TREINAMENTO DE PAIS SOBRE COMO ESTIMULAR A LINGUAGEM DAS CRIANÇAS DESDE O NASCIMENTO

June 7, 2017 | Autor: Douglas Vilhena | Categoria: Languages and Linguistics, Parent Training Programs
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TREINAMENTO DE PAIS SOBRE COMO ESTIMULAR A LINGUAGEM DAS CRIANÇAS DESDE O
NASCIMENTO



Ângela Maria Vieira Pinheiro, Ana Luíza de Carvalho Araújo, Douglas de
Araújo Vilhena



As habilidades que produzem um bom leitor apresentam muitas
semelhanças com as que fazem um bom ouvinte, apesar de haver diferenças
específicas. Uma criança com vocabulário empobrecido, habilidades
sintáticas e semânticas fracas, incapacidade de fazer inferências, de
acompanhar uma sequência e de relacionar partes de uma informação vai ter
muitas dificuldades em entender o que lê, pois já apresenta dificuldades em
entender o que ouve. No entanto, tais dificuldades são muito maiores para
compreender um texto escrito, pois este apresenta um vocabulário mais rico,
sentenças muito mais complexas, além de seu autor não estar junto do leitor
para dar explicações e para lhe facilitar a compreensão com gestos (ex.,
apontando para objetos) e expressividade: o leitor tem que "se virar
sozinho" para compreender o que lê.
As pessoas podem aprender palavras novas em qualquer idade, mas as
habilidades linguísticas não podem ser ensinadas em qualquer idade. Elas se
desenvolvem a partir de uma dança verbal particular entre a criança e seus
pais e/ou cuidadores. A atuação dos pais é crítica em cada passo dado, já
que as crianças privadas de interações verbais têm o desenvolvimento
gravemente comprometido e podem nunca se recuperar se o período de privação
for demasiado longo.
Evidências têm mostrado que o desenvolvimento de boas habilidades
linguísticas durante os primeiros anos de vida, decorrente de uma íntima
interação verbal entre a criança e seus pais, prediz a facilidade de
aprendizagem da leitura (ex., Catts, Hogan, & Adolf, 2005; Scarborough,
2005; Viana, 2001), particularmente das crianças que ouvem histórias,
sobretudo em virtude de desenvolverem seus conhecimentos linguísticos e os
esquemas mentais de forma estruturada. Deprende-se, então, que diferenças
ambientais podem amenizar ou exacerbar a predisposição da criança em
apresentar uma dificuldade de aprendizagem da leitura.
Considerando as habilidades linguísticas de pré-escolares, Pinheiro
(2008) faz uma revisão dos estudos que explicam o desenvolvimento da
leitura em termos do papel desempenhado pela consciência e conhecimento
fonológicos (habilidades de identificação e manipulação de unidades menores
do que a palavra, tais como a rima, a sílaba e o fonema). A autora descreve
estudos clássicos nos quais é demonstrado que a habilidade de analisar a
fala em suas unidades constituintes correlaciona-se ao uso das regras de
correspondência entre grafema e fonema, cujo domínio eficiente é a base do
reconhecimento de palavras. Quando o reconhecimento ocorre de forma rápida
e precisa, sobram recursos de atenção e de memória para serem direcionados
para a compreensão, que é o propósito da leitura. Alves e colaboradores
(Alves, Reis, & Pinheiro, 2015; Alves, Reis, Pinheiro, & Capellini, 2009),
que estudaram a relação entre fluência de leitura e compreensão, apresentam
evidências que ilustram o oposto dessa situação. Mostram que, em comparação
com bons leitores, tanto as crianças com transtornos de aprendizagem quanto
as com dislexia apresentam dificuldades no processo de decodificação, que
dificultam a organização prosódica na leitura de um texto, comprometendo,
assim, sua compreensão.
