse momento e como de resto já referimos, Adriana tinha já um marido que a protegia e ambos sentiam necessidade de andar armados com revólver para qualquer eventualidade que envolvesse a necessidade de uma acção de autodefesa. No sentido acima descrito, o capital social não é uma propriedade do indivíduo, mas sim algo que reside e é retirado de um determinado campo social onde o indivíduo se insere, o qual é actualizado nas relações entre indivíduos e obtém dessas interacções a sua valoração e consequente posicionamento hierarquizante perante outros capitais (Cf. Aquino, 2000, Bourdieu, 2002, Coleman, 1990, Vertovec, 2009). Neste sentido, um determinado campo pelas suas especificidades implica a modelação das relações e interacções entre os sujeitos, gerindo-se dessa forma, não só os indivíduos que formam o grupo, mas também o status quo grupal e a sua reprodução, ou seja a própria comunidade. Isoladamente o indivíduo não actualiza capitais sociais ou acede a recursos. Apenas o sujeito em interacção negociada o pode fazer. Este carácter posicional dos sujeitos e dos capitais sociais alcançados num determinado campo, são sublinhados quando na competição entre campos determinados capitais são diametralmente considerados. Assim, se ser cafetina no âmbito da prostituição de rua travesti não deixa de ser um capital social nesse campo, quando valorado por outros campos, poderá ser algo de desprezível e criminoso. Sublinhamos ainda uma outra

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dimensão prática dos capitais sociais, recursos e grupo. Estes conceitos exigem um centro de poder, o qual administra o grupo mediante gestão dos mesmos. Assim, de forma distinta e desempenhando papéis que por vezes se cruzam, a mãe, a cafetina e a dona da rua executam papéis fundamentais na reprodução de um sistema de relações travesti em contexto de prostituição. Ao submeterem-se a estas hierarquias, as travestis aceitam tacitamente o carácter recíproco de um modelo vigente de direitos e obrigações, assim como as hierarquias nele implícitas, as quais são constantemente negociadas, muitas vezes com recurso à violência. Este processo de negociação pode levar a que quem hoje é abusada seja amanhã a abusadora, a detentora de um poder exercido sobre as outras, não necessariamente encarado de forma socialmente negativa no âmbito do grupo.

6.4. Mitos, histórias e realidades Neste contexto que oscila entre a violência, a “ajuda” e o ensinar ou entre a competição feroz e a amizade, são veiculados inúmeros relatos de personagens que se converteram em autênticos mitos urbanos no Brasil. Algumas adquiriram tal relevo que se converteram em alvo de atenção de documentários especializados, nomeadamente o documentário “Quem tem Medo de Cris Negrão?” (Brasil, 2012, 25 min.), dirigido por René Guerra. O filme narra a história de Cristiane Jordan ou Cris Negrão como era conhecida nas ruas, uma travesti e cafetina do centro de São Paulo, sobejamente conhecida pela violência que empregava no seu quotidiano, bem como pela imagem bizarra que muitos relatam de passear o seu pequeno caniche pelas ruas da cidade (Adriana), o qual contrastava com a sua dimensão corporal. “Odiada e temida, também cultivava fãs. Foi assassinada tragicamente em Setembro de 2007” - já esta pesquisa decorria. Por serem muito jovens, precisam se instruir na vida de rua e aprender a “dar o truque”: parecerem mais velhas, driblar as situações de violência que podem vir tanto dos clientes como da polícia, e não raro de pessoas do seu grupo de convivência. Aprender os códigos da rua e da noite, significa sobrevivência, e isso não é coisa de criança nem de adolescentes. (Pelúcio, 2005:236)

Adriana é uma das muitas que um dia se cruzou com Cris Negão. Após um episódio dramático em que as forças policiais brasileiras a ameaçaram deter por tráfico de droga (que não possuía) ou, em alternativa, ficar com todo o seu dinheiro 120

(chantageando-a) viu-se novamente obrigada a recomeçar do zero, momento coincidente com a detenção policial do seu marido em Campinas. Estes dois acontecimentos estimularam uma nova migração, desta feita para Indianápolis, centro de São Paulo. “Quando eu vi aquele negão vindo na minha direcção, meu coração bateu!” Era Cris Negão! Rapidamente Adriana ficaria a conhecer as regras daquele ponto na cidade e quem as fazia. “Ei! Para ficar aqui tem que roubar! Bicha que não rouba aqui não fica!” – “Eu digo, ai meu deus do céu!” (Adriana)136 É que tem aqueles homens que quando vêem uma novidade na rua, caem em cima que nem urubus em cima de carniça…então havia um lá, que pagava só em dollars e ela já conhecia ele, então ela falou comigo e disse que fulano já está rodando e ele vai-te pegar como novidade, tu vais ter que entrar no carro dele. Ele vai-te perguntar se tu quer receber em cruzado ou em dollar e tu pedes dollars! E quando tu voltares para cá tu pára o carro dele perto da “gente” e puxa a chave do carro dele, porque ele mete a maleta dos dollars atrás no carro.

Kullick (1998) refere igualmente a participação das travestis em assaltos a clientes e a violência que ocorre entre membros do grupo, entre travestis e polícia, entre travestis e clientes, etc. A violência é neste contexto um meio ao serviço das relações de poder estabelecidas e também uma garantia da manutenção desse poder. Eu peguei e disse…ai meu deus…se eu fosse embora dali elas nunca mais iam deixar eu caminhar de giro e se eu não parasse o carro ia ser pior para mim…eu precisava…eu tinha que fazer minha mudança, eu tinha que fazer meu corpo! Tudo o que elas falavam ele falou para mim…se eu queria em dollars, etc…aí…foi que eu vim embora do motel com esse homem e lhe disse para parar ali perto das minhas amigas, que tinha que falar com elas e ele parou, nisso eu disse - meu deus!

Esta acção coordenada pelo grupo e não totalmente voluntária por parte de Adriana revela novamente o modo como o grupo se auto-administra e reproduz mediante hierarquias e relações assimétricas, balanceando as aspirações do indivíduo com a coercibilidade imanente às relações sociais mantidas no seu âmbito. Isso vai ser agora…nunca tinha feito isso na minha vida! Eu me tremia toda! Aí…quando ele parou, só fiz foi puxar a chave do carro dele, puxei a chave do carro e o freio de mão e lhe disse passa tudo o que tens que passar! Quando eu falei isso, ela (Negão) engasgou o pescoço dele e disse gritando: paga a ela, paga a ela! Ele nervoso dizia que já tinha pago, mas aquilo era uma encenação, era um truque para elas roubarem ele e eu dentro do carro sem saber o que fazer…aí 136

Cf. SP Transvisão: Quem tem medo de Cris Negão? Debate promovido pelo Governo do estado de São Paulo, Secretaria da Cultura e pela Escola de Teatro de São Paulo. Os relatos das travestis intervenientes neste debate, reforçam essa visão negativa de Cris Negão como sendo alguém a evitar. Cf. https://www.youtube.com/watch?v=Hzk9KS7h8hM, trailer do documentário: Quem Tem Medo de Cris Negão? (https://www.youtube.com/watch?v=3t_lSKK069I , acedido a 25 de Julho de 2014) 121

ela me disse - me dá a chave do carro! - eu dei para ela e ela deu para outra! Tirou também o relógio dele e me deu! E eu sentada no carro olhando a cara do homem em pânico e pedindo por amor de deus para eu o ajudar e eu sem poder. Então ela gritou para mim! - Sai do carro! Corre! Corre! - Eu peguei correndo, peguei um táxi e fui embora.

“Para ficar na rua tem que roubar”. O recurso “rua”/clientela foi neste caso gerido desta forma por quem detinha os capitais sociais accionados na interacção, o acesso privilegiado à gestão dos recursos e o poder associado. Ao invés, Adriana para de algum modo poder entrar na teia onde se processam as trocas e o manejar de recursos teve que se submeter ao poder e a quem o detinha. Neste âmbito, ser violenta, feroz, impiedosa ou até assassina podem converter-se num capital social alcançado por um indivíduo neste campo específico, não obstante quando accionados na relação mediada entre indivíduos de campos distintos gera estratificação, discriminação, etc. Quando foi no outro dia, eu fui lá na rua, para ver se elas me davam algum dinheiro e elas não quiseram me dar. Disseram-me que eu já tinha feito a minha parte e que podia descer na rua à hora que quisesse - a tua parte já tu fizeste! - Como quem diz assim - tu já pagaste para ficar aqui - e lá era um local que dava muito dinheiro e eu vim-me embora para casa. Depois essa Cris Negão foi na minha casa, no hotel…me dizer que ele estava rodando na rua atrás de mim - porque tu roubaste o rolex dele! - e eu disse - rolex?? Não querida…eu rolex? Relógio do homem?? Ele me deu um relógio, mas eu não queria relógio, queria era dinheiro e já fui a uma loja na rua e o vendi, eu nem sabia que relógio era. Depois que conversei com ela e que ela foi embora, é que eu fui ver o relógio…era um rolex em ouro!

Um dos maiores medos das travestis no Brasil é sentido relativamente à polícia e Adriana receando que a importância atribuída a esse relógio fosse suficiente para que a polícia interviesse, decidiu partir novamente. E ele não queria saber nem dos dollars, só do rolex em ouro! Eu pensei…este relógio deve ser uma fortuna, se eu devolver vou ser presa na hora! Tem muitos casos de travesti que vão presa e passam anos na cadeia. Aí eu digo, isto não dá mais certo! Eu tinha um dinheirinho guardado em casa de uma amiga minha, terminei de fazer aplicações de silicone no corpo e nas mamas. (Adriana)

Vendeu o Rolex e com o dinheiro regressou a Belém do Pará, investindo novamente no seu salão de beleza. Durante 1 ano por lá trabalhou mas a vontade constante de retocar o corpo com silicone foi mais forte e empreendeu o trajecto para Campinas, o qual culminou com a sua iniciação na cafetinagem.

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Estes episódios na rua demonstram que apesar da organização das travestis neste contexto se basear em informalidades, a forma como essas informalidades são exercidas reflecte não só relações assimétricas no seio do grupo, como também um tipo de organização vertical com recurso a coacção física/violência. Todavia, a falta de especialização de funções nesse domínio distingue-as de redes de organização vertical como as do Leste europeu operando em Portugal na década de 90 do séc. XX. Destes palcos conturbados e envoltos em perigos vários, Adriana dá-nos o seu testemunho, a partir do qual se evidencia não só a violência latente, como também a importância das redes sociais contextualmente (ou não) estabelecidas, como meios para sobreviver em cenários de confronto, ao promoverem solidariedades pontuais que, todavia, podem subitamente converter-se em hostilidades permanentes ou vice-versa. Ainda em São Paulo e dando os seus primeiros passos na cidade grande: (…) então a que comandava essa rua era a Sandra Bolo, antes dela tinha uma que comandava também que era a Nádia e essa Nádia tinha passado alguns anos presa e tinha saído da cadeia. Então nesses dias, quando desci para trabalhar…foi comentado na rua inteira que a Nádia tinha saído da cadeia e eu chamei essa minha amiga…era até a Roberta, que se chamava essa loira…eu disse - Roberta, quem é essa Nádia? - Ela me respondeu - nem queira saber…ela é horrível…ela pára a “gente” todinhas e rouba a “gente”, nossa bolsa…ela é terrível! - E quando ela fechou a boca a Nádia estava aparecendo na esquina, dizendo: - olha, fica toda no lugar que eu vou cumprimentar todas! - Só que aí aconteceu uma história um pouquinho antes disso…eu morava num hotel e o dono do hotel, por gostar de mim como pessoa, deixou eu trabalhar lá na porta do hotel, essa Sandra que deixou eu trabalhar na rua, trabalhava na porta de outro hotel…e o hotel que ela trabalhava fechou e ela levava clientes para atender no meu e não tinha quarto, então começou a perder clientes…o que é que aconteceu…um dia eu para me chegar mais com ela…chamei-a e disse, Sandra, olha é assim…se tu quiseres eu te ofereço o meu quarto, tu trabalha no meu quarto e ela respondeu: - ai mana, tu faz isso por mim? - Claro mana! Você deixou eu trabalhar aqui sem problema nenhum, então não tem problema! - Quanto é que estás a cobrar? Não mana, eu não te cobro nada…pode trabalhar à vontade, você tem muitos clientes, eu atendo poucos - só que por trás ela começou a pagar a minha semana, me ia buscar em casa para mim ir conhecer S.Paulo, se tornou minha amiga. (Adriana)

Este ampliar da rede social onde Adriana estrategicamente se inseriu, revelou-se a dada altura muito útil, demonstrando igualmente como as estratégias individuais ainda que exercidas no âmbito do grupo podem conduzir a trajectos diferenciados. Quando Nádia saiu da cadeia e desceu na rua reivindicando o seu estatuto e cobrando multa, a sua amizade com Sandra Bolo produziu resultados positivos. Na época era a Sandra que tomava conta da rua, que primeiro era a Nádia, só que as duas eram muito amigas e eu não sabia de nada, e a Nádia foi…foi…multando as bichas e chegou em mim e a Sandra tinha estado ocupada no meu quarto, aí a Nádia perguntou para mim: - de onde tu és? 123

- eu respondi que era de Belém…- ahh de Belém…eu conheci muitas travestis na cadeia que eram de Belém, sabe por causa de quê? Por causa de roubo! As bichas de Belém tudo roubam, você deve estar cheia de dinheiro! - eu disse - Não querida, não faço essas coisas não, eu trabalho no meio da moral e assim, eu não faço esse tipo de coisas - e ela para mim - Abre a bolsa, deixa eu ver! - Nisso que eu estava abrindo a bolsa, a Sandra passa nas costas dela: Sandra - Nádia… Nádia - Oi Sandra, como é que está? Eu saí hoje da cadeia… Sandra - Eu não quero saber se saiu da cadeia ou não! Eu quero saber o que está fazendo com a Adriana? Nádia – Não… nada, não…estou conversando aqui com a Adriana, ela me está mostrando aqui umas coisas – mentindo, não é? Sandra – Olha, se estiver só conversando com ela, então conversa! E manda ela fechar a bolsa, porque se tu pensa que vais tirar dinheiro dela, tu não vai tirar, porque ela é minha amiga! Nádia – Ahh! Ela é tua amiga, Sandra? Então me desculpa, porque amiga da Sandra é minha amiga, a partir de hoje você é minha amiga! – Já falando para mim.

Essa nova e inesperada amizade que de ameaçadora passou subitamente a salvadora traduz novamente esse clima de agressão e ameaça constante nas ruas onde as travestis apreendem novos códigos e exercem estratégias diferenciadas de sobrevivência, nas quais o dinheiro adquire uma importância primordial. Tal, exige uma constante negociação e busca por equilíbrios contextuais, alcançados a partir de práticas quotidianas de gestão de relações com outras travestis. Adriana parecia saber isso e pela narrativa que realiza, mais do que apontar apenas para a realização dos seus objectivos isoladamente, parece-nos que sempre se concentrou igualmente na gestão das suas relações com outras travestis, principalmente as que envolviam manas que detinham poder decisório. Nádia era uma pessoa temida, todas tinham medo dela…pronto…comecei a trabalhar bem, na rua sem problema nenhum, quando foi uma vez que eu estava no meu quarto…invadiram meu quarto, quatro homens e quatro travestis, uma delas era essa Thaylita que morou comigo, para me matar…era para me matar mesmo e eu comecei a chorar, a chorar…então uma delas que estava no meio das quatro travestis disse –Não! Eu conheço essa moça! A Adriana, eu conheço desde muito tempo, desde Belém. Ela não fez isso, ela é uma pessoa muito direita, ela não ia fazer uma coisa dessa. - aí eu disse à Thaylita - Thaylita, me conta o que é que aconteceu? Thaylita – Ahh! É que tu foste falar para a Nádia - toca o telemóvel, um cliente, aguardo uns instantes – para ela me cobrar o dinheiro lá na outra avenida, ela me disse que eu tinha até amanhã para dar o dinheiro para ela, porque senão eu ia embora para o caixão! - Porque essa Thaylita também era de Belém e era uma pessoa que eu tinha ajudado muito em Belém, quando eu morei só, era até no meu salão que ela morou comigo, porque a mãe dela tinha expulsado ela e aí…só que ela veio para S. Paulo primeiro do que eu, e aí o que aconteceu? Ela pegou…eu disse - Taylita eu não fiz isso, eu não falei nada para a Nádia, eu não fiz nada! Thaylita – Então vamo na casa da Nádia! 124

Adriana ficou receosa, na verdade não sabia naquele momento o que esperar daquele reencontro com Nádia, que havia conhecido em circunstâncias no mínimo ameaçadoras e mais uma vez receou pela sua vida. Na verdade, a vida nas ruas de São Paulo exige uma constante luta pela sobrevivência diária em contextos marcados pela incerteza e risco, não só pelos riscos corridos com a polícia ou clientes, mas também como temos vindo a verificar com outras travestis. Tinha em baixo, quatro táxi eu entrei e digo para mim: pronto! Vou levar confusão, minha vida acabou…vou levar confusão na porta de uma pessoa que é problema, que é má…aquela pessoa vai-se aborrecer comigo! “Poxa! Trazendo problema para mim??”, eu fiquei em pânico…quando eu cheguei lá e bati na porta e disse – Olha Nádia, vim conversar aqui contigo – ela disse assim para mim: Nádia – Cala a tua boca! – eu até me espantei…- O que é que tu queres Thaylita? Thaylita – Ahhh vim aqui ter uma conversa, porque a Adriana foi-te dizer essa coisa… Nádia – A Adriana não me disse nada! Quem me contou toda a história foi a Roberta e eu vou-te dizer uma coisa, tu pode vir na minha casa com 50 homens, que eu não tenho medo de homem nenhum, nasci para morrer uma vez e qualquer um de vocês que estão aí, se quiserem me “peitar”, me “peitem” agora! Não tenho medo de nenhum de vocês, não tenho medo de faca, de arma, de nada! Então é assim Thaylita, o que eu disse ainda continúo a te dizer – ainda pegou pelo cabelo da Thaylita – eu quero o dinheiro da Adriana hoje na casa dela porque se você quiser roubar…roube um homem, um homem que saia com a “gente” e não outra amiga!

Embora Adriana nos apareça nestes relatos quase sempre em situações de infraordenação nas relações hierarquizadas operantes no grupo, a verdade é que esses mesmos relatos deixam transparecer que de alguma forma ela sempre se encontrava próxima de quem detinha e exercia algum tipo de poder. Essa sua proximidade com o poder com o qual interagia estrategicamente permitiu-lhe aceder aos recursos em dado momento disponibilizados e a protecção não deixa de ser um recurso providenciado socialmente. Foi neste ambiente de clandestinidades paralelas e de justiças privadas difusamente accionadas, no qual as travestis se produzem e co-produzem na diferença em contextos de violência e de quase nenhuma protecção social, que Adriana nos relata como aprendeu a injectar silicone, um dos traços mais relevantes no ser travesti no contexto que abordamos.

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6.5. Silicone a dor da beleza e a reinvenção multi-estruturada de um sujeito dinamicamente posicionado “Travesti sem silicone, não é travesti!” (Kamila Garcês) O silicone desempenha no âmbito da narrativa travesti uma importância fulcral e sendo em grande parte o motivo que desencadeia a sua mobilidade, constitui-se igualmente como um marcador hierarquizante nas relações estabelecidas entre elas e entre elas e a estrutura.137 Em 2011 Day L. fala-nos de uma outra travesti, Kamila Garcês, travesti habituada a rodar nas ruas de São Paulo e segundo Day L. muito mais agressiva no trato com outras travestis e clientes.138 Aqui descrevemos o diálogo inicial que manteve com Kamila, quando já em Portugal dividiram pela primeira vez casa: Kamila Garcês - Deixa beliscar sua bunda! Day. L. - Belisca Mulher! Kamila Garcês - Você tem silicone na bunda e nas pernas. Day L. - Tenho não. Kamila Garcês - Travesti sem silicone, não é travesti! Day L.- Tomo hormónios desde pequenininha, isto nasceu comigo!

Este enunciado discursivo revela não só a busca de autenticidade na construção de género, mediada pela aplicação de silicone e paralelamente por parte de Day L. a naturalização do discurso (Cf. Foucault, 1978 discurso reverso) com vista a justificar em termos biológicos o ser travesti. Segundo este posicionamento naturalista, que contradiz os argumentos construtivistas, tudo nasceu com ela e apenas tomava hormonas femininas – o que, na maioria das vezes corresponde a períodos das suas vidas que precedem a aplicação de silicone, mas que se constituem, todavia, como recursos cumulativos numa 137

O silicone revela-se uma ferramenta estrategicamente accionada pelo actor social travesti no sentido de acentuar e promover a dinâmica posicional do sujeito em interacção (Cf. Hall, 1996), pois a sua aplicação no corpo sustenta o accionar de discursos heteronormativos mutantes que variam de interacção para interacção, construindo campos específicos de acção e relações de poder concretas entre sujeitos particulares, contudo sempre marcados por eficácias estruturais externas diversamente accionadas em função desse contexto relacional específico e do posicionamento dos sujeitos, decorrente. (Kulick 2003 in Cameron e Kulick, 2006) 138

. É comum as recém-chegadas à Europa serem instruídas no modo de lidar com as pessoas e principalmente com clientes, Adriana muitas vezes lhes dizia; Aqui, não é assim não! Você trata eles assim e vai ter problemas! 126

fase pós silicone, alterando o tom da voz ou fazendo com que o peito cresça ligeiramente.139 Tanto as hormonas femininas, como o silicone são geralmente conseguidos em mercados ilegais e paralelos. A acção tecno-mediada sobre os corpos travestis tem vindo a ser realizada, tendencialmente fora do patrocínio e legitimação médica, ao contrário do que se verifica com os corpos de transexuais. No contexto travesti e fora do âmbito da legitimação médica, constatámos a presença recorrente em casa de Adriana de um farmacêutico - ou as suas constantes ligações telefónicas - procurando novas travestis e serviços sexuais em troca da facilitação do acesso a hormonas, preservativos, géis, etc. Esta predominância da clandestinidade faz com que no âmbito da prostituição, a maioria recorra ao bombar de silicone “na mão” de cafetinas, não só como condição de admissibilidade no grupo, na cidade, na rua ou na categoria de travestis legítimas, mas também por não possuírem recursos económicos para realizá-lo por outras vias. Há, no entanto, excepções. Ocorrem noutras fases das suas carreiras como travestis e trabalhadoras do sexo, correspondendo maioritariamente a momentos do seu percurso em que já se encontram na Europa e apenas com aquelas que atingiram algum sucesso. O recurso às cirurgias no âmbito da legalidade ou da ilegalidade opera, portanto, estratificação e resulta também de uma diferenciação socioeconómica prévia. Fernanda, residente no Porto140, em 2011 deslocou-se a Miami para realizar uma série de cirurgias a várias partes do corpo, rosto incluído. Não obstante, fê-lo quando já se encontrava estabelecida em Portugal há alguns anos e com sucesso com a clientela (e não numa fase inicial da sua carreira). Coincidindo essa opção com uma fase em que a medicina estética tinha atingido um grau de desenvolvimento não observável, por exemplo na década de 80 do século XX, quando se iniciaram as primeiras bombações em Curitiba (Kulick, 1998). No mesmo sentido Vanessa Nobre141 conta-nos que ao viajar pela Europa, fez 3 plásticas em 20 dias. Há portanto uma diferença observável, a transformação quando iniciada no 139

Daí que algumas travestis (nos seus anúncios) façam referência ao facto de terem peito hormonizado, por oposição ao peito de silicone; no entanto, a maioria e numa fase inicial da sua montagem, esconde o facto de ter peito hormonizado, enquanto, que as travestis montadas aparecem nos anúncios com os peitos denudados. O peito hormonizado nos anúncios é geralmente objecto de apagamentos e insinuações. Apagam um peito masculino através da insinuação da existência de um peito feminino, geralmente com recurso a roupa íntima adequada à circunstância, o soutien. (Cf. Ekins e King, 2006) 140

Está em Portugal há cerca de 8 anos, com viagens de permeio por algumas cidades europeias.

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Travesti que se encontra em Portugal e noutros países da Europa há cerca de 8 anos. 127

Brasil tende a ser realizada no domínio da clandestinidade, enquanto, que se essa transformação for iniciada na Europa, tende a partir de certo momento do projecto migratório a recorrer à cirurgia plástica cumulativamente com as intervenções clandestinas sobre o corpo, predominando estas numa fase em que o capital financeiro é ainda reduzido. A razão desta diferença reside essencialmente nos meios económicos de que dispõem, num ou noutro local. Não obstante parece-nos que o recurso a cirurgias plásticas vem ganhando terreno às bombações, principalmente no que diz respeito às travestis mais novas. Algumas delas chegando à Europa ainda sem corpo feito, assumem desde logo como objectivo prostituir-se para iniciarem a sua transformação, algo que há alguns anos atrás não acontecia. Nessa altura – nos anos 90 - as travestis chegavam à Europa com os corpos feitos exclusivamente de forma artesanal e ilegal. Não obstante em 2014 as bombações não desapareceram e pode dizer-se que coexistem ainda com as cirurgias plásticas.142 No que concerne às bombadeiras, geralmente quem aplica silicone já se submeteu a essa aplicação nas mesmas condições (Cf. Andrade e Maio, 1985), reproduzindo uma dinâmica social em que ser bombada significa o início da aprendizagem para um dia poder vir a ser bombadeira. Em muitos casos uma bombadeira começa também por aplicar em si mesma o silicone, “já coloquei em mim mesma nas nádegas, nas pernas. Tem que ter sangue frio, não é? – Risos - mas a “gente” passa por tanta coisa mais difícil na nossa vida e sobrevive, isso aí não é nada!” (Adriana). O acesso a estes recursos é selectivo no âmbito brasileiro e surge geralmente associado ao ser-se cafetina, poder cobrar multa – exercer o pedágio - a outras travestis ou clientes, enfim, um posicionamento assimétrico na interacção - por isso com relações de poder implícitas - com outras travestis, indicador também de um diferente estatuto no grupo resultante de alianças contextuais estabelecidas na rua e do acesso e accionamento de um leque mais amplo e variado de capitais sociais. Essa manipulação de capitais sociais, apenas efectivo no domínio das interacções aproxima os indivíduos da gestão de recursos selectivos e não disponibilizados a todos.

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No início da emigração de travestis para a Europa, a prostituição era assumida como a finalidade dessa mobilidade, neste momento, sendo cada vez mais novas as migrantes, a prostituição exercida na Europa, sendo encarada como um fim é desde logo um meio para iniciar a transformação. Digamos que os novos contextos globais e suas interdependências, não só determinaram novas mobilidades e percursos,como também o accionar de novas estratégias no fazer-se travesti, legítima. 128

Assim, Adriana ao angariar manas através da troca de informação incidindo sobre um cirurgião que conhecia e a quem ela própria recorria para ser bombada, foi aprendendo através da observação das aplicações de silicone às suas amigas e a ela própria. “Até hoje se aparece aqui uma amiga eu faço, porque antigamente isso dava muito dinheiro, até hoje dá quando elas procuram para a “gente” fazer”. Em Portugal afirma que não existe silicone líquido à venda, mas no Brasil ou Espanha é de fácil acesso. Durante o tempo que passámos no Porto, em Outubro do ano de 2006, foi visível a existência desse tipo de silicone e de seringas de uso veterinário na casa de Adriana. Em Portugal, Adriana cobrava à data por litro de silicone aplicado, entre 250 e 350€, dependendo das partes do corpo onde ele seria ministrado. Para se ter uma ideia, um peito pode levar mais de 3L.

Foto 1 – Frasco de silicone líquido e seringa de uso veterinário

As referências à dor experimentada durante o processo são inúmeras, não só porque o silicone é um líquido grosso colocado entre a pele e a carne/músculo, mas também pela espessura da agulha utilizada, utensílio usado por veterinários em cavalos ou outros animais de grande porte. No caso travesti, sem recurso a qualquer anestesia eficaz. No máximo são ministrados uns anti-inflamatórios para as dores no pós-cirurgia. (Cf. Andrade e Maio, 1985)

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Foto 2 – Seringa de uso veterinário

No Brasil essas aplicações eram nos anos 80/90 do século XX realizadas em autênticos barracos sem condições mínimas de higiene. Desse facto obtemos conhecimento através do visionamento do documentário de Andrade e Maio (1987), no qual podemos verificar como Bartô – travesti e bombadeira – realizava essas aplicações. O que muda em Portugal não são as condições técnicas da execução dessa função, apenas a melhoria constatável nas instalações onde essas aplicações são realizadas. Kulick descreve o silicone e sua aplicação apontando as suas características: Na forma como as travestis o adquirem, o silicone é um óleo de cor transparente, espesso e sem cheiro. A sua viscosidade torna difícil a sua aplicação em corpos humanos; as travestis que trabalham como bombadeiras usam seringas veterinárias e pressionam-nas com toda a sua força contra pontos marcados a lápis para forçar a entrada do silicone no corpo de quem lhes paga para o fazer. Estas bombadeiras são na maioria dos casos autodidactas na matéria, contudo algumas receberam instruções de outras travestis ou observaram aplicações de silicone (ou autoaplicaram), concluindo que o poderiam fazer melhor. (1998:75)

Os riscos envolvidos neste tipo de aplicação são inúmeros; necrose da pele ou do músculo, obstrução de vasos sanguíneos, infecções variadas, etc. Day L. conta como Kamila Garcês a dada altura e em virtude do silicone ter descido pelo corpo, ficou com

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uma nádega podre143, optando por se deslocar ao Brasil para se submeter a cirurgia estética. Felina confidencia-nos como no decorrer do ano de 2011, após internamento no Hospital Pulido Valente a que recorreu depois de se encontrar apenas com 30Kg144 e onde lhe foi diagnosticada uma tuberculose, sofreu ainda de complicações resultantes do silicone líquido que lhe havia sido aplicado na zona do baixo-ventre, o qual descaiu para a zona da púbis agravando cumulativamente toda a sintomatologia. Foi também o caso de Júlia Vellaskez que ao aplicar silicone na barriga da perna – como dizem no Brasil, pantorrilha – o sentiu descer para a zona do tornozelo, sendo bem patente nessa região anatómica aquilo que à primeira vista parece ser um inchaço, o qual todavia, abrange na totalidade a zona do tornozelo e sua periferia. No entanto, isso não a parecia preocupar muito. Aceitava inclusivamente as constantes brincadeiras das outras, nomeadamente de Adriana que em tom jocoso se queixava do facto de ela lhe deformar todas as meias, que lhe emprestava. Outro caso que não obteve o sucesso desejado foi o de uma aplicação na face de silicone a Karime G.145, a que Júlia Vellaskez procedeu durante um fim-desemana em que ambas estiveram juntas no Porto em casa de Adriana, enquanto esta estava em Lisboa. Júlia Vellaskez ficou por lá e nesse período de tempo bombou o rosto de Karime G.. Resultado um dos lados ficou mais cheio que outro. Discutem acerca do que pode ser aquele inchaço…silicone a mais num lado que noutro? Paula aventa se não terá apanhado um nervo? Procuram-se soluções. Ou se tira o silicone que está a mais ou coloca-se mais silicone do lado que está menor. Entretanto Adriana brinca…dizendo a Karime.G. que podia deixar crescer a barba do lado que está mais inchado. Riem-se todas. Eu contenho a gargalhada com esforço, é que entretanto Adriana diz a Karime G. para encher as bochechas ou então para se rir com força. A cena torna-se hilariante. Karime G. ri-se também, embora sem muita vontade. Entretanto percebi que a outra travesti que lá tinha atendido um cliente era a companheira ocasional de rua de júlia Velaskez, por isso lá estava à sua espera.

Coincidentemente e no meio de toda esta agitação surgem novos dados a registar:

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Como a palavra indica, ficou com a nádega estragada, se tomarmos o corpo como um objecto de acções tecnológicas. 144

Medindo cerca de 1.70 de altura.

