Travestis e transexuais femininas inseridas no mercado de trabalho em São Paulo e região

May 26, 2017 | Autor: T. Clemente Do Am... | Categoria: Transexualidade, Travestis, Transfobia
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Faculdade de Direito

TESE DE LÁUREA “Travestis e transexuais femininas inseridas no mercado de trabalho em São Paulo e região”

DTB – Direito do Trabalho e Seguridade Social Professor Marcus Orione Gonçalves Correia

THIAGO CLEMENTE DO AMARAL - Nº USP 3495499

SÃO PAULO, SETEMBRO DE 2013

ÍNDICE AGRADECIMENTOS....................................................................................................1 INTRODUÇÃO...............................................................................................................3

PARTE I: BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA NO BRASIL ATUAL 1. A homofobia no Brasil no período atual.................................................................6 2. Os avanços no STF e a fragilidade das conquistas jurídicas da população LGBT........................................................................................................................11

PARTE II: TRAVESTIS E TRANSEXUAIS FEMININAS: MUITO ALÉM DA HOMOFOBIA 1. Cuidados metodológicos: a (não-)diferenciação entre os conceitos "travesti" e transexual"...............................................................................................................17 2. Travestis, transexuais, gays afeminados e lésbicas masculinizadas no contexto do assimilacionismo LGBT....................................................................................23 3. A quebra do binarismo de gênero, a impossibilidade do armário e o preconceito de classe como fatores de recrudescimento da violência contra travestis e transexuais................................................................................................................28 4. A não-ruptura dos laços familiares e o início relativamente tardio do processo

de transformação de gênero....................................................................................32 5. Transfobia/travestifobia dentro do movimento LGBT........................................35

PARTE III: A INSERÇÃO DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS FEMININAS NO MERCADO DE TRABALHO FORMAL 1. O exército industrial de reserva e os seres abjetos.........................................38 2. A (não) integração de travestis e transexuais femininas no mercado de trabalho brasileiro no contexto de crise econômica mundial........................41 A) Serviço público: uma estabilidade bastante instável................................46 B) Telemarketing: trabalhando longe dos olhos............................................46 C) Entre cabelos, maquiagens e outras intervenções estéticas: trabalhando

nos bastidores...............................................................................................47 D) Trabalhos na iniciativa privada.................................................................48

CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................50

BIBLIOGRAFIA..........................................................................................................52

AGRADECIMENTOS

A meu orientador de pesquisa, o professor Marcus Orione Gonçalves Correia, primeiramente por ter aceitado orientar um tema de pesquisa não muito ortodoxo para os padrões da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Agradeço também por toda a atenção e dedicação ao longo do processo de elaboração e desenvolvimento da pesquisa. Tal apoio foi fundamental para a conclusão deste trabalho nos marcos em que o mesmo está escrito. A Eros Sester Prado Guimarães, por ter estado comigo do início ao fim deste trabalho, desde a ideia sobre o tema, passando por todas as etapas de seu desenvolvimento. Agradeço pelas conversas, pelas indicações de leitura, pela ajuda na elaboração do roteiro das entrevistas que realizei, e pela leitura cuidadosa do texto final. Nenhuma das palavras deste trabalho estariam escritas sem a sua constante ajuda e sem o seu permanente companheirismo. A Patrícia Rosa, grande amiga e companheira, com a qual muito debati minhas ideias, dentro e fora do hospital em que acabou falecendo. Muitos de seus pensamentos e questionamentos permeiam este trabalho, e lembro com muito carinho nossa curta caminhada conjunta antes de sua partida. A minha mãe e a minha irmã, por estarem sempre presentes na minha vida, apoiando-me em todas as minhas decisões pessoais e acadêmicas. A meu pai, que faleceu enquanto eu cursava o segundo ano da faculdade, mas cujos valores continuam me acompanhando em cada passo que dou. Sem o carinho e a compreensão destes meus familiares minha trajetória até aqui teria sido muito distinta. A meus amigos de maneira em geral, com os quais conversei sobre esta pesquisa, e dos quais absorvi muitas ideias importantes. Cito especialmente Maíra Gebara, Dário Neto, Tairo Esperança, Guilherme Moraes, Talita Spada, Maria Eugênia Peres Calixto, Luiz Fernando Guimarães, Adriano Milan, Leandro Paixão, Marilene Mendes, Mariana Menna, Mara Isa, Felipe Policisse, João Henrique Custódio, Nádia Gebara, Marcelo Perillo, André Leal, Alexandre De Chiara, Ticiane Natale, Wilson Silva, Adriano Milan, Gustavo Mesquita, Maykol Arancibia, Márcio Cotineli, Rafael Dutra, Esther Ambrozio, Pablo Biondi, Reginaldo Frieden, Gabriela Hipólito e Luanda

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Dessana. Agradeço em especial a Aleksei Neves, pela leitura mais cuidadosa do texto final deste trabalho e pelas sugestões de alterações. Peço perdão àqueles que possa ter esquecido de citar. A meus companheiros de militância estudantil do Fórum de Esquerda, Canto Geral e Coletivo Avante. A meus companheiros de militância sindical do Comando da Base do Tribunal de Justiça de São Paulo. A meus companheiros de militância partidária do PSTU. Este trabalho está completamente moldado pelas experiências coletivas das quais tive (e tenho) a honra de participar. Ao jornalista Neto Lucon, que me indicou os primeiros contatos das pessoas com as quais realizei as entrevistas para este trabalho. A Patrícia Nunes, pelas conversas semanais que tivemos durante quase todo o ano passado, e que também serviram para aumentar minha confiança no tema e na forma de tratá-lo neste trabalho. Por fim, às meninas que me concederam a honra de entrevistá-las: Thayná Rodrigues, Geanne Greggio, Daniella Andrade, Josiane Ferreira de Sousa e Jacqueline Chanel. Espero ter conseguido fazer um trabalho condizente com suas expectativas.

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INTRODUÇÃO

Iniciei esta pesquisa em agosto de 2012, quando tive que definir o tema que iria tratar em minha Tese de Láurea a ser entregue em 2013 à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, requisito necessário para a obtenção do título de Bacharel neste curso. Após inúmeras conversas como meu então namorado sobre a situação da população LGBT 1 (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Trangêneros) no Brasil, foi sendo despertado meu incômodo no que diz respeito à discrepância entre os avanços obtidos nas últimas décadas entre os seguimentos lésbico, gay e bissexual, por um lado, e o segmento das travestis e transexuais, por outro. Por que travestis e transexuais seguem sendo assassinadas nas ruas quase que diariamente, muitas vezes de maneira extremamente brutal, sem que haja comoção dos governos e da população em geral quanto a isto? Por que a estas pessoas uma das poucas alternativas viáveis para a sobrevivência é a prostituição, e a sua inserção no mercado de trabalho formal continua sendo tão difícil? Quais os elementos de transfobia e travestifobia que existem dentro do próprio movimento LGBT como um todo que reforçam estas questões? Resolvi ler todos os textos que me chegaram às mãos sobre este tema no Brasil dos últimos 25 anos, em áreas que tais como Psicologia, Antropologia e Direito. Participei de três encontros que debateram sexualidade e gênero (o X Encontro Nacional Universitário sobre Diversidade Sexual - ENUDS, em Seropédica-RJ, em novembro de 2012; o III Seminário Enlaçando Sexualidades, em Salvador-BA, em maio de 2013; e o XI ENUDS, em Matinhos-PR, em agosto de 2013). Nos dois primeiros eventos, apresentei trabalhos sobre o tema 2 (AMARAL: 2013). Participei também de debates

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Opto por usar a sigla LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros) ao longo deste trabalho, por ela ser a mais utilizada atualmente nos movimentos de reivindicações dos direitos deste setor da população. Contraponho esta à sigla GLS, utilizada mais em contextos específicos de lazer e cultura, conforme Jorge Leite Jr. (2011) 2

Infelizmente, ao que me consta, os anais do X ENUDS ainda não foram disponibilizados.

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como o Transvisão – Semana de Visibilidade Trans, promovido em janeiro de 2013 pela SP Escola de Teatro, na Praça Roosevelt. Além destas leituras e da participação em eventos, entrevistei cinco travestis/transexuais no primeiro semestre do ano, para perceber como os estudos teóricos realizados se coadunavam ou não com a experiência concreta relatada por estas pessoas. Todas as entrevistas foram realizadas no primeiro semestre de 2013. Três delas foram feitas na cidade de São Paulo, uma em Embu das Artes e outra em Campinas. Possuíam, quando entrevistadas, idades entre 26 e 48 anos. Suas profissões eram: agente de saúde/professora, cabeleireira, analista de sistema, e atendente de telemarketing. Uma delas trabalhava como operária em grandes empresas na região de Jaguariúna e Campinas, e no momento da entrevista estava desempregada. Também foi de fundamental importância a pesquisa que realizei no Instituto Edgard Leuenroth, na Unicamp, que me possibilitou, por meio da consulta a artigos de jornal dos anos 1970 e 1980, perceber como tem sido o (não-)desenvolvimento do combate à homofobia, transfobia e travestifobia ao longo das últimas décadas. Roteiro de leitura Separei este trabalho em três partes principais. Na primeira, faço breve discussão sobre como está a situação brasileira atual no que tange à questão da homofobia como um todo, mencionando exemplos que ocorreram diretamente comigo ao longo da pesquisa. Abordo tópicos como o reconhecimento pelo STF da união estável entre casais do mesmo sexo, as políticas estatais desenvolvidas no último período, a primazia dos discursos médicos sobre o tema, etc. Inicio a segunda parte com discussões metodológicas sobre a diferenciação dos termos “travesti” e “transexual”; debato a questão do chamado assimilacionismo gay na sociedade heterocentrada; discuto os fatores que levam travestis e transexuais a serem ultramarginalizadas na sociedade, e os fatores que minimizam isto em determinados contextos; e, por fim, debato a existência da transfobia/travestifobia dentro do movimento LGBT.

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Por fim, na terceira parte, entro efetivamente no tema a que me propus a falar: a inserção de travestis e transexuais femininas no mercado de trabalho. Discuto isto no contexto da crise econômica mundial que vivemos hoje. Aciono Marx e Butler para tentar explicar o papel destas pessoas na sociedade e, especificamente, no mundo do trabalho. Por fim, de maneira bastante breve, faço alguns comentários sobre a inserção destas pessoas em diversas áreas do mercado, a partir das entrevistas que realizei.

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I.

BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA NO BRASIL ATUAL

1. A homofobia no Brasil no período atual. Inicio este trabalho fazendo uma contextualização bastante geral sobre a questão da homofobia no Brasil nos últimos anos. Antes, cito o clássico trabalho de Borrillo, que afirma: “alguém pode ser objetivamente homofóbico e, ao mesmo tempo, considerar-se amigo de gays e lésbicas: o heterossexismo manifesta-se sem ter necessidade, de modo algum, da hostilidade e do ódio contra os ´pedés´ [pederastas], bastando-lhe justificar, intelectualmente, essa diferença que situa a homossexualidade em um patamar inferior” (BORRILLO, 2010:87) Na mesma linha, durante o evento SP TransVisão – Semana de Visibilidade Trans3, do qual participei, em janeiro de 2013, uma das advogadas que compunham a mesa, Drª Fabíola Marques, afirmou: “já tive clientes que mandaram embora determinados empregados pelo fato de serem homossexuais e ainda dizendo o seguinte: eu sentava na mesma cadeira que ele, eu usava o mesmo banheiro que ele”. Mais adiante, afirmou: “hoje em dia as pessoas têm até mesmo vergonha de discriminar. É bonito você falar de discriminação, é bonito você ter um amigo gay, é bonito você ter um amigo travesti, mas olha lá, né? Até certo ponto. Eu não quero meu filho gay, eu não quero meu filho travesti”. Diante do crescente entendimento da doutrina e jurisprudência relativamente à punição da discriminação homofóbica ou, em menor medida, transfóbica/travestifóbica, e mesmo diante da criação de leis neste sentido, surgem formas de discriminação mais

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Segundo site do evento, o mesmo foi promovido pela SP Escola de Teatro, em parceria com a Comissão da Diversidade Sexual e Combate à Homofobia da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção de São Paulo (OAB – SP); a Coordenação de Políticas para a Diversidade Sexual da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania; a Coordenadoria de Gênero, Raça e Etnias da Secretaria da Cultura; a Associação Brasileira de Transgêneros (Abrat); a Associação Brasileira de Homens Trans (ABHT); a Companhia de Teatro Os Satyros; a Associação dos Artistas Amigos da Praça (Adaap), e o Governo de São Paulo.