Para Scliar-Cabral (2013) e Dehaene (2012), bons leitores são aqueles
que automatizaram o reconhecimento dos traços que diferenciam as letras em
si, conhecem os valores que cada grafema (uma ou duas letras com a função
de distinguir significados na palavra escrita) e, assim, leem com fluência
e com compreensão. Em virtude disso, seu vocabulário vai se tornando cada
vez mais rico, e esses leitores passam a reconhecer a palavra escrita sem
ter necessidade de soletrá-la, sendo capazes até de antecipar palavras que
podem surgir na sentença, com base no seu conhecimento da gramática e
familiaridade com a linguagem escrita e com o assunto em questão. Um bom
leitor necessita, pois, de um bom e amplo vocabulário e de certa facilidade
com a estrutura gramatical de sua língua.
McGuinness (2004), em seu livro Growing a Reader from Birth: your
child´s path from language to literacy, faz uma brilhante revisão da
literatura e revela o quanto bebês sabem se expressar desde os primeiros
meses de vida. Em síntese, a autora enfatiza que a biologia determina o
desenvolvimento pelo qual a criança passa ao progredir do reconhecimento
das palavras (padrões auditivos) ao entendimento do significado do que ouve
para a produção da fala (do balbucio à pronúncia das palavras com
compreensão). Isso, em média, acontece durante o primeiro ano de vida, com
margem de seis meses para mais ou para menos, com as funções mais complexas
da linguagem se desenvolvendo durante os próximos dois anos.
A criança não conta apenas com sua carga genética para aprender uma
língua. Ela deve ouvi-la sendo falada. Sem a interação verbal dos pais, o
desenvolvimento da linguagem não acontecerá normalmente, e pode nem mesmo
ocorrer. Estudos com gêmeos e crianças adotadas mostram que 50% da
habilidade verbal de uma criança pode ser atribuída a seus genes, ou seja,
é altamente correlacionada à habilidade verbal biológica de seus pais. A
maior parte dos 50% restantes é atribuível ao ambiente ao qual a criança é
exposta em casa. Os pais não somente passam os genes, mas podem "escrever''
nesses genes também, dependendo de como eles interagem vocalmente e
emocionalmente com a criança.
Com base em uma detalhada descrição do desenvolvimento da linguagem da
criança, McGuinness (2004) criou um programa inovador para ensinar aos pais
como estimular a linguagem de seus filhos desde o nascimento, de forma que
no futuro eles possam ser bons leitores. Esse trabalho oferece insights
fascinantes sobre a linguagem das crianças e também sabiamente aconselha os
pais sobre como maximizar as interações com seus filhos, agindo como uma
força positiva no desenvolvimento da linguagem desde o nascimento. Segundo
a autora, a boa notícia é que a ciência tem mostrado exatamente o que as
crianças precisam aprender para garantir que sejam boas leitoras.
Inspirado em McGuinness (2004), desenvolveu-se o projeto "Treinamento
de pais: um programa de intervenção nos problemas de aprendizagem da
leitura", uma ação de extensão de fluxo contínuo, de caráter preventivo,
educativo e social (registro no SIEX/UFMG: 400798). O objetivo deste
capítulo é realizar uma breve apresentação desse treinamento, que ocorreu
no Ambulatório da Criança de Risco do Hospital das Clínicas (ACRIAR – HC),
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), no período de agosto de
2011 a dezembro de 3013.
Treinamento de pais
O projeto, coordenado pela primeira autora, teve início em agosto de
2011. As sessões de treinamento foram ministradas aos pais que frequentavam
o ACRIAR, semanalmente, nas tardes de quarta-feira. Inicialmente, os
encontros ocorreram nos corredores do ambulatório, mas, após os primeiros
meses de sua realização, uma sala foi disponibilizada para esse propósito.