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Ver o vídeo de Andrade e Maio (1985). Neste documentário podemos observar e visualizar casos concretos, em que o silicone descaiu pelo rosto deformando a bochecha. 131

Entretanto Adriana recebe um telefonema de uma das portuguesas que queriam ser bombadas. Era a que não tinha o HIV, tentando convencê-la a fazer a bombação à sua amiga e sublinhando que desta vez era para não falhar! Adriana aproveitando o facto de ter a casa cheia de gente, não enjeita a oportunidade de dar espectáculo. Diz que a vida dela não é ganha com bombação, que até quer passar o negócio a Júlia Vellaskez e que só o irá fazer a elas por amizade. (diário de campo)

Este pormenor de dizer publicamente que queria passar o negócio a Júlia Vellaskez não foi inocente. Júlia Vellaskez invadiu uma área que era sua, a competência de bombar e fê-lo em sua casa no Porto a Karime G., sem o seu conhecimento prévio. Adriana, simultaneamente, avisa-a disso e dá a conhecer às portuguesas interessadas no processo que está a par de hipotéticas conversas paralelas, mantidas com Júlia Vellaskez nesse sentido. Na verdade havíamos assistido a uma negociação entre Adriana e essas duas travestis portuguesas – que não se dedicavam à prostituição, mas sim a espectáculos nocturnos do circuito gay – no sentido de proceder à bombação. Nela se discutiram preços e quem podia fornecer os materiais. Uma delas dizia ter um amigo veterinário, pelo que não seria problema arranjar a seringa. Contudo, Paula estava presente e quando Adriana se ausentou para atender um cliente, falaram as três durante algum tempo. Depois o interesse na aplicação do silicone arrefeceu um pouco e só aquando do telefonema atrás descrito, voltou a reacender-se.

6.5.1. Silicone e a materialização do corpo As aplicações de silicone denotam um outro aspecto relevante, que se refere ao carácter inacabado do processo de transformação das travestis. “Rosto eu fiz uma vez, nariz três vezes, as mamas duas vezes, corpo fiz quinze vezes.” (Adriana). “Um vício. Tem muitas que são viciadas em silicone.” (Júlia Vellaskez). É ainda importante sublinhar como a materialização do corpo pode ser mobilizado enquanto objecto de cultura material através do silicone. “Tem uma amiga minha na Itália que me vai dar as mamas dela.” (Felina). Esta afirmação traduz um contexto em que o corpo se torna não só um meio de comunicação materializado de uma identidade, mas também um espaço envolto numa dimensão processual, sujeito e objecto de transitividades múltiplas do “fazer-se”

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culturalmente. O “fazer-se” sublinha algo a que se aspira, aspiração, essa traduzida numa acção constantemente inacabada. Os/as transexuais que reivindicam as cirurgias não são motivados, principalmente, pela sexualidade, mas para que as mudanças nos seus corpos lhes garantam a inteligibilidade social, ou seja, se a sociedade divide-se em corpos-homens e corpos-mulheres, aqueles que não apresentam essa correspondência fundante tendem a estar fora da categoria do humano. (Bento, 2004)

Neste sentido, a materialização do corpo sublinha o facto de que o que realmente distingue as travestis de outros actores sociais de forma preponderante é a sua construção de género e não a sexualidade. A sexualidade e os papéis sexuais surgem como repertórios necessários e associados a essa identidade de género, não obstante o corpo adquire importância máxima enquanto matéria moldável e transformável à medida da construção identitária de género de determinado indivíduo. Por isso, existem acções tecnológicas sobre o corpo relativamente às quais não se pode voltar atrás, enquanto, que no que diz respeito às travestis e sua sexualidade, esta é fluída e transitória. Não apenas por imperativos profissionais, mas também por necessidade de legitimação identitária. O corpo converte-se num manifesto vivo, numa arma de negociação identitária, construído, inacabado e em processo. O corpo biológico converte-se num espaço onde os actores sociais inscrevem e comunicam a sua história, inserindo-se culturalmente. Bauman afirma neste sentido que a história do sexo, mais não é do que efectivamente a história da manipulação cultural do sexo. (1999) (...) o corpo é uma construção sobre a qual são conferidas diferentes marcas em diferentes tempos, espaços, conjunturas econômicas, grupos sociais, étnicos, etc. Não é, portanto algo à priori, nem mesmo universal: o corpo é provisório, mutável e mutante, suscetível a inúmeras intervenções consoante o desenvolvimento científico e tecnológico de cada cultura bem como suas leis, seus códigos morais, as representações que cria sobre os corpos, os discursos que sobre ele se produz e reproduz. (Goellner, 2003:28)

De alguma forma o “fazer-se” travesti implica um “ir-se fazendo” travesti – um processo de gendering nas palavras de Ekins e King (2006) – uma tarefa em que o corpo assume de forma evidente a sua dimensão culturalmente manipulada e simultaneamente biográfica, presente e futura, e paralelamente uma componente fenomenológica expressa na relação do sujeito com o seu próprio corpo (Saleiro, 2013). Segundo Adriana:

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O silicone…o silicone é como uma droga, a gente nunca se sente bem como está, quer um pouquinho ali, quer outro pouquinho ali, nós não queremos ficar iguais às mulheres, nós queremos ficar melhor que as mulheres…a “gente” procura ter umas pernas perfeitas, uma bunda perfeita, um quadril bonito, uma cintura fina, uns peitos belos. Quer dizer, nós não queremos ficar iguais às mulheres, queremos ficar melhor! Então eu ao dizer que tem que ter um retoque para cá, tem que ter um retoque para ali, sempre a dar uns retoques.

O corpo torna-se objecto de reflexão crítica e paralelamente expressa as angústias, desejos e aspirações dos próprios sujeitos inseridos nesse processo de monitorização, no qual se constroem e emergem enquanto tais. O não serem biologicamente mulheres mas querendo até certo ponto ser melhores que elas – o que é subjectivo – pode quanto a nós justificar essa propensão para constantemente actuarem no seu corpo, como se este fosse a chave do acesso e realização de todas as suas aspirações e sonhos. Acrescendo ao que muitas chamam de “vício” de aplicar silicone, existem outras tarefas diárias já mencionadas de corporificação do feminino (de manejos de signos associados ao feminino), depilações, maquilhagens, toma de hormonas, fazer as unhas ou incorporação de gestos e falas, igualmente acções que visam essa inteligibilidade social do “fazer-se” culturalmente, para si e para o outro. A identidade constrói-se e tem um carácter posicional, carácter, esse que pela sua volatilidade exige constante negociação do ser actual e presente, por relação a um futuro próximo. O corpo é também identidade e no caso travesti esse sua vertente é incrementada, não apenas como tal, mas também como comunicação da mesma aos outros (Cf. Benedetti, 1998, 2002, 2005, Peres, 2006). O corpo travesti converte-se numa estratégia identitária, afirmando-as no mundo com as suas especificidades, sofrimentos, ambições e desejos. O vício de aplicar silicone pode portanto, traduzir a própria transitividade dos processos identitários, dinâmicos e posicionais, ao invés de estáticos e a-históricos, deixando-se influenciar por variáveis como por exemplo a idade ou o capital financeiro. O carácter construído da identidade travesti, tendo como um dos seus referentes a actuação tecnológica sobre o corpo, é realçado pelo facto de nos terem chegado relatos de travestis com 15 ou 20 L de silicone líquido ou industrial no corpo. Adriana tem 15 L, mais do que a maioria das travestis mais novas. O que remete para cenários migratórios em que a transformação se opera no exterior do Brasil, nos quais as regras de

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admissibilidade no grupo, nomeadamente as que exigem grandes aplicações de silicone desapareceram, bem como para outros ideais mais contemporâneos de beleza feminina. As próprias identidades de género são dinâmicas, não apenas discursivamente, mas também nos conceitos associados à busca por corpos considerados bonitos, elegantes e femininos que lhes servem de referentes. Esses arquétipos são exteriorizados pelos sinais impressos e emitidos pelo corpo. Portanto, o corpo assume-se numa vertente da viabilização da expressão de género e identidade correspondente. Para as travestis, não só esses referentes reflectem contextualmente algumas divergências ou convergências com o padrão heteronormativo, como ao manterem o órgão sexual masculino, em corpos naturalizadamente

materializados

com

sinalizações

do

feminino,

subvertem

aparentemente, não só a estrutura, mas também a sua própria construção do feminino.

6.5.2. Silicone, corpo, prostituição e sexualidades “(…) se eu fosse passiva era x, se eu fosse também activa era x mais x, então era muito mais dinheiro.” (Adriana) O silicone actua igualmente numa outra vertente, torna inteligíveis determinadas interacções no seio da prostituição ou no âmbito de sociabilidades não profissionais. Neste contexto, tal como para muitas das suas “manas”, Adriana concebe as relações sexuais com mulheres - “nunca tinha tido uma relação activa com ninguém…nunca conheci uma mulher!”- como incompreensíveis (Cf. no mesmo sentido Loise, 2006:18). As “mulheres” fazem parte do registo das identificações (embora incompletas) e das amizades - “Amigas mulheres, muitas! Mulher, para mim, é só amizade”. Aliás, e de acordo com as narrativas que temos vindo a registar, tais relações adquirem contornos de quase “homossexualidade”, nos mesmos termos em que uma relação entre duas travestis pode ser incorporada como uma relação lésbica (Pelúcio, 2006:529) perante uma normatividade heterossexual que classifica desse modo relações entre indivíduos do mesmo sexo.146

146

Todavia, sublinhe-se que a prostituição pode determinar a existência de relações sexuais com mulheres que as procurem para o efeito, embora nem todas as travestis se disponibilizem para esse tipo de serviço. Neste sentido a prostituição destabiliza ainda mais o modo como se produzem e representam como sujeitos. 135

A incorporação de modelos de subjectividade dominantes - que ligam de forma precisa género, sexualidade, personalidade e expressão emocional - ressurge, aliás, quando se autodescrevem como pessoas em múltiplos contextos relacionais. Muito embora na sua vida sexual privada se sintam em sintonia com um desempenho passivo “feminino”, não denegam: “há também os momentos em que masculinidade aflora (…) como às vezes, há necessidade sexual.”.147 Ou ainda, como algumas confidenciaram: “ (…) nós nos tornamos mais sensíveis a outras pessoas, às situações de outras pessoas, ou seja, isso nos torna com certeza mais femininas” ou “nós também somos homens e se for para a porrada nós também damos.” (Júlia Vellaskes). Esta multiplicidade de contextos e consequente plasticidade de elementos e variáveis intervenientes no processo de legitimação do “fazer-se” travesti é claramente expressa quando Pelúcio recorre ao exemplo de Fabiana. No seio da sua relação lésbica com Verónica (outra travesti) usava cueca em casa; e no contexto da prostituição usava “calcinha”. Este adereço sustenta, pois, toda uma construção de género que se desenvolve em contextos interactivos específicos e diferenciados: por um lado a “casa”; por outro a “rua” e o cliente, gerindo-se em cada um dos contextos o que é esperado do indivíduo. Se relativamente à relação com Verónica, um dos marcadores da construção de uma identidade legitimada é a “calcinha” vs cueca, no seio da relação com o cliente essa função sinalizadora pode ser contextualmente alterada e passível de busca por outras inteligibilidades, quando por exemplo um cliente pede para ser ele a usar a calcinha (Adriana) ou quando uma travesti é procurada por uma mulher (Vanessa Nobre). Neste sentido, o que parece conferir no âmbito do universo travesti o estatuto de relações heterossexuais ou homossexuais/lésbicas é a construção de género e não o sexo/orientação sexual, embora possam ser descortinadas interdependências várias. Um homem que mantenha relações sexuais com uma travesti não é necessariamente visto como homossexual por isso, assim como uma relação entre duas travestis pode ser concebida como uma relação lésbica e não homossexual.

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Existem relatos de casos em que o receio da perda do prazer sexual é extensível aos actores sexuais em processo de admissão para cirurgia de redefinição de sexo – transexuais – (Saleiro, 2013:246); todavia na perspectiva das travestis que estudámos só a possibilidade da perda de prazer sexual, afasta desde logo qualquer possibilidade de recurso à tecnologia disponível para a mudança de sexo. 136

Figura 3 - Homossexualidade e referentes de género

Com este quadro procuramos sintetizar como as classificações heterossexuais relativamente à orientação sexual são absorvidas e restruturadas pelas travestis tendo como referente a construção de género. Por exemplo, a relação de uma travesti com outra travesti pode, dentro do grupo, ser percepcionada como lésbica visto que se realiza entre duas construções femininas. No entanto, a outra escala, exigirá sempre a presença de um masculino e um feminino para que a relação sexual ocorra em moldes inteligíveis: uma será o agente penetrador e outra o penetrado/passivo (Pelúcio, 2005, 2006). Nesta linha, um homem activo que mantenha uma relação com uma travesti é heterossexual, visto que nessa relação estão presentes masculino e feminino (em que ele é o elemento masculino/activo). Já um homem passivo participante numa relação com uma travesti será entendido como homossexual. Embora a travesti não se identifique com indivíduos homo-orientados, o seu desempenho do papel passivo numa relação não é percepcionado da mesma forma, comparativamente com um contexto de relação envolvendo um homem passivo e uma travesti visto que esse “homem”, tendo uma orientação sexual, não elaborou uma outra construção de género. Assim a travesti passiva é feminina e o homem passivo numa relação é homossexual. Já na perspectiva de uma transexual a travesti ao 137

preservar os genitais é relegada para o campo da homossexualidade (Saleiro, 2013). A orientação sexual é, sob este ponto de vista, bem mais objectiva e paralelamente menos susceptível de gerar confusão de papéis. Quando a construção de género incorpora o critério heterossexual da orientação sexual e opera a ordenação dos sujeitos e suas relações, tudo se torna mais efémero, moldável e complexo. Como refere Saleiro, nestes casos, opera o filtro do corpo fenomenológico (2013), visto que o corpo adquire uma dimensão simbólica que o pode distanciar das classificações hegemonicamente estruturantes e traduzir um posicionamento específico do sujeito face ao seu corpo e ao do outro. Nesta perspectiva, as pessoas que vivem um género fora do sexo original tendem a conceber a sua orientação sexual com base no género expressado (2013:255). Todavia, na prostituição travesti os factos nunca são lineares. Tal justifica que as travestis não classifiquem publicamente os homens que buscam na relação paga com elas o lado passivo como homossexuais. Isso poderia redundar numa redução da sua clientela ao mesmo tempo que minaria as representações difundidas pelo grupo, segundo as quais quem procura uma travesti para ter sexo não procura um homem e ainda a de que a travesti não é um homem. Ainda assim, nesta fluidez de práticas e consequentes classificações podemos captar algumas influências do modelo homem vs homem-bicha, identificado por Fry e McRae (1993:43-44, Cf. Green, 1999:6)) e kulick (1997) no nordeste do Brasil, em que numa relação entre dois homens apenas é considerado homossexual aquele que desempenhar o papel passivo- a bicha.148 Desta forma, neste Brasil que estamos chamando de "popular", como entre os guaiaqui, o menino é chamado de "bicha" não simplesmente porque se supõe que ele goste de manter relações homossexuais, mas porque ele é "efeminado" (desempenha o papel feminino) e porque se mantiver uma relacao homossexual desempenhará um papel "femininamente passivo". O rapaz que desempenha o papel masculino e que poderia ser o parceiro sexual da bicha (portanto mantendo uma relação homossexual), é chamado de "homem" ou de "machão". (1993:43)

É sobretudo no contexto da prostituição que o idioma de género travesti se revela a partir da própria normatividade heterossexual, mesmo quando aparentemente a subverte ou distorce performativamente. Com efeito no processo de construção de práticas e discursos que marcam e sinalizam o seu quotidiano, as travestis descobrem homens/clientes que “procuram o lado passivo” e “lhes pagam para assumirem um lado activo”. Como refere Loise (2006:19), o pénis converte-se, então, numa ferramenta de

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Vale de Almeida num seminário que decorreu em Março de 2015 afirmou que este modelo opera igualmente nos países europeus, mediterrânicos. 138

trabalho. O que noutros contextos se constitui como factor que investe o sujeito de masculinidade, no contexto específico da prostituição, confere-lhes uma mais-valia no mercado das trocas sexuais e, paralelamente, desempenha a função lateral de classificar esses homens que procuram o lado passivo como mariconas (Pelúcio, 2006, 2007), sublinhando a presença de um sistema simbólico hétero assente nos elementos activo e passivo. Se no plano privado, as travestis adoptam o papel femino de passividade e receptividade ao nível da sexualidade, na prostituição elas podem ser circunsntancialmente convocadas a desempenhar o papel masculino, expresso no ser activo. (Loise, 2006:20)

Neste sentido, as travestis esperam que “os homens de verdade” sejam másculos, activos, empreendedores, penetradores (Cf. no mesmo sentido Loise 2006:20, Pelúcio, 2005) – um homem será sempre aquele que assume o papel activo (Kulick, 1998:124).149 Esta construção de género (e decorrente desempenho contextual de papéis correspondentes) não se estrutura de uma forma rígida; o acto de diferenciação opositiva dos dois termos do binómio masculino/feminino resulta na consolidação de cada um deles e da respectiva coerência entre sexo, género e desejo através de processos que mantêm com a estrutura uma relação dialógica e dinamicamente posicional, todavia não de uma forma unilateralmente ditada pela estrutura. (Butler, 2007:31) Para além da sua própria vivência sexual privada as interpelar a reconfigurações e resignificações particulares das performances sexuais na sua ligação com as identidades de género, os contextos de prostituição obrigam-nas a renegociar, em função das necessidades e expectativas dos seus clientes (Loise, 2006:67) a relação entre identidade de género e orientação sexual. Como explicava Adriana, o facto de “um homem procurar uma travesti para um acto sexual…não faz com que o homem perca a masculinidade dele.” 150

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Segundo o modelo homem-bicha, no nordeste brasileiro, o homem de verdade será o activo e o parceiro afeminado será aquele que desempenha o papel passivo – a bicha. (Fry e McRae, 1993:43, Green, 1999:6, Cf. acerca do mesmo modelo Kulick, 1997). O posicionamento sexual determina o género dos participantes. 150

Tal como Zimmerman e West, embora estas autoras considerassem o género uma estrutura e não um papel (1987), Loise considera o desempenho de género como sendo mais amplo que outros papéis sociais : “Il montre qu`au – dela de l`influence dês facteurs historiques et culturels dans la construction de la sexualité, le genne n`est pás une entité fixe, mais se faconne continuellement en function du contextee dans lequel il évolue. Dans le cadre de leur travail, les bichas sont amenées à renégocier une identité sexuelle en accord avec les attentes des clients (Loise, 2006:67). Observação essa que, como temos vindo a apontar, 139

Na visão das travestis envolvidas nessa pesquisa, bem como a partir do seu discurso sobre a sexualidade, esses homens não seriam menos homens apenas por procurarem sexo com travestis mas, sobretudo, por buscarem um determinado tipo de sexo, o lado passivo da relação. “Com a gente eles não querem nada do convencional.” (Pelúcio, 2005:239)151 Existe portanto, uma aparente subversão da lei/normatividade heterossexual que ambiguamente se constitui como referente dessa subversão (Foucault, 1978). Por outro lado, se é facto que para as travestis o homem de verdade condensa uma série de atributos implícitos no ser-se activo, não é menos verdade que no exercício da prostituição (para além dos rendimentos auferidos) outro dos motivos relatado é o prazer sexual obtido no seu exercício, que as leva grosso modo a excluir a possibilidade de cirurgia correctiva do sexo. Evidenciando, mais uma vez, a ambiguidade das hierarquizações que emergem da contextualidade das interacções, o homem que não é homem de verdade e que por isso se posiciona de forma hierarquicamente inferior pode ser sexualmente tido como fonte de prazer sexual (Kulick, 1998), apesar de discursivamente produzido como uma maricona (Pelúcio, 2005:241), sendo sujeito sujeito (a pelo menos) duas valorações distintas. As inteligibilidades alcançadas na relação entre género e performance sexual/orientação sexual dependem pois do contexto e da forma como se intersectam as variáveis. A multiplicidade das experiências gera instabilidade nos referentes que a enquadram, pelo que a procura de factores que possam ser circunstancialmente geradores de alguma estabilidade, na instabilidade, encontram na linguagem e também no corpo (enquanto tal) um veículo igualmente privilegiado para o efeito.

6.6. Usos biográficos e contextuais do género masculino e feminino O sujeito em devir

pode também variar em função dos espaços e dos afectos intervenientes ou ausência deles. (Cf. Pelúcio, 2005, 2006) 151

No domínio dos pedidos pouco convencionais em termos das prestações de serviços sexuais, recordamos o caso de um cliente assíduo em casa de Adriana que lhe solicitava como serviços sexuais a presença de um prostituto masculino juntamente com Adriana e que o montassem como crossdresser num momento prévio à troca sexual; ou um outro cliente que solicitava a Day. L. sexo oral mas sem que houvesse qualquer outro contacto entre a pele de ambos a não ser esse. Para o efeito cobria a parte do seu corpo que podia ser tocada com um papel guardanapo. 140

Embora tenham abandonado o lar ainda crianças ou adolescentes, é facto que a socialização primária das travestis entrevistadas e observadas decorreu num modelo heterossexual que influencia sobremaneira as suas auto-construções discursivas. Durante uma entrevista realizada com Júlia Vellaskez, quando questionada relativamente à sua crença em Deus, surpreendeu-nos com a seguinte resposta: (…)voltando no caso à religiosidade, Cristo que foi…que é Cristo! Ele veio…ele foi discriminado, ele não foi aceite! Ele chegou ao ponto de ser morto, na cruz, porque é que eu vou me sentir derrotado por ser descriminado, de forma alguma! (…)

Ao ser interpelada relativamente ao uso do género masculino em determinados contextos, Júlia Vellaskez evocou o “respeito muito grande” pela sua “parte religiosa” e pela “família’. Tal como auscultado noutras abordagens etnográficas, ao usarem as formas masculinas na relação com determinados contextos, as travestis “reiteram o seu respeito relativamente às suas famílias, principalmente a suas mães”, incorporando “a ideologia heteronormativa sobre sua comunidade.” (Borba, 2006:6).152 Hum…é, às vezes tem lapsos – risos - são lapsos momentâneos. Não! Porque no caso, estou falando da parte religiosa, entende? No caso eu tenho um respeito muito grande, e no caso, nessas partes eu, eu tenho consciência que (…) tenho o mesmo com a família, minha família até hoje me chama de Paulo, entende? No caso é uma coisa, por mais que eu tente, não vai mudar e no caso, em relação à religião, também é da mesma forma. (Júlia Vellaskez)

Os usos do género masculino e feminino exemplificam não apenas como a linguagem estrutura experiências e faz emergir sujeitos, como também detém uma eficácia punitiva, vigilante e de imposição de condições. Recordamos o momento em que Armanda Parllatori sai de casa, no decorrer do qual, estando quase toda a família chorando à porta, o seu pai diz: “Deixe ELE ir, ELE tem a porta sempre aberta quando quiser voltar.” Noutro sentido mas denotando a função de inclusão ou exclusão do outro, Borba ao realizar entrevistas no âmbito da ONG “Liberdade”, depara-se com o facto de a palavra

152

O uso do género masculino nalgumas situações pode também reflectir o facto de efectivamente a estrutura obter êxito nos constrangimentos operados sobre travestis, nomeadamente no âmbito de relações emocionalmente mais significativas. “Não raramente, a discriminação e os abusos psicológicos e físicos de que as pessoas transexuais são alvo ocorrem no contexto de relações interpessoais significativas, como as relações familiares ou laborais.” (Lombardi et al., 2001; Cf. Nuttbrock et al., 2010; Kenagy, 2005 in Pinto e Moleiro, 2012) 141

travesti ser utilizada pelas próprias no feminino, ou seja a travesti e não o travesti. Em sentido complementar, na sua etnografia sobre travestis em Salvador, Kulick (1998, 1999) constata que usam a forma masculina quando se referem à comunidade como um todo, mas a feminina quando a referência é individualizada. Por acréscimo, quando se referem à sua comunidade, as travestis tendem a usar o masculino quando esta perpetua a má imagem que a sociedade brasileira produz acerca dela (Borba, 2006:6) ou para nomear elementos da comunidade envolvidos em situações negativamente representadas. (…) agente era muito admirada agora tudo mudô- tem bichas bonitas peito novinha isso e aquilonaquela época não tinha silicone, não tinha nada, era peito de hormônio, corpo de hormônio. Então eu acho assim, elas são muito bonitas e isso e aquilo mas- elas- elas- elas acho que sãomas agora pra sociedade eles são marginais. (Travesti Thalia153 in Borba, 2006:6)

Recordamos as palavras de Adriana quando se referia a travestis que cobravam nos seus encontros menos que os 50€ habituais, “esses travestis mais novinhos, como têm mais dificuldades cobram 30/40€. Eu digo para eles não fazer isso! Isso estraga a vida de todas.” Os registos autobiográficos podem também revelar oscilações no uso do género masculino ou feminino. O uso do substantivo na sua forma masculina pode referir-se a patamares de um percurso individual relativo a momentos diferenciados, nomeadamente quando as travestis se referem aos sujeitos numa fase anterior à transformação corporal (Borba, 2006:4). Neste caso específico, masculino e feminino gramaticais conferem inteligibilidade a duas fases distintas do sujeito, antes e depois de terem “corpo feito” (Benedetti, 2005). Felina revela alguma ambiguidade quando se refere a Mel – nome adoptado na prostituição por alguém que partilhava casa consigo e que atendia clientes assumindo uma imagem feminina, mas sem ter “corpo feito”– “tem lá UM rapaz que mora comigo, A Mel…que é…UM gay, um homossexual, mora comigo, trabalha lá.” Noutros casos, o uso do género masculino, remete para a fase “da criação dentro da esfera familiar” (Borba, 2006:4), como igualmente verificámos com Julia Vellaskez.

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Bonitas é uma palavra utilizada no género feminino por Thalia, pois é um atributo de feminilidade e uma aspiração sua. O serem marginais, já implica uma conotação negativa, a qual por sua vez implica exclusão do grupo: eles são marginais; sendo no entanto, ainda assim, travestis, contudo são diferentes das que são verdadeiramente femininas. “Thalia absorve de tais ideologias a construção discursiva de si (que tem sido admirada e é, então, referida no feminino) e outras travestis (que são marginalizadas por seu comportamento agressivo e que são consequentemente referidas no masculino). (Borba, 2006:7) Veja-se o caso em que Adriana relata o seu primeiro contacto com Cris Negão: “Quando eu vi AQUELE NEGÃO vindo na minha direcção…” 142

6.7. Gírias, contextos e produção de sujeitos Pesquisas realizadas no âmbito de gírias específicas grupalmente produzidas e denominadas por gayspeak (Coupland, 1996, Crew, 1978, Darsey, 1981, Hayes, 1981, Kitzinger, 2005, Kulick, 2003, Leap, 1999, Sonenschein, 1969, Stanley, 1974, Valentine, 2003) salientam o modo como as práticas sexuais e posicionamentos construídos e assumidos de género se revelam elementos estruturantes dessas gírias e a forma como a própria linguagem constitui uma condição recíproca da estruturação dessas experiências, ou seja, do próprio enquadramento social do indivíduo e seus comportamentos. Este enquadramento social fornecido pela experiência indicia que o prestígio no âmbito do universo travesti se adquire igualmente pela linguagem, visto que nesta repousa o comportamento normativo e hierarquizante do grupo. No próprio comportamento normativo está implícita a linguagem que o torna realidade no plano performativo, atribuindo papéis e posicionamentos, entendidos e assimilados pelo outro, que participa na interacção. Termos como bofe, ocó, babado, vício, vicioso, bicha, mana, gay, mãe, madrinha,

maricona,

dona

de

rua

traduzem

um

contexto

específico

de

comportamento/interacção social e/ou sexual que aproxima, afasta, hierarquiza. Ao enquadrar contextos específicos, a linguagem154 actua sobre os comportamentos fazendo emergir diferentes espacialidades, decorrentes de distintas actuações desses comportamentos sobre a variável espaço. Por exemplo, no contexto da prostituição travesti de rua no Brasil, entre as ofensas recorrentes aos homens (principalmente aos clientes) consta a locução maricona viciosa, associando assim dois comportamentos 154

A linguagem traduz também os modos como as sociedades representam o outro. Kessler e McKenna evidenciam a preponderância das representações sociais relativas aos géneros masculino e feminino, e a ordenação sócio ideológica destes dois termos, demonstrando que a interpretação dos corpos através de figuras mostradas a indivíduos pende claramente para uma análise maioritariamente masculinizada da questão. Se um pénis está presente na figura em 96% das vezes, identifica-se o género masculino; pelo contrário, em 95% dos casos em que uma vagina está presente numa imagem, são necessários mais dois elementos ligados ao feminino, peitos ou cabelo longo (1978:145), para que essa identificação se processe. Esta abordagem mostra que a questão de género e sua ambiguidade é maioritariamente resolvida tendo em atenção referentes masculinos. Estes referentes assentam numa valoração cultural do pénis que concebe a vagina como sendo o seu contrário e apenas, e só, quando (na presença implícita ou explícita) do mesmo, indiciando que o feminino só existe por relação ao masculino. Se, por um lado, a leitura de cenários sociais tende a atribuir a primazia ao masculino, por outro lado, essa primazia pode justificar uma maior riqueza de performatividades ligadas ao feminino, pela necessidade premente de concretizar a sua afirmação social num mundo eminentemente masculinizado que reforce o que é ser mulher e feminina.

143

desprestigiados no meio (Pelúcio, 2005:241). Maricona é um termo que se aplica a um indivíduo do sexo masculino e que apresenta uma construção de género compatível o qual, no entanto, ao recorrer aos serviços de travestis se distingue de outros clientes por solicitar práticas sexuais não adequadas às de um “homem de verdade”, ou seja, o lado passivo da relação. Paralelamente, ao utilizarem o adjectivo viciosa adicionado a maricona qualificam depreciativamente no feminino o homem que procura sexo grátis e que, ainda por cima, desempenha o papel passivo na relação sexual. A linguagem situa também os intervenientes das interacções no plano da casa/afectividades – marido – ou na fronteira entre a casa e a rua – bofe – ou no plano da rua e de comportamentos desprestigiantes face ao homem de verdade – a maricona viciosa – no plano dos afectos e interesses da rua – madrinha, mãe, cafetina – ou ainda no plano dos afectos familiares, em que o uso do género e nome masculino recolocam Júlia Vellaskez noutra esfera relacional emocionalmente mais densa e estruturada, apoiados em processos de socialização conformes aos parâmetros dominantes.

