Três atos de sofrência (ou a brega vida de Pedro)

June 9, 2017 | Autor: Lucas Reis | Categoria: Creative Writing, Fiction
Share Embed


Descrição do Produto

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ – UFC
INSTITUTO DE CULTURA E ARTE – ICA
CURSO DE JORNALISMO
LEITURAS SUPERVISIONADAS
PROFESSOR: RICARDO JORGE DE LUCENA LUCAS








TRÊS ATOS DE SOFRÊNCIA
(ou A brega vida de Pedro)

LUCAS BERNARDO REIS E MAGGIE SUELLEN PAIVA












FORTALEZA, 2016
1º ato – Sofreu
Todo dia era sempre igual. Me chamo Pedro Pasquim e me via ao redor de uma casa grande, que com os móveis em simetria pelos cômodos da casa, eram indiferentes diante da solidão que me preenchia. O escape era o ideal e a tecnologia, uma amante. Durante uma zapeada dentre canais de televisão com uma programação pasteurizada, foi a "ficante" tecnologia que me tragou para o incerto.
Certo dia, eu não aguentava mais beber da caixa pasteurizada elétrica - vulgo televisão - e decidi ler, por isso logo peguei a extensão de meu corpo, meu celular. Peguei, tateei, a tela retinosa explodiu um clarão em meu rosto que me fez acordar de um transe do real e entrar no transe virtual. Se achava que seria diferente da TV, ledo engano. As páginas eram como os canais e a leitura mais massiva que uma maçã madura demais. Foi então que de repente adentrei em uma superfície inexplorada: os e-mails de minha amada.
Alguns segundos de incerteza se transformaram em minutos curiosos diante das abas e textos em helvética no fundo branco, até que um, apenas um, chamou minha atenção. Os minutos curiosos se transformaram em uma eternidade de tristeza e o salpicar de lágrimas na tela. Aquilo não era virtual, era o real tocando na irrealidade de uma mensagem que mesmo digitada, não trazia os tons frios de uma troca de e-mail. Algo saiu errado. Alguém foi traído.
Eu agora estava em um beco sem saída. Aquela que prometeu me defender e amar para sempre nos termos matrimoniais da Terra e no céu já não me amava mais? Dúvida, medo. Não sabia se ia perdoar ou quiçá ficaria naquela casa que, a cada minuto, ia perdendo o valor para mim. Uma casa a dois poderia ter sido usada para outros dois? Dúvidas e medo. Homem não chora, eu comecei a repetir para eu mesmo.
Minha esposa estava dormindo e não sabia da situação que se passava no andar abaixo do quarto do casal. Ela estava ali, deitada, repousando em sono enquanto eu repousava as roupas do guarda roupa dentro de uma grande mala de viagem preta, que compramos em uma passagem de amor. Se antes eram os olhos, ali, calado, era o meu coração que chorava. Chorava ao olhar àquela que ama, ou amava, só no relento. Um beco sem saída.
Aos poucos o raiar do sol ia tomando conta do quarto, a persiana automática apresentava um dia lindo que logo seria destruído, assim como o meu amor e de minha esposa. Ela se espreguiça na cama e, olhando para o lado, me encontra.
– Olá amor. Bom dia.
– Bom dia? Respondi em um tom disfarçado
– É, bom dia. O que foi? Acordou de mau humor, meu lindinho. A carícia que se seguiu esfriou o quarto.
– Por quê? Perguntei.
– Por que o quê? Você acordou com a pá virada mesmo, não é?
– O que fiz a você? Indaguei.
– Amor, eu não estou entendendo.
– As mensagens. Suas mensagens com outro.
De repente o claro do quarto se transformou em cinza de suspense, o esconderijo havia sido descoberto. Agora só restava alguma resiliência de ambas as partes e o espanto de minha esposa se transformou em choro ao ver a mala preta volumosa que quase não fechava mais. Era hora de partir.
– Você foi a culpada. Se nosso amor está acabando, você é a única culpada. Falei em meio à lagrimas.
– Eu? E as vezes que você sentava nesse sofá e apagava do mundo?
– Queria apenas sua companhia.
– Pois agora não terá mais. Ela me expulsou?