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sofisticadas. Assim, dificilmente uma empresa demite um funcionário sob a justificativa de o mesmo ter uma orientação não-heterossexual. Em minhas entrevistas, encontrei diversos casos mais ou menos claros de homofobia durante uma dada relação de emprego, ou mesmo durante algum processo seletivo, conforme mostrarei ao longo deste trabalho. Antes de me dedicar a estas questões específicas, afirmo, de início, que os avanços relativos à conquista de direitos, no que tange a cada segmento da população LGBT, têm se dado em velocidades muito distintas. E mesmo dentro de cada um destes segmentos não se pode dizer que tais conquistas se dão da mesma maneira. Um gay que mora em uma favela não sofre preconceito da mesma forma que um gay de classe média alta. Uma travesti que mora em uma cidade pequena no interior de Rondônia não sofre o mesmo tipo de preconceito que uma travesti que mora em São Paulo. Por mais óbvio que possa parecer esta ressalva, quero dizer que não existe uma categoria absoluta “Gay” ou “Travesti”, mas sim gays e travestis específicos, a depender do contexto social. Da mesma forma ocorre em relação aos demais segmentos LGBT. No entanto, nesta primeira parte do trabalho farei uma análise mais genérica da questão da homofobia no Brasil, para nas próximas duas partes esmiuçar detalhes sobre a opressão sofrida por travestis e transexuais femininas no contexto em que estudei. Neste primeiro capítulo, minhas análises teóricas serão permeadas com o relato de experiências homofóbicas que aconteceram comigo, desde que iniciei esta pesquisa. Buscarei, desta forma, exemplificar meus argumentos com vivências sofridas literalmente na pele. Feitas estas ponderações, posso afirmar que, em que pese alguns avanços bastante tímidos e pontuais dos governos e da sociedade como um todo para combater a homofobia, esta segue gerando números alarmantes de assassinatos em todo o Brasil. Segundo o mais recente relatório do GGB4 (Grupo Gay da Bahia), divulgado em janeiro de 2013, aconteceu um assassinato de caráter homofóbico a cada 26 horas no Brasil em 2012. Deste total, 37% é de travestis. No Estado de São Paulo, foi registrado

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O relatório em questão, bem como as notícias divulgadas na imprensa referentes aos dados apresentados no mesmo podem ser acessados no através do link homofobiamata.wordpress.com

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em 2012 o número de 45 assassinatos por motivos homofóbicos, dos quais 28 tiveram como vítimas travestis. Diante destes números alarmantes, afirma o relatório, de forma bastante contundente e inequívoca, que “nunca antes na história deste país foram assassinados e cometidos tantos crimes homofóbicos. A falta de políticas públicas dirigidas às minorias sexuais mancha de sangue as mãos de nossas autoridades”. Estes homicídios são apenas a ponta de um grande iceberg. Em Criminologia, existe o conceito de cifra negra, que se refere àquela parcela de crimes que não chegam a ser registrados, pelos mais diversos motivos, e que por isso não viram estatísticas. Entende-se que no caso dos homicídios esta cifra é bastante próxima de zero, por ser um crime de grande impacto social e difícil de ter suas evidências questionadas. No entanto, quero aqui discutir as várias formas de violências homofóbica no Brasil, que vai desde a violência física até agressões institucionalizadas que se apresentam de forma mais diluída. Começando pelas agressões físicas, pode-se perceber inúmeras referências em reportagens jornalísticas e em fóruns do movimento LGBT, para citar apenas dois exemplos. Neste último ano, fui agredido fisicamente por duas vezes em razão de homofobia. Na primeira delas, em junho de 2012, estava com meu então namorado, em um encontro LGBT que ocorre em uma praça próxima ao metrô Tatuapé, em São Paulo. Estávamos nos beijando, teoricamente em um espaço público em que não haveria nenhum problema de se fazer isso, quando fomos agredidos por um rapaz que parecia ser skinhead. Procuramos nos defender das agressões e a praça virou um palco de guerra. Não lembro quantos socos levamos, e acabamos por nos refugiar dentro de um bar, que teve de baixar as portas após uma garrafa de cerveja se espatifar no chão a alguns metros de nós. A noite terminou com a nossa escolta até o metrô, feita por cinco bombeiros civis que estavam na praça. Eles ligaram para a Polícia Militar, pela qual esperamos por quase trinta minutos, mas não apareceu ninguém. A propósito da atuação da Polícia Militar neste tipo de caso, acho importante ressaltar que na mesma semana eu e meu então namorado estávamos sentados em uma outra praça do Tatuapé (bairro onde ele mora), de mãos dadas, conversando, quando

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fomos abordados por policiais de armas e lanternas em punho. Após sermos revistados, perguntamos o motivo da abordagem, ao que nos foi alegado que estávamos cometendo atos libidinosos (embora estivéssemos apenas sentados de mãos dadas sob uma árvore). Devido a isto resolvemos marcar um protesto lúdico para alguns dias depois, na mesma praça, para por em evidência a falha da atuação policial. (ver, quanto a esta manifestação, os links http://igay.ig.com.br/2013-05-17/como-fica-a-vida-de-quemsofreu-um-ataque-homofobico.html

e

http://www.youtube.com/watch?v=wUs_cbTsoUI). Estas duas posturas da Polícia Militar, que ocorreram de forma bastante próxima do ponto de vista temporal e espacial, exemplifica de maneira clara qual a postura desta instituição no que tange à homofobia: em boa parte das vezes, os policiais são parte dos ataques homofóbicos, e não parte do combate aos mesmos. Trata-se claramente do aparato repressor do Estado a serviço do reforço de estereótipos dos mais variados tipos. O próprio relatório do GGB, já citado, mostra como se dá a relação entre violência policial e agressão à população LGBT5. Fala-se muito, dentro do movimento LGBT em geral, sobre os avanços na situação no que diz respeito ao reconhecimento de direitos e quanto à possibilidade de exercê-los. Costuma-se citar como exemplos programas como o Brasil Sem Homofobia, do Governo Federal, que elenca uma série de direitos que devem ser respeitados e reconhecidos. Em diversas cidades e Estados brasileiros surgem instituições voltadas ao combate à homofobia. Em São Paulo, por exemplo, existe a DECRADI (Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância), a Secretaria de Justiça, e o próprio Núcleo de Combate à Homofobia da Defensoria Pública. O problema é que muitas vezes estes órgãos não funcionam e estas políticas não saem do papel. Quando do problema ocorrido no bairro do Tatuapé, relatado acima, meu então namorado procurou o DECRADI, ao que ouviu do delegado: “não é possível

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Além desta violência (por ação ou omissão) realizada pelo aparato repressor estatal, pode-se afirmar que

a negação de assistência à saúde de qualidade às travestis e transexuais também é uma forma de violência estatal, a qual irei debater com mais vagar na segunda parte deste trabalho.

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fazer nada se o agressor não for individualizado”. Ora, como é possível realizar a identificação de um agressor em um local público enquanto se está sendo agredido? Em outra agressão que eu e meu então namorado sofremos, fica clara esta ineficiência institucional no combate à homofobia. Estávamos andando de mãos dadas, indo da Faculdade de Direito da USP até a minha casa, também no centro de São Paulo, quando, ao passar pelo Vd. Brigadeiro Luís Antônio, onde fica um terminal de ônibus, ouvimos assovios vindos em nossa direção. Ao percebemos que os autores dos gracejos eram o motorista, cobrador e fiscal da linha de ônibus, voltamos para conversar com eles. Dissemos que eles não poderiam fazer aquilo, ainda mais por estarem trabalhando para uma empresa sob concessão pública. Resolvi tirar fotos com meu celular da placa do ônibus, quando o motorista desceu completamente transtornado e me deu uma cabeçada. No dia seguinte fui até Núcleo de Combate à Homofobia da Defensoria Pública, com os dados da linha do ônibus, placa, local, etc. Desta vez, o agressor poderia ser individualizado. No entanto, meu relato foi encaminhado à Secretaria de Justiça do Estado, e pelas últimas informações que obtive com a Defensora que está acompanhando o caso (Drª Carla Ferreira Zapparoli), o mesmo ainda encontra-se esperando a manifestação da empresa em questão. Isto após mais de um ano dos fatos aqui narrados... Além destas violências físicas mais claras, os chistes, risos, comentários de canto, assovios, gracejos, olhares oblíquos ou mesmo diretos de reprovação permeiam a vida da maior parte da população LGBT, ainda mais quando estas pessoas resolvem viver sua sexualidade “fora do armário”. Por fim, cabe ainda citar neste contexto mais geral o papel nefasto dos discursos médicos majoritários sobre os corpos e a sexualidade das pessoas, para se determinar o que está dentro da “normalidade” e o que está fora. Carmen Dora Guimarães, em seu clássico trabalho6 realizado contemporaneamente às obras mais conhecidas de Foucault, afirma quanto às ideias deste, que: “a partir do século XIX, os mecanismos de poder em relação ao sexo se deslocam da Igreja e da Lei para a hegemonia da Educação e da Ciência. Será na prática de uma sciencia sexualis que se produzirá a verdade sobre o sexo (...)” (Guimarães, 2004:37). O discurso médico e das áreas psi, permeado de aura

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O homossexual visto por entendidos.

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científica, ao classificar as pessoas em normais e patológicas, reforça a homofobia cotidiana sofrida por milhares e milhares de pessoas todos os anos. Também o Direito possui seu papel na produção destes discursos, muitas vezes reforçando diferenças de tratamento, criando sujeitos de primeira e de segunda classe, ao não garantir muitas vezes tratamento igualitário a todas as pessoas, contrariando a própria Constituição Federal. Veremos no próximo tópico o contexto jurídico em que se encontra o debate atualmente.

2. Os avanços no STF e a fragilidade das conquistas jurídicas da população LGBT Como já apontado, é possível afirmar que a população LGBT tem conseguido alguns avanços na conquista de seus direitos, após décadas de lutas e articulações políticas7. Embora a Constituição Federal de 1988 não tenha explicitamente consagrado a união estável homoafetiva e o casamento gay em seu texto, em 04 de maio de 2011 o STF decidiu por unanimidade que a união estável pode ser realizada entre pessoas do mesmo sexo. Segundo notícia constante no próprio site do STF, “os ministros Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso, bem como as ministras Cármen Lúcia Antunes Rocha e Ellen Gracie, acompanharam o entendimento do ministro Ayres Britto, pela procedência das ações e com efeito vinculante, no sentido de dar interpretação conforme a Constituição Federal para excluir qualquer significado do artigo 1.723 do Código Civil que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar”8.

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A discrepância do desenvolvimento destas conquistas entre cada um dos segmentos LGBT, já apontada na introdução deste trabalho, será melhor desenvolvida na segunda parte do mesmo 8

Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178931, consultado sem problemas em 14/01/2013.

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Como dito, tal decisão foi tomada de maneira unânime (10 votos a zero), o que fez com que a mesma passasse a ter efeitos vinculantes no que diz respeito a decisões de instância inferior. Assim sendo, a partir desta decisão do Supremo Tribunal Federal ocorreu uma mudança significativa no status jurídico dos casais homossexuais que desejam ter reconhecida a existência de sua união estável, com todas as consequências derivadas deste reconhecimento, inclusive o casamento civil, conforme, por exemplo, decisão do TJ/SP publicada no Diário Oficial do Estado em 18/12/2012, que inseriu tal questão nas Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, e decisão deste ano, no mesmo sentido, adotada pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Importante destacar que esta mudança significativa ocorreu sem que uma palavra sequer da Constituição e do Código Civil fosse alterada. Mantém-se intacta a afirmação da Constituição Federal, em seu artigo 226, § 3º, que “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher9 como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. O Art. 1.723 do Código Civil afirma, no mesmo sentido, que “é reconhecida como entidade familiar à união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. O que o STF fez em sua decisão foi uma interpretação conforme a CF, entendendo os ministros do Supremo que tal diploma jurídico está alicerçado nos princípios da igualdade de direitos, da não-discriminação, da dignidade da pessoa humana, etc. Destaco o seguinte trecho do voto do ministro Marco Aurélio: "Se o reconhecimento da entidade familiar depende apenas da opção livre e responsável de constituição de vida comum para promover a dignidade dos partícipes, regida pelo afeto existente entre eles, então não parece haver dúvida de que a Constituição Federal de 1988 permite seja a união homoafetiva admitida como tal". Outro elemento importante levado em consideração na tomada desta decisão foi o próprio caráter laico do Estado brasileiro. Em seu voto, Celso de Mello afirmou que

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Grifo meu. Todos os trechos grifados doravante, salvo exceção expressa, seguirão este padrão.

