TRAVESTIS: TITULARES DE DIREITO E CIDADANIA?

June 30, 2017 | Autor: G. Souza Cezimbra | Categoria: Gender Studies, Gender and Sexuality, Cidadania
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Universidade Federal da Bahia, 4 a 7 de setembro de 2015

II SEMINÁRIO INTERNACIONAL DESFAZENDO GÊNERO SIMPÓSIO TEMÁTICO 77: SISTEMA PENAL, SEGURANÇA PÚBLICA E CRIMINOLOGIA QUEER TRAVESTIS: TITULARES DE DIREITO E CIDADANIA? Cezimbra, Gabriela Souza1 Souza, Martha2 Palavras-chave: Travestis, direitos, cidadania

No ano de 2012 realizamos pesquisa etnográfica com travestis de Santa MariaRS, por meio de observação participante, entrevistas e acompanhamento de suas vidas cotidianas. Durante este período, percebemos que a violência física e simbólica e o sofrimento delas decorrentes, eram invariantes, condição com a qual tinham que lidarem seus itinerários, em suas práticas e afazeres diários. Este trabalho discute as violênciasvivenciadas pelas travestis principalmente nas instituições de controle penal, observando também o reflexo das agressões em outros âmbitos, como na saúde das mesmas, procurando, sobretudo, compreender o papel de uma criminologia crítica na construção de suas cidadanias. Os reflexos da violência na saúde da população mundial e brasileira vêm sendo estudados por diversos autores (Minayo, 2007; Scharaiberet al, 2006).Acompanhando o movimento dessas pesquisas, este trabalho pretende discutir a violência contra travestis no momento em que estas fazem denúncias nas delegacias a respeito das agressões vivenciadas– tema que, apesar de alguns meritórios esforços, ainda têm recebido pouca atenção da academia, das organizações da sociedade civil e dos governos.

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Advogada, OAB/SC 36.742, ativista pelos direitos LGBTI. E-mail: [email protected] 2 Professora do curso de enfermagem do Centro Universitário Franciscano. E-mail: [email protected]

Existem várias delegacias de polícia para delatar os casos de violência no município de Santa Maria - RS: da mulher, do idoso, da criança e adolescente. Para denunciar os diversos casos de violência contra as travestis, algumas procuram a Delegacia Geral na região central do município (em teoria destinada a este fim). É comum não denunciarem as ofensas, pois frequentemente, mesmo sendo vítimas, são transformadas em agressoras nos boletins de notificação. Ao explicar o motivo do silêncio elas referem: “todas sabem:ninguém acredita em travesti, então não adianta ir à delegacia fazer queixa”. Mesmo com iniciativas como a criação da Coordenadoria de Equidade e Gênero no município no ano de 2007, são numerosos os relatos, como os da Organização Não Governamental (ONG) “Igualdade no Coração do Rio Grande do Sul”, que denunciam que as travestis e transexuais, além de sofrerem agressões constantes por parte de clientes, de familiares, na escola, no momento em que se dispõem a registrar queixa, sofrem preconceito e discriminação nas próprias delegacias. Uma das travestis que sofreu situação de violência, comentou sobre essa situação: Quando procuramos os serviços de saúde para realizar curativos ou mesmo a delegacia para denunciar as brigas, nos sentimos rejeitadas e discriminadas. Então é comum nem darmos queixa, pois não dá em nada, no máximo ainda sobra para nós, de novo! A explicação desta negligência no atendimento de vítimas travestis, ou até mesmo agressões por parte do aparato policial não é desproposital. É mais um dos reflexos da invisibilidade trans que enfrentamos em uma sociedade heteronormativa, que por meio destes instrumentos institucionais busca manter a dominação masculina, branca e proprietária. Não ser vistx é conveniente para a continuidade de uma relação de dominação. Há que ressaltar que a figura da travesti é subversiva, uma afronta aos padrões de domínio. Isso porque expõe em carne e osso a falácia do binômio heteronormativo, trazendo para a vida real a verdade de que o gênero nada tem de biológico. Todos os estereótipos de masculino e feminino são culturalmente aprendidos, fato pelo qual as desigualdades a que todos que não são homens, brancos e proprietários estão submetidos, seriam totalmente mutáveis. Esse tratamento se repete em outras instituições, sendo que a delegacia e os serviços de saúde atuam da mesma forma e são interpretados como pertencentes a uma mesma máquina que reproduz a violência: “na delegacia ou numa UBS é a mesma discriminação, o mesmo tratamento”.