Meneando uma xícara de café, que já repousava frio na louça, caminhei ante a porta corroída por uma pequena maresia. De fato, estava indo embora, a mala já estava lá fora e seguia segurando o choro, porque homem não é de chorar.
2º Ato - Sofri
O caminho era longo. A cada passo, seguia meu caminho sozinho pela rua e com a mala abarrotada que chamava atenção aos olhos de quem via.
Ao poucos minha casa ficava distante, como as memórias dos momentos felizes com Laura, minha Lady Laura, como eu gostaria que ela me levasse para casa de novo, onde ela preparava aquele café da manhã, apenas para nós dois e olhávamos um para o outro e não havia nada mais do o que amor sem repúdios, sem meneios.
Eu ainda a amava? Sim, a amava. Mas o erro de sair de casa tinha de ser encarado como um momento de reflexão e por isso já estava vendo a praça da cidade, onde poderia parar um pouco e pensar no que tinha feito.
O céu estava limpo e no palco as estrelas e a lua atuavam entre si em um balé de cores e luzes que deixava meus olhos paralisados, até falei um pouco com elas, tentando encontrar motivos de ter deixado Laura em casa.
"Mas ela me traiu", pensei. "Você tem certeza?". De onde saiu essa voz? Talvez a lua ou as estrelas estivessem falando comigo. "Pedro, você tem certeza disso?" Certeza de quê? Não estava entendendo nada. Adormeci… sonhando com ela.
Nem Freud explica o que aconteceu nesse inconsciente incompreendido. No sonho, Laura vinha provocante, com aquele conjunto de baby-doll com que a presenteara em nosso primeiro aniversário.
Já tinha algumas vontades com ela. Ela caminhava com passos provocantes e me beijava com gosto de mel, não fel, mas o mel que me embriagara desde que conheci minha Lady, a Laura da minha vida.
De quebra, ainda me abraçava longamente e apaixonadamente. Tenho que voltar. Preciso voltar. Do sonho ou para minha vida? Ao menos, no ponto alto do amor, na hora "h" da paixão, eu tenho Laura em minhas mãos… Ou teria.
De repente, a luz do nascer do sol esbarra no meu rosto como um vigoroso acidente de trânsito, mas nada mais era do que um guarda da praça me acordando. Tudo foi um sonho. Os beijos de mel, os abraços de veludo, o amor descomunal em nossa cama, tudo foi um sonho.
– Dormiu aqui, vagabundo? – Carinhosamente, o guarda tentava me acordar.
– Seu guarda, eu não sou vagabundo. Se a carência lhe convém, vai entender o porquê de as pessoas dormirem nas praças. Tentei ironizar para afastar o medo da situação.
– Os delinquentes de hoje estão muito eruditos. Isso é coisa desse governo comunista. Tudo culpa da Dilma, do PT.
Não entendia como ele achava essa relação e, então, abri meu coração para esse homem que me parecia tão bruto.
– Apenas carente nobre guarda. Adormeci nesse banco de praça pensando nela. Naquela por quem que sou devoto e apaixonado. Laura, minha Lady Laura.
De repente o senhor da segurança desabou. Como uma demolição de sentimentos, seus olhos logo olharam para mim e aquela dureza transformou-se em camaradagem corporativista. Havia achado um amigo?
– Eu entendo você rapaz. Há um tempo, era apaixonado por uma moça da minha região. Mas as línguas são ferinas e começaram a dizer que o coração de minha amada voava mais que um avião. – Não entendi a analogia, mas segui firme na atenção. – E que o amor que ela compartilhava era como fel. Queria que ela guardasse o amor apenas para mim, mas não foi possível.
Ele realmente me entendia. Não podia crer que após toda nossa conversa ele achava que seria traído logo na lua de mel e, por isso, desistiu do relacionamento, como uma raposa nova que se atrapalha com as uvas mais verdes. Esse Reginaldo, nunca irei esquecer.
Era hora de voltar. Tinha que voltar. Era hora de encontrar aquela coisa bonita, Laura pela qual me apaixonei e a quem devotei todo meu amor, até aquelas mensagens na tela líquida de retina. Meu amor, estou voltando. E agora não sairei do teu lado. Falei com as estrelas e com a lua, o banco da praça foi meu confidente fiel de nossas tertúlias inconscientes de paixão e fervor e Reginaldo, o guarda, o maestro dessa ópera de paixão e sofrimento que não quero mais passar, a não ser do teu lado.