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"a República é laica e, portanto, embora respeite todas as religiões, não se pode confundir questões jurídicas com questões de caráter moral ou religioso". Ao lado desta importante conquista referente à união estável homoafetiva, é possível citar outros avanços, como o reconhecimento, em diversas decisões do Poder Judiciário em instâncias inferiores, da possibilidade de adoção de crianças por casais do mesmo sexo. No entanto, em que pese a ocorrência de tais avanços pela via judiciária, é possível verificar uma série de obstáculos nas demais esferas do poder institucional no que diz respeito aos direitos das populações LGBT´s. No

legislativo,

grupos

religiosos

conservadores

se

articulam

suprapartidariamente para barrar os direitos da população LGBT e impedir a criminalização da homofobia 10 . Fica a dúvida no ar: terá sido a chegada do Pastor Marcos Feliciano à Comissão de Direitos Humanos e Minorias um mero acaso? No executivo federal, apesar dos avanços institucionais na última década (tais como a criação do Programa Brasil Sem Homofobia), o governo muitas vezes se mostra covarde e reticente em bancar os avanços defendidos historicamente por seu próprio partido, tendo já acontecido de políticas institucionais para este setor da população terem sido usadas como moeda de troca para negociações escusas com o Congresso11. Entendo que os avanços no âmbito judiciário (principalmente no STF) para consolidar a conquista dos direitos dos homossexuais sejam importantes. No entanto,

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Vide a chamada “Bancada Evangélica”, que segundo levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), teve um aumento de 50% na Câmara dos Deputados e no Senado em relação à legislatura anterior. Estima-se que atualmente tal bancada seja composta de 63 deputados e três senadores, dos mais variados partidos, incluídos alguns que se dizem de esquerda, como o PT. Fonte: http://www.diap.org.br/images/stories/publicacoesDIAP/Radiografia_011/Radiografia_011_P35.pdf 11

Cito como exemplo um caso célebre ocorrido no início de 2011, referente aos vídeos institucionais criados pelo governo, feitos para serem exibidos nas escolas, com o intuito de promover o debate sobre a questão do preconceito contra LGBT´s, e minimizar um pouco os números alarmantes sobre as agressões a LGBT´s nas escolas de todo o país. Tais vídeos, que receberam por políticos da direita tradicional a alcunha de “kit gay”, foram vetados pelo poder executivo, após forte pressão de grupos evangélicos conservadores, justamente no momento em que se buscava blindar no Congresso o então ministro Antônio Palocci, mais uma vez imerso em denúncias de corrupção. O ministro acabou perdendo o cargo, mas os vídeos institucionais, que foram vetados com a justificativa de serem reformulados, até hoje encontram-se “esquecidos” pelo governo. Consultar: “Em protesto contra 'kit gay', bancada evangélica mira Palocci”,disponível em http://www1.folha.uol.com.br/poder/920455-em-protesto-contra-kit-gaybancada-evangelica-mira-palocci.shtml)

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vale apontar a fragilidade deste reconhecimento. Primeiramente, porque decisões judiciais mais progressistas tomadas em primeira instância podem ser facilmente revertidas em instâncias superiores. Em segundo lugar, porque a própria composição do STF, bem como alguns de seus posicionamentos, é mutável. Embora os ministros do Supremo exerçam tal função em caráter vitalício (até sua morte ou aposentadoria compulsória, aos 70 anos), é bastante comum que em espaços temporais relativamente pequenos (alguns anos) haja a troca de um grande número de ministros12. Assim sendo, os efeitos vinculantes criados pela mencionada decisão do STF, garantindo a união estável homoafetiva (e todas as consequências daí derivadas), podem ser revogados, caso novos ministros venham a ter um entendimento divergente sobre o tema. Lembremos a forma de aprovação dos ministros do STF: primeiro são indicados pela presidenta da República, e depois sabatinados e aprovados pelo Senado Federal. Embora seja bastante difícil a não aprovação de um ministro indicado, é prerrogativa do Senado questionar os posicionamentos políticos e jurídicos do mesmo, cabendo, em última instância, a possibilidade de impeachtment de algum ministro. Ora, dada a cada vez maior articulação de forças religiosas conservadoras no Congresso, não me parece improvável que a articulação destes grupos possa chegar a barrar ministros considerados muito progressistas, à semelhança do que ocorre por vezes nos EUA, onde o sistema de aprovação dos ministros para a Corte Suprema é semelhante ao nosso. Além disso, muitas vezes, a indicação e aprovação de determinado ministro para o STF nem sempre tem como critério os singelos “notório saber jurídico” e “reputação ilibada” mencionados na Constituição. Temos visto ultimamente diversas reportagens jornalísticas apontando que alguns ministros só foram indicados ao STF após intenso lobby político para que seus nomes fossem aprovados.

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Somente no governo Lula, por exemplo, foram nomeados oito ministros para o STF (média de uma nomeação por ano de governo): Eros Grau, Carlos Alberto Menezes Direito, Ayres Britto, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Cezar Peluso, Joaquim Barbosa e Dias Toffoli.

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Em suma, em que pese a independência formal do judiciário em relação aos demais poderes, tal independência não é ilimitada, seja pela forma prevista de aprovação de um dado ministro (indicação do poder executivo, com posterior aprovação do poder legislativo), seja pela política de bastidores que muitas vezes é usada já na própria indicação do mesmo. Levando-se em consideração que é o STF quem tem a competência originária para julgar deputados, ministros de Estado e a presidenta, em função de prerrogativa destes cargos (figura também conhecida como foro privilegiado), observo mais um motivo para que a indicação e aprovação não ocorram sempre da maneira objetiva como muitas vezes se é colocado. Considero, pois, que os direitos conquistados pelos homossexuais, tais como a união homoafetiva, no STF, são um grande avanço; no entanto, tal avanço é relativamente frágil, pois bastaria uma mudança na composição deste órgão para que fosse possível mudar tal entendimento. Tendo em vista que não é incomum o STF rediscutir seus posicionamentos, e muitas vezes modificá-los, não se tem nenhuma garantia de por quanto tempo tais efeitos vinculantes do julgamento permanecerão válidos. Enquanto isso, a Constituição Federal continua afirmando, como já dito, que a união estável só pode ser realizada entre pessoas de sexos diferentes, e não parece haver perspectiva de mudança deste texto. Ou seja, com um congresso cada vez mais conservador, com um governo covarde em tentar aprovar políticas que de fato possam minimizar a homofobia, e com um judiciário suscetível a pressões escusas na indicação dos ministros do STF, os avanços obtidos até aqui devem ser vistos como momentâneos e precários, e não como algo consolidado e imutável. Por fim, é importante ressaltar que as questões levantadas neste capítulo não devem ser entendidas pela perspectiva de que as conquistas dos setores oprimidos da população se dão pelas vias institucionais, em qualquer de suas esferas de poder. Entendo que a composição destes órgãos reflete, em maior ou menor grau, a correlação de forças existente na própria sociedade. Os avanços no STF, como já dito, refletem

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políticas de décadas e décadas de lutas, que se dão em espaços institucionais, mas também, principalmente, nas ruas. Creio que as ruas sejam o espaço privilegiado de reivindicação de direitos, tal qual temos visto nos últimos meses em nosso país. Diversas pautas de vários movimentos, paradas no Congresso há anos, tiveram avanços por meio da pressão popular recente. Talvez o exemplo mais claro disto seja o famigerado projeto que ficou conhecido como “Cura Gay”, que acabou por ser arquivado, ainda que de forma provisória.

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II.

TRAVESTIS E TRANSEXUAIS FEMININAS: MUITO ALÉM DA HOMOFOBIA

1) Cuidados metodológicos: a (não-)diferenciação entre os conceitos "travesti" e "transexual" Nesta parte do trabalho irei discutir algumas questões que são próprias da travestifobia/transfobia, ou seja, que são mais específicas e não estão englobadas pela definição genérica de homofobia. Antes, faz-se necessário adentrar no debate espinhoso sobre a diferenciação entre os termos “travesti” e “transexual”. Devido à primazia dos saberes médicoinstitucionais nos debates referentes à sexualidade, conforme já dito, o caminho mais fácil (e, no entanto, o mais cômodo e mais perverso) seria simplesmente afirmar que, enquanto as transexuais femininas teriam aversão ao órgão sexual masculino, desejando extirpá-lo, as travestis o aceitariam sem maiores problemas. Nesta linha de argumentação, Pelúcio afirma que “as travestis são pessoas que se entendem como homens que gostam de se relacionar sexual e afetivamente com outros homens, mas que para tanto procuram inserir em seu corpos símbolos do que é socialmente tido como próprio do feminino. Não desejam porém, extirpar sua genitália, com a qual, geralmente, convivem sem grandes conflitos”. (PELÚCIO, 2009:44) Estudando a literatura sobre o tema, pude perceber que a diferenciação nestas bases é, no mínimo, insuficiente, e entra em contradição com o conteúdo das entrevistas que realizei. Cito como exemplo a entrevista com Geanne, professora e trabalhadora em uma Unidade Básica de Saúde na cidade de Embu das Artes/SP, que se apresentou como transexual, e afirmou não desejar o processo de transgenitalização para si, por considerar os atuais métodos como “castrativos”, pois o órgão criado a partir da vaginoplastia não possibilitaria nenhum tipo de prazer sexual. Geanne afirmou também que assume a identidade transexual, em detrimento da identidade travesti, devido ao fato de esta última estar historicamente relacionada à prostituição, crimes e drogas.

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Outra entrevistada, Daniela, que também se autodeclara transexual, foi ainda mais enfática em afirmar que tal diferenciação se dá, no mundo das identidades trans, de acordo com um viés estritamente classista embasado em estereótipos. Enquanto travestis estariam ligadas a aspectos vinculados à prostituição, drogas e criminalidade, as transexuais femininas estariam despidas desta aura, uma vez que estariam protegidas pelos saberes médicos que as colocariam como doentes a serem tratadas. Neste sentido, afirma Leite Jr.: Como o discurso sobre a transexualidade possui uma aura mais ´higiênica´, forjado nos laboratórios e consultórios da Europa e dos Estados Unidos e ainda pouco disseminado popularmente em suas especificidades teóricas, pode-se afirmar que o termo ´transexual´ possui um capital linguístico mais valorizado que o termo ´travesti´, podendo ser mais facilmente convertido em capital social e, desta forma, sendo capaz de abrir ou fechar portas segundo a maneira como a pessoa se autoidentifica ou é identificada. (LEITE JR., 2011:214)

A própria Pelúcio, em outro trecho de seu trabalho, afirma ter convivido com “pessoas que se identificavam como transexuais, mas viviam, segundo elas mesmas, como travestis que, em algum momento da vida, desejaram tirar o pênis, e outras que jamais tinham pensado naquilo, mas que começavam a estudar essa possibilidade mais recentemente, passando a cogitar a possibilidade de serem transexuais” (PELÚCIO, 2009:42) Bruno Barbosa afirma em sua pesquisa que “estas pessoas [que se definem como travestis ou transexuais] utlilizam vários discursos para produzir sentidos sobre essas categorias, e que elas agenciam convenções biomédicas, convenções dos movimentos sociais e convenções das próprias ciências sociais, que se transformam neste processo pragmático” (BARBOSA, 2010:57) Citando mais uma vez Daniela, a mesma afirmou entender que as diferenças entre as identidades travesti e transexual feminina não possuem razão de existir, a não ser sob um viés fortemente classista. Para ela, estas duas identidades estão inseridas na categoria trangênero, ou seja, definir-se como transexual ou travesti seria equivalente a se reivindicar como transgênero. Linguisticamente falando, podemos entender transgênero como aquela pessoa que atravessa o gênero ao qual foi lhe atribuído externamente pela sociedade em geral. A esta travessia se opõe o conceito de cisgênero, referente às pessoas que mantiveram

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como identidade de gênero aquela que lhe foi atribuída desde o nascimento (ou melhor, ainda antes deste, conforme os estudos de Judith Butler). A propósito desta discussão sobre categorias de gênero, pude constatar ao longo da pesquisa algumas diferenciações no que diz respeito ao gênero autoatribuído por parte das pessoas com quem tive contato. Por exemplo, enquanto Daniela e Josiane se reivindicam mulheres transexuais (sendo “transexual” um adjetivo subordinado ao substantivo “mulher”), em uma reunião em que participei com a ativista Janaína Lima, esta afirmou não ser nem homem, nem mulher, e sim travesti, apresentando este como uma espécie de terceiro gênero. Outra ativista, Keyla Simpson, fez afirmação semelhante no XI ENUDS, em Matinhos/PR. Entendo que este debate sobre a nomeação e diferenciação entre as categorias transexual feminina e travesti é bastante espinhoso, sendo extremamente temerária a tentativa de encontrar uma resposta definitiva para a questão, ainda mais quando se insere no debate a problemática do gênero. Poder-se-ia fazer a discussão, sob a ótica deste debate, se existe em nossa sociedade um binarismo de gênero 13 (homem x mulher) ou um trinarismo de gênero (homem x mulher x travesti). Entendo, seguindo os estudos mais recentes ligados à Teoria Queer, que a categorização pronta e acabada em determinadas quantidades de gênero (sejam dois, ou três, ou mais), como se estes fossem gavetas nos quais as pessoas deveriam ser inseridas, faz muito pouco sentido. Partindo da ideia de que o gênero é uma construção social, creio que o mesmo possa ser descontruído (ou destruído), tal como se pode fazer com o conceito de raça, por exemplo. Não quero aqui afirmar, no entanto, que o binarismo de gênero não exista enquanto construção social, ou seja, seria falacioso afirmar que pessoas vistas como do sexo feminino não sofrem opressão em virtude disso. É fácil observar também que esta diferenciação hoje em dia é útil para um sistema que mundialmente se apropria de

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Entenda-se por binarismo de gênero, em linhas muito gerais, a necessidade imposta socialmente às pessoas para que elas sejam enquadradas no gênero masculino e feminino, sendo que o primeiro é mais valorizado socialmente do que o segundo. Por esta perspectiva, qualquer “desvio” que aponte para uma espécie de “confusão” entre os gêneros embaralha este sistema, evidenciando que tal divisão possui forte caráter social, o que contraria a visão biologizante que impera nos últimos séculos

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determinadas diferenças (gênero, raça, cor, etnia, idade, regionalismos, etc.) para explorar economicamente com maior veemência determinados setores. Neste sentido, em seu trabalho escrito no final dos anos 1970, Dora Guimarães já afirmava que numa cultura tradicionalmente patriarcal e machocêntrica como é a brasileira, um dos fatores a ser destacados é a nítida dicotomização entre os papéis sociais – e de gênero – masculinos e femininos. Esta delimitação simbólica de fronteiras entre os sexos se reproduz nas atividades socializadoras do cotidiano, não somente na produção de atitudes e comportamentos como também na determinação de atividades e de espaços sociais ´próprios´ a cada sexo. (GUIMARÃES, 2004:44).