6.8. Disputas e reinvenção de afectividades Em contexto de prostituição travesti todos os homens são objecto de disputa; uns como fonte de renda e outros, idealmente como fonte de afecto. Felina afirma que “é um dinheirinho a mais…para mim convívio não tem graça é um amor comprado, é um amor, trocado…há sempre uma melhor que a outra que ele vai querer!” No entanto e ainda nesse âmbito afirma que relativamente às colegas “são pessoas que não convém estar ao pede mim, são pessoas que tá ali, daqui a pouco estão-te roubando e me afasto disso.”. Sublinhando novamente a instabilidade experimentada no meio, onde tudo pode ser motivo para competição e disputa. Disputam-se clientes e maridos, compete-se pelos recursos da rua e pelos afectos da casa. No entanto, no espaço rua, assiste-se por vezes a alguns desvios a essa norma que concebe os homens como potencialmente geradores de rendimento. Duque (2008:4) sublinha no meio travesti, a existência do vício - sexo grátis - que no meio é assumido como uma falta de profissionalismo. O motivo é simples, ao conceberem o homem como uma fonte potencial de rendimento (Pelúcio, 2007), praticar sexo grátis com ele é

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desprestigiante para a sua actividade e desvaloriza os recursos de que dispõem no âmbito das relações sociais estabelecidas em contexto de prostituição. No panorama brasileiro da prostituição de rua quer o homem, quer a travesti, que praticam o vício, podem ser multados pelas travestis mais influentes, geralmente as mais velhas. Ambivalentemente, o vício é objecto de conversa recorrente, quando (em grupo) as travestis relatam entre elas as suas proezas sexuais.155 Num debate realizado no facebook num contexto de crise europeia, com a participação de dezenas de travestis trabalhando em Portugal e fora, afirmava-se que o trabalho estava difícil e que tal sucedia porque muitas atendiam clientes por qualquer preço ou até faziam o vício. Relativamente ao tema, Aghata C. afirmava entre outras coisas, que: “olha eu sou brasileira e nunca fiz varejo faço meus vicios pois não sou de ferro como todas fazem mas não confundo trabalho com lazer!”156 A que Paola Martins – no momento em Itália – respondia: Aqui em Roma esta igual. Elas faz tipo asim. si ela nao pega eu pego e melhor o dinheiro na miinha bolsa que nas delas é por isso que tombou! E agora eles que colocao o preço nao e nem a bixa não! (Facebook 2015)

No entanto, o sexo sem contra prestação monetária nem sempre se constitui como vício. Existem diferentes fronteiras simbólicas, conforme as relações construídas e mantidas com esses homens. O elemento essencial no processo de oscilação dessas barreiras são os afectos. No caso etnografado por Pelúcio, Wildcat, é um homem casado com a travesti Duda e “diz ser normal que ela continue a exercer a prostituição, visto ser o trabalho dela.” (2006:528). No entanto, será de apontar que a mesma autora nos refere que ele se encontra desempregado, pelo que a prostituição de Duda se converte também no modo da sua subsistência. No mesmo sentido, já em Portugal, Armanda Parllatori, casada com um cidadão espanhol - que raramente vê - refere que “ele não faz nada, vive do meu dinheiro.”

155

Geralmente estas conversas referem-se às baladas de fim-de-semana; o facto de descreverem as suas proezas sexuais revela, paralelamente, uma competição feroz por ser mais atraente e desejada pelos homens, também fora do âmbito da prostituição. 156

Varejo é ficar com clientes que outras recusam por eles não quererem pagar o que elas pedem. As varejas aceitam o cliente mediante o que ele quer pagar. 145

No entanto, ao contrário de Duda, não parece nutrir qualquer sentimento pelo seu cônjuge. Será porventura de considerar de forma diversa as relações conjugalizantes de uma travesti no Brasil ou de uma travesti já estabelecida na Europa, questionando em que medida reflectem diferentes espacialidades e consequentes estratégias? Através do casamento com um homem da E.U., as travestis podem adquirir a autorização de residência e atingir o estatuto de documentadas. Em contrapartida, a relação conjugalizante com alguém no Brasil não tem essa finalidade.157 Todavia, embora tenha accionado a estratégia do casamento homossexual, Armanda ainda não solicitou a legalização. Diz ter tempo e não sentir uma necessidade premente de o fazer. Todavia, por via das dúvidas, faz-se acompanhar sempre da certidão de casamento. Nesta situação, apesar da vantagem atingida no plano da mobilidade intra-europeia através do casamento, Armanda desinveste o seu “cônjuge” de atributos valorizados num homem de verdade. Alternativamente, o que maioritariamente define um homem de verdade em múltiplos contextos é ser activo: Um homem que quiser se virar pra mim... ah, já não é homem! Mulher é essa coisa delicada. E eu sou a mulher. Uma vez, por exemplo, eu fui assim, passar a mão na bunda do meu marido, só passar a mão, um carinho. Ele se virou feito bicho: “tá pensando que eu sou que nem os homens que você pega na rua, é? Eu sou é homem, não vem com essas coisas pro meu lado não.” Ele era assim, um homem de verdade, não admitia viadagem! (Sílvia in Pelúcio, 2006:526).

Para Duda, o facto de “Wildcat assumir a relação consigo, automaticamente o coloca no patamar dos “homens de verdade” (Pelúcio, 2006:528), embora nunca refira se o companheiro é activo ou passivo. Neste caso, porque não são os referentes activo/passivo a operacionalizar essa classificação de homem de verdade, mas sim os afectos e trocas valorizadas envolvidos na relação e dos quais resultam ganhos identitários para Duda. O posicionamento dos actores sociais e a forma como se expressa a hierarquização de valores, comportamentos e consequentemente de sujeitos na interacção social concreta é também patente noutro contexto etnográfico referido por Pelúcio e que enunciaremos, pela importância que julgamos adquirir como complemento elucidativo da nossa investigação. Neste caso, e no âmbito de um enquadramento discursivo que tantas vezes

157

Poderá mesmo basear-se no afecto ou então noutro tipo de interesses, como por exemplo a necessidade de protecção nas ruas. 146

opera através de analogias realizadas com a estrutura heteronormativa, Fabiana considera que apesar de manter uma relação amorosa com outra travesti – Verónica – não é “lésbica”,

pois

não

gosta

de

travestis.

Como

se

afere,

o

que

confere

homossexualidade/lesbianismo à relação não é o facto de ser uma relação entre dois masculinos ou dois femininos sexualizados, mas sim entre duas travestis – ainda que, mesmo assim, ela classifique a travesti que gosta de travestis, como lésbica e não como homossexual (Pelúcio, 2006:529).158 Recuperamos este argumento no sentido de clarificar as relações entre os travestis e os seus maridos. Assim, Fabiana, tendo mantido anteriormente uma relação com um homem, assimilou os atributos femininos, “passividade sexual, vida doméstica e recato.” (Pelúcio, 2006:529). Num certo sentido apreendendo a normatividade heterossexual que distingue as mulheres mães e as outras, não mães e por isso desmerecedoras de um lugar na heteronormatividade, religando-se esta a um sistema patriarcal que associa mulher e relações sexuais a procriação (Oliveira, 2007).159 Não obstante, e ainda na relação com Verónica, Fabiana que se considerava muito pouco feminina, passou a ser o elemento activo da relação. Todavia, enquanto os referentes heteronormativos, activo versus passivo, dominador versus dominado, não eram ainda percepcionados e assumidos na relação, o desempenho de papéis na cama revelou-se impossível de experimentar entre ambas. A sua posterior incorporação, no sentido de conferir inteligibilidade à relação, revelou-se e emergiu a partir de práticas vividas e reveladas no e pelo quotidiano – em casa Fabiana usava cueca, fora de casa no trabalho, calcinha. Para tornar esse não-lugar um novo topus, seria preciso que esses casais estivessem dispostos a romper com seus sonhos de legitimação dentro dos padrões heteronormativos, e se arriscassem em outros modelos de parceria (…). Para tanto, essas parelhas teriam que se propor arranjos conjugais, parcerias, laços, vínculos para além do binarismo de gênero instituído, da família nuclear burguesa e das relações sexuais procriadoras. Trata-se de tarefa difícil quando, na base dessas relações, o que se tem e se quer consolidar é, justamente, a busca pela aceitação social. Consegui-la negando a norma parece tão difícil e desafiador quanto lográ-la dentro desta mesma norma. Eis o paradoxo em que se enredam as travestis e seus cônjuges. (Pelúcio, 2006:532-533).

158

Em Portugal apenas um casal travesti foi registado, embora apenas ao nível dos anúncios na internet; o que neste caso pode revelar-se mais como uma estratégia para atrair clientes, do que uma relação afectiva. Neste caso, todavia, existindo afectos, Fabiana, em casa, era o elemento masculino; na rua a travesti ambígua, predominantemente feminina mediante sinalização emitida pela calcinha, mas no entanto, disponível para ser o que o cliente quisesse. 159

Verificamos neste caso como as políticas de género se sobrepõem às políticas do sexo. Ainda que uma mulher mantenha relações heterossexuais, pode ser excluída das trocas legítimas se através delas não procurar atingir determinados objectivos pré-determinados normativamente. 147

A busca travesti por inteligibilidades várias e formas de se entenderem a si mesmas em diferentes interacções contextuais processa-se mediante constantes mutações estratégicas traduzidas em diferentes posicionamentos sociológicos, performativizados tendo como arquétipos referentes, que por indivíduos perfeitamente assimilados pela estrutura são incorporados como estáveis e tendencialmente assumidos como predicados imutáveis e a-históricos. Todavia, de forma aparentemente contraditória, a transitividade e fluidez identitária travesti encontram nesses referentes veículos para a sua mutabilidade discursiva e de práticas, absorvendo-os e re/estruturando-os contextualmente. Adriana referia que “um homem que queira estar com uma travesti, é como se quisesse estar com duas mulheres! Não é homossexual por isso!” Adriana enquadra ainda na heteronormatividade (essencialmente falocêntrica), aquilo que alguns consideraram uma relação homossexual, aquela que se desenvolve entre indivíduos de sexo biológico idêntico, referindo paralelamente que para ela “as relações com mulheres lhe eram incompreensíveis!” Relações com mulheres são categorizadas como relações lésbicas, definidas como relações entre dois sujeitos portadores de género feminino, quando noutros contextos Adriana afirma – “mulher eu sei que nunca vou ser!

6.8.1. “Marido”: estratégias de legitimação. Pragmatismo, bens materiais e competição Nas suas relações amorosas, as travestis reproduzem os papéis estruturais atribuídos à mulher/esposa, esperando dos seus parceiros que se enquadrem nesse paradigma (Cf. no mesmo sentido Pelúcio, 2006:527, Cf. mulher/esposa e as outras Oliveira, 2007) eventualmente, um homem de verdade. Por isso a travesti quando se refere ao namorado representa-o discursivamente como marido, reproduzindo desta forma com maior carga simbólica a naturalização das relações instituídas entre homem e mulher, não só buscando através desta elaboração aceitação pelo outro, mas também, auto-explicação das suas relações para elas, mesmas. Porém, em simultâneo, permite-nos constatar o dinamismo da variável tempo nas suas relações afectivas, o que mais uma vez diverge da tendência observável nos padrões heteronormativos.

148

A relação de uma travesti com um homem não exige o mesmo tempo, nem os mesmos rituais de aproximação e de cortejamento quando comparados, com os relacionamentos de indivíduos pertencentes à classe média e heterossexual (Pelúcio, 2005). Algumas das travestis que fomos observando no contexto da nossa pesquisa, num hiato temporal de 8 anos tiveram dezenas de maridos. Thalter, em 2008, esteve no Porto em casa de Adriana com um gringo160, que conhecera em Barcelona e que apresentava a todos como sendo o seu marido. A relação durou apenas uns meses, todavia durante esse tempo viajaram juntos por vários países europeus. O marido é geralmente alguém que inicialmente é um cliente e que no dia-a-dia se vai aproximando da esfera do espaço antropológico casa.161 É também deste modo que os indivíduos procuram conferir inteligibilidade às relações que constroem, recusando o não-lugar e a ininteligibilidade. Buscam para o efeito referências histórico-relacionais e identitárias que se distanciem de referentes desordenados, não passíveis de compreensão e citacionalidade discursiva (Cameron and Kulick, 2006, Pelúcio, 2006:532, Cf. Augé, 1994, Foulcault, 1978,). Ter marido significa ainda a pretensão de emergir como sujeito político, reflectindo a busca empreendida pela legitimação estruturalmente entendível e explicável, possivelmente negociando a incorporação das normas relativas ao casamento civil gay, ou nos casos em que ele não é legalmente permitido, reivindicando-o. Desse modo, processa-se alguma aproximação a um natural que ficticiamente se confunde com a norma, credibilizando a própria estrutura. Nesta dialéctica de apropriações, subversões e distorções múltiplas surge um outro aspecto essencial nas vidas das travestis, uma outra dimensão do conceito marido. “Travesti não tem namorado, tem marido!”. Giselle, experiente travesti paulistana, esclarece que “marido” é mais uma gíria do meio do que a caracterização de laços conjugais – dividir o mesmo teto e repartir obrigações.” (Pelúcio, 2005:235) De acordo com Adriana, viver e pagar despesas com o dinheiro delas constitui um outro aspecto que caracteriza o ser marido.

160

Gringo é um termo que se refere a um não brasileiro, um turista estrangeiro.

161

A esfera de contactos travestis situa-se maioritariamente no campo da prostituição, é aí que encontram e conhecem as manas, os maridos, quem lhes fornece os meios para a transformação, etc. É claramente marcante nas suas vidas a actividade a que se dedicam. Se para a maioria das pessoas a actividade profissional é apenas uma área da sua actuação, para as travestis ela supera largamente a mera actividade profissional e hipotéticas afinidades emergentes apenas desse âmbito. 149

Os meus depósito eu fazia assim, eu mandava para a minha conta…mas como eu tinha meu “marido” no Brasil, eu tinha conta conjunta com ele…então aí que aconteceu? Eu peguei…liguei para ele…minto! Uma coisa dizia para mim ligar para o banco…ligar, ligar…não saía da minha cabeça, então liguei e a gerente do banco disse para mim que o meu namorado ia lá no banco toda a semana tirar R$2000 e que o meu dinheiro estava acabando…e que do dinheiro que eu tinha mandado para lá só tinha R$500 na minha conta, como se fosse 150/200€.

No mesmo sentido, Júlia Vellaskez refere que “é ela que ajuda a ele, a grande maioria é assim, a grande maioria!”. Corroborando o constatado por Kulick (em Salvador), de que os bofes ocupam um papel central nas suas conversas (1998:97) e que o que procuram efectivamente nas relações estabelecidas com travestis é serem sustentados (1998:101), até porque a realidade dos factos demonstra que a maioria não trabalha. (1998:105) Não obstante, existe uma atenção redobrada face ao hipotético interesse de outras manas neles. Os maridos são, portanto, objecto de competição dentro do grupo, tal como, noutra escala são os clientes e o dinheiro ou os espaços ocupados na rua. Várias vezes as travestis me confidenciaram que não tinham verdadeiros amigos e que desconfiavam de todas as outras travestis (Kulick,1998:42), (…) portanto o marido será sempre objecto de muita atenção por parte de outras travestis, que podem tentar “ganhá-lo” através de presentes e dinheiro. (1998:106)

Com efeito e apesar da prostituição (a qual envolve relações com vários parceiros sexuais), as travestis partilham com a ideologia dominante e no âmbito das relações afectivas que mantém com homens/maridos, o paradigma da relação monogâmica, embora na verdade, a profissão que exercem, automaticamente a inviabilize. Adriana, apesar de muitas vezes disponibilizar a sua casa à travesti Karime - ou de a certa altura ter usado a casa dela em Lisboa (Benfica) - confidencia-nos não confiar nela. Karime foi a travesti com quem o seu marido a traíu no Brasil, quando Adriana já se encontrava em Portugal. Foi com ela que ele gastou todo o dinheiro que Adriana enviava. “Se for traída que seja com uma mulher!” afirma Adriana. Todavia, o dinheiro não possibilita apenas a estruturação noutros moldes de relações emocionais com homens, alarga-se a outras esferas das suas sociabilidades.

150

6.8.2. Prostituição e afectos restruturados Para além de assegurar a subsistência de travestis em trânsito, quer no Brasil, quer na Europa, a prostituição converte-se igualmente numa fonte de rendimento que sustenta afectos representados e construídos a partir da heteronormatividade estrutural. Não sendo um exclusivo da relação com os maridos, a mesma fonte de rendimento parece também desempenhar (como veremos) um papel importante no reatamento das relações familiares na origem e à distância. Fui passar umas férias (…). Fui para a minha cidade, Belém e aí é que veio a mudança…a mudança da minha família, não é? Porque viram que eu estava super-bem, me trataram divinamente bem, antes eu só sabia deles porque ligava…eles nunca ligavam para mim…nunca pegaram um telefone para saber se eu estou bem ou não. Então…eu cheguei lá…eu estava com um bom dinheiro, estava como eu queria estar, ajudei minha mãe…comprei muitas coisas para casa da minha mãe…todos me aceitavam muito bem porque eu tinha a minha vida independente e aí eu fiquei lá, comprei alguns bens em termos de imóveis, porque eu investi dinheiro nisso e passei um tempo lá e voltei para cá. (Adriana)

Em argumento de certo modo antagónico face ao exposto anteriormente, Duque refere que algumas das jovens travestis cuja opção havia sido recentemente detectada pela família, permaneceram em casa passando inclusivamente a contribuir para as despesas domésticas com os dividendos da prostituição ou então viram a sua opção por “fazer” o corpo, apoiada por algum familiar com papel de liderança (2008:2). Na primeira situação em que se refere a permanência em casa da travesti e trabalhadora do sexo, é a proximidade familiar - física também - que contrasta com a mobilidade transnacional das travestis integradas no mercado de prostituição internacional e também com as migrações realizadas dentro do território brasileiro, observadas pela maioria dos autores. (Benedetti, 2005, Kulick, 1998, Loise, 2007, Pelúcio, 2005, 2006, 2007, etc.) Talvez como resultado da alteração de alguns dos enquadramentos legais e da atenção

institucional

ao

mais

alto

nível,

crescentemente

direccionada

à

travestidade/transexualidade a partir dos primeiros anos do séc. XXI no Brasil, Duque (2008:2) considera que existem novos sinais nos elementos mais jovens da comunidade Alegre (1998, 2005), por Pelúcio em São Carlos/Rio de Janeiro (2005 e 2006), por Kulick em Salvador (1998), Loise na Suíça (2007) ou Silva no bairro da Lapa (1993). Segundo estes a discriminação e violência no interior da família para com as jovens era recorrente,

151

impossibilitando qualquer tipo de relacionamento familiar (Pelúcio, 2007, Benedetti, 2005, Peres, 2006). Contrastando claramente com o posicionamento de Duque, Adriana relata-nos o que um dos seus irmãos afirmava publicamente que “o pior drama de um caçador é ter um viado162 em casa e não o poder matar!” ou Felina que quando se referia a um dos seus irmãos utilizava a expressão “é um porco. É policial e evangélico!”. Em sentido contrário, Duque argumenta que muitas travestis adolescentes não têm sido expulsas de casa ao contrário do que sucedia com a geração mais velha (2008). Tal não é, como temos vindo a afirmar, o cenário levantado na nossa pesquisa. Nela a maioria das travestis que entrevistámos relataram-nos episódios de grande conflito familiar, os quais culminaram na saída precoce e dolorosa de casa. Contra-argumentamos ainda no sentido de que caso o verificado por Duque ocorresse com a maioria das travestis, esse facto alteraria cenários associados a vivências na marginalidade e respectivos papéis sociais que dela emergem: a mãe, a madrinha ou a cafetina. Manter-se na casa da família não revelaria apenas uma mudança de mentalidades, alteraria as circunstâncias e contextos em que as travestis se produzem identitariamente enquanto tais e como trabalhadoras do sexo. Quanto ao apoio financeiro à família como forma de reatar ou manter os laços familiares, os dados de Duque apresentam alguma convergência com o que foi por nós e por outros observado (Cf. Kulick, 1998, Loise, 2007, Pelúcio, 2005), ainda que ressalvando um elemento claramente distintivo: a inclusão dos ganhos da prostituição no rendimento familiar realiza-se ainda no âmbito local brasileiro (2008:2), tendencialmente menos rentável e sem as relações se processarem à distância. Segundo os dados de que dispomos a mobilidade é desde logo uma condição para maximizar a actividade da prostituição, sendo que se assume como um traço identitário das travestis brasileiras em contexto de prostituição.163 Larissa afirmava que a prostituição no Brasil se destina basicamente a permitir a sobrevivência; comer e pagar despesas, “mas se você quer ter uma coisinha mais, juntar um pouquinho de dinheiro a

162

Viado significa gay.

163

Como temos vindo a verificar também, muitas das travestis são oriundas de meios rurais, pelo que a prostituição desde logo exige mobilidade para os grandes centros urbanos onde ela é exercida e com expectativas de ser melhor remunerada. 152

gente têm que ir pra fora.” Júlia Vellaskez em perspectiva convergente explica porque, motivo a mobilidade no Brasil se revela insuficiente para obterem sucesso na actividade que desempenham: Exactamente, só que é assim, eu via conhecidas minhas, que tinham conseguido algo daqui da Europa, não somente daqui de Portugal, como Portugal, Espanha, Itália, entende? Aí no caso, eu passei a perceber que não tem como se conseguir, da mesma forma, as mesmas coisas e no mesmo tempo lá, do que aqui, não tem como!

Ainda hoje, em 2015, continuam a chegar novas travestis (na casa dos 20 anos) a Portugal e à Europa, apesar da crise económica e financeira instalada. Persistem em perspectivar nesta mobilidade e neste destino a realização dos seus sonhos de transformação, de autonomização económica e, segundo os seus relatos, de fuga à extrema insegurança a que se consideram expostas no âmbito brasileiro. E mesmo já na Europa, ainda assim, a mobilidade constitui-se e mantem-se como estratégia apetecível e accionada. “Eu fui para Inglaterra, morei lá 4 anos. Rodei também por Itália, Alemanha, Suíça e Bélgica. Eu nunca tive problema de viajar pela Europa! Só por último, quando saí já era a sexta vez de Inglaterra, aí a última vez n deixaram eu entrar sem documento europeu.” (Vanessa Nobre) Sob uma outra dimensão, no contexto dos relacionamentos familiares há que distinguir o pai e os irmãos, da mãe e irmãs. Os problemas surgem geralmente associados aos familiares masculinos:164 “Porque o filho envergonha a família, meu pai era mineiro, e tinha uma educação bem diferente de carioca, paulista e assim por diante.” (Felina) ou nas palavras de Júlia Vellaskez: Foi uma explosão, um choque completo, dentro de casa (…) meu pai disse que eu estava desafiando ele, que eu estava fazendo aquilo só para desafia-lo, só para ir contra ele que ele não admitia isso dentro de casa, que eu tinha que mudar de imediato. Ele falou, ou você muda, ou você não fica aqui!

Neste enquadramento emocional tenso as nossas entrevistadas referem-se às mães e irmãs quando falam em afectos, raramente o fazem relativamente ao pai ou irmãos. “Aguentei por causa da minha mãe! Aquela mulher para mim é tudo! Me deu a educação que eu tenho hoje, nós passámos muita necessidade, muita mesmo…entendeu?” (Felina). 164

Saleiro constatou igualmente que o foco de tensão das transexuais por ela estudadas em Portugal se estabelece essencialmente com os familiares masculinos. (2009) 153

“Já tenho sim (casa) mas não é minha, é da minha mãe. Ela se matava trabalhando das 6 da manhã às 6 da tarde pra trazer para casa R$ 400, tenho que ajudar eles. Mando sempre uns 300 € para eles lá e minha irmã é doente, não pode trabalhar.” (Armanda Parllatori). Já relativamente aos irmãos, quando os referem, fazem-no evocando situações envolvendo problemas e conflitos, denotando ressentimento emocional. Armanda Parllatori refere algumas desavenças familiares: “Já tive alguns probleminha, querendo ficar com o que era meu, mas amo minha mãe e minha irmã!” Tamara fê-lo relativamente a disputas de herança, Adriana relativamente à não-aceitação da sua condição de travesti - embora um sobrinho seu, filho de um dos irmãos que a discriminava, tenha vindo para Portugal com o seu apoio mais tarde ou ainda Felina, que nos relatou ter sido muitas vezes espancada com fios de telefone e em plena rua por irmãos mais velhos. O relacionamento com os elementos masculinos da família revela-se assim o mais problemático. Já relativamente à mãe, os relatos de Larissa, Felina, Tamara, Thalter, Júlia Vellaskez (e outras), insistentemente, sublinham a necessidade de viajarem rumo ao Brasil para estarem com elas. Thalter (em Julho de 2013) utilizava o facebook para documentar passo a passo, através de fotos e comentários, as férias passadas junto à mãe e família em Belém do Pará. “Minha mãe nem tanto, sabe que mãe, sempre ela…ela tem uma coisa maior com o filho. Eu sempre tive muito cuidado com a minha mãe.” (Júlia Vellaskez) Finalmente e relativamente ao argumento de Duque (2008) de que as travestis são cada vez menos discriminadas no seio da família, Wink, ao realizar um conjunto de entrevistas a indivíduos na cidade de Porto Alegre (os quais aguardam ou já realizaram cirurgia de mudança de sexo no âmbito do Serviço Único de Saúde brasileiro) conclui que apenas 50% das não operadas e 25% das transgéneros operadas afirmaram poder contar com a família. Esta discriminação desde logo na família resulta do carácter construído e coercivo da heteronormatividade, assente no patriarcado, no parentesco e nas relações que desse âmbito extravasam. (2006) Neste enquadramento, a segurança revela-se uma necessidade valorizada pela comunidade; nomeadamente a vivência mais segura em Portugal por comparação com o Brasil. Benedetti, por exemplo, relata o medo que as travestis tinham de ser levadas para o presídio central onde muitas vezes eram violadas e agredidas por guardas e reclusos. Tais acontecimentos de violência extrema culminavam em actos desesperados de 154

automutilação,165 procurando através desse dramático expediente serem transportadas para um hospital e serem desse modo retiradas do presídio (2005:64-65) ou, numa fase prévia, para evitarem uma detenção policial. (Andrade e Maio, 1985) No que respeita aos assassinatos motivados por discriminação homofóbica, segundo o Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil, conclui-se que 94.52% destes assassinatos foram cometidos sobre indivíduos com sexo biológico masculino, enquanto, que 5.48% possuíam sexo feminino. No que concerne à identidade de género, o mesmo relatório demonstra que, em 2011, 49% das vítimas eram travestis, 46% homossexuais e 3.2% lésbicas. Relativamente ao ano de 2012, surge a sub categoria transexual com 0.33%, travestis 40%, homossexuais 54.19% e lésbicas 5.48%. Sendo a população travesti bastante inferior em termos numéricos quando comparada com a homossexual pode-se aferir a elevada incidência de assassinatos cometidos sobre esta comunidade. (2012:45)166 É portanto num contexto de discriminação generalizada que as travestis se movem e produzem identitariamente; contudo alguns esforços tem vindo a ser realizados desde inícios do séc. XXI pelo estado brasileiro no sentido de alterar essa tendência, que apesar de tudo se tem revelado, insistentemente, dominante.

6.9. Discriminação, violência e o projecto migratório A violência e a insegurança sentidas por determinadas minorias sexuais desempenham um papel preponderante como móbiles que accionam os projectos migratórios para o exterior do território brasileiro. Estes decorrem da percepção de uma situação de fragilidade no exercício da sua cidadania que mereceu – de tão evidente que era – alguma atenção por parte das autoridades brasileiras, já após as travestis iniciarem as suas migrações para a Europa.

165

Auto-mutilação como estratégia de defesa em contextos adversos. (Benedetti, 2005, Kulick, 1998, Denizart, 1998) 166

O observatório do Estado de São Paulo conclui que uma travesti tem mais 259 vezes mais probabilidades de ser assassinada na rua do que homossexuais e lésbicas. (http://www.observatoriodeseguranca.org/dados/debate/viol%C3%AAncia/homofobia, acedido em 29 de Março de 2015, O relatório sobre Violência Homofóbica encontra-se disponível em http://www.sdh.gov.br/assuntos/lgbt/pdf/relatorio-violencia-homofobica-ano-2012, acedido em 29 de março de 2012) 155

Desde 2001 (cerca de 30 anos após as primeiras travestis emigrarem para Paris e correspondendo ao momento em que as travestis brasileiras se inserem nos panoramas migratórios globais) que o Governo Federal Brasileiro desenvolve políticas antidiscriminação visando as travestis. Essas políticas consubstanciam-se, por exemplo, em acções de informação relativamente ao HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis (DST Cf. Pelúcio, 2006ª, 2007, Terto, Jr. 2003). Nas ruas podiam já nessa altura ser avistados cartazes com os seguintes dizeres: “Travesti e Respeito. Já é hora dos dois serem vistos juntos. Em casa. Na boate. Na escola. No trabalho. Na vida.” (Sierra, 2006:1). Para fazer face aos sinais de alarmante discriminação em função das opções sexuais e construções de género, foi fundado (em 2001) o Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD) e dois anos depois reconhece-se a comunidade LGBT como facilmente exposta à discriminação e à exclusão. Nesse momento propõem-se aos diversos órgãos do Governo Federal medidas que incluíssem esta população nas políticas públicas de assistência social, das quais se encontrava excluída. Sequencialmente e em função dos contributos do CNCD, o Governo Federal promove o programa Brasil sem Homofobia, Programa de Combate à violência e à Discriminação Contra GLTB e Promoção da Cidadania Homossexual (Brasil, 2004). Nesta acção, o estado brasileiro comprometia-se publicamente com o objectivo de criar políticas de inclusão focadas nessas várias comunidades, adentro da própria comunidade LGBT. Neste processo, procurou-se formar equipas de trabalho que incluíssem os próprios membros das comunidades e elegeu-se como objectivo dessa dinâmica que a temática da transexualidade, enquanto fruto da decisão do indivíduo, viesse a perder a classificação de patologia por parte do Ministério da Saúde brasileiro (Graner, Stefanie e Lionço, 2006:1-2), a qual se constituía como paradigma vigente à data no SUS – Serviço Único de Saúde. Em 2004, o Ministério da Saúde através da Portaria Nº 880/GM de 13 de Maio dispõe sobre a criação do Comité Técnico (CT) para a formulação da proposta da Política Nacional de Saúde da População LGTB. A Portaria N° 1187 de 15 de Junho de 2004 designou os membros representantes de órgãos governamentais do CT (Comité Técnico), posteriormente revogada pela Portaria N° 2227, de 14 de Outubro de 2004, a qual redefiniu a composição dos membros do CT com o intuito de incluir os representantes dos segmentos LGTB, na composição dessa comissão técnica. (Graner, Stefanie e Lionço 2006:2). Ao longo de 2004 e 2005 vive-se um impasse, tendo a iniciativa sido retomada 156

apenas em 2006. Em Fevereiro de 2006 foi realizada, mediante iniciativa do CT LGTB, com base numa estreita articulação entre o Colectivo Nacional de Transexuais e a secretaria executiva do CT LGTB, uma reunião sobre o processo de transexualização no SUS (Sistema Único de Saúde), envolvendo técnicos das várias áreas da saúde: investigadores, académicos, profissionais (que interagiam na rede pública com transexuais) e representantes da sociedade civil. A proposta desta acção era a de ampliar a atenção direccionada ao tema da transexualidade, para além da inclusão do procedimento cirúrgico correspondente na tabela do SUS (Graner, Stefanie e Lionço, 2006:3). Como consequência de todas estas movimentações sociais, em Agosto de 2007, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região de Porto Alegre, determinou que o SUS realizasse cirurgias de mudança de sexo, estatuindo um prazo de 30 dias para que o mesmo incluísse na sua lista de actos médicos, a referida cirurgia. Essa decisão judicial estendia-se a todo o território brasileiro e em caso de incumprimento, previa uma multa diária a pagar pelo SUS, de R$ 10000 reais (Cardoso, 2008). Um pouco antes, em Agosto de 2006, mas em dinâmica indissociável de todo este processo social mais vasto, uma outra lei viria a ter extrema relevância social para as mulheres e transgéneros/transexuais/minorias sexuais. A Lei 11.340, popularmente conhecida por lei Maria da Penha, a qual pretendia prevenir e punir as agressões a mulheres. Contudo, com uma cambiante de extrema relevância para as travestis; o argumento de alguns juízes, segundo o qual se incluiriam na aplicação desta lei os actos de violência dirigidos às minorias de género e sexualidade (Silva, 2011)167. Esse argumento foi também alvo de apropriação estratégica pelas travestis que viram nele e na lei a que se referia uma vitória política perante uma sociedade, tradicionalmente hostil e 167