Cada encontro tinha duração aproximada de 30 a 40 minutos (aproximadamente
180 treinamentos no período). Assim, os pais podiam aproveitar o tempo
ocioso de espera entre consultas para informar-se a respeito de dicas
importantes sobre o desenvolvimento linguístico das crianças, focado,
sobretudo, na criança nascida pré-termo. Se toda criança precisa de
estimulação para um desenvolvimento cognitivo adequado, tal necessidade se
faz ainda mais presente naquela nascida prematuramente, que, além do risco
biológico, está sujeita também a riscos ambientais. Por permanecer mais
tempo no hospital do que bebês que nascem sem comprometimento, têm
interações sociais reduzidas e estímulos auditivos compostos principalmente
por ruídos.
De forma específica, visou-se assistir os pais na educação linguística
de seus filhos, mostrando-lhes, de forma interativa, modelos de condutas
adequados com o potencial de facilitar o desenvolvimento da linguagem de
suas crianças e também de identificar os sinais de desenvolvimento atípico
dessa habilidade.
O principal instrumento do treinamento foi um minicurso desenvolvido
em 2010 por alunos de graduação do curso de Psicologia da UFMG, coordenado
pela primeira autora. Esse instrumento foi inicialmente testado na
Maternidade do Hospital Risoletta Neves e tem passado, desde então, por
muitos aprimoramentos. Ele é ministrado com o apoio de ricos recursos
audiovisuais, que transmitem e exemplificam de forma simples e dinâmica o
desenvolvimento da linguagem. O treinamento apresenta vários módulos
divididos por idade (de 0 a 1 ano, de 1 a 2 anos, de 2 a 3 anos e de 3 a 4
anos), que são escolhidos segundo a demanda dos pais (idade de seus filhos
e cursos que já assistiram anteriormente), uma vez que o público-alvo para
o qual ele se direciona pode ser recorrente, como é o caso da ACRIAR.
Detalhes do procedimento e resultados da experiência do ACRIAR são
relatados em Nascimento, Rodrigues e Pinheiro (2013). Dos participantes,
98,92% afirmaram ter aprendido novas informações, e todos afirmaram ser
possível aplicar os conhecimentos adquiridos no cotidiano. Os assuntos que
despertaram maior interesse foram sobre o relacionamento dos pais com o
bebê e sobre o conhecimento da linguagem dos bebês. Esses tópicos englobam
os seguintes assuntos: i) a importância da fala materna; ii) a forma de
conversar com o bebê; iii) o ensino limites sem ser autoritário; iv) o
aproveitamento de todos os momentos para conversar; v) o hábito de contar e
recontar histórias; vi) o uso de frases completas, falar claramente e não
ser repetitivo; e vii) a compreensão de que a criança compreende mais do
que consegue falar.
O Projeto no ACRIAR, de caráter preventivo, busca enfatizar o impacto
positivo que os pais podem ter na aquisição da linguagem e nas habilidades
de comunicação de seus filhos, o que, além de contribuir para o incremento
do vínculo entre pai e filho, promove o aumento da autoestima e das
habilidades cognitivas gerais das crianças. Espera-se que, a partir dos
conhecimentos adquiridos, os pais passem a atuar como os primeiros agentes
na identificação dos fatores precursores das dificuldades de aprendizagem
da leitura, que a ciência tem mostrado estarem relacionados a um
desenvolvimento comprometido da linguagem falada.
A esse propósito, prevenção e intervenção precoce foram um dos temas
centrais tratados no II Fórum Mundial de Dislexia
(dislexiabrasil.com.br/wdforum2014), realizado na Universidade Federal de
Minas Gerais em agosto de 2014. Segundo os conferencistas Hugh Catts e
Linda Siegel, a prevenção de problemas de leitura é uma meta importante
para a sociedade. Evasão escolar, abuso de drogas, falta de moradia,
comportamento antissocial e problemas de saúde mental são algumas das
consequências da incapacidade de se prevenir e/ou identificar e tratar as
dificuldades de aprendizagem. Dessa forma, transtornos de linguagem devem
receber intervenções o quanto antes, já que é possível identificar seus
fatores de risco, como os indicadores precoces da dislexia, que incluem
atraso no desenvolvimento da linguagem, expresso por problemas na pronúncia
das palavras, no vocabulário, na gramática e na coerência do discurso das
crianças.