A violência letal contra homossexuais, e, mais especificamente, contra travestis e transgêneros é, sem dúvida, uma das faces mais trágicas da discriminação por orientação sexual, homofobia e transfobia no Brasil. A violência que atinge travestis, sobretudo as que participam dos circuitos da prostituição, diferencia-se da que tende a vitimar outros homossexuais, particularmente os que não exibem publicamente os sinais de diferença (CARRARA; VIANNA, 2004). Ao borrar as fronteiras de gênero tradicionais, as travestis acabam por sofrer a violência institucional nos espaços das delegacias. As Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher atuam como se as travestis fossem “menos mulheres”, sequer considerando-as como sujeitos de direitos. A observação da travesti ilustra de maneira empírica a deslegitimação do sistema penal que seguidamente as violenta através, principalmente, do aparelho policial , bem como cruelmente nega proteção àquelas, que não se identificam em rótulo de vítima. Isso é, ilustra a violência do controle penal, que não só escolhe quem deve ser criminalizado, como também seleciona quem poderá ser vítima (ANDRADE, 2004). Esta seletividade do sistema penal trata-se de um espelho que reproduz a sociedade patriarcal eivada de seus preconceitos, que pratica violência em instituições familares, educativas, sociais, chegando a alcançar as forças coercitivas do Estado.É dizer, definido o comportamento ou o modo de ser desviante a partir da regra heterossexual, o controle social formal é instrumentalizado nos processos de criminalização (direito penal) e de patologização da diferença (CARVALHO, 2012), sendo que mais do que ser considerada transgressora, a travesti é descaracterizada como vítima, mesmo sendo constantemente agredida pela sociedade. Neste contexto, percebemos a urgência em reconhecer o coletivo trans como sujeitos de direitos humanos, com exercício decidadania. Direitos Humanos tem a ver com o dia-a-dia de cada um, com a maneira de cada um se relacionar com as demais pessoas, do convívio com as pessoas aparentemente diferentes, da prática da tolerância, do respeito ao próximo que pode ter uma religião, uma cultura, a cor, o sexo, a idade e uma aparência diferentes (AQUINO, 2006). Não se pretende aqui buscar a vitimização deste público como se a busca de cidadania possível fosse através de complexa envergadura no código crime-pena, quando deveriam ser apreendidos e equacionados no espaço da cidadania, e de outros campos do Direito, apontando para a necessidade de reversão deste processo (ANDRADE, 2003). Está-se, sim, a utilizá-lo para clarear o que o sistema punitivo não

passa de uma ilusão, que além de não proteger a todos igualmente (função declarada e não cumprida) é transfóbico, valendo-se da legitimidade estatal a ele atribuída para violentar as travestis, vez que estas seriam merecedoras de punição em razão de seu estilo de vida (função cumprida e não declarada). Isso é, não significa clamar por mais penalização e novos delitos para combater a violência de gênero, mas denunciar o caráter seletivo e patriarcal do direito penal. Demonstrar que as minorias não podem utilizar do castigo para buscar defesa e reconhecimento, se não apenas lutar por sua deslegitimação na busca de uma vida com menos controle e, logo, mais livre. A criminologia crítica, neste sentido, é um instrumento de subversão a essas instituições heteronormativas, classisistas, racistas e patriarcais, como é o caso do direito penal. Este estudo crítico com um enfoque queer permite uma análise dos processos pelos quais a heterossexualidade manteve-se silente, mas saliente, como norma

dominante

(heteronormatividade)

que

estabelece

privilégios,

promove

desigualdades e legítima violências (CARVALHO, 2012), sempre apoiada pelo castigo do controle penal. Assim, há que concluir-se que não deve-se buscar a cidadania trans, ou de qualquer outra minoria marginalizada e invisibilizada, através de uma maior punibilidade. Ao relegitimar-se o sistema penalcomo uma forma de resolver os problemas de gênero, pro-duz-se um desviode esforços que iria, de outro modo, dirigido a soluções mais criativas, radicais e eficazes, suscitando falsas esperanças de mudança por "dentro" e "através" do sistema (ANDRADE, 1997).

REFERÊNCIAS ANDRADE, V.R.P. Criminologia e feminismo: da mulher como vítima à mulher como sujeito da construção da cidadania. Florianópolis. Seqüência. UFSC, V. 18 n. 35, p. 4249, 1997. ______________.Sistema penal máximo x cidadania mínima : códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. ______________. A soberania patriarcal: O sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. 2004. Disponível em: .

CARRARA, S.; VIANNA, A.R.B. Tá lá o corpo estendido no chão: a violência letal contra travestis no Rio de Janeiro. PHYSIS:Rev Saúde Coletiva, Rio de Janeiro,v.16, n.2, p.233-249, 2006. CARVALHO, S. Sobre as possibilidades de uma criminologia queer. Sistema Penal e Violência, Porto Alegre, v. 4, n. 2, p. 151-168, jul./dez. 2012. SILVA, R.A. A construção dos corpos: violência materialesimbólica. ST 49. In Fazendo Gênero 7, 2006. MINAYO, MCS. A inclusão da violência na agenda da saúde: trajetória histórica. Ciência e Saúde Coletiva, 2007; 11(Supl.):1259-67. SCHARAIBER LB, D’OLIVEIRA AFPL, COUTO MT. Violência e saúde: estudos científicos recentes. Saúde Pública. 2006; 40(Esp.):112-20.

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