A lei nº. 11.340/06, também conhecida como Lei Maria da Penha, resulta de tratados internacionais ratificados pelo Brasil, com o intuito de não apenas proteger a mulher, vítima de violência doméstica e familiar, mas também de punir os agressores. Algumas interpretações foram no sentido de demonstrar que a Lei Maria da Penha desejava prevenir, punir e erradicar, a violência doméstica e familiar contra a mulher, não por razão do sexo, mas em virtude do gênero. Neste sentido, o que de facto esta Lei busca, mais do que proteger o sexo biológico “mulher”, é proteger todos aqueles que agem e se concebem como mulheres: travestis e transexuais. Nesse sentido, Silva realiza em 2011 uma monografia de bacharelato, intitulada “A Aplicabilidade da Lei Maria da Penha: Um olhar na vertente do gênero feminino”. Segundo o autor, a base literária desta pesquisa assenta no argumento da Desembargadora Maria Berenice Dias, que afirma estarem sob abrigo da Lei as lésbicas, travestis, transexuais e transgêneros. “Diante do exposto, evidenciam-se os princípios da igualdade sem distinção de sexo e orientação sexual, da dignidade da pessoa humana e da Liberdade sexual como elos entre as visões doutrinárias e as legislativas. Sendo assim, o estudo conclui que a Lei Maria da Penha deve ser aplicada às lésbicas, aos travestis e aos transexuais, uma vez que privá-los de uma proteção, configuraria uma forma terrível de preconceito e discriminação, algo que a Lei Maria da Penha busca exatamente combater.” (disponível em http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8892) 157

discriminatória. Nas eleições presidenciais de 2014 parece ter sido, a avaliar pelas inúmeras referências a ela realizadas por travestis em fóruns no facebook, factor determinante para que muitas delas, principalmente as residentes no Brasil, votassem PT (Dilma). Curiosamente, neste processo dialéctico, verificamos como minoria e maioria interagem, conferindo uma interpretação extensiva à lei Maria da Penha, cruzando debates de género, sexualidade e violência, de uma forma que se tornou vantajosa para travestis e outros LGBT, inicialmente excluídos do espírito dessa lei. De forma sintética, estas medidas e dinâmicas sociais/institucionais revelam alguma sensibilidade demonstrada pelo Governo Federal do Brasil a partir essencialmente de inícios do século XXI e, por outro lado, sublinham a forma como se pretendia aplicar essas medidas, ou seja, com a participação de elementos das próprias comunidades visadas. Paralelamente, tais dinâmicas realçam as ténues linhas que separam na actualidade o local do regional, ambos do nacional e este do transnacional. Na mesma altura, travestis brasileiras estabeleciam-se em Portugal e noutros países da Europa com o estatuto maioritário de indocumentadas, numa fase em que alguns países europeus admitiam legalmente o casamento civil homossexual e começavam a prestar uma outra atenção legislativa e médica a esse grupo específico de pessoas. Em Novembro passado168activistas LGBT, entre os quais portugueses, reuniram em Estrasburgo com o Comissário para os Direitos Humanos do Conselho da Europa para debater as discriminações e os direitos das pessoas transexuais na Europa, onde foi reiterada a necessidade de em todos os países existirem leis especificamente relacionadas com a identidade de género. (Saleiro, 2009a)

168

2008 158

Capítulo 7 - DIÁLOGOS TRANSNACIONAIS E REDES SOCIAIS 7.1. “Vida de trans... é sempre assim...estilo cigana aff!” (Thalter). A caminho da Europa (por Portugal) Para colocar em prática um projecto migratório são necessários recursos - da mesma forma que o são para realizar migrações de género ou sexo - recursos, esses, somente disponíveis em certos grupos sociais ou geridos nas relações entre indivíduos integrados em determinadas redes sociais. No caso das travestis que seguimos, maioritariamente originárias de famílias humildes, duas variáveis alteram o panorama. Primeiramente, os dividendos financeiros auferidos através da prostituição e em segundo lugar, a forma específica como as redes construídas e mantidas com outras travestis lhes permitem realizar projectos migratórios orientados pelos circuitos da prostituição mundial, que paralelamente lhes ofereçam maior viabilidade de sucesso. O sucesso ambicionado determina que essas mobilidades elejam maioritariamente a Europa como destino – entrando preferencialmente por Portugal – por oposição à maior dificuldade em entrar nos E.U.A. (Pelúcio, 2006). Paralelamente, em Portugal a etnicidade brasileira é perfeitamente reconhecida e não se diluí noutras formas de representação que destituem os indivíduos da sua verdadeira identidade. É o caso dos brasileiros trabalhados por Ribeiro em São Francisco, representados como hispânicos. (1998, 1998ª, 1998b) Estes fluxos ocorrem desde logo como fuga à insegurança vivenciada no Brasil e à precariedade das condições de vida nele experimentadas, sendo também motivados pelo desejo de ascensão social quer no Brasil, quer dentro do próprio grupo, através de um processo que faz conotar a Europa não só com segurança, mas também com a possibilidade de maiores rendimentos a usufruir da prostituição. Numa outra perspectiva, os fluxos das travestis para a Europa e para Portugal enquadram-se num fenómeno igualmente recente; a prostituição transnacional a qual, no contexto português (a dada altura) era facilmente conotada com a nacionalidade brasileira mediante essencialização representacional ou imagética.169 (Machado, 1999, 2003, in Malheiros, 2007)

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Relativamente à prostituição feminina e baseados no trabalho de Alexandra Oliveira, psicóloga da Universidade do Porto, podemos afirmar que existe uma diferença de fundo, enquanto as travestis têm efectivamente percursos de vida marcados por muitos pontos em comum, a prostituição feminina é exercida por indivíduos com biografias diferenciadas. (2013:23) 159

Estes processos de mediação representacional foram a dada altura desempenhados pela imprensa, brasileira e portuguesa, accionando estereótipos assentes em variáveis como a etnicidade, género, cor, classe social ou mercado de trabalho.

7.1.2. Portugal e Brasil: manejos de uma proximidade distante Sejam quais forem os motivos pelos quais se define um projecto migratório, em qualquer empreendimento deste tipo existem expectativas e essas expectativas decorrem de representações construídas relativamente aos destinos eleitos e da forma como tais representações são geridas e trocadas. Historicamente, vários tem sido os veículos para a disseminação dessas representações, assim como os objectos dessas representações. No que diz respeito às representações brasileiras sobre Portugal, constatamos a percepção difundida a partir de imagens essencializadas produzidas sobretudo a partir da imprensa brasileira, com influências vincadas sobre o contingente de migrantes que constituíram uma primeira fase desse fluxo: “…ao nível das representações produzidas na origem, o mais importante é “ir para a Europa” por oposição a “ir para os EUA” (…) considerado mais inacessível.” (Rodrigues in Trovão, 2010:96) e onde muitas vezes os brasileiros são destituídos da sua etnicidade própria e percepcionados como hispânicos. (Ribeiro, 1998) Efectivamente, com a adesão de Portugal à então E.E.C., actual E.U., a própria imagem de Portugal passa a ser construída com referência a modernidade, segurança e Europa. Paralelamente, a estabilidade política liberal reforçava a representação da positividade portuguesa face à instabilidade vivida no Brasil na última década do séc. XX (Pinho in Malheiros, 2007:67-68). No plano macro económico, Portugal aparece também associado à estabilidade de indicadores económicos (inflação quase nula e a boas condições de investimento, a que se opõe uma inflação brasileira galopante com as políticas de José Sarney e Fernando Collor de Mello). Tal cenário de grande incerteza é apontado por autores como Willy como o grande móbile para que brasileiros equacionassem a emigração para Portugal, numa primeira fase. (2008:28)170

170

Pinho considera que relativamente à primeira vaga de imigração mais qualificada, a imprensa parece ter desempenhado um papel mais relevante ao conotar Portugal com modernidade, segurança económica e adesão à E.E.C. . (in Malheiros, 2007) 160

Profundamente conotado pelos brasileiros com a representação de “Europa”, a que não é exógeno o momento vivido no Brasil, Portugal vê-se integrado nos roteiros de fluxos globais a partir de meados dos anos 90. Com o acordo de Schengen (incorporado no quadro da E. U. em 1997 pelo tratado de Amsterdão) assiste-se genericamente a um incremento do número de imigrantes menos qualificados e à diversificação das suas nacionalidades. Os modos de incorporação em mercados primários bem remunerados (por exemplo o caso dos dentistas brasileiros) e mercados secundários mal remunerados - construção civil geralmente sem contrato de trabalho - estratificaram laboralmente os grupos migrantes, correspondendo a uma segunda vaga de migração brasileira, em que o panorama geral coloca europeus e brasileiros nos mercados primários, ao mesmo tempo que PALOPS, europeus do leste e também brasileiros são absorvidos pelos mercados de trabalho secundários. No caso da segunda vaga de imigração brasileira para Portugal, a imprensa perde o papel preponderante que assumira na primeira vaga, passando a exercer papel de relevo os contactos pessoais entre brasileiros, através dos quais os que já residem em Portugal vão chamando conterrâneos. No caso das mulheres assumindo maior importância as suas redes familiares e no dos homens, as redes sociais de amigos ou conhecidos. (Piscitelli, 2007) Com o Tratado de Schengen, Portugal passa a ser encarado pelos brasileiros não só como um destino onde a entrada é facilitada, mas também como um contexto migratório que facilita a circulação e trânsito para outros países europeus com uma diminuição significativa dos riscos inerentes ao transpor fronteiras sem documentos. Esta positividade com que se encaram estas novas possibilidades de mobilidade é extensível a alguns países aderentes ao espaço Schengen, os quais contudo não eram membros da E.U.. Deste caso temos notícia da Suíça através do trabalho de Loise. (2006). No sentido contrário, dispomos de dados fornecidos pela travesti Vanessa N. referentes a países não aderentes ao acordo Schengen, é o caso de Inglaterra (Reino Unido) onde afirma ter entrado inúmeras vezes sem a documentação necessária. Assim, a um ampliar de possibilidades migratórias corresponde um maior dinamismo no funcionamento da rede social travesti, que se densifica ao atingir outras geografias.

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7.1.3. Redes sociais travestis As redes sociais podem ser definidas como o conjunto de relações interpessoais concretas que vinculam indivíduos a outros indivíduos (Barnes, 1987), sendo caracterizadas por um maior ou menor grau de dinamismo (Vertovec, 2009) e pela gestão que operam dos recursos negociadamente mobilizados nas relações estabelecidas entre os seus membros (Coleman, 1990). Não obstante, as relações sociais assumem-se também como relações de poder assimétricas, onde se jogam papéis, estatutos e capitais sociais, pelo que este processo confere a uns maior acesso e capacidade de manipulação dos recursos disponíveis, do que a outros. Essa assimetria nas relações de poder implícitas à interacção social resulta também dos campos sociais onde os indivíduos se inserem; mais ou menos prestigiados, mais ou menos poderosos. Das diferenças entre campos e da actuação dos indivíduos no seu âmbito, resulta um poder diferencial potenciador de estratificação em resultado de um processo social que distribui e gere recursos, de forma também desigual. Neste sentido, numa rede social, são as teias e os contactos entre os seus membros que a desenvolvem. Este carácter dinâmico expressa-se na forma como as redes sociais são renovadas e alteradas pelos seus membros em virtude de processos imanentes ao seu funcionamento ou de factores externos à rede e também devido a necessidades estratégicas orientadas em função de (novos) contextos detectados como potencialmente positivos para os seus membros. Opera-se por essa via a restruturação dinâmica da própria rede e da gama de recursos disponibilizados nas interacções sociais mantidas dentro do seu escopo. Quanto maior a rede, maiores probabilidades os indivíduos têm de aceder a um role variado de recursos por ela disponibilizados; contudo, o facto de os recursos não se encontrarem no indivíduo – ao contrário do que argumentava Bourdieu (2002) – não determina que esse acesso se realize em igualdade de circunstâncias. Com efeito, as relações sociais de infra e supra-ordenação determinam desde logo que haja quem na interacção tenha um acesso privilegiado a esses recursos, em função de algum tipo de poder ou dominância exercida sobre o outro com quem interage. Esse poder que torna a relação social desigual pode advir da conquista de capitais variados, os quais podem ser concomitantes: económicos, simbólicos, intelectuais, etc. Todavia, esses capitais alcançados pelos indivíduos apenas se actualizam e se tornam socialmente eficazes na interacção, ou seja em processo dialéctico envolvendo as relações entre indivíduos e os diversos elementos estruturantes e estruturados das mesmas. Se os capitais sociais 162

atingidos pelos indivíduos favorecem o acesso aos recursos, um acesso facilitado a esses mesmos recursos potenciará e facilitará o alcançar de capitais sociais e simbólicos. Os capitais apenas são valorados e atingem a sua plena eficácia na interacção. O tipo de valoração de que se tornam objecto torna-se também ele fruto de dinâmicas sociais, representacionais e hierarquizantes concretas que decorrem da adopção de práticas tidas como próprias e compatíveis com um determinado campo. Neste enquadramento, a rede social de travestis brasileiras – que nem no Brasil, nem na Europa apresenta uma organização vertical profissionalizada no sentido de não implicar na verdade uma especialização de funções ou uma cadeia de comando – assumese como necessária à execução dos projectos individuais no âmbito do funcionamento do grupo. Essa verticalidade socialmente hierarquizante – não profissional na forma como se relacionam os vários níveis de poder – implica desde logo relações de poder entre os seus membros, selectividade no acesso aos recursos e um sistema de coercibilidades que reforça esse poder e paralelamente é consequência do seu exercício. No entanto, essa rede social travesti que se densifica essencialmente em contextos citadinos resulta de imbricamentos prévios que canalizam os indivíduos para o âmbito das interacções mantidas na sua área de influência. Nomeadamente quando o já referido abandono da casa de família pelas travestis induz, devido a uma multiplicidade de factores, à procura do grupo. O quadro abaixo representa os níveis de intermediação da comunicação entre travestis. A base da pirâmide traduz redes sociais dispersas e pouco densas, na medida em que ao nível local171 a rede social travesti não tem implementação, motivo pelo qual desde cedo encaram a migração ainda no Brasil. Estas redes vão gradualmente convergindo para um estreitamento das relações entre indivíduos. Estas relações são ampliadas (essencialmente a partir de 2000) pelo uso da internet como forma de comunicação, planeamento e execução de estratégias por parte de um grupo geograficamente pluri-distribuído que mantem e providencia contactos regulares entre os seus membros. A densificação das redes sociais operada à distância encontra, portanto, no uso da internet a ferramenta e estratégia ideais para a gestão de recursos na esfera de

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Quando nos referimos a local no âmbito de um país com a dimensão do Brasil, pretendemos apontar contextos geográficos rurais. Não significa que não possam existir lá travestis, mas sim que nesses contextos não encontram os meios necessários para a sua realização enquanto tais e correspondendo às expectativas do grupo, que temos vindo a referir. 163

acção do grupo. É também através desta instrumento tecnológico que publicamente divulgam e fomentam imagéticas de bem-estar e sucesso, associadas à detenção de capitais sociais pelos indivíduos insistentemente comunicados on-line.172

Figura 4 - Níveis de intermediação da comunicação entre indivíduos

grupo internet contactos pessoais

indivíduo

O indivíduo fora da esfera do grupo travesti e no âmbito local é inicialmente orientado pela pertença a outros grupos, família, vizinhança ou escola. Como nos relatou Felina, na escola, “merendeiras, professoras, tudo sabia!” Ou Adriana: “no colégio eles sabiam tudo de mim, notavam, sabiam, mas tinha aquele problema…alguns aceitavam outros não!” A partir dos12/14 anos, encetam os primeiros passos rumo à construção de pertenças com um outro grupo, o dos homossexuais. “Eu descobri atracções por homem, a partir dos 7/8 anos de idade, mas me assumi a minha homossexualidade mesmo com uns 13 para 14 anos.” (Larissa). Ou Felina que refere ter percebido que gostava de homens 172

Fazendo referência ao estatuto de documentada, às cidades europeias pelas quais já transitaram, colocando nas redes socias virtuais imagens das mais recentes cirurgias, dos carros adquiridos no Brasil, das casas em que vivem, dos telemóveis topo de gama que usam, etc. 164

com 9 anos, mas que apenas o assumiu com cerca de 15/16. As suas relações processamse nesta fase maioritariamente através de contactos directos e pessoais, e são estes que fornecem inicialmente os referentes para uma construção identitária.173 Ao invés, a partir de determinado momento (no Brasil especialmente a partir do séc. XXI) o acesso à internet acelera processos de comunicação os quais, por sua vez, potenciam processos de identificação e desidentificação que tendem a culminar na inserção numa rede travesti. Em contextos migratórios (primeiramente nacionais e depois transcontinentais) esta rede viabiliza a construção de um centro grupal, ao qual se torna mais fácil aceder por parte de todos os seus membros ou candidatos. As dinâmicas interactivas são complementadas pelas diversas formas de comunicação disponíveis: contactos pessoais através das viagens, telefone, Skype, Messenger, etc. É…exactamente, internet, por e-mail, orkut e isso…a gente pode se comunicar, é mais fácil uma se comunicar com uma travesti, nem que você não se conheça, uma ou outra, você às vezes por um orkut, por um site, você manda um email pra uma, uma arruma…porque uma pode depender da outra. Por exemplo eu posso depender de você para me arrumar uma praça aqui, como eu posso arrumar onde eu estava. (Larissa)

A internet facilita e promove uma dinâmica processual que permite a manutenção e densificação das relações entre indivíduos com base em determinados tipos de afinidades, potenciando a emergência de uma dimensão comunitária por um lado e de rede social que gere recursos com vista à prossecução de fins determinados por outro: uma comunidade imaginada e dispersa. Concebendo as relações mantidas neste âmbito como um balanceamento entre interesses particulares e sua realização no seio do grupo fomenta-se o seu crescimento; não só porque a base de recrutamento de indivíduos na internet é maior, mas também porque o são as possibilidades de o indivíduo desenvolver por seu intermédio relações sociais que podem facilitar o acesso aos recursos disponibilizados. “Exactamente, é um circulo, quase que tudo conhecido.” (Júlia Vellaskez). Uma travesti sozinha numa casa ou num quarto, num qualquer país europeu, desde que possua um computador e uma ligação à internet, pode estar perfeitamente informada sobre a situação no Brasil ou sobre novas e mais vantajosas oportunidades noutro país da Europa; assim como, pode entrar em contacto com uma colega que a poderá receber e

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Como já referimos, a construção identitária começa por ser a homossexual. 165

obter rapidamente a informação relativa às condições exigidas para o efeito. Júlia Vellaskez afirma que quando chegou a Portugal, junto com uma mana, tinham tudo devidamente planeado. Exactamente, fomos as duas para Coimbra, ela só foi até lá. Dormimos… dormimos lá, que eu fui para casa de uma amiga minha, que eu já conhecia do Brasil. Bem…aí no caso, ficamos lá no apartamento dela e no outro dia a minha amiga foi embora, porque ela já tinha…é…é…é…para onde ir, que ela ia para Braga.

A internet assume-se portanto como um instrumento privilegiado de afirmação e desenvolvimento de um grupo com estas características, exponenciando o colapso de lógicas remeniscentes das sociedades tradicionais, com referentes relativos a outras temporalidades/espacialidades. Estas novas dinâmicas de interacção permitem que indivíduos outrora isolados experienciem e desenvolvam sentimentos de pertença ou acedam a referentes para a construção de um repertório identitário, noutros espaços e noutros tempos, mediante acesso facilitado à rede social onde operam e se integram. Tal como as cidades contemporâneas da industrialização atraíram comunidades que ocuparam espaços específicos em função de afinidades erótico-sexuais174, a internet como veículo de uma terceira industrialização assume-se não só como um novo espaço de sociabilidades potenciador da convergência de novas identidades diferenciadas, como também como um catalisador de novas temporalidades, pelas especificidades que imprime à relação entre comportamentos e categorias tempo/espaço, gerando a aceleração dos processos que operam nas dinâmicas sociais. Num certo sentido a internet atenua os efeitos da discriminação e viabiliza o acesso e a vivência da diferença. Estas novas dinâmicas tecno-mediadas permitem igualmente inovações nas estratégias do grupo, bem como a aceleração dos processos que as executam ou detectam. Larissa, relativamente a uma das vezes que entrou na Europa, refere que mantinha já contactos prévios com as pessoas que assumiram a tarefa de a fazer entrar no espaço

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Segundo Rubin, no séc. XIX, um homossexual proveniente de uma zona rural do Colorado, que emigrasse para São Francisco com o objectivo de viver num bairro gay, de ser incorporado num mercado de trabalho orientado por pertenças e orientações sexuais gay, onde experimentasse uma auto-consciência identitária vivida também ao nível comunitário, integrando-se igualmente numa rede de solidariedades e de reivindicações políticas colectivas, reflectia processos de emergência de formas de organização social, institucionalmente muito próximas de uma estrutura desenvolvida a partir de pertenças a um grupo étnico. Em França, próximo à praça Pigalle existiam em finais do séc. XIX cafés frequentados por uma população maioritariamente lésbica, de resto em processo convergente com o que ocorria noutras grandes cidades europeias e dos Estados Unidos. (Rubin in Vance, 1984:156) 166

europeu. “Já tinha o contacto desde o Brasil, já tinha conhecimento de pessoas que tinham vindo para cá e me passaram o número dessa pessoa e eles falam português, entendem português.”

Figura 5 - Escalas de Redes Sociais

Geralmente, estes contactos interpessoais ou tecno-mediados entre travestis, viabilizam a troca de informações úteis para projectos migratórios intercontinentais ou transcontinentais (apoio à chegada, habitação, meios, etc.); tais projectos eram e são, geralmente precedidos pela viagem de uma travesti que executa a tarefa de reconhecimento do território, em moldes semelhantes ao que se observa no Brasil: É igual…é a mesma coisa que na Europa, é uma que vem primeiro, sonda o território, faz uma clientela, se for um lugar que é progressivo, que rende alguma coisa, uma chama a outra. (Larissa).

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No entanto, o ampliar de destinos que ultrapassam as fronteiras nacionais implicam que a rede social travesti se cruze com as redes locais. Larissa afirma que numa das vezes que entrou na Europa, através da Áustria, ficou dois dias em casa de uma pessoa que depois a levou de carro para a cidade de Viena. O seu contacto foi-lhe passado por conhecidos comuns. “Já tinha o contacto desde o Brasil.” A partir de 1990 ampliam-se os destinos e as possibilidades de comunicação à escala mundo, massifica-se o uso da internet, facilitam-se os contactos telefónicos ou o uso dos transportes (Vertovec, 2009, Cf. Giddens, 1984). E, consequentemente intensificam-se os fluxos de bens, comodidades, competências, capitais, informações, imagens e pessoas, no caso travesti não dissociáveis de contextos políticos regionais e transcontinentais. Nomeadamente a concretização do acordo Schengen que abriu as fronteiras entre alguns países europeus e concomitantemente, a relação privilegiada entre Portugal e Brasil. Paralelamente e sob uma perspectiva processual e dialógica reorientamse criticamente representações sobre os locais envolvidos no processo, de origem e acolhimento – landscapes, ethnoscapes. A rede social mantem-se num primeiro olhar a mesma, constituída essencialmente por travestis; alteram-se, todavia, os meios tecnológicos preferenciais através dos quais essa rede coloca os seus membros em contacto, bem como a rapidez com que o fazem e as influências e interdependências geradas a partir desses meios, também com outras redes sociais que perseguem finalidades circunstancialmente concordantes com as travesti. Ela chegou comigo e falou assim, o nome dela é Ludermika e eu disse-lhe assim, olha Ludermika, tu vais, você tem o meu número de telefone, qualquer problema que tu vê que não é nada daquilo que você imaginava ser, você me liga, eu mando-te o bilhete e tu volta, não vai ter problema nenhum, experimenta - disse-lhe eu - pode ser que não seja nada do que a “gente” está pensando, pode ser uma coisa boa. (Adriana)

Enfrentam-se incertezas. O modo? O mesmo de sempre, só que agora accionado em novas geografias. Alguém vai primeiro “e bate o território, se for progressivo, que rende alguma coisa, uma chama a outra.” (Larissa). Após ter entrado em Portugal, o rendimento auferido por Ludermika (em 3 meses de estadia) era suficiente à época175 para

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Década de 90. 168

realizar as cirurgias ao nariz e às “manas que ainda não tinha” e para comprar um apartamento no Brasil. Portugal apresentava-se, então, como um destino vantajoso. Então uma delas chegou comigo e disse que estava no Carnaval do Rio e que um rapaz tinha feito um convite para ir para Portugal trabalhar, só que naquele tempo, há oito anos atrás 176 a “gente” tinha assim a Europa, como um local onde eles prendiam as pessoas, obrigavam a “gente” a se prostituir. (Adriana)

7.1.4. Os empréstimos/ajudas Le parcours de Cynthia illustre bien ce processus migratoire (…) elle entreprit alors une première migration à S. Paulo (…) c`est alors qu`elle rencontra des personnes qui lui proposèrent l`aider à réaliser le voyager jusqu`en Europe. (Loise, 2006:40)

A emigração para a Europa exige mais recursos do que as migrações travesti intrafronteiriças e essa necessidade acrescida de meios é na maioria das vezes suprida pelos empréstimos. Estes empréstimos revestem-se de peculiaridades; a principal reside no facto de que frequentemente as travestis pagarão mais do dobro do que a quantia efectivamente recebida. A garantia do pagamento? O seu trabalho - a prostituição e o seu corpo. Mais uma vez, tal como inicialmente no Brasil e no contexto rua/cidade grande, a hierarquização no grupo e rede travesti é determinante para a concessão de empréstimos. Estes empréstimos, convertidos em recursos no âmbito das relações entre indivíduos, apenas podem ser realizados por aquelas que atingiram uma condição financeira que o permita, ou seja, as cafetinas no Brasil – como Adriana que emprestou o dinheiro a Ludermika – ou as européias que pagam as passagens aéreas e providenciam alojamento ou os gastos iniciais. Por tais empréstimos, a recém-emigrada terá de pagar um valor a acordar entre ambas ou com terceiros. (Cf. no mesmo sentido Pelúcio, 2005:227) Exactamente. Lógico, se bem que ela queria que devolvesse, mas eu falei que não tinha como devolver. Como eu ia-me locomover e ter todas as coisas que tinha que fazer aqui? Não teria como, aí no caso, esses 300€ foram exactamente para isso, para a locomoção, que no caso, como estava eu e uma amiga, nós dividimos tudo, entende? (Júlia Vellaskez)

Algumas travestis, sobretudo as que se encontram há mais tempo estabelecidas na Europa, podem conceder estas ajudas e neste expediente encontram um meio suplementar de rendimento ou, quando já entradas numa fase menos jovem das suas vidas, uma forma 176

Esta entrevista foi realizada em 2007. 169

de financiamento da sua estadia na Europa num período das suas vidas em que a prostituição tende a ser menos lucrativa. Júlia Vellaskez afiança que lhe pagaram a passagem “lá” no Brasil. Coincidentemente, foi Ludermika que a financiou, a mesma que tinha obtido apoio de Adriana. Júlia ficou a dever 8000€. “Com certeza, não tenho a mínima sombra de dúvida, 8000€, então 8000€ são quase R$20000 no Brasil, e com certeza a pessoa gastou R$2500, 3000 no máximo.” (Júlia Vellaskez, Cf. acerca das ajudas Kulick, 1998, Loise, 2006, Luis e Trovão in Trovão, 2010).177 Esta prática usurária é conhecida e pacificamente aceite no meio como uma ajuda.178 Algumas, como Armanda Parllatori, conseguem evitá-la e ainda garantir um fundo de maneio para a sobrevivência na Europa numa fase inicial. Em S. Paulo trabalhava das 18 às 6 da manhã seguido, sempre pensando na minha casinha, nas coisa, que queira ter e em ajudar minha mãe e minha irmã doente. Foi aí que comecei pensando de vir pra Europa, via as outra pagando 6000€ a cafetina para viajar e eu não queria isso para mim, por isso dava no duro, sempre trabalhando. Queria chegar ainda com 1000 euro à parte para os anúncio. (Armanda Parllatori)

Tamara revela-se também a este respeito uma excepção. O empréstimo inicial que permitiu a primeira viagem turística para a Europa foi-lhe concedido por uma prima travesti residente há vários anos no Porto (Soraya), sem qualquer juro associado. Ou seja, na verdade não se tratou de um empréstimo nos moldes em que ele é entendido pelas travestis brasileiras, visto que, neste caso, a rede social que se imbricou na travesti (ou vice-versa) foi a constituída com base no parentesco. O facto de muitas vezes serem as cafetinas no Brasil a realizar o empréstimo levanta uma outra questão referente à forma como a rede social travesti opera. Concretamente, no modo como as recém-chegadas, apesar de geograficamente distantes de quem lhes emprestou o dinheiro, se sentem na obrigação de o pagar nas condições acordadas. A eficácia das normatividades de grupo pressionam a travesti a adoptar determinado comportamento como forma de se manter ligada à rede e de não lhe ser 177

No contexto da cidade de Salvador, as travestis que concediam as ajudas, emprestavam 2000US$ e recebiam 8000US$ como pagamento. (Kulick, 1998:172) 178

Estes empréstimos são um claro exemplo de como as praxis diferem de campo social para campo social, levando a que as valorações de determinadas acções sejam distintas conforme o campo social onde são praticadas. Aquilo que à luz da estrutura poderá configurar-se como auxílio à emigração ilegal e um empréstimo usurário é no campo social travesti uma ajuda; ajuda essa que para além de o ser é ainda veículo de capitalização social dos indivíduos que a podem conceder. 170

impedido o acesso a recursos e capitais. A própria cafetina possui reputação e conhecimentos suficientes fora do Brasil, para fazer recair sobre a travesti um conjunto de sanções: por exemplo, a restrição do acesso à rede social consubstanciada em dificuldades em obter alojamento, informação ou contactos, tanto mais que tendencialmente quem recebe a travesti em Portugal é alguém com ligações a quem emprestou o dinheiro no Brasil.179 Seria expectável, dada a clandestinidade vivenciada no universo travesti, que estas ajudas fossem um instrumento especificamente usado por travestis. Verificamos todavia, que as redes travestis mantêm similaridades com outras redes a operar no contexto mais vasto de migrantes brasileiros. Os empréstimos ocorrem frequentemente com a prostituição feminina, mas também com a emigração não direccionada à indústria do sexo. Também nesses casos: O adiantamento de dinheiro a ser devolvido com juros análogos aos pagos num clube, a oferta de uma vaga em um apartamento (pelo qual se paga um valor superior ao que ela de fato teria) e/ou o apoio para se estabelecer em “pontos”, na rua, tudo isso é lido como “ajuda.” (Piscitelli, 2007:21)

Neste quadro, o termo ajuda para qualificar um empréstimo, representa a forma como as migrantes travestis o encaram180: (…) de plus, dans sa vision des choses, elle souhaitait le faire “para ajudar” (pour aider) une autre personne, pour lui faciliter les choses comme elle l`avait fait pour sa cousine Alexa, arrivée en Suisse à moindre frais qu`elle – meme.” (Loise, 2006:37)

As redes sociais (e as interacções que lhes são implícitas) não possibilitam apenas o acesso a esses empréstimos, mas também a troca de informação e o conhecimento por sua via das condições concretas de cada destino, estas revelam-se de grande relevância 179

Existem casos em que as travestis têm dificuldade em pagar ou, simplesmente, não querem pagar. Não obstante, a partir desse momento, várias estratégias são accionados no sentido de fazer com que elas paguem; telefonemas, recados através de manas, pressões ou as já referidas restrições no acesso à rede. Em último caso, poderá haver violência um dia que regressem ao Brasil; no entanto, até ao momento, não registámos casos em que as travestis persistissem na sua opção por não pagar; até porque, apesar de tudo, estes empréstimos são tidos como ajudas. 180

No caso de travestis (e de não travestis), estas ajudas convertem-se em dificuldades acrescidas no contexto de acolhimento: “o endividamento contraído com a viagem acentua a necessidade de se ganhar dinheiro, muito dinheiro, o que se consegue muito mais facilmente na prostituição.” (Peixoto et al., 2005:234).

171

para os intervenientes, ao possibilitar a detecção de quadros mais ou menos favoráveis para a realização de um empreendimento migratório de sucesso.