O treinamento de pais, objeto desse trabalho, representa uma tentativa
de influenciar o desenvolvimento linguístico da criança ainda mais cedo,
uma vez que estimula os pais a proporcionar a seus bebês um ambiente
linguístico que ofereça a base necessária para a formação de um bom leitor
e a atuar como os primeiros agentes na identificação dos fatores
precursores das dificuldades de aprendizagem da leitura. O diferencial
dessa iniciativa é que ela não lida apenas com o fator de risco, mas também
com transformação do ambiente da criança em um mecanismo de proteção.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O projeto alcançou seu objetivo de sensibilizar os pais, inicialmente na
Maternidade do Hospital Risoletta Neves e depois no ACRIAR, sobre a
necessidade de se desenvolver adequadamente a linguagem emergente de seus
filhos, bem como incentivá-los a colocar os conhecimentos transmitidos em
prática no seu dia a dia. Um grande fator para o sucesso do treinamento em
pauta foi a valorização do próprio saber e da experiência dos pais que dele
participaram, o que possibilitou uma troca entre o conhecimento acadêmico e
a vivência da população-alvo. Além desse grande ganho, o projeto produziu
diversos materiais, apresentações, vídeos, blog, pôsteres científicos,
guias para os pais e um artigo. Essa experiência pode ser facilmente
replicada em ambulatórios e centros de saúde de todo o País, contribuindo
para a qualidade de vida das famílias.

REFERÊNCIAS
Alves, L. M., Reis, C., & Pinheiro, A. M. V. (2015). Prosody and reading in
dyslexic children. Dyslexia, 21(1), 35-49. doi: 10.1002/dys.1485
Alves, L. M., Reis, C., Pinheiro, A. M. V., & Capellini, S. A. (2009).
Aspectos prosódicos temporais da leitura de escolares com dislexia do
desenvolvimento. Revista da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia,
14(2), 197-204. doi: 10.1590/s1516-80342009000200010
Catts, H. W., Hogan, T. P., & Adolf, S. M. (2005). Developmental changes in
reading and reading disabilities. In H. W. Catts & A. G. Kamhi (Eds.),
The connections between language and reading disabilities (pp. xvii,
227 p.). Mahwah, N.J.: L. Erlbaum Associates.
Dehaene, S. (2012). Os neurônios da leitura: como a ciência explica a nossa
capacidade de ler (L. Scliar-Cabral, Trans.). Porto Alegre: Penso.
McGuinness, D. (2004). Growing a reader from birth : your child's path from
language to literacy (1st ed.). New York: W.W. Norton & Co.
Nascimento, F. M., Rodrigues, M. B., & Pinheiro, A. M. V. (2013). Programa
de orientação: como estimular a linguagem das crianças nascidas pré-
termo. Psicologia: Teoria e Prática, 15, 155-165.
Pinheiro, A. M. V. (2008). A Leitura e a Escrita: uma abordagem cognitiva
(2 ed.). São Paulo: Editora Livro Pleno, Ltda.
Scarborough, H. S. (2005). Developmental relationships between language and
reading: econciling a beautiful hypothesis with some ugly facts. In H.
W. Catts & A. G. Kamhi (Eds.), The connections between language and
reading disabilities (pp. xvii, 227 p.). Mahwah, N.J.: L. Erlbaum
Associates.
Scliar-Cabral, L. (2013). Sistema Scliar de alfabetização – Fundamentos.
Florianópolis: Editora Lili.
Viana, F. L. P. (2001). Melhor falar para melhor ler. Coleção Infas. Centro
de estudos da criança (2 ed.). Portugal: Universidade do Minho.
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