3º ato – Sofremos
Dobrei a esquina sob o sol das 10 da manhã iluminando a rua que se estendia à minha frente.
As rodinhas da mala que eu carregava seguiam se arrastando em protesto pelos paralelepípedos gastos que todos os prefeitos juravam trocar ou reformar, o que nunca acontecia, e assim seguiam esburacados, cortantes, irregulares e mesmo um tanto barulhentos sob as rodas da mala preta de rodas de plásticos transparentes, que certamente estariam tão gastas e acabadas quanto o próprio calçamento quando eu chegasse ao meu destino no final da rua.
E mesmo assim, eu seguia caminhando pelo centro da estreia e calma rua, onde poucas pessoas, naquela manhã fria de domingo, se aventuravam para fora de suas casas, e, sem andar pela calçada, minha penitência era o calçamento.
Tal como os prefeitos que juravam consertar as pedras que formavam o chão da rua, eu estava quebrando uma promessa, boa ou ruim, quem saberia dizer? Mas se a penitência era por quebrá-la ou por tê-la feito em primeiro lugar, eu desconhecia ainda mais. Talvez, até o portão de madeira branca perto da esquina oposta à que eu virara, eu já pudesse responder.
Parei em frente ao portão branco, a madeira descascada em alguns cantos, o mesmo pedaço lascado do lado esquerdo, lembrança da vez em que eu tentara pintar por conta própria apesar dos protestos de Laura, até que acabei, de fato, quebrando um pedaço do portão quando, de alguma maneira, derrubei uma lata de tinta cheia (e felizmente lacrada) em cima dele.
Vendo a minha figura parada do lado de fora do jardim, Pablo, Bruno, Marrone e Roberto – os cachorros, a quem minha esposa insistia em dar nomes de cantores que gostava – se aproximaram, silenciosos, balançando os rabos cortados, submissos e com saudade, sem nenhum latido, apenas orelhas baixas e pares de olhos brilhantes, como os meus também deveriam estar.
Abrindo o portão, o trinco deslizou lubrificado, sem gemidos, e eu passei pelo portão, pelos cachorros e pelo curto caminho de pedras lisas que levavam à porta da frente, branca como o portão.
Larguei a mala no chão antes de abrir a porta e parecia que havia meses, talvez anos, desde a última vez em que eu havia estado ali. Não era, eu sabia, mas subitamente me parecia tão diferente, tão distante e eu senti o peso da consequência de minha própria decisão impensada.
Sem ter certeza se eu havia ido de fato embora, ou se havia deixado minha alma ali o tempo inteiro, uma voz em minha cabeça repetia incessantemente: "eu voltei?".
A porta abriu com a mesma chave que eu costumava usar antes e isso me surpreendeu. A luz me precedeu na sala, anunciando a minha presença no primeiro cômodo do lar, iluminando o todo de um tudo que estava como eu deixara, como eu lembrava.
Entrando em casa – minha casa – vi a toalhinha de renda, que continuava caprichosamente colocada em cima da televisão desligada, cujo vidro da tela brilhava lustroso, o sofá de cor mostarda coberto por uma capa de pano da mesma cor, alinhado a menos de dois metros da mesa que comportava a televisão, e, paralela a ele, uma poltrona marrom cor de jambo, cujas costas se voltavam para a janela, recebendo os tímidos raios de sol que atravessavam a camada de vidro temperada e a pequena abertura feita pela brisa nas cortinas amarelas.
No espaço entre a televisão e o sofá, o mesmo criado-mudo improvisado como estante, onde, no centro, ficava o jarro de porcelana branca – presente de casamento da sogra – com desenhos em alto relevo de flores silvestres, dentro do qual repousavam algumas margaridas de plástico, envelhecidas e com os caules um tanto tortos, fosse pelo tempo, ou pela posição que estavam há tantos anos.
Nos dois lados do jarro, porta-retratos de madeira e de vidro protegendo fotos de um casal que sorria abraçado em uma praia, em uma tarde quente no parque da cidade, de mãos dadas olhando um para o outro no dia do casamento.
Fotos de um casamento sem filhos, fotos de um casamento que havia sido exatamente isso, sorrisos e mãos dadas até o dia em que tudo mudou.