No entanto, aceitar a realidade do binarismo de gênero como algo essencial/natural (ou seja, como algo não construído socialmente) acaba servindo para invisibilizar milhões de pessoas no mundo que não se adaptam a esta lógica, colocandoas à margem até mesmo de muitos movimentos sociais que se propõem a combater os tipos de opressão acima mencionados, em especial no movimento LGBT, conforme mostrarei adiante. Voltando ao debate central deste capítulo, acompanho neste trabalho o entendimento de Daniela, que aponta que o que há de comum entre transexuais e travestis é a travessia ocorrida entre o gênero atribuído pela sociedade e o gênero autoatribuído, travessia esta que pode ser denominada de transgeneridade. Adoto aqui o termo transgênero visando englobar pessoas que não se reconhecem no gênero atribuído socialmente a elas, sem que necessariamente elas reivindiquem algum outro gênero definido. Talvez o mais correto seria adotar o termo identidades trans, termo colocado no plural justamente para dar conta desta ampla variedade nas formas de transitar entre os gêneros. Sendo assim, diante do fato de que a definição "científica" que diferencia transexuais de travestis nada mais é do que uma diferença "criada em laboratório" (assim como a categoria "homossexualismo"); diante da falta de elementos que diferencie as duas categorias, mesmo entre as pessoas que se autodefinem de uma forma ou de outra; e, ainda, diante dos argumentos já expostos neste capítulo, opto por utilizar as categorias "identidades trans" e "transegeridade" como equivalentes, ambas englobando as categorias travesti e transexual.

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Eventuais diferenciações que aparecerem ao longo do trabalho terão seus motivos explicitados, e serão sempre vinculadas à visão das pessoas entrevistadas para este trabalho ou que participaram de fóruns de debates e reuniões às quais estive presente. Antes de concluir o capítulo, no entanto, creio ser importante destacar que, nas entrevistas que realizei, pude observar um forte caráter de classe quando se busca a diferenciação entre os dois termos em questão. Dentre outras indagações, pode-se perguntar acerca da origem de classe das travestis, e se estas passam necessariamente a se ver como transexuais após ascenderem socialmente. Junto a esta pergunta, cabe questionar quais os fatores que estão envolvidos na ascensão de classe destas pessoas. Teriam as travestis, salvo raras exceções, uma origem de classe desprivilegiada? Esta dificuldade de inserção social devido a restrições financeiras é um fator de discriminação que vem a se somar a outros na construção de identidades travestis? Existem pessoas com origem de classe social mais elevada que se reivindicam travestis, na mesma proporção em que existem pessoas com origem de classe social menos elevada que se reivindicam transexuais? Em suma, qual a importância do recorte de classe para a construção destas identidades? Longe de querer esgotar as respostas a todas estas perguntas, pude perceber em minhas leituras e entrevistas para este trabalho que existe uma forte tendência em associar o termo “travesti” a uma condição de classe mais desprivilegiada, enquanto que o termo “transexual” é associado a pessoas que ascenderam ou visam ascender socialmente. Isto ocorre, entre outros fatores, pelo fato de que as pessoas que tem um grau de escolaridade maior e, consequentemente, que estão mais bem colocadas no mercado de trabalho, tendem a assimilar de maneira mais fácil os discursos relativos aos saberes médicos (lembrando, como já visto, que o termo “transexual” foi criado “em laboratório”, enquanto o termo “travesti” é mais comumente utilizado nas ruas). Pude perceber em minhas entrevistas um discurso que aponta para a diferenciação entre estas duas categorias de acordo com a origem de classe e o estigma existente no que tange ao termo travesti.

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Longe de querer fazer uma associação automática entre origem de classe e autorreconhecimento em relação a uma destas identidades, aponto aqui uma tendência percebida em minhas entrevistas, bem como na literatura pesquisada para este trabalho14. O termo travesti costuma ser associado, dentre outros estigmas, a uma origem de classe social mais baixa. Sendo assim, independentemente do grau de realidade desta informação, parece-me indubitável que tal associação é lugar comum para muitas pessoas. Para concluir, quero deixar claro que as categorias utilizadas para me referir às pessoas citadas serão sempre, invariavelmente, autoatribuídas, e não vinculadas a definições médico-jurídicas pré-estabelecidas. Nesta mesma linha, Bruno Barbosa (2010:5) afirma que em sua pesquisa optou por “não delimitar de antemão o que era travesti e o que era transexual”, optando por redefinir como seu objeto de pesquisa “pessoas que foram assignadas como nascidas do sexo masculino e construíram o que consideram feminino em seus corpos”. Entendo que o que permite a análise das categorias “travesti” e “transexual” sob um mesmo guarda-chuva na maior parte deste trabalho são as consequências comuns causadas pela quebra de expectativa entre o que se espera de uma pessoa que nasceu possuindo um pênis ou uma vagina, e o “comportamento desviante” em relação à performance de gênero.

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Sobre esta discussão de termos, não posso deixar de fazer uma associação entre, por exemplo, os termos negro e afrodescendente, apontando para o estigma construído ao longo do tempo em relação à primeira palavra. Basta consultar um dicionário qualquer para perceber esta diferenciação. Há algumas décadas o movimento negro vem se reapropriando do primeiro termo, buscando ressignificálo de maneira positiva. Percebo, ainda que de forma muito incipiente, pessoas dentro do movimento LGBT que se apresentam como travestis e deixam claro que esta é uma escolha política, contraposta ao termo transexual, visto por estas pessoas como asséptico e imbuído de um assimilacionismo de classe, e também visto com servindo ao reforço do binarismo de gênero.

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2) Travestis, transexuais, gays afeminados e lésbicas masculinizadas no contexto do assimilacionismo LGBT. Finda esta problematização prévia sobre a terminologia das palavras “travesti” e “transexual”, começo a entrar no debate sobre o motivo pelo qual estas pessoas são mais vulneráveis do que os segmentos gay, lésbico e bissexual. Vale lembrar o já mencionado dado do GGB, que aponta que 37% dos assassinatos homofóbicos no Brasil em 2012 foi de travestis. Em São Paulo, este índice chegou a 62%. Uma das questões deste trabalho é perguntar justamente o motivo desta diferenciação entre cada um dos setores abarcados pela sigla LGBT. Por que alguns gays estão inseridos no mainstream social, a ponto de já terem até o direito de casar reconhecido, enquanto que às travestis e transexuais está reservado o espaço das páginas policiais dos jornais? Trata-se de uma mera questão de os gays terem uma renda maior que a das travestis, e assim conseguirem se impor pela “força da grana”? Ou é justamente a postura das travestis em explicitar seu desconforto de gênero, desde a infância, que as afasta de possibilidades tais como estudar e trabalhar, o que as leva quase sempre à prostituição, num círculo vicioso de abjeção social? Creio que um dos principais fatores para esta vulnerabilidade das travestis e transexuais seja a já mencionada quebra do binarismo de gênero que estas pessoas passam a realizar em determinado momento de suas vidas. Tal quebra também é realizada (embora em medida bastante menor), pelos chamados gays afeminados e lésbicas masculinizadas. Em relação à 'feminilidade de alguns gays', aponto uma pesquisa realizada durante a Parada do Orgulho LGBT de São Paulo em 2005, na qual o Instituto Datafolha mostrou que 76% dos entrevistados concordavam, total ou parcialmente, com a ideia de que "alguns homossexuais exageram nos trejeitos, o que alimenta o preconceito contra os gays”.

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Pesquisa semelhante realizada durante a Parada do Orgulho LGBT no Rio de Janeiro apontou que, nas palavras de Sérgio Carrara15, “entre os homens homossexuais, 44,6% preferem parceiros "mais masculinos", contra apenas 1,9% que os preferem "mais femininos" (...) Para alguns, por aumentar o preconceito, a feminilidade parece politicamente incorreta nos homens. Para outros, deve ser cuidadosamente policiada pelos que se aventuram no mercado dos afetos e paixões”. Em julho de 2007, foi publicado na revista Caros Amigos um artigo que caracteriza a Parada do Orgulho LGBT como “um evento nazista, segregacionista e vulgar, cria de uma sociedade consumista fetichista e mesquinha”16. O autor chegou a estas conclusões após identificar em diversas reportagens uma série de falas de participantes da Parada criticando a presença de pessoas pobres e feias, referindo-se ao que às vezes se chama de bicha poc poc dentro do meio LGBT. Talvez na outra ponta da linha desta classificação, encontramos a chamada bicha carão. Sérgio Ripardo afirma que “São Paulo é a capital brasileira da "bicha carão", [segundo] as drags mais viajadas da cidade. Na gíria, a "carão" é afetada, esnobe e blasé. Sente-se única, superior. (...) despreza pobres, negros e nordestinos. Humilha garçons, porteiros, seguranças, faxineiros17”. Mesmo dentro de boa parte do movimento LGBT, não é incomum encontrarmos críticas a programas de televisão (novelas, “humorísticos”, etc.) por parte de lideranças LGBT´s no que tange à representação deste setor através do que de seriam “figuras caricatas ou afeminadas” que, em tese, não representariam uma população gay cada vez mais assimilada pela sociedade (e pelo mercado de trabalho) e, não por coincidência, também cada vez mais assimilados ao padrão de binarismo de gênero vigente.

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“Só os viris e discretos serão amados?”, texto publicado no jornal Folha de São Paulo em 19/06/2005. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1906200509.htm (acessado sem problemas em 24/02/2013). 16

“A viadagem encampando a pobrefobia”, texto de Paulo Nascimento, publicado na revista Caros Amigos de agosto de 2007. Disponível em http://idadedaterra.blogspot.com.br/2007_08_01_archive.html (acessado sem problemas em 24/02/2013). 17

“São Paulo vira a capital do ‘gay carão’, texto publicado no site do jornal Folha de São Paulo em 07/03/2007. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u69127.shtml (acessado sem problemas em 24/02/2013).

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É perfeitamente compreensível a crítica feita à “representação caricata” gay, apresentados como afeminados nestes programas para servirem de motivo de chacota, reforçando a homofobia e a misoginia latente que permeia boa parte da sociedade. Assim, rir dos trejeitos de um gay afeminado em um programa televisivo do tipo Zorra Total, da TV Globo, é um elemento que embasa crimes homofóbicos de maior gravidade. No entanto, muitas vezes a crítica apresentada por estes setores do movimento não diz respeito apenas à chacota, mas à própria feminilização dos representados. Não é possível, por esta perspectiva, ser biologicamente do sexo masculino (possuir um pênis) e ao mesmo tempo apresentar trejeitos atribuídos ao sexo biológico (ou ao gênero) oposto. Gays masculinizados são elogiados, enquanto gays afeminados são atacados, dentro do próprio meio LGBT, até mesmo pelas lideranças deste movimento. Tal crítica, feita por estes setores, segue uma lógica bastante perversa: aquela que afirma que o respeito à população LGBT deve passar necessariamente por uma acomodação aos padrões de gênero vigentes. Trata-se de um discurso bastante conservador, que marginaliza cada vez mais os não-assimilados a este padrão e a este discurso. A saída proposta por alguns setores do mundo GLS, para se superar determinadas barreiras impostas historicamente à população LBGT, é muitas vezes individual e passa pelo consumismo exacerbado e a rejeição de estereótipos tidos como femininos ou ligados a classes sociais mais baixas. Por esta visão, a superação do preconceito se dá através do chamado pink money, ou seja, da compra individual da cidadania, equiparando-se aos direitos de heterossexuais. O principal problema relativo a esta visão (além das limitações da saída individual) diz respeito ao fato de que nem todos os participantes da população LGBT detém este poder de comprar seus direitos. Travestis e transexuais, muitas vezes por terem sido expulsas de casa desde cedo e por não terem, consequentemente, concluído seus estudos, são obrigadas a recorrer à prostituição como meio de vida, ficando à margem do poder de consumo defendido por vezes como a solução para todos os problemas.