7.2. Portugal: leis migratórias e a legislação para minorias sexuais O salto para a Europa através de Portugal181 decorre em grande medida das relações específicas e historicamente demarcadas ente estados (Waldinger and Fitzgerald, 2004)182 e, nomeadamente, do contexto particular de abertura institucional ao nível de Estados – de origem e acolhimento – propiciado pelo Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil (Luís e Trovão in Trovão, 2010).183 A legislação decorrente deste tratado, relativa a brasileiros em Portugal é percepcionada como uma possibilidade migratória a ser aproveitada pelos que pretendem entrar no espaço Schengen. Do lado Português, a legislação decorre não só de alguma proximidade nas relações com o Brasil, mas também e paralelamente da sua inserção num contexto de políticas regionais europeias, no qual Portugal a dada altura passou a actuar. Denotando conhecimento deste quadro legal, Larissa quando questionada sobre o porquê de a dada altura ter preferido Portugal em detrimento de Itália onde já havia estado, afirma peremptoriamente: Eu não me interessa estar num país, correndo de polícia para cá e para lá ou sendo deportada! Se eu posso, se tenho um método de me regularizar e estar estabilizada num país, né? Então se pra

181

Adriana e Ludermika, tal como muitas outras travestis com quem contactámos, chegaram a Portugal neste período, o que coincide com a observação de Peixoto (2007:72) segundo a qual, em Portugal, os fluxos migratórios ligados à indústria do sexo, maioritariamente provenientes do Brasil, se iniciam na década de 90, 182

A argumentação dos autores assume que a postura analítica não deve ser realizada, nem através de oposições entre o agora e o então, nem através da procura de paralelos entre eles, mas sim através de uma atenção direccionada para as variações temporais das políticas que conformam o ambiente e as circunstâncias em que se processam as migrações, tanto à escala do contexto de origem, como à de destino. (Waldinger and Fitzgerald, 2004:1188-1189) 183

Assinado em Porto Seguro, a 22 de Abril de 2000 (ratificado pelo Decreto do Presidente da República Portuguesa nº 79/2000 de 14 de Dezembro) tem no plano nacional como consequência legislativa a Resolução da Assembleia da República (83/2000 de 28 de Setembro de 2000) que estatui (no seu Título II, nº1, Art.º 7) que “os titulares de passaportes comuns válidos de Portugal ou do Brasil que desejem entrar no território da outra Parte Contratante para fins culturais, empresariais, jornalísticos ou turísticos, por período de até 90 dias, são isentos de visto”.O nº2 do mesmo Art.º 7 prevê ainda a possibilidade de prorrogação desse período de estadia por um período de noventa dias. 172

mim fica mais fácil, porque é que eu vou tar num lugar? Tudo bem que eu lá ganhava mais, mas tinha esse medo de estar com polícia, de estar correndo de polícia…

Deste modo e em resultado da legislação subsequente ao Tratado de Porto Seguro, qualquer cidadão brasileiro pode entrar em Portugal com visto turístico válido por três meses, renovável por mais três, caso comprove meios de subsistência suficientes para o período de estadia previsto, nos termos da portaria 1563/2007 que regula a lei 23/2007 relativa aos meios de subsistência como requisito para a entrada, permanência ou trânsito em território nacional. Mais concretamente, tais cidadãos têm que possuir 75€ per capita para lhes ser permitida a entrada em território nacional e uma quantia de 40€ para cada dia de permanência provável em Portugal. Porém, e no caso de tal não se verificar, prevê-se ainda a possibilidade de um cidadão português se responsabilizar no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras pela sua pessoa, bastando para tal uma “carta de chamada” e, caso as autoridades o exijam, comprovar a existência de rendimentos e residência nos termos do nº1 e nº2 do art.12 da Lei 23/2007. Ora, e ainda que de forma menos técnica e rigorosa, é justamente o conhecimento de tais possibilidades legais184, constantemente difundidas nas redes de de travestis (bem como de outros imigrantes brasileiros), que as leva a privilegiar Portugal como um destino para ganhar muito dinheiro a curto prazo ou como porta de entrada para a Europa, mercado financeiramente ainda mais apetecível. (Luís e Trovão in Trovão, 2010) (…) aqui a “gente” chega e tem três meses legal, se tiver algum Português para se responsabilizar pela “gente” nós ganhamos mais três meses, então se a “gente” tiver aqui três meses nós levamos muito dinheiro para o Brasil. (Adriana)

Acresce no caso português, a possibilidade do estatuto de igualdade entre brasileiros e portugueses a partir de três anos de residência legal em território nacional, muito embora não seja uma estratégia concretizada pelas travestis porque a maioria está ilegal. Em alternativa, e em virtude de serem travestis e do seu nome no passaporte não

184

Este especial relacionamento entre os dois estados é ainda reforçado por um Estatuto de Igualdade de direitos e deveres, bem como de direitos políticos que pode ser requerido após residência legal em Portugal, regulado pelo Decreto-Lei n.º 154/2003, 15 de Julho. 173

coincidir com a imagem que apresentam perante as autoridades, mobilizam outras estratégias. De acordo com Tamara, se a sua viagem tinha como destino Portugal, fazia escala em Paris ou Madrid, como forma de fugir ao controlo fronteiriço. “O importante era viajar sempre em primeira classe, fosse comboio ou avião e nunca de ónibus!”. Sendo um caso especial, optou por nunca ultrapassar os 3 meses de estadia legal; todavia, entrou sempre em Portugal como travesti, o que só por si poderia levantar suspeitas às autoridades. Já Armanda Parllatori, que como referimos optou por não recorrer a ajudas, planeou o seu percurso migratório para Portugal com a detenção à chegada de um mínimo de 1000€185 necessários no caso de uma fiscalização mais rigorosa à chegada. Embora à data de chegada a Portugal das primeiras entrevistadas, o panorama legal e social (mesmo ao nível do controlo de fronteiras) se revelasse muito diferente (visto que a legislação especial para brasileiros é, na sua maioria, posterior a 2000), outras interlocutoras viram a sua trajectória migratória influenciada por tais enquadramentos. Se, como refere Namaste, a existência de um modo de vida travesti/transexual toma como referência uma estrutura normativa que de alguma forma as apaga na sua diferença (Namaste, 2000:53), verificamos que essa estrutura é a mesma que lhes fornece viabilidade agencial dentro dos seus próprios quadros normativos. Findos os prazos da estadia turística legal, a decisão passa muitas vezes por permanecer na clandestinidade. Também no que respeita às oportunidades de construir estratégias mais ou menos prolongadas na ilegalidade, o contexto português foi-nos descrito como comparativamente mais favorável. Portugal pode ter as suas proibições, como tem…pertence à Europa…quer dizer…eu não nasci aqui, eu não sou daqui, então eu tenho mesmo que estar legal aqui, mas Portugal em termos a isso…a legalização…de pegarem a “gente”, de deportarem como em Itália, Alemanha, Suíça…são mais rígidos com isso. (Adriana)

Episódios extraordinários que sublinham alguma permissividade das autoridades portuguesas relativamente a vivências na ilegalidade encontram exemplo máximo no caso de Adriana, residente em Portugal ilegalmente há cerca de 15/16 anos. Um acontecimento insólito parece corroborar essa menor rigidez na fiscalização. Referimo-nos a um episódio ocorrido em 2007, quando um seu cliente morre durante uma sessão de “convívio.”

185

Destinados ao pagamento de anúncios. Tal facto revela conhecimento da realidade que a esperava. 174

Chamados o INEM e a polícia, e após verificação que o óbito havia sido natural, foi pedido a Adriana um documento de identificação. Constatada a não validade do carimbo do visto de entrada turístico no passaporte e a não coincidência do nome nele constante (com o nome feminino dado por Adriana), a reacção esboçada pelas autoridades não ultrapassou um mero sorriso condescendente de um dos agentes. Tal não exclui, no entanto, a vulnerabilidade a que estão sujeitas todas as franjas migratórias em situação similar de indocumentação. (Xavier, 2007:137)186 Cumulativamente, várias travestis relataram como abriram contas bancárias em nome de cidadãos nacionais com capacidade jurídica para tal, arrendaram casas em nome de indivíduos a quem é conferido esse direito (portugueses ou brasileiros legalizados), procuraram e receberam cuidados de saúde em clínicas privadas, tudo isso em função dos rendimentos auferidos através da prostituição. 187 Paralelamente a algum fechamento da rede social travesti sobre si própria, operam no contexto português redes sociais paralelas que densificam a primeira. Este imbricamento de redes sociais a que as travestis recorrem e através das quais se inserem em cenários estruturais distintos confirmam o que foi constatado noutros estudos, embora não direccionados exclusivamente à questão da prostituição. Segundo eles: A actuação das redes de auxílio à imigração ilegal e angariação de brasileiros não ocorre isolada dos portugueses. Pelo contrário, estes são um elemento fundamental da actuação da rede em Portugal. (Peixoto et al., 2005:194)

Tal demonstra também que a diferentes estruturas correspondem por vezes novas oportunidades estratégicas as quais decorrem quer da cultura, quer da legislação ou ainda Denotando nalguns aspectos semelhanças com o caso dos refugiados : “les réfugiés sont maintenus en quarantaine à cause de l´incapacité politique à concevoir leur place dans la société tout entière (Agier, 2002:120)” ou “Il suffirait pour cela de laisser se développer le mouvement de bioségrégation déjà en cours, celui qui crée et fige dés identités souillées par les guerres, les violences, les exodes, mais aussi par la maladie, la misère, l´illégalité. (Agier, 2002:117) 186

187

Neste ponto, torna-se útil sublinhar que o Sistema Nacional de Saúde Português presta cuidados a imigrantes indocumentados em pé de igualdade com portugueses e migrantes legalizados. Não obstante, são geralmente os imigrantes indocumentados que evitam recorrer a ele, por recear outro tipo de consequências e por identificarem o sistema público de saúde com o Estado e suas instituições de fiscalização. Esta temática é regulada no domínio da saúde pela circular informativa nº12/ DQS/DMD, de 7 de Maio de 2009 que esclarece pontos fundamentais da prestação de cuidados de saúde a imigrantes indocumentados. Relativamente à transexualidade alguns progressos se realizaram a partir de 1995.

175

da língua falada no país de acolhimento, ou paralelamente, das interdependências regionais e transcontinentais que se co-produzem e geram por seu intermédio. “Agora voltei porque preciso dar entrada na minha dupla nacionalidade. Depois vou embora para Inglaterra.” (Vanessa Nobre) No que concerne à actual lei portuguesa sobre transexualidade, se é verdade que desbiologiza “ao tomar como independentes a identidade de género e as características físicas “encarnadas”, não “desmedicaliza” ao exigir como requisito para o seu reconhecimento legal e início do processo medicamente assistido de transexualização, o diagnóstico de “perturbação de identidade de género.” Tal consubstancia também uma situação em que o reconhecimento legal está dependente do reconhecimento médico prévio de que se trata de um caso de transexualidade.”188 (Saleiro, 2012:7, Cf. natureza produtora de identidades do poder; Foulcault, 1978, 2003). Reiteramos ainda o facto de a maioria das travestis por nós observadas representarem a transexualidade em moldes idênticos à categoria médica de transexual, isto é, sublinhando a cirurgia de reconstrução genital como o momento em que a transexualidade é atingida.

7.2.1. Portugal e as redes de auxílio à imigração ilegal “O problema é você entrar na comunidade europeia, depois que você está dentro fica bem mais fácil tudo!” (Larissa) À chegada ao contexto de acolhimento, a actuação conjugada entre portugueses e brasileiros, bem como as estratégias e relações no âmbito destas redes sociais alargadas e densificadas podem ser configuradas como redes de auxílio à emigração ilegal, muitas vezes também com a colaboração de agências de viagens no Brasil. Como refere Peixoto, “os imigrantes brasileiros viajam directamente do Brasil para Lisboa, de avião, ou via Paris, Madrid ou Amesterdão e depois de comboio ou autocarro para Portugal. Este percurso é aconselhado pelas agências de viagens, pelo facto de não existir um controlo de fronteira tão rigoroso.” (2005:188-189)

188

No contexto português verificamos que esta via não foi utilizada de forma considerável, visto que a manutenção do pénis é um dos traços identitários destas travestis. 176

O mesmo foi-nos confirmado por Larissa, embora num percurso alternativo, Budapeste-Viena-Roma-Milão (Luís e Trovão in Trovão, 2010). Na segunda vez que entrou na Europa:189 Vim por Budapeste, paguei a um rapaz para me poder passar pela Áustria, de lá da Áustria peguei um trem para Roma termini e da Roma termini peguei um táxi e fiquei num hotel.

A esse rapaz, Larissa pagou 500€ somente para atravessar a fronteira. Refere a existência de um esquema montado nesse sentido em muitas fronteiras europeias, descrevendo-nos igualmente o percurso de avião até chegar a Budapeste, “fiz Rio de Janeiro-São Paulo-Frankfurt-Budapeste.” Júlia Vellaskes, por seu turno, optou pelo voo São Paulo-Paris-Vigo. Chegada a Vigo, apanhou um táxi para o Porto e de lá um ônibus para Coimbra. Este tipo de auxílio operante na rede travesti processa-se de forma similar à de outros migrantes de nacionalidade brasileira; “para a angariação de mão-de-obra brasileira é suficiente que exista um contacto em Portugal que vai chamando conterrâneos.” (Peixoto, 2005:183), e, no que diz respeito à emigração especificamente direccionada à inserção no mercado do sexo: Envolve muitas vezes redes semelhantes às usadas por migrantes brasileiros que trabalham em outros sectores, (…) outras, contudo, estavam inseridas em redes femininas de vizinhas, amigas, conhecidas e parentes que já moravam na Espanha, o que também é recorrente para migrantes de outras nacionalidades, assim como para pessoas transexuais.” (Piscitelli, 2007:21)190

Constituem na sua maioria redes pouco estruturadas e de organização horizontal, bem diferentes no modus operandi das redes do Leste Europeu de organização vertical (a actuar em Portugal na década de 90 do séc. XX e em meados do ano 2000). Pelo que, segundo fontes policiais, não existe prostituição forçada de brasileiras em Portugal: “um menor grau de organização também pode ser acompanhado por um menor grau de coacção (Peixoto et al.,2005:230). Segundo Oliveira o termo mais adequado ao modo como no seio da prostituição feminina se induz alguém a emigrar, é o de persuasão e ainda assim essa influência é exercida por outras trabalhadoras do sexo e não homens 189

Na primeira vez foi trazida por um namorado italiano, advogado, que tinha passado férias no Brasil.

190

Este tipo de redes sociais caracterizam principalmente a segunda vaga de imigração brasileira para Portugal. 177

com o intuito de as explorar (2013:28). ” Num outro sentido, também Pelúcio exclui a prostituição travesti dos circuitos de tráfico de seres humanos, considerando que, (…) a prostituição travesti na, e para a, Europa não é alimentada por tráfico de seres humanos, mas pela opressão material e simbólica que circunscreve as travestis em guetos, dificultando o acesso à escolaridade, ao mercado de trabalho e comprometendo seus projetos de transformação e inserção social fora da prostituição. (Pelúcio, 2005:243)

Tal situação de equiparação, mais ou menos explícita, ao plano da violação de direitos humanos mais básicos é-nos informalmente transmitida a partir de alguns casos ocorridos em Itália. Nomeadamente nas situações em que travestis solicitam o estatuto de refugiadas com base no não respeito por direitos humanos ocorridos no Brasil. Conforme relato de Felina relativamente a algumas das suas colegas,191embora o conhecimento dessa possibilidade denote algumas imprecisões linguísticas. Tem documento como refugiadas. Passa por psicólogo, em como a família renegou por ser homossexual, que apanhava no Brasil, jogavam pedra então a Itália recolhe. Tudo quanto é lugar tem uma questura192, quando abre a inscrição elas vão se inscrever, pega o permisso e depois de um certo ano, se pega o bilhete de identidade, que é o passaporte vermelho.

No caso Português, não temos notícia de tal estratégia e as vantagens parecem residir essencialmente na legislação direccionada às minorias sexuais e matrimónio no seu âmbito, legislação específica para brasileiros e no aproveitamento de uma menor fiscalização e repressão das autoridades Portuguesas.

7.2.2.Vantagens e oportunidades contextuais Vivências prolongadas na clandestinidade (por vezes de mais de 15/16 anos) deixam também entrever e são codificadas pelas próprias travestis como uma particularidade vantajosa do contexto sociocultural português. Paralelamente, a clandestinidade das 191

Esta percepção da temática dos transgéneros como uma questão de direitos humanos, ao encontrar eco na Europa e mais concretamente na E.U., constitui-se como uma oportunidade para algumas travestis. Por exemplo, no caso português e europeu, em Novembro de 2008, decorreram reuniões em Estrasburgo no intuito de exigir leis que reconheçam a especificidade dos transgéneros e seus direitos. (Saleiro, 2009ª:10) e em 2007 os os Princípios de Yogyakiarta colocam a orientação secxual e a identidade de género no campo dos direitos humanos. (Saleiro, 2013) 192

Esquadra de polícia. 178

vivências travestis (tal como a de muitos outros imigrantes) assenta, também ela, nas possibilidades oferecidas pela estrutura legal, portuguesa e europeia. Algumas entrevistadas, como Alexandra ou Thalter, casaram com nacionais de estados da União Europeia (onde o casamento homossexual já era permitido à data 2008/2009), tendo nos termos da lei portuguesa, que necessariamente incorpora as Directivas da E.U. , adquirido o direito de permanência dentro das suas fronteiras e da E.U.193, através do documento que na gíria designam por passaporte vermelho.194 Alexandra contraiu matrimónio com uma travesti brasileira de ascendência italiana. Através desse laço, adquiriu a nacionalidade Italiana – ius sanguinis – embora o ius soli seja ainda hoje o critério maioritário na atribuição de nacionalidade. Em 2009, Armanda Parllatori contava-nos: “casei com um espanhol, não tenho a residência ainda, mas tenho o papel de casamento…tou casada há 4 ano. Tenho que ir lá tratar dos papéis pra ter o passaporte vermelho.” Algumas, como Felina, referem-se ao passaporte como permisso, denotando neste caso a sua inserção numa sub-rede que envolve travestis estabelecidas em Itália. Outras ainda optam também por tentar o casamento mas com cidadãos de nacionalidade portuguesa; Adriana chegou a equacionar a possibilidade (em 2007, sem concretização) de se casar com “João Carlos” (uma das parceiras portuguesas de relação lésbica estável, quando o casamento homossexual não tinha ainda sido objecto de legislação permissiva). Por seu lado, Day L. casou em 2011 com um português, tendo acedido por esse meio a um título de residência denominado por Cartão de Familiar de Cidadão da União Europeia, Nacional de Estado Terceiro. Não obstante, antes do casamento homossexual/lésbico ser legalmente permitido em Portugal, o matrimónio constituia-se ainda assim um recurso accionado para a legalização, traduzindo uma incrível plasticidade de estratégias e comportamentos. Vanessa Nobre relata-nos : (em Albufeira) uma portuguesa que só gostava de trans me ligou e pagou pra sair comigo e ela keria ir viver no Brasil e precisava casar pra pegar documento la, assim casamos em 2005.

193

Nomeadamente no seguimento do Decreto-Lei nº 60/93, de 3 de Março na sua Secção III art.º 21 que estatui que os cartões de residência são nestes casos atribuídos a favor dos nacionais dos estados membros e que segundo o art.º 22 tem uma validade de cinco anos, sendo automaticamente renováveis, a pedido dos interessados, por períodos de dez anos, especificando os destinatários desse direito, cônjuges e descendentes a seu cargo, entre outros familiares, no nº 6 e 7 do art.º 3 do D.L. nº60/93. 194

Passaporte Europeu. 179

Genericamente descrito como mais favorável face à imigração ilegal dos sem papéis (Ferin, 2003), o contexto Português parece, todavia, ter-se tornado (provavelmente fruto da crise económica e financeira) mais atento e fiscalizador. O sucedido com Adriana no decorrer do ano de 2013, após muitos anos vivendo clandestinamente em Portugal e com 47 anos de idade, pode indiciar essa maior fiscalização ou ser meramente um caso isolado. O título do vídeo que notícia na Correio da Manhã TV uma fraude em casamento homossexual não parece falar de nenhuma das nossas interlocutoras; no entanto, parecem estar bem informados da pessoa em questão. Assume-se como uma mulher há vários anos. Diz ser cabeleireira e veio do Brasil com um sonho: obter a nacionalidade portuguesa. (http://cmtv.sapo.pt/atualidade/detalhe/casamentos-gays-usados-emfraude205803517.html acedido em 3-05-2013, Cf. Willy, 2008).195 Adriana vinha tentando a legalização há algum tempo, primeiramente com João Carlos, em 2007196; facto que nunca ultrapassou a fronteira da cogitação e em 2010, através de tentativa de casamento homossexual com Ricardo, requerido na conservatória do Porto. A demora para obter uma resposta dos serviços foi grande. Nesse período de tempo, Adriana refere que tinha conhecido uma pessoa em Lisboa, Alex, com quem planeava casar. Entretanto, tinha conseguido também um contrato de trabalho num café próximo à sua casa em Lisboa (Benfica) e através desse meio estava tentando a legalização no SEF.197 Paralelamente contactou uma advogada para lhe dar apoio jurídico na realização do casamento com Alex. Esta assegurou-lhe não existir qualquer problema em dar entrada 195

Willy trata de matérias ao tratamento dado pela imprensa a determinadas práticas consideradas criminosas, incorrendo num vício que pode ser extremamente para os migrantes. Referimo-nos ao processo através do qual se produz uma etnicização de um determinado crime pelo modo como as notícias relativas a esses acontecimentos são veiculadas pela imprensa. O caso das mães de Bragança ou outros, em que se associa de imediato prostituição a Brasil, e a género feminino. 196

João Carlos, sendo mulher, incorpora o modelo de masculinidade heterossexual na relação lésbica que mantem; por seu lado, Adriana possui pénis, mas constrói-se no feminino. Todavia, quando a possibilidade de casamento é equacionada, João Carlos assumiria o seu eu institucional, feminino e Adriana, o seu eu institucional, masculino. 197

Relembramos que chegou a Portugal em 2000 e que durante 3 anos realizou viagens esporádicas e para gozo de férias ao Brasil. Desde 2003 não mais se deslocou ao Brasil. No SEF, para dar entrada ao pedido de legalização via contrato de trabalho foi-lhe solicitado à cabeça o pagamento de uma multa avaliada em função de cada dia de estadia ilegal no país, correspondente ao período de 10 anos - 2003-2013.

180

nessa nova documentação com o processo ainda pendente de resposta na conservatória do Porto onde havia solicitado casamento com Ricardo. Entretanto, a conservatória de Lisboa contactou-a, intimando-a a comparecer e a fazer-se acompanhar por duas testemunhas. Adriana estranhou, pois numa fase inicial do processo, pela experiência adquirida na conservatória do Porto, não são necessárias testemunhas. Nesse dia transportava na bolsa cerca de 800€ pois iria ao SEF pagar a multa exigida para dar entrada “nos papéis” da legalização via contrato de trabalho. Com esse dinheiro tencionava igualmente enviar dinheiro para o Brasil e resolver umas questões relativas a um cartão de crédito. No momento em que chega à conservatória de Lisboa é detida pela Polícia Judiciária do Porto e levada para o Porto, onde pernoita numa cela. De manhã foi presente à Juíza, audiência de que resultou a decisão judicial de que se quiser viajar deve avisar as autoridades e a intimação para realizar apresentações de 15 em 15 dias numa esquadra da PSP. Ficou assim sob termo de identidade e residência. O processo está ainda em investigação. Confidencia chorando: “Vc sabe que eu tinha escolhido Portugal para viver, vc me conhece há muitos anos…agora posso até ser deportada.” O conteúdo escrito da notícia referia: “desde 2011 que o travesti tenta casar para conseguir finalmente atingir o seu desejo. Chegou a ter casamento marcado no Porto, mas não conseguiu. Arranjou então um ‘noivo’, a quem iria dar cinco mil euros, para contrair matrimónio

na

Conservatória

de

Lisboa.

Os noivos acabaram anteontem presos pela PJ do Porto, tal como duas testemunhas, que iriam

receber

600€

cada.

Os

quatro

têm

entre

27

e

45

anos.”

(http://cmtv.sapo.pt/atualidade/detalhe/casamentos-gays-usados-emfraude205803517.html) Como antropólogos devemos sublinhar a falta de rigor presente na titulação desta notícia. Primeiro há, neste caso, como que a atribuição de nacionalidade e construção de género a um determinado tipo de crime ou prática ilegal, fazendo-o corresponder a uma determinada imagem acústica estereotipada (representação): travesti brasileiro. Em segundo lugar, não é pelo casamento com um cidadão português que se adquire a nacionalidade portuguesa, apenas se obtêm um título designado por Cartão de Familiar

181

de Cidadão da União Europeia, Nacional de Estado Terceiro, válido por 5 anos, posteriormente renovável e nesse caso, válido por 10 anos.198 Por acréscimo, verificamos como a fragilidade transversal às comunidades migrantes indocumentadas as torna alvos fáceis de advogados menos escrupulosos. A mesma advogada que assistia Adriana na realização do requerimento de casamento (que deu entrada na conservatória do Porto) foi quem, segundo Adriana, a informou que não havia qualquer problema em realizar novo pedido, paralelo, na Conservatória de Lisboa. Já com nova advogada tratando da sua defesa, após o termo de identidade e residência emitido pelo tribunal, Adriana desabafa, “o que mais me incomoda é a advogada me exigindo dinheiro e eu não tenho como pagar, quer dizer pago por semana, mas o que eu posso mas ela sempre me ligando e querendo mais!!” A fragilidade é patente199, apesar de não estarmos perante um caso de um indocumentado sem qualquer capacidade financeira ou sem qualquer entendimento do idioma falado. Porém, é no âmbito dessa mesma clandestinidade que a estrutura lhes fornece inadvertidamente os meios para executarem estratégias (como por exemplo o subaluguer de casas ou os casamentos transnacionais) muitas vezes realizadas com sucesso. Quando consumados, estes casamentos mistos (etnicamente transnacionais), alguns brancos ou por conveniência (Raposo e Togni, 2010:23), são também fruto da

198

Segundo a Lei Orgânica n.º 2/2006 de 17 de Abril para se solicitar a nacionalidade portuguesa são necessários 6 anos de residência efectiva e legal em Portugal, assim como exigidas provas da ligação ao país que justifiquem a obtenção de nacionalidade via ius soli, o que não se revela ser o caso. Mais se acrescenta, que os requerimentos para realização de casamento e obtenção de nacionalidade são ambos realizados nas conservatórias, no entanto são requerimentos distintos, formal e materialmente. Embora este acontecimento tenha abalado a sua estabilidade emocional, Adriana encontra-se patrocinada por advogada que irá exercer o contraditório face à acusação. 199

Esta fragilidade expressa-se igualmente em Portugal pela inexistência de um movimento associativo de transexuais ou travestis: “Existiu de 2002 a final de 2007 uma associação especificamente dirigida à temática da transexualidade e do transgénero – a ªt.* - Associação para o Estudo e Defesa do Direito à Identidade de Género16. No entanto, pelo menos nos anos mais recentes, as suas tomadas de posição públicas apareciam frequentemente em parceria com outra associação LGBT – as Panteras Rosa –, o que denota alguma fragilidade por parte desta associação. Viria a extinguir-se em Dezembro de 2007 ”em virtude da sua actual inactividade”. Esta situação terá tido a ver com a deslocação para o estrangeiro da fundadora e presidente de sempre da associação, e da dificuldade em encontrar uma pessoa que lhe sucedesse na presidência, o que é igualmente indiciador das dificuldades de organização colectiva das pessoas com estas expressões de género. Não nos esqueçamos que estas pessoas são vítimas de discriminação, das mais subtis às mais brutais (como o comprova o assassínio de Gisberta em 2006 e, mais recentemente, o de Luna em 2008) e que o “dar a cara” será um acto que pode acarretar significativas consequências na vida dessas pessoas.” (Saleiro, 2009ª:13). No entanto, Saleiro considera que a partir do ano de 2006 se verificaram progressos no sentido de uma efectiva agregação do movimento T dentro do GLBT. (2013:173) 182

globalização e das novas dinâmicas geradas nos mercados matrimoniais, por seu intermédio (Piller, 2007). Tal como acontece com outros imigrantes clandestinos e não documentados, estes casamentos não são no caso travesti necessariamente concomitantes com qualquer vivência em comum ou coabitação. A vida das travestis “casadas” mantémse na maioria das vezes, observando os mesmos padrões comportamentais, viajando daqui para acolá e de acolá para ali, em busca de clientes. Um facto é de sublinhar. Entre as nossas entrevistadas, parece ser consensual que em Portugal, apesar de tudo, se correm menos riscos de fiscalização e expulsão, o que é aliás corroborado por Pelúcio – “o risco de uma deportação, além dos problemas com a polícia, são mais recorrentes na Europa central.” (2005:244), demonstrando também como esta informação se disseminou por contextos exteriores à própria rede social travesti. Um dos raros casos apontando em sentido contrário resultou de uma situação gerada após tentativa de agressão (motivada por ciúme) do ex-namorado de Karime G., quando esta e Alexandra se deslocaram a uma esquadra de polícia para apresentar queixa do sucedido. Alexandra, ao mostrar o passaporte que lhe foi solicitado e no qual o prazo de permanência turística em Portugal já tinha expirado, viu a PSP agir em conformidade. Desta forma, e seguindo o protocolo, a PSP contactou o SEF e como consequência foilhe passada uma carta de expulsão de Portugal no prazo de 21 dias. Entretanto Alexandra viajou para Espanha: Pois, é que estando casada com uma Italiana200 sou cidadã comunitária, por isso eles não me podem fazer nada, de qualquer forma vou ao Brasil e volto a entrar na Europa por Espanha!

7.2.3. A Permuta de habitações

Uma vez em Portugal, as travestis brasileiras que atendem no domicílio aprofundam a rede social travesti construída no Brasil, através de imbricamentos com as redes actuantes nos territórios onde se encontram. Estas redes caracterizam-se pelo uso predominante da internet nas trocas de informação. Inicialmente o Orkut apresentava-se como a rede social virtual mais usada por brasileiros, travestis e não travestis. À medida que se avança adentro da primeira década do séc. XXI, o facebook adquire também um papel de relevo 200

Travesti brasileira de ascendência italiana que por essa via se legalizou, previamente. 183

a uma escala globalizada. Esta relevância é constatada e aplicada, não só ao nível da troca de informações necessárias para trazer novas travestis para a Europa, mas também numa vertente de disponibilização de habitações e sua publicitação, para aquelas que já se encontram fora do Brasil.201 Praxas disponivel em lisboa enteressadas me contactar .... quartos com globo record frigobar internet na av almirante reis em frente ao restaurante portugalia! (Natasha L. publica no facebook em 25-06-2013)

Esta publicitação de habitações para permuta decorre da extrema mobilidade implícita à actividade exercida e processa-se em modo similar quando se pretende mudar de país: Adriana .o.... eu tou aquir com uma amiga que tava perguntando de voce e a glenda amiga da ludy eu tou n casa dela em terraa na españa,estarei aquir almenos um mes i ela qeria muito ir pa portugal i eu tambem tu ainda faz aquela linha202 de semana seria nos as duas, eu vou ti ligar esses dias pa falamos .bom espro que voce eteja bem beijo, o mi diz algo por recado sim fica bem. (Sheilar comunicando com adriana via Orkut)

É também o caso de Thalter que contacta Júlia Vellaskes pelo Orkut - “ei gata eu quero uma praça faz a linha!”ou no facebook: “Amigas de barcelona busco donde quedarme unos dias para resolver unas cosas no mas que 3 a 4 dias jejej !!!! quem me puede dar la mano?”. Estes contactos com recurso à internet não exigem conhecimento presencial entre os indivíduos. Larissa, por exemplo, afirma não ter existido qualquer contacto directo prévio com as pessoas com quem dividia a casa em Lisboa (esse contacto foi realizado por Internet). Entretanto, já no decorrer do mês de Julho de 2009, também ela deu indicações (através do messenger) a uma colega que a tinha acompanhado em Itália para vir do Brasil (Rio de Janeiro) para Portugal, enquadrando-se esta acção na já mencionada função de reconhecimento de territórios/oportunidades recorrente no seio da rede de sociabilidades profissionais travesti. Em finais de 2010, Armanda Parllatori203 contactou

201

Em 2014 temos notícia de que o orkut.br cessa a sua actividade.