Mas havia mudado mesmo? Eu não estava ali de volta? Poderia muito bem ter ido viajar a trabalho por dois dias e a cena seria basicamente semelhante, eu voltando e abrindo a porta de casa sempre com a mesma chave, passando pelos cachorros, observando sempre os mesmos itens antes de subir as escadas e caminhar em direção ao quarto, onde deitaria e aproveitaria mais uma vez a presença de quem me aguardava.
A ideia de que poderia ter sido só mais uma viagem me tranquilizou, embora o peso da realidade ainda baixasse minha cabeça e pesasse em meus ombros: Eu havia ido embora e agora voltava, um tanto arrependido, um tanto querendo saber o que eu tinha que fazer.
Mas, se por um lado a visão externa de minha casa me fez sentir que tudo havia mudado em tão curto espaço de tempo, estar ali dentro novamente me trouxe a paz que buscava me convencer que, não fosse a mala de rodinhas parada na entrada, eu poderia muito bem ter ido apenas à esquina em busca de um jornal.
A familiaridade com que aqueles móveis, objetos e lembranças me atingiam era tão forte quanto os sentimentos de raiva, traição, ódio e frustração que haviam me empurrado para fora dali em primeiro lugar.
No entanto, ainda que a posição dos móveis e objetos tentasse me enganar, a verdade era quase palpável, algo havia mudado e esse algo era eu. E o que mais eu teria mudando no meu rompante de antes? Haveria alguém me esperando ou a casa estava sozinha?
De repente percebi que estava realmente muito arrumada e, olhando de relance para a pia na cozinha, não havia louça, nem suja nem limpa, aonde minha visão chegava.
Caminhando pela sala em direção às escadas, percebi o que mais não havia mudando, prendeu minha atenção mais do que a disposição dos móveis, a presença de uma foto minha na parede ao lado da escada, olhando para mim, perguntando, assuntando, questionando e mesmo reclamando. Onde estivera, por que havia ido embora e que ousadia inflamava meu peito para me fazer ter a coragem de voltar?
Mas eu voltara, não voltara? Ali estava eu novamente, não estava? No mesmo lugar de onde eu provavelmente nunca deveria ter ido embora, dominado por um misto de sentimentos intenso, a dúvida, o amor, a raiva diminuindo a cada passo porque havia algo ali que me puxava e ali eu estava. Os olhos no quadro assumiram a voz na minha cabeça: eu voltei?
Se antes eu não acreditasse, naquele momento eu acreditaria que cada ser humano tem o seu lugar no mundo e, a despeito do sofrimento dos últimos dias e de tudo que passei, o meu era ali naquela casa.
Eu poderia ter demorado mais em minhas andanças pela cidade, praças, parques e quaisquer outros lugares por onde poderia caminhar e seria apenas como o vaso de porcelana entre as fotos do meu passado e presente de até poucos dias atrás. Vazio. sem vida, incompleto, como flores de plástico.
Eu não sabia se podia retomar meu casamento, dificilmente as coisas voltariam a serem as mesmas depois dos erros que ambos cometemos. Se, por um lado, ela me traíra, como eu acreditava, eu cheguei ao ponto de reconhecer o marido ruim que provavelmente vinha sendo nos últimos meses e, principalmente, nas últimas semanas.
Mas cada passo que eu dava me enchia com a sensação de que eu estava em casa e de que casa não era apenas uma construção, uma estrutura, paredes, tijolos e cômodos, mas muito mais que tudo isso.
Sim, as coisas teriam que mudar, eu querendo ou não, muita coisa tinha acontecido e, em teoria, eu poderia muito bem recomeçar meu êxodo em algumas horas e ir embora, ou pior, ser enxotado.
O que ou quem garantia que havia alguém me esperando depois da forma como fui embora? Que ousadia ou audácia – como minha própria foto fez questão de me lembrar – era aquela minha em voltar?
A verdade que eu sabia, ou achava que sabia, é que podia não haver ninguém na casa, além dos cachorros silenciosos com nomes de cantores, ela podia já ter ido embora, ela podia estar com ele e eu, que passara tão pouco tempo fora, nesse mesmo tempo poderia ter me tornando tão obsoleto quando uma moeda de cruzeiro após o lançamento do real.