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Combinado com este viés classista, concordo com Carrara quando afirma que “a rejeição da feminilidade reflete uma tentativa de desviar o preconceito, que ameaça a todos, para um subgrupo ainda mais vulnerável, para quem as conhecidas acusações de "mulherzinha" ou "mariquinhas" seriam adequadas e até aceitáveis. Recusa-se o estigma, mas, ao atribuí-lo ao "outro", perpetuam-se os termos sobre os quais ele se constrói”. Como já disse no capítulo anterior, embora haja um esforço por parte de algumas travestis e transexuais em reforçar uma espécie de feminilidade, muitas vezes estereotipada, algumas delas se colocam como “nem masculinas nem femininas, e sim como travestis”, buscando desta forma, em geral de maneira conscientemente política, superar o binarismo de gênero colocado. Carrara afirma que “para [travestis e transexuais] a incorporação da feminilidade é fundamental no processo de construção de suas identidades. [mas], mesmo nesses casos, não temos mais a afirmação política da androginia, e sim a reiteração das fronteiras simbólicas de gênero que separam homens e mulheres, independente de seu sexo biológico”. Entendo que, embora esta afirmação possa parecer real em boa parte das vezes, nem sempre esta demonstração da feminilidade vem desacompanhada de uma grande medida de subversão do chamado binarismo de gênero, já que observei diversas vezes a defesa de uma espécie de gênero híbrido, nem masculino, nem feminino, além do próprio embaralhamento promovido entre tais fronteiras quando se nega o gênero de origem. Portanto, à pergunta feita por Carrara: “até que ponto a adequação às normas de gênero vigentes é, para muitos, o preço para ingressar no universo da cidadania ou da conjugalidade bem sucedida”, creio que a resposta é a de que esta adequação possui, muitas vezes, um papel fundamental do ponto de vista individual. No entanto, do ponto de vista mais geral, este esforço por adequação acaba arrastando para as margens da sociedade setores que não querem (ou não podem) se adequar, tais quais as bichas afeminadas, as sapatões masculinizadas, as travestis ou transexuais que não buscam tornar-se mulher. Por este viés, a homofobia ganha novos contornos. Sob esta perspectiva, já não

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se percebe apenas a dicotomia gay/não-gay. Passa-se a trabalhar com a dicotomia assimilados/não-assimilados, muitas vezes com um claro viés classista. Não se trata de afirmar que estas definições sejam absolutas e não-relacionais. Elas se apresentam de forma contextual. Sendo assim, um gay pode assim ter uma atitude mais feminina ou masculina a depender da situação em que estiver inserido. No entanto, em uma realidade em que a feminilidade é execrada neste meio, acaba sendo cada vez mais comum a busca pela performatividade masculina. Em muitos locais de trabalho já não é um problema apresentar-se como nãoheterossexual, desde que se respeitem os limites impostos no que diz respeito às fronteiras de papel gênero. O processo de discriminação sofrido por transexuais e travestis é muito mais intenso do que aquele sofrido pela população LGBT de maneira geral, entre outros motivos, pela possibilidade de permanência dentro do armário por parte dos gays não afeminados ou, em uma segunda camada, pela possibilidade destes de se manterem dentro dos padrões de binarismo de gênero impostos, renegando tudo o que possa denotar afeminação. Grosso modo, poderíamos comparar atitudes assimilacionistas de gays, que querem casar, constituir família, adotar crianças, etc, com atitudes assimilacionistas de negros que se despem de suas raízes históricas, procurando se “embranquecer” o máximo possível para ascender socialmente e encontrar seu lugar ao sol. Por

óbvio,

lutar por igualdade de direitos é progressivo, seja ao menos para demonstrar os limites da chamada Justiça burguesa em garantir esta igualdade formal que ela tanto propala. No entanto, a luta pela assimilação pura e simples possui um viés reacionário bastante claro: já não se luta mais pelo direito de ser diferente, sem que isto implique em tratamento discriminatório; luta-se, isto sim, para ser igual dentro do padrão heteronormativo. O problema, como já visto, é que este tipo de luta gera uma nova camada de pessoas que são necessariamente excluídas deste processo: os gays afeminados, as lésbicas masculinizadas, as travestis e as transexuais. Estas categorias têm em comum não só o fato de não estarem alinhadas à associação sexo/gênero, mas justamente por borrarem esta associação. E por isto elas pagam um preço bastante caro.

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Assim sendo, não é incomum ouvir discursos provenientes de gays e lésbicas que afirmam que “a homofobia é apenas uma reação advinda de determinados comportamentos exagerados de certas pessoas”, como já visto anteriormente na pesquisa realizada durante as Paradas de Orgulho LGBT. Vestir-se como “do sexo oposto” seria um destes comportamentos não tolerados. O paralelismo deste discurso com aquele que imputa às mulheres estupradas a responsabilidade pelo estupro, quando as mesmas estavam usando “roupas provocativas”, é mais do que evidente. Busquei aqui analisar como alguns discursos reforçam a marginalização de determinados setores. Transformar o movimento LGBT em um mero lutador por integração no mundo heterossexual é necessariamente reforçar o discurso homofóbico contra aquelas pessoas que possuem uma vivência que não segue este parâmetro. Mostrarei no próximo capítulo alguns elementos que identifiquei ao longo desta pesquisa que reforçam a violência sobre travestis/transexuais.

3. A quebra do binarismo de gênero, a impossibilidade do armário e o preconceito de classe como fatores de recrudescimento da violência contra travestis e transexuais. Não é difícil concluir que, na média, é muito menos difícil para um gay, uma lésbica, ou um bissexual inserir-se socialmente na escola, no mercado de trabalho, etc, do que o é para uma travesti ou uma transexual. Esta espécie de “vantagem” de gays, lésbicas e bissexuais ocorre devido ao fato de que os mesmos podem, em boa parte das vezes, mostrarem ou ocultarem sua orientação sexual de forma mais maleável (exceção feita aos gays 'muito afeminados' ou às lésbicas ´muito masculinizadas´, como já visto). No que diz respeito a travestis e transexuais, sua forma de expressão de gênero é visível o tempo todo, salvo em situações de extrema submissão em que se exige a adequação ao gênero de origem para se manterem no trabalho ou na escola (corte de cabelo, uso de roupas masculinas, etc). Enquanto que no caso dos homens gays, por exemplo, sempre irá existir, em menor ou maior grau, a possibilidade de esconder-se no armário, em relação às travestis

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e transexuais, devido à marcação de diferença de gênero (costumeiramente mais acentuada do que a marcação referente à orientação sexual) o armário é, quase sempre, impossível de ser usado com a mesma destreza. Segdwick, ao analisar a questão do armário em seu clássico estudo sobre assunto, aponta que até entre as pessoas mais assumidamente gays há pouquíssimas que não estejam no armário com alguém que seja pessoal, econômica ou institucionalmente importante para elas. (SEDGWICK, 1993:22) Ao comparar a situação de discriminação do gay com outras modalidades de opressão, Sedgwick aponta que o racismo (…) baseia-se num estigma que é visível, salvo em alguns casos excepcionais (…). O mesmo vale para as opressões fundadas em gênero, idade, tamanho, deficiência física. (ibidem). Em linhas muito gerais, creio ser possível afirmar que o estigma das transexuais e travestis é quase tão visível quanto o dos negros, uma vez que, nestes casos, o manejo da invisibilidade do estigma é quase impossível. Ao trazer a questão do armário para a realidade brasileira contemporânea, em especial no que diz respeito às sociabilidades via internet, Miskolci aponta que a valorização da capacidade de “desaparecer” discretamente na sociedade oblitera o fato de que em busca de proteção se reforça a mesma ordem simbólica que historicamente oprimiu e relegou às margens (“ao meio”) as sexualidades em desacordo com as normas dominantes (MISKOLCI, 2009:177). O que ocorre no caso das travestis e transexuais é que, em grande parte das vezes, não existe esta possibilidade de desaparecimento / permanência no armário descrita por Miskolci. Este estar (necessariamente) fora do armário pode ser apontado como um dos motivos que aumentam o estigma da população trans, uma vez que a permanente exposição de elementos de transgeneridade faz com que os riscos de agressão ocorridos por estas pessoas seja maior do que o de outros setores do movimento LGBT. que podem encontrar guarida dentro deste mecanismo. Além desta questão do armário, vimos que travestis e transexuais femininas não só se contrapõem à sexualidade esperada socialmente, como também se contrapõem ao seu próprio gênero de origem. Sem querer repetir argumentos já desenvolvidos, parece-

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me necessário reforçar que estas pessoas enfrentam não só a violência advinda de uma cultura homofóbica, mas também a violência advinda de uma cultura machista. Os alarmantes índices de crimes transfóbicos/travestifóbicos estão relacionados a uma superposição de camadas de preconceito e discriminação, que se inter-relacionam e se reforçam. Por “abrir mão” da sexualidade esperada socialmente, e por fazer o mesmo com o gênero que lhe foi atribuído, os assassinatos destas pessoas chegam aos números absurdos relatados pelo GGB. Considero importante citar mais uma vez as barreiras existentes para a ascensão social destas pessoas: expulsão de casa, da escola, dificuldades para encontrar empregos, etc. Devido a estas questões, muitas vezes as travestis e transexuais são empurradas para a prostituição, como única alternativa viável existente para sua sobrevivência18. Um dos livros mais clássicos sobre a questão travesti, uma autobiografia coescrita por Fernanda Farias Albuquerque, A Princesa, já apontava para esta realidade de violência, que se apresentava em diversos níveis de superposição (assassinatos, agressões, falta de assistência médica, violência moral, etc). É possível afirmar que as travestis/transexuais encontram uma espécie de barreira de classe que as impede de se estabelecer economicamente de maneira viável, na grande maioria das vezes, já que possuem dificuldades para ascender socialmente devido justamente à sua condição transgênera, sendo levadas muitas vezes a trabalhar com prostituição ou em empregos menos qualificados que pagam salários menores. O relatório sobre violência homofóbica do Grupo Gay da Bahia afirma que “o padrão predominante é (…) as travestis e transexuais [serem] mortas na pista [rua], a tiros”. Sem entrar no debate moral sobre a questão da prostituição, parece claro que existe uma relação direta entre os riscos da atividade de prostituição e o alto número de assassinatos de travestis e transexuais.

19 Não intenciono aqui fazer um debate sobre se a prostituição, especialmente nos casos das transexuais e travestis, é uma questão de escolha, de necessidade, ou alguma espécie de híbrido entre estes dois elementos. Pude constatar nesta pesquisa que a resposta para esta questão varia mesmo dentre as pessoas ouvidas para este trabalho, o que me faz arriscar a concluir que, ante a ausência de uma pesquisa mais apurada, seria temerário fazer afirmações num ou noutro sentido. Não quero fazer um debate moral sobre a prostituição e a suposta liberdade de escolha desta população, mas sim partir da ideia de que, em uma quantidade razoável de casos, o prostituição acaba por se tornar a única alternativa viável.

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Um dos principais motivos que leva algumas travestis/transexuais femininas à prostituição, segundo Jacqueline, uma de minhas entrevistadas, é justamente o abandono da escola devido ao preconceito: “por ser muito difícil, eu entendo perfeitamente que algumas pessoas achem mais prático se jogar na prostituição, até mesmo porque elas não tiveram a oportunidade de sentar num banco de escola, porque é muito difícil. Se é muito difícil para um gay, imagina para uma travesti”. Neste mesmo sentido, destaco a afirmação de Geanne, que narra as dificuldades enfrentadas por travestis e transexuais devido a esta não adequação entre órgão genital e performance de gênero, que muitas vezes dificulta ou impossibilita o acesso à escola ou ao mercado de trabalho: É difícil estudar sendo travesti ou transexual. É muito difícil você encarar uma faculdade. (…) As meninas começam muito cedo hoje em dia. Você pega algumas meninas se transformando com 12, 13 anos, que é o período de escola e aí não aguentam porque acabam sofrendo muito bullying, chacota, essas coisas, então acaba saindo da escola. Isso é um dos primeiros agravantes. Depois o mercado de trabalho é um mercado que não é preparado para absorver essas pessoas entre aspas diferentes. (…) As pessoas ainda têm muito preconceito com as pessoas diferentes. E aí elas não conseguem emprego. E aí a única forma que tem, realmente, é a prostituição, que elas acham, né?