Linha ou praça são termos que designam locais para trabalhar. Fazer a linha – arranjar um espaço, desenrascar. 202

203

Travesti natural do Ceará/Fortaleza. 184

Larissa, telefonicamente, no sentido de poder usufruir do “efeito novidade” em Leiria, na casa que a última havia recentemente“alugado”, após ter deixado uma outra na Estefânia por a considerar cara demais.204 Praça no porto.... Boavista , zona bem silenciosa, discreta , sigilosa, calma , cm estacionamento a porta , apartamento sucegado , higienico, cm quarto tdo equipado, cm plasma intternet, , cozinha , casa de banho cm banheira , 1 andar cm elevador , situado junto do hotel boasvista place de 5 estrelas , cm comercio cafes , restaurante , e centro comecial , cobro 150e a semana casa cm clientes fixo ja .... Marca ja a tua praça ...910_9_35_ catia n. ....contactar a mxma te espero ,... Aceito homens , mulher, travestys, e casais .... Aproveita ja tlm:91_______ (cátia n. 13/09/2013 facebook)

A rotatividade entre habitações é estrategicamente accionada pelas travestis, não só pelo facto de não serem as titulares dos contratos de arrendamento (dispensando por isso formalidades excessivamente demoradas para mudar de casa) mas também pelo facto de a mobilidade ser uma exigência da sua actividade.

7.3. Prostituição travesti em Portugal e noutros contextos europeus Lá é muito bom pra se trabalhar, é tipo assim, você trabalha bem melhor do que aqui, mas como você ganha mais, o custo de vida é bem mais alto e você gasta bem mais. E a nível de polícia, o controlo lá é bem mais rigoroso do que aqui. Aqui para quem é brasileiro é bem mais fácil de se regularizar, tanto este tipo de trabalho que eu faço, com convívio é mais fácil. (Larissa)

Para além da percepção emic acerca da maior ou menor permissividade das autoridades face ao fluxo de emigração travesti, existe uma outra dimensão que diferencia valorativamente os contextos de acolhimento: a forma como se exerce a prostituição e a relação no terreno entre manas a qual favorece (mais ou menos) uma eficaz mobilização de recursos. Diferentes contextos geram diferentes dinâmicas nas redes sociais promovendo diferentes comportamentos, os quais são paralelamente, também delas resultantes. Adriana relata que quando chegou a Portugal, “tinha uns portugueses” à sua espera. Foi no alojamento providenciado por esses portugueses que começou a trabalhar, repartindo 50% dos ganhos auferidos na prostituição com eles. Ainda esteve um mês em Larissa estava a pagar 500€ por uma casa na Estefânia, por isso a deixou. Agora (sub) alugou uma em Leiria por 300€ e antes disso, vivia na zona da Fonte Luminosa (Lisboa) onde se queixava que as colegas faziam muito barulho, bebiam e consumiam drogas noite dentro. 204

185

Espanha – “Depois fui um mês para Espanha…não gostei de Espanha, achei terrível…é assim, lá no meu tempo eles prendiam muito a “gente” numa casa, nós não podíamos sair por nada…eles só liberavam “agente” uma vez no sábado e só uma hora”. Apesar de ganharem muito bem, tinham frequentemente que consumir drogas com os clientes. Também Tamara afirma haver diferenças entre Portugal, Espanha e Itália ao nível da prostituição e nos modos de a exercer. Em Itália, é exercida maioritariamente em contexto de rua; em Espanha opera aquilo que muitas designam por sistema de Pisos (onde refere o grande consumo de cocaína por parte dos clientes). Em Portugal, aponta o sistema de troca de quartos e/ou habitações mediante pagamento das despesas. No entanto, existem contextos específicos que se podem revelar menos pacíficos, nomeadamente o referido por Larissa. Caso não se “regularize” a situação na rua, corremse muitos riscos no contexto italiano: Assim em termos, eu não paguei tanto como elas pagaram…mas como eu não vim directamente para Portugal, eu fui para Itália, para a cidade de Roma e lá também tem esse ritmo, a gente quando vêm sem dever nada para ninguém, tem as pessoas que já são mais antigas, não convém citar nomes…eu paguei 3000€ para poder ficar na rua, trabalhando normalmente sem ninguém me incomodar.

(…) tem também os marroquino em Itália, você não pode estar na rua sem autorização, senão eles metem faca em você a mando de outra travesti, você tem que ter autorização para ter um ponto seu. Falam italiano, parecem italianos, mas não são, são marroquinos! (Larissa)

Estes riscos acrescidos foram igualmente relatadas por Felina e Armanda Parllatori. Já em Portugal, no caso da prostituição de rua exercida maioritariamente no Conde Redondo e áreas limítrofes, Larissa aponta apenas a existência de “um pouco de marra” entre travestis portuguesas e brasileiras. Aqui quando você desce na rua para trabalhar, tem esse sistema de pessoas brasileiras, que não tem conhecimento nenhum, que não tem documento, tem um pouco de marra com as travesti Portuguesa que pede 50€ por semana para poder ficar na rua trabalhando.

Em Espanha, Tamara relata que foi vítima de um assalto/sequestro juntamente com outras trabalhadoras do sexo e trabalhadores do sexo masculinos (7 ao todo) quando atendiam no âmbito do sistema de Pisos. Segundo diz: “provavelmente a mando de outra casa concorrente.” Ficaram 2 dias fechados numa casa até serem libertados. Como refere Adriana, a concorrência entre Pisos é frequente em Espanha: “uma pessoa (...) atende as 186

ligações, recebe o cliente e o coloca esperando na sala (que pode ser um quarto) e chama as meninas, depois um por um vai se apresentar ao cliente, no fim ele diz quem quer.” O atendimento nesses casos é sempre nos referidos pisos ou até mesmo em apartamentos próprios (alugados ou comprados), o que é mais raro. As que trabalham dessa forma normalmente estão em outro patamar, já têm fama e tempo suficiente na Europa para assegurar sua autonomia, não pagando nada a agenciadores e/ou cafetinas/cafetões. As novatas, que embarcam com “financiamento” de agenciadores (muitas vezes uma travesti “européia” ou mais velha), tem de dar metade do preço do programa para a administradora do local, além de guardar parte desse dinheiro para quitar as despesas do financiamento, entre seis e 13 mil euros. (Pelúcio 2005:243)

Quando tece as suas considerações etnográficas sobre os pisos, Pelúcio fala em península ibérica, acabando por dar pouco enfoque às especificidades de cada um dos contextos. Segundo Adriana, em Portugal o sistema de pisos assume reduzida relevância e verifica-se sobretudo no âmbito da prostituição feminina. O atendimento em apartamentos é o mais comum; não existe uma pessoa atendendo chamadas e exibindo as trabalhadoras do sexo para que o cliente escolha; ao invés, quem anuncia na internet é quem atende e tenta conquistar o cliente, numa fase inicial pelo modo de comunicar ao telefone, envolvendo conversas explicitamente de cariz sexual. A um outro nível, receber clientes em apartamentos em Portugal não implica a titularidade de um contrato de arrendamento ou uma escritura de compra e venda. Adriana que em 2007 recebeu um sobrinho vindo do Brasil - igualmente ilegal após expirarem os 3 meses do visto turístico - explica-lhe como tudo se processa, tentando atenuar alguns conflitos que vinham surgindo entre ele e as manas no domínio da coabitação – “eu lhe expliquei que se as tinha cá” - outras travestis - “era porque precisava, porque não tinha como pagar duas renda e que eram elas que pagavam o renda, a luz, a água, o gás com que ele vivia.” Desta frase sobressai que a maioria das travestis que atende em apartamento não é proprietária ou arrendatária, antes o faz em virtude de um sistema já mencionado de permuta de habitações, em que quem as habita (em determinado momento) paga as despesas respectivas. “Cobro 150€ a semana casa cm clientes fixo ja .... Marca ja a tua praça ...9109__359” (Catia N.) Este sistema permite às indocumentadas ou às mais inexperientes no contexto de acolhimento aceder a um mercado de trocas sexuais em domicílio e a todas elas uma maior mobilidade interurbana. O que varia são as condições exigidas por quem em determinado momento assume a casa e o grau de participação nas 187

redes sociais dos indivíduos nelas actuantes. “Bem…não está dando para suportar duas renda sozinha…quando eu não conheço bem as travestis, eu cobro 150€ por semana mais água, luz e gás.” (Adriana). Cumulativamente, embora mais rara, a permuta de habitações ou quartos no âmbito da prostituição masculina ou feminina revela algum imbricamento entre redes sociais distintas. É o caso de Cátia N. , travesti portuguesa que no facebook posta o seguinte apelo em 2013: praça no porto....boavista , zona bem silenciosa, discreta , sigilosa, calma , cm estacionamento a porta , apartamento sucegado , higienico, cm quarto tdo equipado, cm plasma intternet, , cozinha , casa de banho cm banheira (…) telm.- 91_____359 catia n. ....contactar a mxma te espero ,... aceito homens , mulher, travestys, e casais .... aproveita já!

E também de Natasha L. que igualmente no facebook anuncia: Praças em Lisboa na Av.principal almirante reis em frente do restaurante portugalia com net tv a cabo paraturás homens e mulheres enteressadas me contactar aqui mesmo beijos.

Relativamente aos Pisos, o único caso de que tomámos conhecimento e que mais se assemelha a esse sistema no âmbito da prostituição travesti em Portugal, foi-nos relatado por Armanda Parllatori: Olha, há sim…eu tinha uma amiga que conheço há 11 anos, ela traz bichas pra cá a 6000 euros e uma vez fui pra casa dela na Av. de Roma e ela fez a linha de 200 € por semana pra mim ficar na casa dela, só que quando o mês acabou ela me pediu por cima dinheiro pra luz, agua, comida. Eu lhe disse que não e ela chegou a disse que chamava a polícia. Peguei meu papel do casamento e disse pra ela – sua cafetina, chama a polícia, eu tenho meus papel, tá vendo? Toma meu celular e chama a polícia, eles vão saber quem você é sua cafetina da pôrra! – Ela traz bichas de lá e coloca elas em quarto, cobra pelo quarto, muitas vezes é ela que atende o telemóvel e faz o preço. Elas quer saber tudo e anda sempre a atrás para lhe dar o dinheiro do empréstimo e do quarto. Ela a mim queria-me explorar e ainda era roubada pelo marido dela, um brasileiro velhão. Sempre me faltava dinheiro naquela casa. Saí de lá! Mesmo assim fica mais fácil aqui no Portugal. Em Espanha é os Piso, mesmo que cobra 100 € ao cliente, metade é para a casa e em Itália um quartinho pequenininho é 350 € por semana. É muito caro.

Este caso, embora excepcional, acaba por revelar-se um sincretismo de vários sistemas: a cafetinagem no Brasil, os Pisos em Espanha e a permuta de habitações em Portugal. Nos Pisos, em Espanha, Armanda Parllatori refere como inconveniente o facto de muitas vezes coexistirem a prostituição travesti e feminina. Esse aspecto, no momento da escolha por parte do cliente a quem são expostas as trabalhadoras do sexo travestis e femininas, pode redundar nalgum constrangimento por parte do indivíduo pela exposição a que está sujeito na sua escolha e à eficácia social da masculinidade heteronormativa 188

perante o feminino presente. Assim, muitas vezes o cliente pode acabar por escolher a mulher, por constrangimento (Armanda Parllatori). Não vê portanto vantagem no exercício paralelo de prostituição travesti e feminina. Quanto ao contexto português, a permuta de habitações ou apenas de quartos (dividindo a casa com outras travestis), para além de democratizar o acesso a este mercado de prostituição com anúncio na internet e atendimento em domicílio, converte-se igualmente num recurso presente nas relações entre indivíduos que lhes pode permitir a aquisição de capitais. Adriana ao “possuir” duas casas, uma no Porto (Antas) e outra em Lisboa (Benfica), não tem qualquer contrato de arrendamento em seu nome. O contrato está geralmente em nome de portugueses ou brasileiros legalizados. Não obstante, é reconhecida como a dona da casa pelas suas manas. “Possuir” duas casas permite-lhe gerir a sua mobilidade entre Lisboa e Porto e, paralelamente aceder a capitais sociais através da administração que faz desses recursos nas relações mantidas com colegas, sempre interessadas em ir para as “suas” casas mediante pagamento das despesas, acrescidas de um valor semanal fixo correspondente ao aluguer. Esta mobilidade não só se torna uma condição para a prostituição exercida deste modo, como estabelece laços de solidariedade (ou nalguns casos o contrário) entre travestis que coabitam temporariamente e que passado pouco tempo se deslocam para outra cidade na qual vão dividir casa com outras manas. Sublinha-se ainda o facto deste mercado de subarrendamento de imóveis ser obviamente clandestino. O dinheiro da renda passa por várias mãos até chegar ao real proprietário. Esta coabitação pode, em casos mais raros, levar a episódios tidos como extraordinários no contexto português. Day L. conta-nos como no dia 26 de Junho de 2011 Elida A. foi esfaqueada por uma colega, devido a questões relativas a ciúme e maridos.205 O caso não se revelou de consequências medicamente gravosas e Elida A. , não se deslocou a um hospital público nem apresentou queixa na polícia.206 Não obstante, esta permuta constante de habitações e recorrente mobilidade permite que quase todos os 205

A competição pelos homens, quer clientes, quer maridos. (Cf. Kulick, 1998)

206

No decorrer de 2013, ambas as intervenientes neste raro episódio de violência - pelo menos de que tenhamos tido notícia - continuam anunciando nos sítios de internet especializados. O estatuto de indocumentadas restringe o acesso a determinado tipo de serviços fornecidos pelo estado. Essa restrição não opera pela via legal, que prevê esses serviços, mas sim pelo constrangimento social de serem emigrantes indocumentadas e travestis. 189

elementos da comunidade travesti em Portugal se conheçam pessoalmente e constituam densas redes de solidariedade, as quais de alguma forma democratizam o acesso aos recursos

disponíveis,

traduzindo

um

contexto

bem

diferente

do

brasileiro

indubitavelmente mais violento e restritivo no acesso permitido a outros patamares de bem-estar. Ainda, no contexto deste mercado de troca de habitações ou quartos com serventia da casa, sublinha-se a existência de factores concorrenciais operando entre eles, aos quais faremos mais uma vez menção, por se revelarem essenciais na caracterização de certas práticas transnacionais, de forma directa ou acessória, tornando o distante bem mais próximo. Neste sentido, destacamos um episódio ocorrido em Dezembro de 2011, quando Day. L. se desloca a Lisboa - numa das ínumeras viagens que realiza mensalmente – em que comenta como a travesti (residente em Itália com o marido) que lhe subalugava o quarto na Almirante Reis não lhe oferecia naquele momento nem serviço de TV por cabo, nem internet! Não ter TV por cabo (ou satélite) não permite assistir aos canais televisivos brasileiros e não ter internet reduz substancialmente a eficiência da sua rede social, bem como os contactos regulares com a família. Discutiram por esse motivo, e nem dois dias ficou nessa casa, optando por destino alternativo. Mais concretamente o Carregado onde uma mana possuía casa e relativamente à qual sublinha o facto de ter um ambiente mais familiar. Daí que as postagens no facebook anunciando quartos ou casas para alugar, façam na maioria dos casos menção expressa à existência de internet e TV por cabo ou satélite.

7.3.1. Densificação e imbricamento de redes. Mobilização de recursos e exibição de capitais O mercado de permuta de habitações surge intimamente ligado ao dos anúncios de prestações sexuais via internet. Esse processo, que alarga as possibilidades de publicitação travesti surge em meados de 2008, quando já existia o sítio de anúncios de prestação de serviços sexuais Desire, embora à data fosse o único. No decorrer desse ano, a concorrência processa-se, traçando um período de vida mais curto a alguns sítios e instituindo o domínio a outros.

190

Esta competição por um incremento do número de anunciantes actuava e actua de forma agressiva, no sentido em que envolve a deslocação dos donos desses sítios a casa das travestis ou telefonemas, em que propõem condições especiais e diferenciadas a cada uma delas, tentando cativar as potenciais clientes.207O aspecto referido de que as condições podem ser diferentes, consoante a travesti abordada, resulta somente do facto de que ter como anunciantes as travestis mais requisitadas e famosas no meio, amplia as possibilidades de recrutamento de outras. O sítio Desire já estava na rede quando iniciámos esta pesquisa e terminou funções em Dezembro de 2011, altura em que deixou de estar on-line; embora já no decorrer de 2010 e 2009 revelasse um declínio acentuado, transferindo-se as suas clientes para outros sítios concorrentes que emergiam entretanto.

Gráfico 1 – Anúncios do sítio Desire 2008/2009

A gestora de um desses sítios (Tg) – a Tiffani - conhecêmo-la numa ocasião em que bebíamos café num restaurante perto da casa de Adriana em Benfica. 207

191

Em 2009 e 2010, a sua extensão ao território nacional é reduzida, centrando-se essencialmente em Lisboa e no Porto. Denota apenas, nesse momento, transferência de travestis entre essas duas cidades.

Gráfico 2 – Anúncios do sítio Desire 2009/2010

Em 2010/2011, acaba por se restringir somente ao Porto em consequência daquele contacto directo e pessoal com as clientes, que influencia algumas travestis a colocar anúncios num sítio em detrimento de outros ou, então, concomitantemente. Isso depende de onde os administradores do sítio vivem, neste caso no Porto. A concentração no Porto de 96% dos anúncios não significava neste momento aumento do número de anúncios, antes pelo contrário encerrava um acentuado declínio.

192

Gráfico 3 – Anúncios do sítio Desire 2010/Dezembro 2011

Também no princípio de 2008 surge o sítio Relax. A sua incursão no mercado fezse através de promoções que propunham às travestis anúncios grátis.

193

Gráfico 4- Anúncios no sítio Relax de 2008/2009

Nos anos subsequentes, quando começou a exigir o pagamento dos anúncios às usuárias dos seus serviços, também este sítio vai lentamente morrendo até se extinguir, correspondendo os 50% do gráfico abaixo colocado, a pouco mais de uma dezena de anúncios num hiato de tempo de 1 ano. Números insignificantes que apenas sublinham o seu declínio. “Eles disseram que o site era gratuito pra tranx e depois queriao receber.” (Thalter)

194

Gráfico 5- Anúncios no sítio Relax de 2009/2010

O que se acentua em 2010 com anúncios mensais por cidade na ordem da unidade, oscilando entre 2 e 3, não revelando a real distribuição de travestis pelo território nacional.

195

Gráfico 6- Anúncios no sítio Relax de 2010/Dezembro de 2010

O desaparecimento dos dois anteriores sítios de anúncios na internet justifica uma análise casuística, na medida em que reflecte a importância da comunicação por internet com recurso a imagens, bem como estratégias diferenciadas dos seus proprietários no sentido de angariarem clientes e o embricamento de redes sociais delas resultantes. As travestis, de forma geral, pretendem que o sítio onde anunciam seja frequentado por muitos clientes e curiosos, pois quanto mais visualizações obtiverem, maiores probabilidades de êxito com a clientela terão. Por isso, ao fazerem inicialmente o atendimento telefónico, as travestis interrogam o cliente sobre qual o sítio de internet onde a encontraram. Este facto e a concorrência directa entre sítios levou ao desaparecimento do Desire e do Relax e, concomitantemente, ao fortalecimento de dois novos sítios: o TG e o Vrip T, este último só surgindo em Agosto de 2008.

196

Gráfico 7- Anúncios no sítio VripT de Agosto de 2008 a Abril de 2009

O uso da internet justifica-se por ser um meio de comunicação comparativamente mais barato que os jornais. Tamara referia que no Diário de Notícias pagava cerca de 25€ por um anúncio de um dia e Adriana cerca de 24€ por 3 dias de anúncio no 24 Horas em 2007. Na internet o sítio mais oneroso por um anúncio “básico” - sem destaque - rondava

197

os 150€ por mês em 2012, enquanto, que em 2008 era de 90€ (Vrip t). Esta forma de anúncio apresenta às travestis a grande vantagem comunicacional da imagem. O mais barato em 2008 cobrava 50€ por anúncio/mês (Desire), o que deixa também entrever como o mercado evoluiu dos 50€ iniciais no Desire até aos 150€ no Vrip T, valor que pode ser acrescido de 50€, se a travesti para além do anúncio, solicitar a sua exibição na página de abertura do sítio. Esta disparidade de valores reflecte não apenas o aumento do número de travestis em Portugal, bem como uma maior variedade de serviços oferecidos pelos sítios de anúncio: bem apresentados e trabalhados - fotos maiores, sítios mais complexos, photo shop208, correspondendo a um crescente número de acessos por parte da clientela. O facto de algumas travestis recorrerem cumulativamente a ambos os tipos de anúncio (jornal e internet) decorre da sua percepção de que assim aumentam as possibilidades de angariar clientes. Nalguns casos, surge em consequência da informação (que trocam entre si) sobre determinados contextos urbanos ou sub-urbanos de menor dimensão nos quais o acesso à internet é mais reduzido, mantendo-se hábitos de recurso aos classificados dos jornais nos quais constam as trabalhadoras do sexo disponíveis. Segundo Adriana, a clientela angariada por um ou outro meio é diferenciada. Os jornais “tem mais gente das obras.” Por isso anunciava frequentemente no Diário de Noticias no Porto, Correio da Manhã e 24 Horas. Por outro lado os jornais apresentam a desvantagem de não apresentarem fotos ou em caso de estas serem colocarem no anúncio, importarem um custo acrescido para o anunciante. Concomitantemente as fotos não são passíveis de ser retocadas com photo shop e a sua reduzida dimensão num jornal, fazem com que este recurso

seja

encarado

como

desvantajoso.

Acrescente-se

ainda

que

sendo

comparativamente mais caro que a internet, o jornal não necessita que as travestis dispendam tanto dinheiro de uma vez só, favorecendo neste caso as menos abonadas.

208

Programa informático que corrige imperfeições, apagando características de um género e fazendo sobressair as do outro, nomeadamente e a título de exemplo, omitindo resquícios de barba ou, reduzindo o nariz, as orelhas, e assim por diante. 198

Gráfico 8- Anúncios no sítio VripT 2009/2010

Neste enquadramento, o posicionamento dominante do Vrip T é fortalecido quantitativamente nos anos subsequentes. Os quadros seguintes evidenciam gradualmente, o crescimento do número de localidades disponíveis para fruição de serviços sexuais, espelhando a distribuição de travestis brasileiras por uma maior gama de pontos geográficos em Portugal.

199

Gráfico 9- Anúncios no sítio VripT 2010/2011

200

Gráfico 10- Anúncios no sítio VripT 2011/2012

Independentemente dos sítios na internet sublinha-se uma prevalência acentuada dos centros urbanos no mercado de permuta de habitações e dentro destes, os de maior 201

dimensão, religando-nos a outros pontos da pesquisa em que relacionámos o travestismo e prostuição, essencialmente com o contexto urbano. Não obstante, e num processo transversal a todos estes sítios, também o TG revelou durante os anos de 2009/2010 e 2010/2011 uma acentuada tendência para variar os pontos geográficos de anúncio. Gráfico 11- Anúncios no sítio TG 2009/2010

202

Nesse momento, Portugal passa a ter travestis brasileiras espalhadas por todo o seu território urbano e zonas limítrofes.

Gráfico 12- Anúncios no sítio TG 2010/2011

203

Em 2011/2012, todavia, assiste-se em todos os sítios a uma diminuição dos pontos geográficos anunciados e a uma centralização nos grandes centros urbanos com redução do número de anunciantes também em Lisboa e Porto, embora percentualmente e em termos relativos, o cenário se mantivesse semelhante. Cidades Alentejanas como Beja ou Évora209 desaparecem dos mapas e localidades mais a Norte; exceptuando o Porto, diminuem o número de anunciantes. Gráfico 13- Anúncios no sítio TG 2011/2012

209

O Alentejo foi sempre um dos pontos geográficos em Portugal que revelou um menor grau de implantação deste tipo de anúncio. 204

Todavia, estes gráficos demonstram também que o fenómeno, ainda que residualmente, se estendeu a todo o território nacional - Norte, Centro, Sul e ilhas (Funchal, Ponta Delgada, Ilha Terceira, Algarve - Albufeira, Faro, Quarteira, etc… Évora, Beja, Figueira da Foz, Caldas da Rainha, Torres Vedras, Ermesinde, Barcelos, Lixa ou Penafiel, etc.), denotando sempre uma acentuada prevalência dos grandes centros urbanos, principalmente Porto e Lisboa. Por acréscimo, pode afirmar-se que os centros urbanos de menor dimensão ou áreas limítrofes das grandes metrópoles se constituíam como um mercado alternativo e de certa forma menos concorrencial, visto que apresentava no máximo duas ou três travestis em cada um deles e na maior parte dos casos, apenas uma, o que contrastava com as cerca de três dezenas, que muitas vezes chegaram a anunciar em Lisboa e Porto, respectivamente. Tal não significa que estivessem excluídas da rede travesti, mas sim que executaram estratégias alternativas. Ainda na actualidade, há travestis residindo e prostituindo-se em cidades como Viseu, Amora ou Carregado há 9/10 anos consecutivamente.

7.3.2. “O trabalho tá mau” (Thalter): entre Lisboa, Porto, Braga, Aveiro, Leiria...e outros destinos Uma vez que o contexto português (embora menos lucrativo) tende a ser percepcionado como mais tolerante, muitas das entrevistadas conjugam percursos de mobilidade internações com uma trajectória migratória interna. Com efeito, e de acordo com a análise210 do registo das movimentações inter-urbanas no circuito de prostituição travesti em Portugal, elaborada a partir dos já referidos quatro sítios na internet, Lisboa, Porto, Braga, Aveiro ou Leiria aparecem como as cidades com maior incidência deste tipo de actividade e estadia. Ao mesmo tempo, verifica-se que este fenómeno migratório não é seu exclusivo e que se estende a cidades de muito menor dimensão, por exemplo, Barcelos, Famalicão, Espinho ou Portimão.

210

Neste contexto, utilizaremos, de forma exemplificativa, o registo correspondente aos meses de Abril de 2008 a Abril de 2009 inclusive.

205

Gráfico 14- Anúncios no sítio Desire 2008 tentando a internacionalização

A análise dos gráficos deixa ainda entrever uma tentativa de internacionalização do sítio relex, com anúncios de Madrid e Lugo (Galiza); tentativa, essa que se revelaria frustrada a curto prazo, desaparecendo ao fim de pouco tempo.

206

Gráfico 15- Anúncios no sítio Relax 2008 tentando a internacionalização

Nas cidades portuguesas, as zonas residenciais escolhidas tendem a excluir as periferias que se constituam como um mercado alternativo para travestis com menores meios disponíveis (menor carteira de clientes, menores recursos financeiros e menor acesso a recursos). No que diz respeito às grandes metrópoles, temos notícia que no Porto a actividade da prostituição em domicílio é exercida em zonas como as Antas, Rua da Constituição, Marquês (também nos arredores; Maia, Valongo, etc.) e, no caso de Lisboa, nas zonas de Benfica, Fonte Luminosa, Olaias, Praça do Chile, Morais Soares, Avenida da Liberdade, Marquês de Pombal ou Almirante Reis e arredores. Verificamos ainda que as cidades situadas em zonas consideradas turísticas (Funchal e Ponta Delgada, mas também no Algarve) aparecem nos mapas de anúncios durante os meses de verão, sendo 207

os anúncios acompanhados por um I speak English! Ou dutch! Desaparecem dos mapas de anúncios ou são substancialmente reduzidos quando o verão termina.

Gráfico 16- Anúncios no sítio VripT 2008 revelando o seu domínio no mercado

Entre os sítios que têm vindo a ser analisados, aquele que mais anunciantes angariou foi o Vrip T211, com um total de 389 indivíduos anunciantes entre Agosto de 2008 e Abril de 2012. Tal significa que neste hiato temporal e tendo em atenção apenas as travestis que recorriam à internet como meio de anunciar a sua actividade, passaram por Portugal cerca de quatro centenas. Estimamos serem muito mais, pois as iniciantes sem corpo feito, as travestis acabadas de chegar ou até as de corpo feito, mas com uma hierarquização descendente no grupo, muitas vezes recorrem apenas aos jornais ou ao boca-a-boca entre colegas e clientes, ou até à prostituição de rua que dispensa anúncio.

211

Segue-se o TG com 313 anunciantes, o Relax com 121 e o Desire - o mais antigo sítio a operar em Portugal e o que primeiro desapareceu - com 116 anunciantes.

208

Gráfico 17- Anúncio totais por sítio

Outro dado relevante diz respeito aos anúncios de travestis portuguesas. Em 2008, no início da actividade destes sítios e sua progressiva expansão, apenas uma travesti portuguesa anunciava, Erika Carr..212 Em 2012 os anúncios de portuguesas já atingiam a ordem da dezena e em 2014 superavam a dezena, aproximando-se da vintena, inicialmente concentrados na cidade do Porto e depois acompanhando a dinâmica geral das travestis brasileiras. Dada a maioria óbvia de travestis brasileiras no mercado, foi observada uma estratégia étnica interessante: o ser portuguesa passou a ser um marco diferenciador a ser usado nos anúncios – ainda que intermitentemente - a que correspondiam frases como “trans portuguesa. O que é nacional é bom!” (Cf. Coupland, 1996 e a produção do discurso em sítios de encontros) Este processo denota similaridades com o que foi descrito por Machado (1999, 2003), segundo o qual a comunidade brasileira residente no Porto se submete ao estereótipo dos portugueses sobre ela, fazendo uso de estratégias profundamente

212

Travesti com corpo feito por Adriana. 209

etnicizadas com o intuito de a partir delas retirar dividendos ao nível do mercado de trabalho. Neste caso, são as portuguesas que apesar de se encontrarem em Portugal e de aí exercerem a prostituição que adoptam uma postura compatível com o estereótipo criado nos clientes, de que ser travesti é ser brasileira. Ser travesti e trabalhadora do sexo, é ser brasileira. Contraditoriamente, se nos seus anúncios as travestis portuguesas reproduzem o discurso produzido pelas brasileiras, não deixam de operar uma tentativa de diferenciação pelo facto de serem portuguesas quando o seu número aumenta, bem como a sua presença em sítios de anúncio. Tal ocorre especialmente em 2014 ano em que se assiste a uma variação da estratégia inicial de que ser travesti é ser brasileira, deslocandose o ênfase expresso nos anúncios no sentido de que o ser-se travesti, também é ser portuguesa. Em 2015 verifica-se que passam a estar presentes em mais cidades e em maior número. Em Março deste mesmo ano por exemplo, em Lisboa já anunciavam 5 travestis portuguesas com referências directas à sua nacionalidade – “o que é nacional é bom!” Alguns elementos sobressaem. Primeiramente, a travestidade (e transexualidade, com corpo feito, silicone, etc…) constitui um fenómeno social muito recente em Portugal, sendo que a prostituição de travestis portuguesas com anúncio por internet é ainda mais recente; por outro lado, a interdependência destes fenómenos com a chegada de travestis brasileiras fomentou o proliferar de sítios de anúncio especializados e o emergir duma comunidade trans portuguesa que se prostitui através de anúncio na internet. Finalmente (e embora relativamente ao ano de 2014), o facto de a maioria das travestis portuguesas se encontrarem inicialmente no Porto213 pode indiciar a construção de redes sociais em função de um ponto geográfico e de afinidades étnicas das portuguesas. Paralelamente a sua inserção num contexto mais alargado de redes, em resultado da chegada das travestis brasileiras (as quais involuntariamente contribuíram para novos usos estratégicos de alguns dos seus repertórios da travestidade em contexto de prostituição) actuaram no sentido de introduzir em Portugal a ideia de que se podiam moldar corpos sem intervenção da estrutura com recurso a saberes clandestinos.