Ou, disso eu também sabia, podia não ter acontecido metade das cenas que minha mente insistia em criar, usando-as para me machucar e torturar. Então me ocorreu, também, que eu evitei a própria conversa, sobre isso, sobre a vida, tipo de erro que se esticava como um elástico de estilingue e, tal como o brinquedo, quanto mais se esticava mais era capaz de machucar. Erro pelo qual agora eu pagava.
Mas eu continuei subindo a escadas, indeciso, com o sentimento de estar em casa sendo lentamente substituído por um misto de medo e insegurança que se sobrepunham a qualquer outro sentimento que tentasse retumbar dentro de mim.
A porta do meu quarto estava aberta e eu vi a cama, tão arrumada, os lençóis lisos e engomados que a cobriam, o quarto limpo e iluminado pelo sol entrando por uma janela semelhante à do andar de baixo.
Tudo parecia tão igual ao que eu havia deixado, até mais bonito, mais nostálgico, e ainda assim tão vazio como se o tempo em que eu estive longe fosse mesmo muito grande. Anos, milênios, uma fenda no tempo que agora me trazia de volta para um lugar onde eu deveria ter ficado, mas onde agora não havia mais ninguém.
Eu devia ter ficado, me dei conta. O que era o tempo? O que eu havia perdido no curto – na minha visão deturpada – espaço em que havia ficado fora? Para o que estava voltando, se é que de fato voltava ou podia voltar? E que amor era aquele que antes eu dizia ter que ia embora à minha primeira prova real que se colocava diante dele?
Será que o amor do casal na foto da praia, ou do casamento de mãos dadas seria como um jarro de porcelana que se espatifaria na primeira queda? Ou poderia ser como flores de plástico se entortando em uma resistência à ação do tempo, sem nunca morrer realmente?
Caminhei, indeciso, sem saber se ia embora, ou se ficava, parei na porta do quarto sem saber se entrava, se podia, que tipo de lei ou contrato estava eu infringindo.
Eu estava onde eu devia estar, decidi começar por aí, me render aos sinais que indicavam que eu estava em casa e, em segundo plano, me concentrar no relacionamento que eu podia já ter jogado no lixo. Mas eu estava em casa, era minha casa, eu ficaria. Eu voltei?
Minha mala ainda estava no andar de baixo e eu resolvi voltar para buscar e sentar em algum lugar até que eu pudesse responder a pelo menos uma de minhas tantas perguntas existenciais.
Virei e, ao invés da escada, me vi de frente a uma mulher, Os cabelos cacheados caídos nos ombros estavam mais longos do que eu me lembrava? A ponta do nariz, eu sabia, estava levemente vermelha e os braços, caídos ao lado do corpo, terminavam em mãos que seguravam, levantavam e apertavam a barra de uma camisola antiga que eu já conhecia.
Os olhos dela brilhavam com resquícios de lágrimas ou pontas de esperança e eu suspirei pesadamente diante do fato de que minha esposa permanecera ali, mantendo nossa casa, enquanto eu andava para me achar no mesmo lugar onde eu deveria ter estado o tempo inteiro.
Eu fiz menção de falar, sem saber realmente o que dizer, mas ela me calou com o abraço fraco, mas que tirou meu fôlego. Peguei seus braços abertos ao lado do meu próprio corpo – suas mãos geladas – e fiz com que ela me enlaçasse ainda mais, o que ela instintivamente fez, apertando minha cintura e enterrando a cabeça no meu peito, que ameaçava explodir.
Em felicidade, eu poderia dizer, mas era mais arrependimento, arrependimento por ter ido. E era desse arrependimento que eu precisava me livrar, antes de sentir qualquer alegria, que como o sol pela janela, entraria em raios tímidos, porém crescentes, que o meu próprio arrependimento seria capaz de ceder.
– Fique – uma voz sussurrada falou, reverberando no meu coração.
E eu tinha a resposta, a que eu queria, a que eu precisava, além de muitos milênios pela frente naquele pequeno espaço perdido entre um portão de madeira branca e todo o resto do mundo para o qual eu ligava muito pouco naquele momento.
Naquele momento, em que a brisa entrava pela janela do quarto e chegava até onde eu estava, abraçando os dois corpos e os quatro braços abertos.
A mesma brisa que eu conhecia de todas as manhãs, porque eu estava em casa. E estando em casa, para onde mais eu poderia querer ir? Ali era meu lugar e eu era uma flor de plástico, da melhor forma possível.
– Eu voltei – falei, por fim. Pra ficar.


Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.