Saindo um pouco deste debate sobre a prostituição, considero importante também apontar que, tal como no caso da população LGBT em geral, o Estado é um dos principais agentes de violência contra travestis e transexuais, seja de maneira direta, como no caso da violência policial, ou indireta, devido à sua omissão em áreas como a da saúde. No prefácio do livro de Larissa Pelúcio, Berenice Bento afirma: O Estado passou a fazer e pensar políticas públicas para a população travesti quando esta foi considerada como um 'grupo de risco'. De fato, é generosidade qualificar um conjunto de discurso e recursos destinados exclusivamente para o controle das DST/aids como ´política pública para as travestis´. (…) Travestis e transexuais são reiteradamente assassinadas no Brasil, mortes brutais, são expulsas das escolas, agredidas nas ruas, não têm direito a um documento com suas identidades de gênero, não encontram oportunidades de emprego no mercado formal, ao contrário, o Estado brasileiro, no Código Nacional de Ocupação, afirma que ´travesti´ é um dos sinônimos para ´prostitutas´, quando a travestilidade relaciona-se às questões identitárias e não à profissão”. (Pelúcio, 2009:21)

Mais adiante, pergunta Bento:

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O que o Estado faz para preservar a vida cotidiana das travestis e transexuais? Nada. Se a preocupação é com a vida das travestis, por que não financia integralmente o processo travestilizador (o que já começou a ser feito com mulheres e homens transexuais)? O Estado, através de suas várias polícias, aparece nos discursos das travestis como os grandes agentes da violência. (ibidem)

Parece-me desnecessário repetir argumentos usados já no primeiro capítulo deste trabalho. O que é importante ressaltar aqui é que a violência que atinge a população LGBT em geral, o faz de maneira muito mais cruel e intensa no que diz respeito a travestis e transexuais, conforme se percebe dos dados do GGB, bem como das falas que encontrei nas entrevistas realizadas. Estas dificuldades vividas por tais pessoas encontram ecos muitas vezes dentro do próprio movimento LGBT, como veremos no capítulo 5 desta parte. Uma vez apresentados os fatores que contribuem para a violência transfóbica/travestifóbica, aponto em seguida alguns elementos de contraponto que identifiquei nas minhas entrevistas.

4) A não-ruptura dos laços familiares e o início relativamente tardio do processo de transformação de gênero Kulick, em seu clássico trabalho escrito nos anos 1990, já apontava a ruptura com a família como um momento crucial no percurso que leva algumas travestis à prostituição: à medida que tais modificações [corporais] vão se tornando mais aparentes, os meninos quase sempre são expulsos de casa ou a abandonam por livre iniciativa (KULICK, 2008:65). Em que pese ser questionável este abandono por livre iniciativa19, é importante ressaltar a importância deste momento de ruptura com a família, ponto crucial do

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: A título de exemplo, aponto a autobiografia de Fernanda Farias de Albuquerque: Era dia 8 de maio de 1982, e tudo despencou sobre mim. Foi pela vergonha de ser descoberto, pela coragem que eu não tinha. (…) Porque à minha saia eu não podia renunciar. Por tudo isso e por tantas outras coisas mais, naquela noite enxerguei só uma saída, a fuga. A outra, o suicídio, na época me parecia clamorosa demais. (ALBUQUERQUE & JANELLI, 1995:51)

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percurso que leva (ainda hoje) ao mercado do sexo grande parcela de travestis e transexuais. Entre as pessoas que entrevistei, todas afirmam que possuem relações amistosas com suas famílias, em que pesem algumas diferenças. Geanne afirma ter um bom relacionamento com sua família no interior de São Paulo, e que começou seu processo de transexualização aos 23 anos, quando já estava na faculdade, o que minorou as barreiras do preconceito que geralmente são encontradas por transexuais e travestis durante a infância e a adolescência. Afirma Geanne: Não tenho problema nenhum com a família. Eu nunca tive problema nenhum de preconceito. (…) Eu acho que eu nasci num berço de ouro, porque a minha família nunca se impôs em nada, nada, nada. Eu mantenho contato com todo mundo”. Também no que tange a Jacqueline, a relação boa com a família é apontada como fator de estabilização, que a possibilitou não precisar recorrer à prostituição para ter de sobreviver. Ela afirma ter uma irmã lésbica e um irmão gay. Sua mãe e seus irmãos a visitam com frequência em São Paulo. Em termos de ruptura/manutenção dos laços familiares, Josiane foi quem mais encontrou dificuldades. Embora hoje more com seus pais, quando iniciou o processo de transexualização teve de sair de casa, e acabou se prostituindo por um tempo. No entanto, mesmo neste caso mais extremo de ruptura familiar, os laços não foram completamente desfeitos, tanto que ela voltou para a casa dos pais, onde mora até hoje, sendo chamada lá até hoje por seu nome de batismo. Thayná mora com seus pais e afirma não ter nenhum problema com eles no que diz respeito à sua transexualidade; Daniela não mora com os pais, mas ajuda-os financeiramente e os visita com frequência. Acredito que esta lógica de não ruptura das relações familiares seja um dos motivos pelos quais minhas entrevistadas conseguiram concluir pelo menos o ensino médio (sendo que duas delas concluíram o ensino superior), com a consequente maior facilidade de inserção no mercado de trabalho (e, não por acaso, a maior parte delas possui uma renda mensal que varia de 5 a 10 salários mínimos).

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Outro fator relevante que acredito poder explicar esta menor dificuldade na inserção destas pessoas no mercado de trabalho diz respeito ao fato de que todas as minhas entrevistadas começaram o processo de transexualização após os vinte anos de idade. Afirma Geanne, referindo-se ao período etário em que acabou iniciando o processo de transformação de seu corpo: “Eu não passei por este período [transformação durante o período escolar]. No período da minha primeira faculdade eu ainda não tinha mudado todo meu corpo, não tava nem em processo. Era só homossexual e pronto”. A “transformação tardia” (em comparação com diversos outros casos mencionados na literatura sobre o tema, e pela própria Geanne, que afirmou que hoje ocorre em média aos 12/13 anos) foi identificada por mim como um dos fatores principais que possibilita a conclusão dos estudos e uma posição mais qualificada para conseguir emprego. Esta relação ocorre, dentre outras variáveis, justamente porque pessoas que começam seu processo de transformação de gênero ainda durante a idade escolar sofrem também de forma mais precoce os efeitos do preconceito transfóbico20. Em tais casos, as pessoas se colocam fora do armário de maneira relativamente cedo, enfrentando mais dificuldades do que garotos gays, que por vezes encontram formas de esconder ou disfarçar sua sexualidade dissidente, enquanto esta é afirmada por travestis e transexuais em seu corpo e em suas roupas, ficando mais suscetíveis a ataques justamente por se confrontarem tão inequivocamente contra o binarismo de gênero. Por outro lado, cabe ressaltar que o manejo do armário na idade escolar ocorre de forma diferente entre garotos gays afeminados e aqueles que não o são, justamente

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É importante ressalvar que não estou aqui fazendo uma defesa de que o processo de transexualização deva começar de maneira mais precoce ou mais tardia. Por óbvio, independentemente da idade em que o mesmo se inicie, não é justificável a interferência violenta por parte da família, de colegas de escola e de trabalho, e menos ainda de representantes de órgãos estatais, tais como professores ou médicos. Busco aqui meramente fazer uma descrição de situações que identifiquei como de maior potencial de discriminação em relação a sexualidades dissidentes.

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por haver no primeiro caso uma espécie de ruptura com as concepções sociais referentes a comportamentos masculino/feminino. Neste sentido, ouvi de algumas de minhas entrevistadas frases como: “sempre fui bastante afeminada na escola, apesar de ter iniciado meu processo de transexualização após a idade escolar”, frases estas buscando justamente apontar para as dificuldades encontradas desde cedo, as quais viriam a ser aprofundadas com o início do processo de transexualização. Esta hostilidade durante a idade escolar, que encontrei em minhas entrevistas, também foi apontada por Fernanda Farias de Albuquerque, ainda que suas primeiras experiências transexuais tenham ocorrido no final da adolescência: Voavam bolinhas de papel, me bombardeavam com bilhetinhos escritos em folhas amassadas. Jogavam nas minhas costas enquanto eu estava no quadro-negro. (…) Pedia ajuda a Izael Dias [o professor]. Ele requebrava e me imitava com voz afeminada: ‘Fala, diga para mim, Fernandinho,

o

que

você

quer?’

Eu

emudecia,

coberto

de

vergonha”

(ALBUQUERQUE & JANNELLI, 1995:35) Apesar de ter iniciado seu processo de transexualização aos 18 anos, as incessantes chacotas não permitiram a Fernanda a oportunidade de concluir os estudos. Em que pese a gravidade de tal situação, cabe questionar se seria possível sequer a existência de Fernanda na escola e na cidade onde cresceu nos anos 1960/1970, caso a mesma tivesse iniciado tal processo de transexualização ainda mais cedo.

5) Transfobia/travestifobia dentro do movimento LGBT “Esta sigla LGBT, este movimento, ele é uma farsa, ele não existe. O movimento LGBT é um movimento GGGG. É um movimento feito por gays, em que só se encampa a luta gay, que só se luta em favor dos gays, em que só se fala dos gays, em que só se visibiliza os gays. Todo o resto não existe.”

Ouvi esta frase acima em entrevista que realizei com Daniela, quando lhe perguntei como ela percebia a questão da transfobia dentro do movimento LGBT. A já mencionada barreira de classe que mantém a maior parte das travestis e transexuais à margem da sociedade, também cria dificuldades para que as mesmas

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encontrem uma maior articulação para fazer frente à hegemonia dos gays dentro do movimento LGBT. As dificuldades de acesso ao estudo por este segmento do movimento, que inicia o processo transgênero relativamente cedo, muitas vezes acarreta em uma perda de sociabilidade e em uma enorme restrição de acesso a espaços de debate, dificuldade esta que é encontrada de forma muito menor pelo setor hegemônico do movimento LGBT (os gays). Esta marginalização no manejo do debate nos espaços de discussão acaba por gerar uma situação nefasta: homens gays acabam se apropriando das pautas de travestis e transexuais, sem levar em consideração suas especificidades. Nas palavras de Daniela, até pelo fato de travestis e transexuais serem pessoas menos articuladas, menos esclarecidas e com menos estudos do que os gays, que geralmente têm mais estudo, eles se colocam como porta-vozes de uma realidade que não é deles (…). sabe, você tá roubando a minha voz. Como que um movimento que quer dizer pra mim que tá lutando pelos que não tem voz, pelos que estão à margem, pelos que são invisibilizados socialmente, chega pra mim e diz qual que tem que ser a minha luta e o que que eu devo reivindicar e quando eu devo reivindicar?

Daniela relatou ainda ser bastante comum ouvir de representantes do movimento LGBT a ideia de que o combate à homofobia engloba o combate à transfobia, ao que ela questiona: me fala quantos gays vão numa farmácia comprar remédio e o farmacêutico pede pra ele o RG dele e o farmacêutico fica achando que ele tá mentindo, quantos gays passam por isso? Quantos gays pedem pra professora chamar eles na hora da chamada de 'Maria', quando o nome do RG dele tá 'João', e a professora faz questão de gritar em alto e bom som: 'João!'. Quantos gays passam por isso? Isso é homofobia, ou transfobia?

Tais questionamentos apontam para a necessidade de um tratamento diferenciado da questão travesti e transexual dentro do movimento LGBT. Buscar subsumir o tema da transfobia/travestifobia ao tema da homofobia em geral significa nada menos do que tentar anular um sujeito político com especificidades próprias, que sofre preconceito de maneira diferente. Daniela afirmou na entrevista, de forma peremptória, que tal “confusão” entre os termos “transfobia” e “homofobia” não é despropositada. Segundo ela, grupos LGBT´s, quase sempre dirigidos e compostos majoritariamente por homens gays brancos de

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classe média, se apropriam da pauta transexual/travesti para inflar os dados da violência LGBT em geral, deixando de lado quase sempre a informação de que a população de travestis e transexuais é muito mais vulnerável à violência. Muitas vezes, este preconceito do movimento LGBT se dá de maneira ativa. Jacqueline relatou para mim que, em um evento em Brasília, foi deixada para trás por dois dirigentes de grupos gays brasileiros importantes, pelo simples fato de ser travesti. Estavam os três andando na rua, quando os dois dirigentes se afastaram, entraram em um táxi, e foram embora, deixando-a sozinha. Entendo que este acontecimento é bastante significativo para demonstrar a forma como o setor majoritário LGBT trata o setor mais marginalizado desta sigla.

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III.