213

Relembramos o facto de termos constatado a presença de travestis portuguesas realizando aplicações de silicone em casa de Adriana, no Porto. Podemos apenas sugerir a hipótese de que esses contactos boca a boca ou por internet, podem ter disseminado a informação de que no Porto havia uma travesti brasileira que realizava aplicações de silicone, centralizando inicialmente nesta cidade uma nova dinâmica social referente às travestis portuguesas que lá residiam. 210

Estes aspectos viabilizaram o desenvolvimento dessa sub-rede constituída por travestis portuguesas que, de ano para ano, se vai tornando mais numerosa e que parece actualizar estratégias segundo o padrão introduzido pelas travestis brasileiras, inclusivamente ao nível do discurso utilizado nos sítios de anúncio à sua actividade, permuta de habitações, técnicas corporais, etc. Numa perspectiva geral, os dados recolhidos sugerem quantidades de anúncios por internet que atingem a ordem dos milhares de travestis no período de tempo abordado. Concomitantemente, outros segmentos de actividade despontaram. A título de exemplo, surgem salões de beleza – maioritariamente propriedade de brasileiros – frequentados por travestis e outros trabalhadores do sexo brasileiros, ou as prestações de cuidados estéticos a travestis no seu domicílio, por mulheres e homens, sobretudo brasileiras/os, incluindo essas actividades a proposta de aquisição de produtos ligados à actividade; preservativos, géis, “brinquedos sexuais”, etc. Tal é constatável através de referências directas ao facto por parte de travestis e ainda pela observação de publicações no facebook que realizámos periodicamente, onde estes salões postam por intermédio dos seus proprietários, fotos de cortes de cabelo, penteados, resultados das escovas progressivas aplicadas a travestis ou a gama de extensões capilares disponíveis, fazendo paralelamente publicidade aos seus serviços e promoções. “Madeixas , corte, cauterização............Trabalho perfeito + Cliente satisfeita =Nuances E Tons Cabeleireiro 🔝#Paixãopelasloiras — comJeremias Jhemelys e Junda Lisboa.” (facebook, acedido a 4 de Agosto de 2014)

7.4. Apresentações transnacionais e transnacionalismos “(…) feminino, Belém, Barcelona, Milão, Porto e Lisboa, me liga!” (Thalter) Uma outra vertente decorrente das novas tecnologias prende-se com os modos de apresentação travesti em sítios na internet. Para além evocarem referências geográficas de origem e actuais, apresentam-se como pertencendo ao género feminino e expõem publicamente o seu posicionamento conjugalizante (“solteira”, “namorando”, “casada”, etc.) em moldes que incorporam modelos dominantes de relacionamento heterossexual. (Luís e Trovão in Trovão, 2010)

211

Em Março de 2009, Thalter apresentava-se (mediante referências colocadas abaixo da sua foto), da seguinte forma: “Thalter em Belém (Belém do Pará no Brasil), me liga” (seguido do contacto), “feminino, casada, Belém, Portugal”. Júlia Vellaskes como “Julia Vellaskes Markes Costa!!! , feminino, namorando, Madrid, Espanha”. Alexandra, como “Alexandra Sousa, feminino, Barcelona, Espanha, Brasil” ou “Mariana Fox, Belém, Brasília, Portugal, Portugal”. Similarmente, também Adriana, se apresenta como “feminino, solteira, moro no Porto e Lisboa, Portugal.” Em Dezembro de 2010, outras travestis apresentavam-se no Orkut de forma similar, reflectindo a partir desses enunciados discursivos, alguma similaridade na forma como se descrevem e constroem repertórios, para si e para os outros. Nomeadamente, “katielly de belem, feminino, solteiro(a), belem.americana.sp.portugal.españa, Espanha”, “cristiane cheller, feminino, solteiro(a), PORTUGAL, Portugal, Ano novo corpo novo!”. Ainda, “Alexandra Close, FELIZ NATAL E UM PROSPERO ANO NOVO, feminino, LISBOA SOU DE CAMPINAS SP, Portugal, ou “yana rickyman, feminino, casado(a), lisboa, Portugal”, thalia assuncena, feminino, solteiro(a), PORTUGUAL, Espanha”, “ALESSANDRA DI, feminino, LISBOA ITALIA, Portugal”, “Andreia Vargas, Mato Grosso do Sul/Campo Grande, feminino, solteiro(a), LISBOA, Portugal, “Eduarda Larrú, feminino, namorando, Maringá, Portugal”, “niky geovanna, feminino, relacionamento aberto, belem, lisboa, Brasil”, novamente “Thalter d belem ALESSANDRIA-ITALIA, feminino, ARIVATO A VICENZA, Itália (OUTUBRO DE 2010), Thalter d belem EM BARCELONA, feminino, ARIVATO A TORINO, Itália (dezembro de 2010)”, marcia lopez agora em italia milano, feminino/ belèm milano lisboa paris, Brasil”, “Gabrielly Nogueira, feminino,Campinas, lisboa, Portugal, Novo ensaio fotografico não percão em breve no tgatas”, “CAMILA GARCIA NASCIMENTO, feminino,FUNCHAL MADEIRA Portugal Natal RN, Brasil”. Esta insistência em se apresentarem (a outras travestis, clientes e concidadãos no Brasil) como vivendo em mais que uma cidade ou em vários países parece traduzir aquilo que poderíamos definir como um perfil migratório marcado por uma elevada mobilidade geográfica, viajando e mudando constantemente entre aqui e ali, ali e aqui ou outro lado qualquer: “Albufeira (Portugal), Sevilha (Espanha), Portugal” ou “Genebra, Brasil” ou ainda “Paraíba, Rio de Janeiro, Europa, Portugal”. (Luís e Trovão in Trovão, 2010) A tal acresce, no plano dos anúncios de prestações de serviços sexuais, um uso do estereótipo globalizado “da mulher brasileira/morena com o seu “swing” característico e 212

tropical214, da “morena mais quente com o mais legítimo “swing brasileiro”, da “brasileira beleza de corpo imponente, toda a exuberância e sensualidade”, da “linda Tgata215 morena que transborda alegria216 e sensualidade, acabada de chegar do Brasil”, ou ainda da “linda mulata brasileira de pele macia” e de “Alexa recém chegada do Brasil com a cor do Verão brasileiro”. Nestas apresentações, sobressai um apelo explícito à etnicidade; nalguns casos com referência à cor da pele e a imaginários que colam derivas identitárias a uma imagem do Brasil como caracterizado essencialmente pelo samba, futebol, mulheres bonitas e informalidades (Da Matta, 1980). Adriana e Felina, por exemplo, accionavam o estereótipo de que as mulheres brasileiras são mais meigas que as portuguesas, quando tentavam justificar o motivo pelo qual os homens portugueses procuravam as mulheres brasileiras – com as quais a um certo nível se identificam. A eficácia de tais narrativas realiza-se quando os actores sociais as recriam nos seus comportamentos como forma de capitalizar vantagens no domínio da actividade que exercem. A competição no sentido de angariar clientela e corresponder a um estereótipo da mulher brasileira produz alguma harmonização de comportamentos

e

consequentes discursos, que interagem

dialecticamente (Cf. Machado 1999, 2003). Perante uma clientela desejosa de novidade no panorama da prostituição, outra das estratégias accionadas consiste na mudança de nome, acompanhada de uma reinvenção da apresentação estética. Essa estratégia pode facilmente produzir a impressão nos clientes de estarem perante uma nova travesti no contexto português da prostituição. Neste âmbito e recorrendo à ideia essencializada da mulher brasileira, a travesti acrescenta no seu anúncio de prestação de serviços sexuais expressões como “sem enganos” ou “atendo sozinha”, procurando infundir credibilidade e segurança no leitor217, ao que juntam qualificativos como “estrela porno acabada de chegar de Espanha” ou com

214

Ao que corresponde uma perceptível racialização do género, também ela utilizada como recurso estratégico pelas travestis “in an analogous manner, the reading of native femininities made by this foreigners is characterized by colour. One colour however, “morena” counterposed to the whiteness of Europeans inhabitants, synthesizes the intertwining of the differentiations embodied on local women.”(Piscitelli, 2004:20) 215

Tgata- “gata travesti”/boneca.

216

Mercado da alegria/exotização. (Machado, 1999, 2003, Machado in Malheiros 2007)

217

Os clientes receiam locais de atendimento com muitas travestis, segundo Felina, por questões de segurança, a que acrescentamos a necessidade de discrição, pois a estrutura também exerce sobre eles constrangimento. Sem conseguirem naquele momento, visualizar quem os vigía parecem sentir-se vigiados. (Cf. Foucault, 1975) 213

o “mais legítimo swing brasileiro.” Mantém em quaisquer dos casos um diálogo com a heteronormatividade que aparentemente as exclui, mas da qual se servem em muitas das estratégias que elaboram e accionam. Fazem-no, seja para conferir inteligibilidade à sua sexualidade ou construção de género, seja para viabilizar o seu projecto migratório com sucesso ou ainda para exercerem a sua actividade da prostituição e orientarem o leitor/cliente para qualidades valorizadas, nesse domínio de interacções. Num contexto de prostituição, no qual se pretende acentuar uma condição transnacional intrínseca à contrução de identidades que operam transitividades, as travestis procuram evidenciar a detenção de múltiplos capitais, sinalizando-os para o grupo e para fora dele. Esta forma de apresentação transnacional merece ser conceptualizada como uma modalidade estratégica de comunicação relacionada com o principal recurso de sobrevivência das travestis. Por exemplo Thalter, estando em Belém em finais de Setembro de 2008 – tendo regressado a Lisboa a 23 de Março de 2009 após passagem por Barcelona, sendo que em Julho de 2009 já se encontrava em Paris [no Messenger constava a seguinte frase: Ciao Portugal! Estou em Paris]) – não deixa de evidenciar o seu contacto precedido por um expressivo “me liga” que nunca de lá saiu, fosse qual fosse o país em que estivesse, Brasil, Espanha, França, Grécia ou Portugal, mudando apenas o número do contacto telefónico e inerentemente a operadora. (Luís e Trovão in Trovão, 2010) Ao mesmo tempo, esta forma de apresentação enfatiza a sua pertença europeia através, por exemplo, da ligação a Portugal, mencionado após Belém do Pará (onde nasceu), destacado por baixo da sua foto. Tal estratégia revela a conexão entre local, regional e global, onde muitas travestis brasileiras inscrevem as suas rotas e constroem os seus percursos, pelo que a mobilidade associada ao desempenho da prostituição se configura assim como um vector determinante em toda esta mundivivência. Por um lado, procura acompanhar a demanda constante de novidade por parte dos clientes; por outro, surge como consequência de um informal mas eficaz sistema de permuta de habitações que se processa através de contactos entre as próprias travestis ou por interpostas amigas, situadas no mesmo ramo de actividade. “O artista vai onde o povo está!” (Thalter) ou como dizia Roberta R. no facebook em 2013, procurando capitalizar o facto de ser uma europeia “cantora travesti de belem do para,a trans do melody, venho da decada de 80 fazendo cover etc.... morei na europa 15 anos e agora na batalha com meu cd ja em todas as radios contatos em belem do para. fixo (91) 3?477?7? (91) 8?3?5?4? tim.” 214

A demanda por clientes e a busca constante de rendimentos, implicando a mobilidade geográfica, pode em certos casos ser mitigada pela sedimentação de raízes que entretanto se vão construindo, sublinhadas por vivências num país durante mais de uma década. Variáveis como a idade, a construção de redes de afectividades e a situação financeira/capital social podem também explicar essa oscilação na opção por uma menor mobilidade a qual não é, todavia, a regra.

7.4.1. A internet e a vida de todos os dias: proximidades, distantes Numa perspectiva menos profissional e mais focada na esfera pessoal, é comum vermos no facebook fotos das iguarias de que estão usufruindo em tempo real, seguidas de comentários de familiares, amigos, colegas ou clientes: brasileiros, portugueses ou de outras nacionalidades. Os pratos confeccionados e apresentados conferem ao privado a chancela da esfera pública – ou, num outro sentido, alteram conceitos de público e privado – reflectindo, paralelamente, os hábitos gastronómicos brasileiros que desta forma partilhados se pretendem veículos do reviver de múltiplas esferas: picanha, pirão, maniçoba, farinha de mandioca, entre outras. São coisas que ultrapassam o valor do seu uso e consumo imediato, passando a comunicar algo sobre as pessoas que as consomem, para além de desempenharem uma função de afirmação identitária no mercado da saudade. (Cf. Rosales in Rosales e Trovão, 2010, consumos identitários e transnacionalismo) Manas em Portugal comentam o que uma colega em Itália publica como tendo sido a sua refeição na noite anterior, uma picanha; familiares no Brasil trocam comentários entre si e com elas. Fotos ou pequenos filmes de festas ou jantares entre colegas são igualmente publicadas, nomeadamente de aniversários, ceias de natal, passagens/viradas de ano ou meros convívios de fim-de-semana, maioritariamente em restaurantes de comida brasileira. Nesses convívios estão presentes, muitas das vezes, os seus cabeleireiros, os donos de sítios de anúncio na internet, taxistas, clientes situados entre a rua e a casa, reflectindo as redes sociais onde operam e desenvolvem as suas estratégias. Num outro plano, anunciam-se as condolências; J. Boing - travesti, trabalhadora do sexo e actriz porno residente em Itália, que pontualmente se desloca a Portugal apresenta em 2014 as condolências pelo falecimento de R. da M., travesti com cerca de 215

30 anos que durante muitos anos anunciou em Portugal. Os comentários expressam surpresa e desta forma, manas, clientes ou amigos sabem da notícia - “Ela morreu de SIDA, não se cuidava direito!” (Adriana) - confidencia-nos. Também se gerem à distância, rituais funerários de familiares queridos. Destroçada, e sem possibilidade de se deslocar ao Brasil aquando da morte da mãe, Day L. encarrega-se de tratar de tudo o que era referente à cerimónia por telefone e internet com recurso a vídeo chamadas. O facto mais marcante decorreu da crença evangélica da mãe e de uma música que habitualmente ouvia na igreja, da qual gostava especialmente. Day L. realiza todos os preparativos e contrata um tocador de viola, também por telefone, instruindo-o acerca da música a ser tocada durante as exéquias. A tal que a mãe tanto gostava. No Brasil, alguém filmava com o celular todos os acontecimentos, vividos em tempo real por Day L. através de ligação de vídeo-chamada por telemóvel. Afirmam-se igualmente estatutos, nomeadamente o de legalizada, expondo-se fotografias da cerimónia do casamento (homossexual) no facebook e colocando frases online,

como

“Parem

porque

eu

casada

sou

de e

nao

mandar esta

nem

cantadas perto

de

para me

mim separar!!!!

entra na fila mais sem me pertubar se nao vai ser expulso dela!” (Erika C.) Esta nova realidade tecnológica tanto aproxima o Brasil de outros contextos e vice-versa, como reaproxima manas que a determinado momento, se encontram geograficamente distantes e, no dia seguinte, podem estar juntas noutro país ou noutra cidade portuguesa ou europeia. O ser-se viajada, como já afirmámos, é igualmente uma imagem valorizada e expressa nas fotos publicadas – visitas à Eurodisney, fotos de passeios turísticos ao Moulin Rouge, Torre Ifel ou de cidades como Amsterdão, Milão, Atenas, Lisboa, Barcelona, Madrid. Registando os percursos adoptados, exibem as suas conquistas materiais, também evidenciadas através da sua capacidade financeira (indissociável do exercício da prostituição) para realizar viagens e turismo. Este assumir de uma capacidade financeira que lhes permite ter poder aquisitivo visa não apenas reforçar toda uma envolvente com que constroem a sua travestidade, mas principalmente atingir ganhos identitários no contexto de origem, sobretudo relativamente à família que a dada altura as segregou e, paralelamente, em relação às manas, alvo de feroz competição.

216

É também comum a descrição, através de fotos, de processos de recuperação de cirurgias não clandestinas reveladoras de estatuto e capacidade financeira, bem como das bombações clandestinas, mostrando às travestis no Brasil como se estão transformando e a sua capacidade económica para o fazer. Por acréscimo, exibem fotos dos seus Iphones, tablets, IPads, perfumes, roupas de marca (griff), momentos de lazer passados em estâncias de luxo, onde as fotos evidenciam as piscinas, o champagne ou os repastos refinados. Deste modo o seu estatuto é comunicado às outras travestis, a familiares e amigos (ou não amigos) no Brasil e a clientes em muitas partes do mundo. Brasileira, meiga e com swing, viajada, procurada e desejada por clientes, detentora de produtos caros que indiciam poder aquisitivo não só comunica estatuto para o Brasil, como também para colegas e clientes nos vários contextos de acolhimento por onde passam. Situamo-nos, neste âmbito, num emaranhado de redes que se vão sobrepondo e intersectando, quer no plano das relações, quer nos variados contextos geográficos envolvidos, quer ainda ao nível das representações sobre o outro, do que o outro espera de nós e da construção de um nós fora do Brasil218 – as Éuropeias.

7.4.2. Ganhos materiais e identitários no contexto de origem Da primeira vez que se deslocou ao Brasil de férias, Adriana comprou um carro apesar de não possuir carta de condução. (…) ganham muito para poder ter algo lá, ganham muito mais, acho que é isso que faz com que a “gente” tenha mais força para lutar, pelo dia a dia, porque a sociedade quando vê a “gente” com condições financeiras ela já começa a olhar a “gente” com outros olhos, porque pode ser o que

218

Aquando da Taça das Confederações de futebol realizada no Brasil, no decorrer de 2013, tumultuada e marcada por reivindicações e contestações populares várias, na rede social facebook as travestis mostravamse integradas nesse protesto, publicando os seus posts e comentários: O lula foi alfabetizar o povo brasileiro na vez dele e agora a dilma na vez dela se lasco!!! O Brasil não e mais burro ! O lula esquentou a batata e jogou na mão da dilma O amigao. (Erika C.25-06-2013) DILMA ACABOU DE SE PRONUNCIAR...PRA MIM O RECADO DO PRONUNCIAMENTO DELA FOI ..." TÁ EU VOU OUVIR O QUE VCS QUEREM E TENTAR FAZER....MAS DEIXEM DE QUEBRAR TUDO POR FAVOR (Alexia P. 23-06-2013) Day L. num comentário à situação vivida no Brasil e relativamente aos ecos em Portugal afirma: POIS E PURA VERDADE MAS CA JORNAIS QUANDO PASSA MISERIA FALAM LOGO BRASIL ISTO E QUE FODE TODO PAIS. (20-06-2013)

217

for…mas é uma pessoa independente, é uma pessoa com uma situação financeira boa, tem bens, tem isto, aquilo e o outro e vê a “gente” de outra forma!

Exemplos extremos e pitorescos de afirmação de capacidade financeira são-nos também relatados por Tamara. Elas quando chegam no Brasil compram carros importados novos e quando voltam para a Europa vendem, fazem isso para mostrar. Na minha cidade uma travesti tem até motorista que lhe leva almoço ao salão onde ela faz unhas, cabelo, etc…

Noutros episódios, a relação de poderes é invertida no contexto de origem e a estrutura de alguma forma se submete ao processo de distorção travesti, reflectindo uma mobilidade social ascendente que emerge com o projecto migratório, Europeu. Por exemplo, Adriana chegou a ser convidada pelo prefeito do município de onde é natural para assistir ao desfile de carnaval na tribuna VIP, “ele sabia que eu podia fazer investimento lá!” – ao que ela correspondeu com assentimento, assistindo ao cortejo nas bancadas VIP, mas “com as mamas de fora!” – Conta, rindo muito. Este episódio revelanos uma outra forma de translocational positionality.219 Jamais Adriana, antes de emigrar para a Europa e de atingir um determinado patamar financeiro – que lhe atribui um outro estatuto na terra de origem - poderia aspirar a ser convidada para um evento como aquele e muito menos sequer pensar em colocar os seus peitos de silicone para fora aos olhos de todos os presentes. Contudo, a variável financeira alterou as condições da interacção, transformando o cenário em que ela se processou e, em resultado da diferente conjugação de variáveis, tal tornou-se possível. Os bens materiais desempenham uma função relevante no reposicionamento social, afectivo e identitário das travestis, ao permitirem 1) mobilidade; 2) migrações de género. (cirurgias); 3) ganhos de capitais sociais variados e maior acesso à gestão de recursos no seio da comunidade travesti; 4) ascensão social na sociedade brasileira e no próprio grupo; 5) reconstrução de relações amorosas em moldes socialmente inteligíveis. (os maridos); 6) restruturação parcial das relações familiares através das remessas.

219

Indivíduos colocados em cada categoria relacionalmente hierarquizada podem ocupar diferentes posicionamentos hierárquicos noutras categorias, ou seja, podem ser diferentemente hierarquizados, quer em função das categorias intervenientes na interacção, quer em função dos diferentes espaços onde essas mesmas categorias são hierarquizadas e valorizadas de forma distinta. (Anthias e Gabriela, 2000:5, Cf. no mesmo sentido Raposo e Togni, 2009:34-35) 218

7.4.3. As remessas e sua função social, familiar e económica A imigração brasileira caracteriza-se por uma grande taxa de envio de remessas (Peixoto e Figueiredo in Malheiros, 2007:108, Rossi, 2004). A disponibilidade para enviar dinheiro para o seu país de origem constitui uma parte integrante da motivação para o projecto migratório. (D´Almeida, 2004:14). Tal é comprovado quando constatamos que as remessas representam 7% das exportações brasileiras e, se para tal considerarmos a mão-de-obra excedente e a que emigrou, verifica-se que resultam dividendos óbvios das remessas para o Brasil, potenciando igualmente a diminuição da taxa de desemprego (Rossi in Malheiros, 2007:137). As remessas podem também ser entendidas como uma forma de financiamento externo ao Brasil e nesse caso, em 2003, representaram 51% dos investimentos externos directos no Brasil (Rossi, 2004, Rossi in Malheiros, 2007:138). As travestis não se excluem de dinâmicas mais vastas operantes no enquadramento social brasileiro ou global. As remessas revelam-se veículos de negociação nas relações familiares à distância, estendendo-se a todo um cenário mais vasto de relações com o contexto de origem. Também nos contextos de acolhimento, a importância das remessas é de natureza material e afectiva; assinala-se a sua relevância como potenciadoras da emergência de negócios com elas relacionadas - “bancos, agências financeiras, correios, casas de câmbio, agências de viagens e agentes financeiros do sector informal.” (Rossi in Malheiros, 2007:140). Em Portugal são inúmeras as actividades ligadas aos transnacionalismos brasileiros, por exemplo a agência de câmbios moneyexpress - balcões de atendimento público para o envio de dinheiro para o Brasil220 ou a criação de cartões telefónicos da Portugal Telecom, especificamente produzidos para o mercado das comunicações telefónicas realizadas com o Brasil ou, no caso das operadoras móveis, pacotes de

220

Exige que o brasileiro esteja legalizado, porém, como em muitas outras situações um brasileiro legalizado ou um português, podem enviar o dinheiro a pedido do imigrante indocumentado. Esta realidade foi por nós constatada, quando no Money express do Marquês de Pombal, assistimos a um brasileiro, aparentando algumas dificuldades económicas no modo como vestia, pede a um outro para lhe fazer o envio da remessa para o Brasil, com conhecimento e solidariedade dos brasileiros que estavam do outro lado do balcão. 219

chamadas internacionais a preços mais acessíveis, adicionados aos tarifários-base, destinados também exclusivamente ao Brasil.221 Também as travestis se enquadram neste perfil do migrante brasileiro que envia periodicamente remessas para o país de origem tendo como destino os familiares, maioritariamente “ajudando” as mães. Ajudo! Minha mãe, meus irmãos…é, a gente têm família, né? Sangue do sangue, não quero que ninguém passe necessidades! Aqui a gente não ganha muito, mas o pouquinho que a gente ganha aqui no Brasil é muito, né? O euro no Brasil são quase três vezes mais, quase três reais. Se eu junto 1000€ são R$3000.

As remessas não só reestruturam afectos, como revitalizam relações familiares total ou parcialmente destruídas aquando da sua saída de casa, motivada por desavenças familiares originadas pela orientação sexual e construção de género. Desta forma as remessas enviadas para a família reorientam relações agora à distância que, todavia e de forma ambígua, se tornaram mais próximas: Eu senti…notei que a minha família começou a me aceitar mais, depois da minha condição financeira começar a melhorar…eu comecei a ganhar algum dinheiro, comecei a ajudar mais minha mãe…comecei a ajudar a pôr coisas dentro de casa…coisas que ela não tinha…que ela precisava, coisas que meus irmãos não faziam por ela, eu comecei a fazer. (Adriana)

Para além das ajudas a familiares – Adriana ajudando a mãe, Day. L. ajudando mãe, pai e irmãos, Larissa igualmente, Júlia Vellaskez ajudando o pai no tratamento de um cancro, etc. – constata-se um outro tipo de remessas, as que operam através dos investimentos destinados a concretizar o sonho de ter uma casa sua (comum a outros migrantes), a adquirir casas degradadas (e promover o restauro das mesmas para posterior revenda) ou de construção da uma mini fazenda: “Quando saí de casa, eu pensava, eu não quero isto para mim, eu aqui nunca vou ter nada. Quero ter minha casinha, minhas coisa. Aqui não vou ter nada!” (Armanda Parllatori); “Eu investia em casa velha, arranjava e depois vendia’ (Adriana). Agora não está dando mais não.”

221

Este processo não é exclusivo do Brasil, ocorre com muitos outros países e com as suas comunidades residentes em Portugal, mas enquanto produtos providenciados pelas operadoras, são vendidos separadamente. 220

Este tipo de investimento realizado à distância não só dinamiza a construção civil no país de origem criando postos de trabalho, como mantêm a vários níveis as relações transnacionais entre emigrantes e contexto de origem (Cf. no mesmo sentido Rossi 2004 in Malheiros, 2007). Estes pequenos empreendimentos são geralmente mediados no Brasil por familiares, no caso de Adriana por uma prima e uma irmã. Tais apoios na origem atravessam não raramente alguns períodos em que a confiança necessária se vê ameaçada. Desde que minha mãe morreu, não mandei mais dinheiro não, só se for um caso de saúde ou algo de muito urgente. Minha irmã quando minha mãe era viva recebia 1500 reais por mês e nunca dava, e era à parte de medicamento e comida que alguns meus irmão ajudava. Eles pensam que a gente por estar em Espanha ou Portugal somos rica e esperam sempre dinheiro. Minha irmã dava aos filho leite NIDO e eles comiam à colher na sala, jogavam bolacha no chão. Se o dinheiro fosse deles não faziam isso não. (Adriana)

As relações familiares à distância no caso travesti são suportadas por trocas assimétricas. “O fluxo unidireccional de bens e dinheiro das travestis para as suas famílias processa-se de forma análoga ao fluxo de bens e dinheiro das travestis para os seus namorados.” (Kulick, 1998:181).222 O dinheiro converte-se neste sentido numa das razões centrais da prostituição travesti, embora não a única.

223

Estas trocas desiguais não são,

todavia, desconhecidas para elas; têm consciência do porquê das relações familiares sofrerem alterações quando começam a apresentar uma outra condição financeira, assim como sabem o que significa na maioria dos casos ter marido. “Elas precisam ganhar mais dinheiro, em parte para poderem comer e pagar despesas e numa outra vertente, para manter e alimentar relações afectivas com os namorados e família.” (Kulick, 1998:182) Para além de lhes permitir pagar despesas e alimentar afectos, existe uma outra dimensão relevante do dinheiro. O dinheiro e os bens materiais conferem-lhes poder, poder esse, que nunca tinham tido até se iniciarem na prostituição. Nomeadamente passam a ser ouvidas e respeitadas na família e na rua, exibem os seus namorados – desafiando a heteronormatividade, enquanto paralelamente a confirmam.

222

As relações entre travestis e namorados assentam num esquema relacional assimétrico em que as travestis devem dar em dois aspectos, dinheiro e sexo. (Kulick, 1998:130) 223

Apesar do dinheiro desempenhar um papel relevante e determinante no facto de as travestis se prostituirem não são, no entanto, o único motivo porque o fazem. Com efeito elas retiram prazer da actividade a que se dedicam. (Kulick, 1998:183) 221

7.5. Bens materiais, grupo e competição É no seio do grupo travesti inserido no âmbito da prática da prostituição que se gere um enorme manancial de recursos e solidariedades, embora por vezes de forma ambígua. Deste modo, as travestis revelam estar atentas às possibilidades que inadvertidamente lhes são conferidas pela/s estrutura/s, tidas como vantagens mais facilmente descortinadas, aproveitadas e mobilizadas no seio do grupo. Não obstante, é num domínio mais ou menos restrito do grupo que todas essas possibilidades são geridas através de hierarquização e estratificação, mediante a gestão de recursos presentes nas interacções, no âmbito da rede social construída e em contínuo processo de reestruturação. O mesmo grupo onde se dá o amadrinhamento ou onde constatamos a figura da mãe tem também a cafetina e a dona de rua. Por esta via não só se gerem as expectativas do grupo perante o comportamento dos sujeitos, como as expectativas dos sujeitos perante o grupo. E o mesmo grupo cujos membros propõem habitações para permuta, democratizando o acesso a um outro tipo de prostituição que não é mais de rua - o mais baixo na hierarquia - opera e estimula a competição pelo acesso aos bens materiais ou outros. Estes recursos não só permitem as cirurgias e a angariação de mais clientes, como também o acesso a um leque mais amplo de capitais sociais e simbólicos. Como tal, a relação entre travestis ultrapassa os limites da mera solidariedade e assenta paralelamente numa permanente competitividade. Tamara aponta a falta de união entre travestis como uma característica do grupo, consubstanciada numa constante competição por clientes e um ávido desejo de mostrar que se tem mais que as outras, expresso na evidenciação ostensiva de capacidade aquisitiva por parte dos indivíduos. Daí as fotos (previamente mencionadas) que expõem no facebook os seus Iphones, tablets, perfumes ou roupas de marca, etc. De dinheiro? É assim, há dias que se faz só um clientinho, mas dá pra levar. Tem travesti vaidosa, gasta em roupa de marca, malas de marca pra viajar, mas depois não tem nada. Compra perfume Chanel, cremes caro, pras outra pensar que é rica! Eu uso um perfume baratinho de 50 euros, tenho mais é que me orientar. (Armanda Parllatori)

Existem, portanto, ganhos atingidos e sublinhados socialmente mas, no entanto, direccionados para fora do grupo e ganhos evidenciados e atingidos para dentro com os quais procuram alcançar uma determinada eficácia no universo travesti.