A INSERÇÃO DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS FEMININAS NO MERCADO DE TRABALHO FORMAL

1. O exército industrial de reserva e os seres abjetos Em linhas muito gerais, o conceito de exército industrial de reserva desenvolvido por Karl Marx visa dar conta da parcela da população que está, de maneira provisória ou permanente, à margem das relações diretas de produção econômica. Afirma o autor: “A acumulação capitalista produz constantemente, e na proporção de sua energia e seu volume, uma população trabalhadora adicional relativamente excedente, isto é, excessiva para as necessidades médias de valorização do capital e, portanto, supérflua” (MARX, 2013:705). Lisandro Braga aponta que além da função de mão-de-obra disponível para as necessidades do capital, porém nem sempre utilizada, e em grande quantidade na reserva, o exército industrial de reserva cumpre outra função essencial no capitalismo que é a de pressionar os salários para baixo. Ele transforma-se, assim, numa das principais alavancas da acumulação capitalista, uma vez que a oscilação dos salários passa a ser regulada pelo movimento de expansão e contração desse contingente populacional

formado

pelo

exército

industrial

de

reserva

(http://anais.cienciassociais.ufg.br/uploads/253/original_Lisandro-Rodrigues-de-AlmeidaBraga%0A.pdf, p. 214-5)

A questão das opressões não foi criada pelo sistema capitalista. Há milhares de anos, e nas mais variadas sociedades, existiram marcadores sociais de classe, etnia, raça, idade, gênero e região, os quais sempre foram utilizados para justificar desigualdades sociais (muitas vezes tidas como naturais). O que ocorre de novo no sistema capitalista é que a força de trabalho das pessoas que não possuem os meios de produção precisa ser vendida em nome da sobrevivência física. Esta apropriação da força de trabalho não se dá de maneira homogênea, ou seja, um homem branco vale, enquanto mercadoria, muito mais do que uma mulher negra, na média. Dados oficiais do próprio IBGE apontam claramente para esta realidade, ano

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após ano21. No mercado de trabalho, homens valem mais que mulheres, brancos valem mais do que negros, jovens em idade de trabalho valem mais do que crianças ou idosos. Paralelamente ao debate deste conceito mais clássico (embora bastante atual), é possível trazer a tona o conceito de Judith Butler de ser abjeto22 ”.(BUTLER, 2002). Também em linhas bastante gerais, seres abjetos seriam aquelas pessoas não merecedoras de serem reconhecidas pelo Estado em seus direitos mais básicos. Tais seres abjetos seriam apontados como tal devido a uma interseção de feixes discriminatórios, a ponto de poderem ser assassinadas e tratadas como verdadeira escória social, sem espaço para inserção até mesmo no mercado de trabalho, a não ser em situações de extrema informalidade, ou em situações de prostituição, nas quais fica óbvia a mercantilização direta do próprio corpo23 Dentro desta lógica, não restam dúvidas de que se destacam a maior parte das travestis e transexuais. As mesmas são empurradas para o mercado de trabalho informal ou para a prostituição, ampliando-se o exército industrial de reserva, nos termos marxistas. Em suma, os seres abjetos butlerianos teriam, do ponto de vista do mundo do trabalho, como local reservado a si, o papel de mercadoria das mais baratas, daquelas que podem ser usadas e descartadas sem maiores problemas, como pode-se perceber nos dados de violência transfóbica e travestifóbica já tantas vezes mencionados. Creio ser possível afirmar, forçando um diálogo entre os dois conceitos e os dois autores, aparentemente tão distantes no tempo e em seus campos de estudo, que os seres abjetos são muitas vezes parte “privilegiada” do exército industrial de reserva.

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Os dados oficiais que apontam para a disparidade social entre negros e brancos são representados de maneira clara e direta na música A Carne, composta por Seu Jorge, Marcelo Yuca e Wilson Capellette, e magistralmente cantada por Elza Soares. Diz uma parte da letra: “A carne mais barata do mercado é a carne negra / que vai de graça pro presídio / e para debaixo de plástico / que vai de graça pro subemprego / e pros hospitais psiquiátricos” 22

Para Butler (2002), o “[ser] abjeto (...) não se restringe de modo algum a sexo e heteronormatividade. Relaciona-se a todo tipo de corpos cujas vidas não são consideradas 'vidas' e cuja materialidade é entendida como ''não importante'. Para dar uma idéia: a imprensa dos Estados Unidos regularmente apresenta as vidas dos não-ocidentais nesses termos. O empobrecimento é outro candidato freqüente, como o é o território daqueles identificados como 'casos' psiquiátricos”. 23 Mais uma vez, não pretendo neste trabalho travar uma discussão moral sobre a prostituição, apenas analiso o fato de que muitas vezes esta é a única alternativa viável para a sobrevivência de algumas pessoas.

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Em momentos em que isto se torna interessante para o sistema capitalista, tais pessoas podem ser recrutadas para trabalhar em postos de trabalho informais ou de baixa qualificação e baixos salários, tal como a área de telemarketing, como mostrarei oportunamente. É claro que a caracterização de alguém como ser abjeto, bem como sua classificação como participante do exército industrial de reserva, não é algo pronto e acabado, e sim algo relacional e que pode ser mudado a depender do contexto. A saída desta realidade, possibilitada cada vez mais pelas denúncias existentes à situação precária destas pessoas, bem como pela resistência do movimento LGBT (embora com contradições, como já dito), torna possível uma certa quebra na rigidez deste tipo de caracterização. No entanto, dificilmente as travestis e transexuais alcançam uma ascensão social compatível com aquela possível aos setores menos oprimidos dentro da própria classe trabalhadora. Na grande maioria dos casos, os empregos disponíveis a estas pessoas são justamente aqueles mais desvalorizados socialmente, o que se reflete, antes de mais nada, nos baixos salários pagos. Há também os casos de empregos que não exigem lidar pessoalmente com o público, como ocorre no caso da profissão atendente de telemarketing. As raras situações de ascensão social que ultrapassam as limitações do mercado informal e/ou do subemprego costumam vir acompanhadas de mudanças na própria terminologia pela qual estas pessoas se reconhecem: deixam de se identificar como travestis e passam a ver-se e apresentar-se como transexuais, independentemente da cirurgia de mudança de sexo, justamente como forma de marcarem em seu discurso, para si mesmas e para os demais, a ruptura com o estigma do nome que as associa à abjeção. Após esta breve discussão teórica sobre conceituações sociológicas aplicáveis a travestis e transexuais femininas, passo no próximo tópico a efetivamente discutir o tema deste trabalho: como se dá na prática a inserção de travestis e transexuais no mercado de trabalho, em que pese todas as dificuldades já narradas.

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2. A (não) integração de travestis e transexuais femininas no mercado de trabalho brasileiro no contexto de crise econômica mundial Temos vivido nos últimos anos uma crise mundial que é tida por grande parte dos economistas como a maior desde 1929. Na Europa, direitos trabalhistas conquistados ao longo de décadas, no que se convencionou de chamar de Estado de Bem-Estar Social (Welfare State) vêm sendo atacados dia a dia. Grécia e Espanha, para ficarmos nos exemplos mais dramáticos, possuem taxas de desemprego superiores a 25% da população. Outros polos importantes da economia capitalista, como EUA, Japão, e a América Latina de conjunto vêm amargando problemas financeiros de grande monta, o que também se reflete nas dificuldades encontradas pelos trabalhadores em conquistar direitos ou sequer manter aqueles conquistados. Embora haja países em situações menos problemáticas do que outros (incluindo, por enquanto, o Brasil), é inegável que em escala global a situação é bastante dramática. Após trilhões de dólares dos contribuintes de diversos países terem sido despejados pelos governos para salvar bancos e grandes empresas, os trabalhadores são chamados a pagar pela crise dos grandes capitalistas que, por sua vez, despejam milhões e milhões de dólares em campanhas eleitorais mundo afora, visando garantir seus interesses de classe. Esta fatura é paga pelos trabalhadores e pelos setores oprimidos em geral da população, seja através da redução de direitos conquistados, ou mesmo até por meio de demissões, visando-se garantir a estabilidade da economia (ou seja, a taxa de lucro dos grandes capitalistas). A crise econômica não atinge a todas as pessoas da mesma maneira. Inúmeras e sucessivas pesquisas do próprio governo brasileiro (via IBGE) demonstram que negros ganham menos do que brancos e mulheres ganham menos do que homens quando realizam exatamente o mesmo trabalho. Não há, no entanto, pesquisas no Brasil que apontem para uma disparidade salarial entre heterossexuais e não-heterossexuais. Como já dito, pelo fato de gays, lésbicas e bissexuais poderem manter-se dentro do armário no que diz respeito a sua sexualidade, é possível que haja uma menor

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disparidade salarial entre os mesmos e as pessoas que se denominam heterossexuais, apesar de toda a questão da homofobia já relatada. Gays, lésbicas e bissexuais que “se passam” por heterossexuais muitas vezes acabam sendo tratados como tais, inclusive do ponto de vista econômico. A questão fica mais complicada quando passamos a lidar com transexuais e travestis. Assim como ocorre com negros e mulheres, não há um armário possível para estas pessoas. Em geral, o processo de questionamento (ainda que apenas visualmente) do binarismo de gênero acaba possuindo bastante visibilidade. Da mesma forma ocorre em relação às bichas pintosas, pocpoc´s, ou seja, aos homossexuais pobres e afeminados, ou às fanchonas, ou seja, as lésbicas masculinizadas, como visto anteriormente. Em uma crise econômica, como a que ocorre atualmente no mundo, todos os trabalhadores tendem a ser afetados, mas alguns setores acabam sendo mais do que outros. Por exemplo, em praticamente todos os países do mundo, incluindo o Brasil, o desemprego entre pessoas jovens possui índices muito mais superiores do que a taxa de desemprego médio da população. Não é difícil imaginar que travestis e transexuais, juntamente com os setores oprimidos aqui mencionados, acabam sendo afetados de maneira mais incisiva pela crise econômica. Como já dito, não há dados concretos que apontem provem esta afirmação, até por falta de interesse do governo em produzi-los. No entanto, pude perceber, nos diversos estudos mencionados ao longo do texto, bem como nas entrevistas realizadas, que o índice de desemprego, subemprego, emprego pouco valorizado socialmente, bem como a prostituição, atingem uma parcela enorme de travestis/transexuais, principalmente no que diz respeito àquelas que começaram o processo de transexualização relativamente cedo. Feita esta contextualização mais geral, vou agora partir para a questão das entrevistas que coletei no último período. Citarei neste capítulo alguns trechos que considero significativo no que diz respeito à inserção e manutenção destas pessoas no mundo do trabalho, apresentando em seguida algumas considerações.

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Começo relatando as dificuldades encontradas por Jacqueline, 48 anos, hoje cabeleireira, que a levaram a deixar o emprego público que possuía na TELESP, no início dos anos 1990. Ao questionar seu supervisor sobre o porquê não fazia jus a determinada progressão de carreira por mérito, em relação ao cargo que ocupava e ao consequente acréscimo salarial, ouviu dele: “na realidade, não estou levando em consideração nenhum destes três critérios [necessários para a promoção e, consequentemente, o aumento salarial]. O que eu tô levando em consideração na realidade é o seu visual. Não é a sua competência, é seu visual, que prejudica a sua imagem e a imagem da empresa”. Jacqueline viu-se impelida a cortar os cabelos, usar óculos quadrados e usar uniforme masculino, como forma de manter seu emprego. No entanto, mesmo estas iniciativas não foram suficientes, e Jacqueline acabou sendo demitida. Thayná, 34 anos, atualmente desempregada, afirma também que, em uma empresa em que trabalhava, “iam me mandar embora só porque eu era travesti”. A transfobia/travestifobia muitas vezes surge já antes da obtenção do emprego, quando se está realizando o processo seletivo para o mesmo, por exemplo. Thayná, hoje desempregada, afirmou que: (...) fui numa agência de empregos e a moça foi bem arrogante comigo: ´mas como você vai trabalhar numa empresa e frequentar um banheiro feminino? Os maridos das mulheres vão sentir ciúmes de você´. Eu simplesmente cheguei pra ela e falei: ' Mas a senhora acha que eu fiz todo este procedimento em mim para que?' (…) aí eu peguei e saí, eu fiquei muito revoltada, ela foi muito arrogante este dia.

A própria obtenção de um emprego não é passaporte para se livrar do preconceito, segundo depoimento de Geanne, 36 anos, professora, e que hoje trabalha em uma Unidade Básica de Saúde em Embu das Artes. Em certa ocasião, uma diretora de escola a interpelou dizendo que ela não poderia ir trabalhar vestida de mulher, pois o estatuto do servidor público menciona que ela deveria se vestir adequadamente. Em outra situação, uma diretora de escola na cidade onde reside disse a Geanne que gostaria que ela não trabalhasse em sua escola. Esta mesma diretora lhe perguntou: “você vai chegar até aonde?”, ao que Geanne respondeu afirmando: “até aonde eu quiser, até aonde eu achar que eu devo chegar, e não até aonde você acha que eu devo chegar”.

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Tomei conhecimento também, ao longo desta pesquisa, do caso de Jacqueline Stephannye, trabalhadora da SABESP, que foi demitida em razão do seu processo de transformação de gênero. Vale ressaltar que a SABESP é uma empresa vinculada ao governo do Estado de São Paulo, o qual possui leis específicas, ao menos em tese, que visam barrar a discriminação em empresas dentro desta unidade da federação. Jacqueline Stephannye foi demitida sob a justificativa de que estava tendo muitas faltas no trabalho. No entanto, tais faltas se davam devido justamente a seu processo de transexualização, ou seja, a mesma estava sob acompanhamento médico para tal, e esta demissão ocorreu após a ela estar trabalhando há 14 anos na empresa24. Muito provavelmente, Jacqueline acabará por ser reincorporada ao serviço, já que parece evidente que a sua demissão se deu em razão de preconceito transfóbico. No entanto, cabe perguntar: esta reintegração ocorrerá daqui a quanto tempo? Quantas dificuldades financeiras não serão enfrentadas por ela ao longo deste período devido a esta flagrante transgressão às normas trabalhistas e à própria Constituição Federal, que veda qualquer tipo de preconceito? O responsável pela demissão indevida será punido pela discriminação? Não há como dar a estas perguntas respostas certas, mas é muito mais provável que o dano causado não seja reparado de forma integral (até mesmo porque, como ocorre em geral em casos em que são cabíveis danos morais, nenhum montante de dinheiro é capaz de recompor uma situação com tais consequências nas mesma proporção do dano). Em que pese Jacqueline ter sofrido na SABESP inúmeras situações de transfobia (proibição de se vestir de mulher, limitação do horário em que poderia utilizar o banheiro feminino, desrespeito ao seu nome social, e até mesmo a denúncia de assédio sexual e tentativa de estupro), a justificativa para demissão foi a de “absenteísmo”. É possível perceber que nos relatos de Geanne e das duas Jacquelines que todas elas sofreram preconceitos advindos de instâncias hierárquicas superiores ligadas direta

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Segundo o site da CSP-Conlutas (http://cspconlutas.org.br/2012/11/setorial-lgbt-da-csp-conlutaspromove-campanha-pela-reintegracao-de-transexual-a-sabesp/), “Jaqueline relata que a empresa usou como “justificativa” de demissão a prática do absenteísmo (ausência do colaborador no ambiente de trabalho). Entretanto, Stephannye rebate essa justificativa, pois todas as vezes que precisou ausentar-se no trabalho foi devido ao processo de transformação do seu corpo que estava fazendo no CRT (Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais do Centro de Referência e Treinamento da Secretaria de Saúde do Estado de SP). Todas as ausências foram sempre justificadas por atestados médicos”.

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ou indiretamente ao Estado (diretor de escola, supervisor). Podemos considerar, por meio destes exemplos, que a transfobia institucional está bastante arraigada, mesmo em órgão públicos do Estado de São Paulo. Ou seja, mesmo sem um problema concreto que pudesse levar ao questionamento quanto à competência profissional destas pessoas, as três foram interpeladas no sentido de se vestirem de outra forma. Não se tratou de uma espécie de preconceito difuso que porventura tivesse chegado ao conhecimento dos superiores hierárquicos; pelo contrário, tratou-se de preconceito irradiado diretamente de focos superiores de poder. Acredito que em empresas privadas, onde as relações de poder e subordinação costumam ser ainda mais perversas, a não-adequação das travestis/transexuais às normas de binarismo de gênero vigentes podem levar a demissões, ainda mais em contextos de crise e desemprego, como já relatado acima. Além de a transexualização em si ser vista muitas vezes como barreira para a inserção no mercado de trabalho, o não término da vida escolar devido ao preconceito já coloca estas pessoas em situação de maior dificuldade, em uma realidade que exige cada vez mais qualificação (anos de estudo, cursos profissionalizantes, etc) das pessoas em geral. Penso que esta barreira é mais facilmente superada em duas vertentes: a primeira é a do concurso público, que em tese é mais objetivo e não leva em consideração a compleição física dos candidatos. A segunda vertente é justamente o trabalho em áreas voltadas à moda e à estética, tais como cabeleireiras, maquiadoras, etc. Cito ainda uma terceira vertente que é aquele tipo de trabalho em que não há um contato visual direto com as pessoas que estão trabalhando, tais como atendentes de telemarketing. Observo que esta área específica pode ser vista como uma espécie de porto de aceitação de inscrições corporais tidas como “anormais”, tais como grandes quantidades de tatuagens, piercings, alargadores de orelha, etc. Geanne, inclusive, apontou esta questão em sua entrevista: “Não é só travesti [que sofre preconceito], se você pegar alguém que tem um monte de piercing, um monte de tatuagem, alargador... tem paciente aqui [na UBS] que vem fazer cirurgia pra tirar o alargador e corrigir a orelha porque não consegue emprego”.

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Para concluir esta última parte do trabalho, vou fazer uma breve análise destes tipos de trabalho que trazem mais possibilidades para a inserção de travestis e transexuais.

A) Serviço Público: uma estabilidade bastante instável Um dos pilares do concurso público é a impessoalidade na escolha dos candidatos a ocupar um determinado cargo. Não se deve levar em conta sua aparência física, a não ser que a mesma esteja diretamente ligada a competências específicas para o exercício do cargo. Assim, uma travesti ou transexual pode tentar esta via para se inserir no mercado de trabalho. No entanto, uma série de dificuldades se apresentam, tais como a já mencionada falta de qualificação (cursos escolares não terminados, etc). A possibilidade de assumir um cargo público está quase sempre associada à obtenção de um determinado grau de instrução, o que nem sempre corresponde à realidade destas pessoas. As dificuldades enfrentadas pelas travestis e transexuais são sem dúvida maiores do que aquelas encontradas pelas pessoas consideradas cissexuais. Segundo Geanne, que é funcionária pública, “se alguém tem que mostrar dez, eu tenho que mostrar vinte”. Vimos que a obtenção de um emprego público, embora possa ser tida como uma garantia de estabilidade funcional, muitas vezes não é garantia de estabilidade real. Já relatei os problemas de assédio moral enfrentados por Geanne e Jacqueline em seus locais de trabalho (escolas e SABESP).

B) Telemarketing: trabalhando longe dos olhos Sabe-se que o trabalho de telemarketing pode ser considerado como dos mais precários nos dias atuais. Embora o trabalho seja formal, os salários são baixos e o grau de pressão por resultados rápidos e eficazes é bastante grande (ANTUNES & BRAGA, 2009).

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Em tais locais de trabalho, justamente devido à precarização das condições e aos baixos salários, são encontradas diversas pessoas que poderiam se encaixar no já mencionado conceito de ser abjeto de Judith Butler: pessoas com grandes tatuagens, piercings, gays afeminados, lésbicas masculinizadas, etc. Também são encontradas, em número considerável, travestis e transexuais. Isto ocorre devido ao fato de que tal tipo de trabalho não exige um contato pessoal entre o trabalhador e o cliente que utiliza-se do serviço prestado. Não se sabe, quando alguém liga para um número de telefone para solicitar um produto ou realizar uma reclamação, quem é a pessoa que está do outro lado da linha. O contato é apenas auditivo. Assim sendo, tal espaço se torna privilegiado para a inserção de travestis e transexuais no mercado de trabalho formal, já que o estigma vivido por estas pessoas se mantém invisível25

C) Entre cabelos, maquiagens e outras intervenções estéticas:

trabalhando nos bastidores Outra área muito comum de inserção de travestis e transexuais ao longo das últimas décadas se refere a profissões ligadas à intervenções estéticas (cabeleireiro, manicure, maquiador, etc). Tal como no caso dos trabalhadores da área de telemarketing, tais profissões podem ser vistas como “de bastidores”, possibilitando a inserção de pessoas não aceitas em outros meios profissionais. Ouvi mais de uma vez durante esta minha pesquisa que haveria um interesse de travestis e transexuais por esta área devido ao fato de as mesmas terem de lidar, desde muito cedo e de forma bastante cotidiana, com o cuidado com seus próprios corpos 26, e que a partir desta vivência intensiva elas estariam mais dispostas e preparadas para lidar com o cuidado estético do corpo de outras pessoas.

25 Para esta discussão sobre a questão de estigmas visíveis e invisíveis, ver Goffman, 1963. 26 Para uma melhor análise de como se dá este processo, ver Benedetti, 2005.

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Creio que tais explicações não são dicotômicas, e sim complementares. Destaco, no entanto, a questão dos bastidores, pois me parece que tal elemento explora melhor o diálogo com as formas de inserção no mundo do trabalho que tenho aqui desenvolvido, uma vez que tal perspectiva se volta para um viés mais geral e ligado a questões da sociedade não diretamente relacionadas a gostos pessoais.

D) Trabalhos na iniciativa privada Como se sabe, a grande parcela dos empregos vinculados à iniciativa privada são regidos pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), que possui mais de 70 anos. Por óbvio, muitas das mudanças sociais ocorridas de lá para cá não estão contempladas por este diploma legal. No entanto, outros dispositivos foram sendo criados ao longo do tempo. A própria Constituição Federal lida com a questão do trabalho de forma bastante explícita. Além disso, como já dito, a CF consagrou entre seus princípios a não discriminação injustificada entre as pessoas. Embora a CLT e a CF não tratem de maneira específica a questão da população LGBT, esta última prevê em seu texto, especialmente no art. 5º, a questão da igualdade de todos perante a lei, a garantia da dignidade da pessoa humana, etc. Foi justamente a partir deste entendimento que o STF estendeu o direito à união estável aos casais homossexuais, conforme já visto. Creio que as dificuldades encontradas por travestis e transexuais na iniciativa privada sejam bem maiores do que aquelas encontradas no serviço público, e que tais dificuldades ocorrem desde o processo de seleção, passando por vários momentos ao longo do tempo, como apontado em diversos momentos deste trabalho. Mostrei ao longo deste trabalho diversos relatos de transfobia/travestifobia enfrentados nesta área. Embora não haja estabilidade na iniciativa privada nos mesmos termos em que há no serviço público, faz-se necessário o respeito aos preceitos constitucionais.

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Existem leis, como a 9029/95, que têm sido usadas de forma extensiva para combater a discriminação homofóbica. O art. 1º desta lei afirma: “Fica proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso a relação de emprego, ou sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade”. Embora também aqui não se fale sobre a questão da discriminação por orientação sexual, é possível realizar interpretação extensiva. Há estados e municípios brasileiros que possuem legislação específica em relação ao combate à homofobia, tais como a lei 10948/01, em São Paulo. No entanto, tais leis existem em apenas 79 municípios brasileiros, de acordo com a pesquisa do IBGE divulgada em novembro de 2012 (dados coletados em 2011). E, mesmo nos locais onde existem tais previsões legais, nem sempre elas saem a contento do papel, como já exposto no primeiro capítulo deste trabalho. Tomei contato nesta pesquisa, com uma entrevistada que estava desempregada, e outra que trabalhava prestando serviços de Tecnologia de Informação. Curiosamente, nenhuma delas me relatou casos de transfobia/travestifobia semelhantes àqueles relatados por mim no serviço público. Devido ao pequeno número de pessoas que entrevistei, creio não ser possível fazer nenhum tipo de afirmação genérica que vise explicar esta suposto menor grau de transfobia/travestifobia na iniciativa privada.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS O grau alarmante de assassinatos de travestis e transexuais femininas salta aos olhos de quem faz o mínimo esforço para enxergar esta questão. O relatório do GGB apenas vem a confirmar, por meio de dados, a situação de extrema violência vivida por estas pessoas todos os dias, de norte a sul do Brasil. Não existem políticas públicas minimamente consistentes que visem conter esta situação. As travestis e transexuais encontram auxílio do Estado quase que exclusivamente para lidar com situações referentes a Doenças Sexualmente Transmissíveis, e isto por um motivo bastante claro: quando trabalhando com prostituição, seus clientes costumam ser homens heterossexuais ou bissexuais. Impedir que estas pessoas se contaminem, e contaminem o mundo heterossexual é o principal objetivo destas “políticas públicas” governamentais27. Outros pontos poderiam evitar a morte de milhares de pessoas todos os anos, como a garantia de aplicação segura de silicone cirúrgico por meio do SUS (evitando-se assim a (auto)aplicação de silicone industrial); a real investigação de homicídios que tenham por vítimas estas pessoas; a realização de um censo que identificasse a quantidade e o perfil desta população; políticas públicas de conscientização sobre a questão de identidade de gênero, etc. É necessário que estas e outras políticas saiam do papel e passem ao mundo concreto. Cito um exemplo relativamente simples e bastante emblemático de política teórica que dificilmente é posta em prática: existe uma orientação de vários governos, nos mais diversos âmbitos, incluindo o Governo Federal, do Estado e da prefeitura de São Paulo, no sentido de garantir que travestis e transexuais sejam tratadas, em atendimento público, por seu nome social. No entanto, salvo em locais de atendimento muito específicos, sequer há espaço nos formulários de atendimento de saúde para a colocação deste dado. O combate à transfobia e à travestifobia não pode mais esperar para ser realizado, e isto deve ser feito com a máxima urgência. Cada semana a mais de demora equivale ao assassinato brutal de alguém em razão deste tipo de preconceito.

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Esta ideia está magistralmente desenvolvida no trabalho de Larissa Pelúcio (2009)

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Neste sentido, cabe ao movimento LGBT olhar para si e refletir sobre o quanto tem contribuído, ainda que de maneira indireta, para reforçar esta realidade nefasta. É preciso que se aprofunde um debate que vise garantir uma espécie de equilíbrio na representação de travestis e transexuais nos fóruns de deliberação do movimento. É necessário pensar, no âmbito estatal, em políticas sociais compensatórias (como cotas, por exemplo), que garantam a inserção destas pessoas nas universidades e locais de trabalho. Somente através deste tipo de salto na inserção social é que poderá haver uma mudança na percepção do que é ser travesti ou transexual atualmente, enxergando-se tais pessoas como alguém digno de ser visto como ser não abjeto. O processo de conscientização da população em relação a este tema é necessário, porém extremamente demorado. E cada dia de demora significa o homicídio de uma travesti ou transexual, ou a morte de outras tantas em decorrência de falta de assistência a saúde. A situação de travestis e transexuais nas últimas décadas avançou de maneira absurdamente mais lenta do que a situação de gays, lésbicas e bissexuais. Considero importante olhar com mais cuidado para esta parcela da população que vêm sendo destruída (física e moralmente) ao longo das décadas. Espero ter contribuído para isto, ainda que de forma mínima.

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