222

Não confio em travesti, são invejosas e querem saber quanto você ganha, o que tem, tudinho. Posso dormir com um homem, mas com travesti não, sempre de olho aberto. Na Grécia tinha um lenço de usar ao pescoço, costurei um forro e era lá que guardava o dinheiro. Não confio não. (Armanda Parllatori)

Em sentido confluente, Adriana relata um episódio ocorrido na Boca do Lixo, em que a colega que a deixou ficar no seu quarto começa a “detestá-la” quando verifica que Adriana (ainda sem transformação completa do corpo) estava ganhando mais do que ela que era já “travesti completa” e de “corpo feito”. Como consequência desse sentimento latente de frustração, rouba-lhe as economias que escondia na televisão. Júlia Vellaskez sublinha igualmente que “existe uma competição muito grande entre as travestis (...) de quem pode mais, quem tem mais, quem é mais bonita, quem já fez mais plásticas.” Essa competição é igualmente constatável na disputa que activam relativamente aos maridos das outras, pelo que o comportamento de colegas travestis e dos maridos perante elas, merece como já foi dito, uma especial atenção. Precisam estar atentas se as manas lhes oferecem presentes ou dinheiro (Kulick,1998:106). “Se for-me trair, que seja com uma mulher. Uma mulher, eu nunca vou ser. Posso ter a forma, mas nunca vou ser uma. Eu tenho consciência disso!” (Adriana). A mulher adquire neste contexto um conjunto de aspectos valorados diferencialmente, tornando uma hipotética traição com uma mulher menos dolorosa. (Pelúcio, 2006:529) Esta

constante

hierarquização

apresenta

referentes

vários



travesti

completa/incompleta, com silicone/hormonizada, cafetina/não cafetina, Européia/não Européia, poliglota/não poliglota224, viajada/não viajada, internacional/não internacional, casada/não casada, legal/indocumentada. Erika C. coloca no facebook foto do seu cartão de Familiar de Cidadão da União Europeia Natural de Estado Terceiro e por cima da foto escreve: “Para aquelas que fala de mim e diz que e fácil fazer. Falar e fácil quero ver fazer. Documentada! bjs pra elas”. Esta foto exemplifica como a incessante competitividade hierarquizante constitui uma característica inerente ao ser-se travesti brasileira no âmbito da prostituição. Esta dinâmica acompanha também hierarquizações absorvidas a partir da estrutura, mas com uma outra eficácia almejada no interior do grupo. Day L. fala de Alexandra que conhecemos em casa de Adriana no Porto: “ela é gente boa, mas quando regressa a Portugal superioriza-se às outras que cá estão e afirma 224

Ressalve-se que em muitos dos casos em que dizem falar várias línguas, isso na verdade não sucede. O falar várias línguas tem mais a ver com os países por onde passaram e onde aprenderam algumas palavras ou frases. 223

que Portugal só para passar férias.” Day L. comenta que aqui se ganha muito menos, ela própria esteve em Espanha. Deste modo, as travestis aproveitam e exercem hierarquizações – centros e periferias – estabelecidas estruturalmente a um nível macro, das quais se revelam conhecedoras.

7.6. Brasilidades: algumas reflexões A aproximação ao estereótipo português sobre o brasileiro parece facilitar a vida do imigrante dessa nacionalidade que consegue, mediante tal estratégia, obter emprego, mais rapidamente. Por outro lado, a imagem que o imigrante passa a vender como a do “autêntico brasileiro” – ou neste caso da brasileira meiga e sensual – converte-se nessa imagem exotizada/essencializada (Machado in Malheiros, 2007:174), isto é, naquela que estrategicamente lhe confere mais benefícios. A esta realidade subjaz uma outra, a de que as interacções se processam em diversas escalas e com a intervenção de variáveis diversamente valoradas. A partir de certa altura o próprio brasileiro pode passar a competir com outros brasileiros pela incorporação dessa brasilidade, excluindo-se do grupo aqueles que não se constituem como “verdadeiros brasileiros”, segundo aquilo que deles é esperado no contexto de acolhimento. Em processo análogo, um português pode competir com o/a brasileiro pela sua imagem essencializada quando integrado num determinado mercado laboral, do qual retira a percepção de serem as qualidades valoradas, aquelas que correspondem ao ser “brasileiro”. É o caso de Érika carr., travesti portuguesa que conhecemos igualmente em casa de Adriana quando lá iniciou o processo de “fazer o corpo” em 2007. Erika ao atender as chamadas de clientes recorre ao sotaque brasileiro, deixando entrever uma representação implícita de que ser travesti e trabalhadora do sexo é ser brasileira e, paralelamente, que é isso que os clientes esperam e desejam. Também Catia N., travesti portuguesa da nova vaga, com corpo feito e com anúncio na internet, incorpora alguns traços da brasilidade identitária travesti quando coloca no facebook um anúncio que recorre a algumas expressões da gíria das travestis brasileiras. PRAÇA no porto.... Boavista , zona bem silenciosa, discreta , SIGILOSA, calma , cm estacionamento a porta , apartamento sucegado , higienico, CM QUARTO TDO EQUIPADO, CM PLASMA INTTERNET, , cozinha , casa de banho cm banheira , 1 andar cm elevador , situado junto do 224

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Neste contexto em que operam representações e estratégias que cruzam continentes, Terto JR dá especial enfoque à hierarquização e à dominação que se estabelece no âmbito das relações de classe, sexo, género e nacionalidade (2003). No caso brasileiro, as variáveis sexo/género são sobejamente valorizadas, não de uma forma unilateral e eurocêntrica, mas também por condições específicas do contexto brasileiro que a favorecem. Neste sentido, num trabalho realizado em Fortaleza sob a temática do turismo sexual, Piscitelli considera ser a representação generalizada dos turistas sobre as nativas – a de que são meigas e sensuais – um dos motivos da escolha daquele destino turístico em detrimento de outros. É uma avaliação positiva comum a várias nacionalidades, a de que a mulher brasileira tem uma personalidade afável e um temperamento determinado em função da sua nacionalidade e clima (Piscitelli, 2004:12), à qual corresponde o outro lado da moeda; o processo de etnicização/naturalização leva a que a incorporação nos mercados informais da prostituição se processe com alguma naturalidade em certos países do Sul da Europa (King e Zontini, 2000), identificando discriminatoriamente brasileiras com prostituição. Estrangeiros de variadas nacionalidades procurando por sexo, salientam a importância das mulheres locais na sua escolha do destino túristico. Eles concordam numa representação positive do carácter amigável da mulher brasileira. Este carácter, representado, faz parte dos atributos incorporados pela mulher nativa. (Piscitelli, 2004:12)

As autóctones possuem conhecimento dessa representação e no âmbito da prostituição tentam corresponder ao máximo ao que delas é esperado. Verifica-se que, em contextos migratórios internacionais, esse conhecimento é transportado, fazendo emergir em contexto de acolhimento uma subjugação estratégica à representação étnica do sexo, género e temperamento brasileiro. (Cf. Machado, 1999, 2003, in Malheiros, 2007 e Piscitelli, 2007)225

225

Em Portugal, tal como noutros países do sul da Europa (King e Zontini, 2000), verifica-se uma estrutura económica dominada pelo sector terciário com nichos laborais com características especificamente étnicas e de género. Assim, estes autores afirmam a existencia de “dois nichos do mercado laboral exclusivamente reservados à imigração feminina225: “o serviço doméstico e a prostituição.” (King e Zontini, 2000:46). “Por 225

Tais hierarquizações estabelecem-se portanto em várias escalas, começando desde logo no país de origem, mitigando-se posteriormente com o decorrer do projecto migratório nas teias das redes sociais dos países de acolhimento, operando sincretismos e estabelecendo novas variáveis226, no que diz respeito às expectativas do grupo perante os indivíduos, não necessariamente divergentes das constatadas no contexto de origem, mas diferenciadas em função das novas interacções estabelecidas. Verificamos igualmente que, sendo de forma geral a representação sobre os brasileiros positiva, embora distinta em função do sexo e género, existe um caso em que tal não sucede. É o caso das travestis brasileiras que se prostuituem no Conde Redondo (Pinho in Malheiros 2007:81), desde logo pela distorção das expressões de género convencionais, a que se acrescenta o carácter perverso da sexualidade praticada no âmbito da prostituição, segundo a eficácia dos sistemas género e sexo, respectivamente. A dor maior não é a do corpo, aquilo passa, a dor maior é a que fica no coração, essa é a dor maior (…) mas as pessoas são assim, têm essa visão da “gente”, nunca tiveram oportunidade de sentar e conversar com uma pessoa como nós, para tentar entender como nós somos, o que passa na nossa cabeça, se a “gente” sofre, se a “gente” não sofre, nunca as pessoa procuraram saber isso, elas pensam que a “gente” por ser o que somos é porque somos safados, vulgares, pessoas sem estudos, essas coisas…(Adriana)

último aparece o denominado comércio do sexo (sex trade) ou prostituição, no qual as brasileiras parecem dominar.” 225 (Padilla in Malheiros 2007:118) 226

Ribeiro salienta nalguns dos seus trabalhos que, nos casos em que a emigração brasileira se processa para São Francisco, Califórnia, os brasileiros são destituídos das suas raízes e incorporados no grupo dos Hispânicos. (1998, 1998ª, 1998b) 226

PARTE III – CONCLUSÕES Capítulo 8 - CONCLUSÃO

Todo o modo de vida travesti é uma viagem. Não se está, antes se chega e torna-se a partir, antes mesmo de se chegar a estar. “Como eu te disse é uma viagem sem volta…nós vamos ter problemas com a sociedade.” (Adriana). Esta viagem não só é expressa por um constante vai e vem estratégico entre masculino e feminino que Ekins e King considerariam um turismo de género caracterizado pela oscilação mas também pela materialização corporal - tecnologicamente mediada - de discursos acerca do feminino, reiterados por comportamentos hegemónicos compatíveis. Esta materialização, acompanhada por uma incorporação normativa, reflecte uma viagem sem volta porque consubstancia sinalizações substitutivas das originais, que remetem para o conceito de migração de género maioritariamente operacionalizado por substituições (Ekins e King, 2006). Em ambos os casos, constituem processos dinâmicos e em permanente devir através dos quais as noções de viagem e androginia imprimem nas travestis marcas de uma transitoriedade e fluidez identitária na relação com as estruturas, com os seus pares e consigo próprias. Dentro deste quadro, um dos elementos socio-estruturantes das suas práticas reside no facto de conceberem a orientação sexual de um modo que manipula estrategicamente a estrutura simbólica que emana da heteronormatividade, isto é, de definirem e classificarem as relações sexuais a partir do feminino e masculino circunstancialmente presentes e expressados em cada relação. Neste sentido, os sistemas sexo e género que Rubin (in Vance, 1984) considerava autónomos adquirem uma outra eficácia. Por via do sentir e expressar fenomenológico do corpo (Cf. Saleiro, 2013), os genitais presentes numa relação sexual podem ser apagados ou sublimados de tal forma que é a construção de género dos sujeitos em interacção que determina o tipo de relação sexual: homossexual ou heterossexual. Embora a transitoriedade impere, as travestis que acompanhámos não consubstanciam um terceiro género. Vão para além dos dois géneros estruturais, no sentido em que ultrapassam os limites estruturantes impostos a ambos, tornando-os porosos e interpenetráveis. Assumem-se como identidades e sexualidades trans. Apesar 227

da sua construção de género subverter e distorcer o masculino e feminino heteronormativos, (política e socialmente produzidos) apoiam-se neles para se expressarem identitariamente e para subsistirem materialmente. Esta ambiguidade estrategicamente fluida, como vimos, é sustentada por múltiplas competências simbólico-discursivas e performativas, manifestando-se simultaneamente em estratégias de mobilidade geográfica no âmbito das quais as travestis procuram descortinar oportunidades fornecidas por renovados contextos socio-históricos e simbólicos. Nesse sentido, a etnografia realizada procurou realçar as alternâncias estratégicas entre a abertura e o fechamento ao outro que as oprime, aceita ou simplesmente ignora e, numa outra escala, às estruturas nas quais se movem e perante as quais estrategicamente se posicionam conforme as possibilidades que contextualmente cada uma delas oferece. Esta acentuada mobilidade pode ser vista como um traço identitário das travestis brasileiras (quer em contexto brasileiro, quer em contexto emigratório), influenciando em muito a sua apetência (enquanto sujeitos e grupo) para construírem fronteiras porosas face a múltiplas lógicas simbólico-normativas, a qual opera como uma estratégia de viabilização dos seus empreendimentos que exigem o conhecimento do outro (mas não estranho). Neste sentido, mais do que a subversão da norma que efectivamente empreendem, a busca de uma sustentação simbólica constitui-se como base dos processos legitimantes das suas construções socio-identitárias; para tal necessitam de um sistema simbólico do qual possam retirar eficácias que lhes permitam a construção de auto-narrativas assumidas por elas próprias como legítimas e ontologicamente credíveis, ainda que plasticamente moldáveis. Deste modo, em primeiro lugar, o que confere alguma estabilidade à sua transitoriedade e fluidez identitária é o macro sistema simbólico no qual se posicionam. Esse sistema simbólico é partilhado com a heteronormatividade da qual foram objecto numa primeira socialização no âmbito da família, enquadrando relações sociais e sexualidades, e permitindo a inteligibilidade social de sujeitos em interacção organizada e orientada segundo determinadas relações de poder. Neste sentido, sujeitos organizados e socialmente posicionados segundo relações de poder emergentes de contextos sociopolíticos específicos, encontram na estrutura os meios para se autoentenderem e entenderem o outro, viabilizando-se enquanto tais, ainda que tal possa ocorrer pela negação ou pelo confronto. O simples acto de aceitar, incorporar, negar, rejeitar ou confrontar atribui ao sujeito uma existência no plano das estruturas. 228

Neste processo que Foucault chamou de reverse discourse (1978), o poder vê-se confrontado pelos mesmos pressupostos e mecanismos que o legitimam e constroem, pelo que as instituições não se mantêm imutáveis ao serem confrontadas com a sua própria desconstrução, antes pelo contrário, são compelidas a mudar pelo dinamismo social, que também as caracteriza e simultaneamente incorporam. Concomitantemente, e entendida pelas próprias travestis enquanto diferença identitária e recurso, a transitoriedade constrói-se no seio do grupo onde se socializam e com o outro com quem interagem, incorporando um ethos travesti brasileiro mediante o qual acedem a recursos que lhes permitem definir trajectórias de mobilidade entre muitos países da Europa e, antes, entre muitas cidades no Brasil. Tal como nas viagens de género, também nas mobilidades geográficas, elas oscilam entre o fora e o dentro da estrutura; algumas vezes são compelidas a aderir por razões estratégicas e, outras vezes, recorrem a apagamentos circunstanciais e cirúrgicos relativamente à mesma; retornando a ela em vários outros momentos para se legitimarem e viabilizarem enquanto sujeitos capacitados para estrategicamente aproveitarem as oportunidades que emergem desse dinamismo social. Tal exige o conhecimento do seu quadro legal face a imigrantes ou minorias sexuais/género, bem como a sua inserção em novas redes sociais nos contextos de acolhimento nas quais também emergem enquanto sujeitos e nas quais lhes é facilitado o acesso a uma outra gama de recursos em contexto migratório. Também neste ponto a sua fluidez e plasticidade funcionam estrategicamente, quando por exemplo se casam com homens, mulheres (gays, lésbicas ou heterossexuais) ou até com outras travestis para obterem a legalização, sem que tal envolva a noção de casamento legal em que um dos requisitos é a coabitação. Incorrendo neste caso concreto em acções ilícitas enquadradas no quadro legal do casamento por conveniência ou branco ou quando, chegadas a Itália algumas solicitam o estatuto de refugiadas, invocando para tal a violência e discriminação de que dizem ser alvo no Brasil. Assim, embora a dada altura condenadas à pobreza e à estigmatização que as colocava sem apelo na base da hierarquia social brasileira, atingem por efeito da pertença ao grupo e da sua capacidade em fazer alternar ciclos de abertura e fechamento aos contextos societais externos, patamares de bem-estar outrora inimagináveis. Constatamos, portanto, que a ambiguidade e o carácter flutuante na construção identitária travesti, assente maioritariamente em vivências clandestinas e marginais, não resulta de um enunciado discursivo produzido dentro de um grupo fechado ou da produção de 229

sujeitos meramente através da inevitabilidade do apagamento ou confronto institucional. É, ao invés, uma consequência dos moldes em que a interacção social entre sujeitos, grupos de sujeitos e instituições historicamente se tem processado e processa, seja por apagamento, estigmatização, violência ou outras dinâmicas de interacção. Situando-se fora das instituições, sendo delas excluídas ou oscilando entre o fora e o dentro, adquirem viabilidade enquanto travestis, migrantes, trabalhadoras do sexo, mais ou menos afeminadas, familiares de, nacionais de, pertencentes a…. É neste meiotermo que as travestis jogam a sua sobrevivência enquanto grupo e sujeitos. Paralelamente, actuam como agentes de produção da diferença tanto perante o cliente, como perante a sociedade que as exclui ou perante os familiares que as abandonaram. Simultaneamente, reconhecem perante si próprias, a situação de vulnerabilidade social em que se encontram, construindo dispositivos colectivos de resistência e protecção grupais e interpessoais, para fazer face a um quadro geral já traçado, potenciador de instabilidades múltiplas nem todas com reflexos positivos no indivíduo. Na verdade, as travestis que estudámos vivem maioritariamente com travestis; viajam com outras travestis; são recebidas em qualquer país por outras travestis; festejam épocas especiais, com outras travestis; financiam viagens através das ajudas de outras travestis; são recebidas nas ruas por outras travestis; aprendem a prostituir-se com outras travestis; competem com outras travestis. Tal não significa que não tenham maridos com quem mantêm relações afectivas ou amigas que lhes fazem as unhas, amigas trabalhadoras do sexo (mulheres) que em trânsito pernoitem em suas casas, ou pais e mães de quem no fundo sentem saudades e pelos quais, por vezes, nutrem sentimentos contraditórios, mas sim que esta proximidade entre travestis funciona como uma segunda família que, a dada altura, toma a primazia da primeira, como estratégia de sobrevivência e resistência. Esta importância do grupo no delinear dos trajectos individuais ocorre também num clima de múltiplas ambivalências: entre a cafetina e a mãe ou a madrinha, entre as manas e os clientes ou entre manas e a chefe da rua. A etnografia permitiu-nos auscultar o clima de violência em que as travestis se prostituem no Brasil, sendo de resto um dos motivos que as leva a emigrar. Esta violência exprime-se em duas escalas distintas: a primeira é exercida entre elementos do grupo, definindo hierarquias ou impondo expectativas, sendo atenuada por laços de solidariedade sempre presentes; a segunda aquela que mais intimida as travestis - é exercida pela sociedade em geral; polícia, 230

transeuntes ou família. Fugindo deste contexto social agreste, as travestis em Portugal parecem valorizar especialmente a segurança com que se podem deslocar no espaço público e a segurança do atendimento em domicílio, pelo que a violência entre membros do grupo ou entre estes e o outro não travesti diminui consideravelmente. Poderem andar na rua, passearem num centro comercial ou sentarem-se numa esplanada sem serem agredidas ou verbalmente ofendidas - ainda que muitas vezes expostas a um olhar alheio, sentido como censura - é tido como uma conquista e a um certo nível, como um reconhecimento da sua dignidade humana. No entanto, algumas querem mais e mais, e também mais dinheiro. Tal surge como consequência do dinheiro desempenhar uma função fulcral nas suas vidas, alimentando muitas vezes o reavivar das relações familiares ou a manutenção das relações com os maridos, culminando numa troca entre as partes profundamente assimétrica. Neste sentido Portugal opera ainda como uma plataforma de interface para travestis brasileiras que pretendem morar e prostituir-se em Espanha, Itália, França, Bélgica, Grécia, Alemanha ou outros países da E.U.227 Entre todos esses países e o contexto de origem recriam-se conexões mediadas pela internet. Também a este nível se jogam estrategicamente capitais sociais e se estabelecem hierarquias entre as que ganham mais e menos, entre as que viajam mais e menos, entre as que têm casa e as que nestas casas alugam quartos, entre as que adquiriram cidadania espanhola, portuguesa, italiana ou…as que permanecem indocumentadas. Por acréscimo, o contexto europeu em que os países do sul da Europa aparecem como os mais procurados pelas travestis (pela menor rigidez no controlo de fronteiras e migrantes indocumentados)228 fomenta um outro tipo de capitais sociais, culturais e materiais. O dinheiro ganho na prostituição permite a compra de bens valorizados, os investimentos realizados à distância no Brasil – em propriedades ou na sua restauração – o financiamento de viagens de novas travestis, ávidas por emigrar ou a injecção de capital em famílias carenciadas a vários níveis. Ao temor da chefe de rua ou à obrigação de residir em casa de cafetina, sucedem agora a capacidade aquisitiva e o incremento das

227

Estas viagens constantes, embora determinadas por razões profissionais, constituem-se paralelamente como uma forma de turismo que as satisfaz bastante. 228

Estando espalhadas pelos países da E.U. incluindo Alemanha, Suíça, Bélgica ou França, é em países como Itália, Espanha e Portugal (e até Grécia) que o fenómeno atinge uma maior dimensão. 231

remessas enviadas para o Brasil, testemunhadas na terra de origem pela pertença crescente às redes sociais ligadas em rede e em tempo real, confirmadas por familiares ou amigos através de elogiosos comentários às fotos das travestis junto dos Jerónimos, da torre Eifel, no aeroporto de Lisboa, nos Campos Elísios ou na EuroDisney. As travestis deixam de estar apenas associadas a crime, violência, sexo ou perversão;229 elas podem agora ajudar a família, promover o consumo e criar emprego no Brasil. Os capitais sociais e materiais que algumas das nossas interlocutoras conseguem alcançar não produzem eficácia apenas ao nível intra-grupal. São igualmente mobilizados na arena social brasileira onde as travestis (brasileiras) “europeias” exibem o seu poder económico e discutem o seu posicionamento social e familiar, bem como o seu lugar na estrutura – difundindo de uma outra forma a representação da Europa como associada a valores de bem-estar e tolerância. Neste enquadramento, as migrações e mobilidades de género e geográficas que estudámos não alteram apenas os sujeitos que as empreendem, mudam também os indivíduos com quem elas interagem imprimindo dinâmicas transformadoras à ordem mais ou menos estabelecida de relações sociais. Neste panorama de relações e interacções sociais secularmente instituídas em que o género é maioritariamente a divisão social dos sexos e comparativamente às outras categorias transgénero, bem como aos seus posicionamentos perante a estrutura, salientamos o facto de as travestis se afirmarem na primeira pessoa como categoria não cissexual, reflectindo as suas práticas e expressões de género – androgínicas - a autonomização dos sistemas sexo e género concebidos no plano teórico por Rubin, (in Vance, 1984). Enquanto, que as transexuais definidas e por vezes autodefinidas a partir da medicina, procuram a reconciliação entre sexo e género através de cirurgia e as crossdressers ou as dragqueens230, viver de forma compartimentada os dois géneros estruturais, de alguma forma reconhecendo-os como independentes e não misturáveis a um nível identitário. Como dissemos no primeiro capítulo desta tese, estas categorias 229

Existem casos, embora raros, de travestis envolvidas em actividades criminais. Jackeline Boing Boing (travesti brasileira que já residiu em Portugal e aonde regressa para rever amigos, anunciando na internet durante esses períodos) e outras 3 travestis brasileiras são detidas em Maio de 2015 em Itália, acusadas de apropriação indevida de passaporte e sequestro de cidadão brasileiro que havia viajado para a Europa nos termos descritos durante este trabalho; as ajudas. Foi no entanto libertada no dia seguinte. (Disponível em http://www.pupia.tv/2015/05/caserta-provincia/tenevano-sequestrato-un-25enne-brasiliano-arrestati-4transessuali/297694 230

As dragqueens embora nas suas performances apresentem de forma ambígua, retornam à sua identidade masculina fora desse âmbito, não misturando o que é performance artística e o que é identidade. 232

trans são também elas negociadas e renegociadas pelos próprios indivíduos, nunca correspondendo na plenitude o indivíduo assim considerado, à categoria que nasce da dialéctica mantida com a estrutura, a qual resulta numa abstracção conceptual. Assim, o que salientamos na comunidade travesti brasileira que abordamos, é o facto de não serem apenas um grupo com expressão de género ou orientação sexual minoritárias, facto que lhes confere traços identitários que emergem de múltiplos planos do social, os quais nos permitem auscultar-lhes regularidades bem vincadas em diversas vertentes, assentes por um lado numa androginia que não assenta no querer ser mulher ou num certo sentido no querer deixar de ser homem, mas sim, ser ambos ou até mais do que ambos quando isoladamente considerados e num outro plano, apresentando sintonias com as estratégias migratórias de brasileiros não travestis para Portugal que complementam com repertórios e estratégias definidas e difundidas no âmbito mais restrito do grupo. Por exemplo a constante rotação entre cidades em busca de novos clientes, que em Portugal tem nas cidades de maior dimensão uma maior procura. Esta dinâmica de constante mobilidade deixa entrever a forma como as travestis se distribuem pelo norte e centro do país, e subsidiariamente pelo Algarve, Madeira e Açores principalmente em época de Verão.231 É portanto mais uma vez este carácter androgínico, fluido, transitório, oscilante e mutante que melhor caracteriza as travestis, quer na sua identidade, quer nas estratégias empreendidas. No estudo de caso que realizámos, ser travesti é portanto indissociável do ser brasileira e trabalhadora do sexo. Tal justifica-se pelas circunstâncias específicas que influenciaram as suas vidas enquanto actores sociais dispersos e expressando a sua identidade de género ou vivendo a sua sexualidade em moldes mais ou menos circunscritos à esfera da sua rede de amigos ou conhecidos; e, a partir de dada altura, quando encontraram no grupo constituído por outras travestis (que se dedicavam à indústria do sexo) possibilidades concretas para a expressão de género ambicionada e sexualidades desejadas. Não será portanto estranho que a aplicação de silicone industrial em moldes totalmente clandestinos suceda pela primeira vez no Brasil (cidade de Curitiba) em 1981 (Kulick, 1998). Tais especificidades não são também alheias ao desenvolvimento de inúmeros trabalhos na área da travestilidade no contexto brasileiro. Em particular o de Don Kulick em Salvador (1998) que lhes atribuiu uma atenção 231

O Alentejo apenas em casos muito pontuais aparece como zona interessante para as travestis exercerem a prostituição. 233

académica até então inexistente, contribuindo para a construção de uma categoria de travesti que apenas tem correspondência com aquela que se observa no Brasil e, em virtude de processos migratórios, na Europa e mais especificamente em Portugal. Iniciada quando ainda são adolescentes, a viagem de género parece tornar-se menos tumultuada pela mobilidade geográfica. Todavia, há dilemas que durarão para sempre: A todas entristece…claro…você vai chegando a uma certa idade que a solidão aperta…a solidão afecta a “gente”, a solidão…nós somos seres humanos…nós temos coração, nós…nós gostamos das pessoas, nós temos sentimentos, nós somos uma pessoa normal como qualquer uma outra. Não somos diferentes de ninguém, então quer dizer…chega a uma certa altura da nossa vida que a solidão chega e aperta…e quando aperta…olha…é triste, a “gente” sofre, chora e…mas não pode fazer nada! É uma viagem sem volta, é o que a “gente” tem de pagar pela mudança que a “gente” fez e o que podemos tirar disso é seguir a vida para a frente e tentar tirar proveito disso. (Adriana)

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Anexo 1: Informantes Adriana - continua em Portugal, aguardando pelo julgamento do processo em que é acusada de tentativa de realização de casamento branco ou por conveniência. Indocumentada. Entretanto casa em 2015, enquanto, que o anterior processo é arquivado. Alexandra – Quase todos os anos vem a Portugal, no entanto a sua actividade passou a ser exercida com maior frequência em Frankfurt, Alemanha. Documentada através de casamento com nacional de Itália e celebrado em Espanha. Armanda Parllatori – Desde 2011 que pouco tempo está em Portugal. Todos os anos se desloca a Portugal, no entanto, apenas permanece por cá 2 ou 3 semanas e parte novamente. Casada com cidadão Espanhol, possui os documentos necessários para solicitar legalização. Não sentindo grande necessidade de o fazer, quando nos concedeu a entrevista. Não sabemos, neste momento, se já a solicitou. Em 2015 está em Paris. Day. L. – Após contrair matrimónio com cidadão português deixa de anunciar, sabemos no entanto, que permanece em Portugal. Documentada. Felina – Deixamos de ter contacto com ela em Setembro de 2014, não sabemos se, viajou para o Brasil ou se está em Itália. Em Janeiro regressa a Portugal após ter colocado um implante de mamas. Karime – continua em Portugal, alternando períodos de anúncio, com prostituição de rua. Indocumentada. Júlia vellaskes – Após muitos anos no Brasil, regressa em finais de 2014 a Barcelona. Indocumentada. Larissa – Após inúmeras dificuldades financeiras vividas em Portugal, desloca-se em 2013 para Itália. Indocumentada. Soraya – Prima de Tamara, em 2014 permanece em Portugal na cidade do Porto, de onde apenas sai para visitar parentes no Brasil. Indocumentada. Tamara – Após a realização da entrevista em 2010, deslocou-se a Portugal em 2012, desde então permanece no Brasil.

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Thalter – Deambulando pelo mundo. Mantendo contactos regulares com o Brasil através de viagens e com Portugal, ao qual se desloca todos os anos, por exemplo no Natal geralmente passado com Adriana e Alexandra. Em 2015 encontra-se em Barcelona. Indocumentada. Vanessa Nobre – Após muitos anos na Alemanha, regressa a Portugal em 2014, onde permanece em virtude de casamento por conveniência contraído com mulher de nacionalidade portuguesa, quando o casamento homossexual, não era ainda uma possibilidade legal. Documentada.

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Anexo 2 - Glossário Bicha – Palavra que,quando usada nas interacções entre travestis, é uma forma jocosa de dizer que não passa de um homossexual, não tendo chegado a travesti. Tem uma função hierarquizante. Bofe – Homem. Bombar – Aplicar clandestinamente silicone. Cafetina – Chula. Proxeneta. Dona de rua – Travesti, geralmente com maior antiguidade e temida pelas suas façanhas, não apenas como trabalhadora do sexo, mas também no âmbito de outras práticas criminais. Európeia – Designa uma travesti viajada pela Europa, possui outros capitais simbólicos. Fazer função – Agredir de alguma forma as travestis que se prostituêm na rua, fisicamente, psicologicamente através de impropérios, arremessando ovos, etc. Gay - Palavra que, quando usada nas interacções entre travestis, é uma forma jocosa de dizer que não passa de um homossexual, não tendo chegado a travesti. Geralmente aplicada a indivíduos sem corpo feito. Tem uma função hierarquizante. Homem-bicha – Homem que desempenha o lado passivo numa relação sexual. Homem de verdade – Condensa em si simbolicamente as qualidades inerentes ao masculino estrutural heterossexual, activo, penetrador, determinado e valente. Másculo. Mãe – Expressão que revela imbricamentos com o termo madrinha, é a travesti mais velha, geralmente bem situada hierarquicamente no grupo, com capitais sociais e com facilidade no acesso à gestão de recursos, que pode colocar ao dispor das recém-chegadas, inclusivamente alojamento, mediante contra-partidas várias. Madrinha – Travesti mais velha que amadrinha a novata quando ela chega às ruas. Mana – Termo que designa outras travestis em viagem e que se prostituem. É um termo menos hierarquizante do que mãe ou madrinha. Estabelece paridade nas relações. Maricona – Homem que procura o lado passivo da relação sexual como cliente. 237

Maricona-Viciosa – Consubstancia duas qualidades desprezadas, a primeira não consentânea com um homem de verdade, que apenas executa o lado activo da relação sexual, a segunda relacionada com a primeira, traduz os clientes que procuram o lado passivo da relação de forma grátis, sem pagar. Óco – Homem. Peito de pomba – Após a aplicação clandestina de silicone para fazer os seios, as travestis têm que ficar sentadas com um apetrecho colocado nas mamase que as sustenta conferindo estabilidade, para impedir a sua movimentação. A mudança da posição de, sentada, pode fazer com que o peito descaia, resultando no que chamam de peito de pomba. Pista – Local, espaço para rodar, fazer pista, prostituir-se num determinado espaço ou local (cidade ou país, consoante a escala e contexto). Ponto – local específico onde se pode prostituir. Travesti top – Equiparada à europeia (geralmente são também europeias). Atingiu um patamar que acumula com a prostituição dividendos da actividade como actriz porno. Tombar – Redução de clientela. Varejar/varejo – Estragar o negócio aceitando clientes por valor inferior ao das colegas. Vicioso/viciosa – Vicioso é o cliente que procura sexo grátis, mal visto no meio, tal como o é a viciosa, travesti que faz sexo grátis na pista, desvalorizando assim o seu principal recurso de sobrevivência, o sexo.

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Anexo 3 - Acrónimos ACIDI – Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural CNCD - Conselho Nacional de Combate à Discriminação CT – Comité Técnico DST – Doenças sexualmente transmissíveis LGBT – Lésbicas, gays, bissexuais e transgéneros PALOPs – Países africanos de língua oficial portuguesa SEF – Serviço de Estrangeiros e Fronteiras SUS - Serviço Único de Saúde (brasileiro) PJ –Polícia Judiciária PT - partido trabalhista (brasileiro)

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