Três camadas da relação entre quadrinhos e jornal

June 14, 2017 | Autor: A. Corrêa Dutra | Categoria: Comics Studies, Comics and Graphic Novels, Newspaper, Joe Sacco
Share Embed


Descrição do Produto

INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Salvador/BA – 1 a 5 Set 2002

Três camadas da relação entre quadrinhos e jornal1 Antônio Aristides Corrêa Dutra Mestrando em Comunicação pela ECO/UFRJ

RESUMO:

Joe Sacco é um autor de histórias em quadrinhos que são verdadeiras reportagens. Elas levaram a mídia a cunhar o termo ‘jornalismo em quadrinhos’. Mas Sacco forma apenas a camada mais visível das relações entre os quadrinhos e o jornalismo, que são bastante antigas e profundas. Numa segunda camada, aprofundando o universo temático, encontraremos diversos outros autores, em diversas épocas, se dedicando a produzir reportagens gráfico-seqüenciais, sejam breves ou longas. E na terceira camada, abordada do ponto de vista estrutural, veremos como a presença dos quadrinhos nos jornais foi determinante para a evolução gráfica de das duas linguagens. Concluímos então que a discussão propiciada pelo trabalho de autores como Sacco podem não só ajudar a difundir a atual maturidade dos quadrinhos, como também nos ajudar a entendê-la melhor. PALAVRAS-CHAVE:

Quadrinhos; jornal; Joe Sacco.

1

Trabalho apresentado no NP16 – Núcleo de Pesquisa História em Quadrinhos, XXV Congresso Anual em Ciência da Comunicação, Salvador/BA, 04 e 05. setembro.2002.

2

INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Salvador/BA – 1 a 5 Set 2002

Quando se pensa na relação entre quadrinhos e jornalismo, o primeiro nome a ser lembrado é o de Joe Sacco, destaque internacional do chamado ‘jornalismo em quadrinhos’. Mas Sacco é apenas a pequena ponta desse iceberg, sua camada superior. Em outras camadas abaixo da linha d’água, temos tanto o universo temático das relações entre quadrinhos e jornalismo como a interseção gráfica entre a página de quadrinhos e a do próprio jornal, mostrando que essas relações são extremamente profundas e duradouras.

1ª camada: De repente, Joe Sacco Joe Sacco é um jornalista especializado em conflitos internacionais. Seus livrosreportagem sobre a guerra entre palestinos e israelenses na Faixa de Gaza e sobre o massacre aos mulçumanos na Bósnia lhe renderam prestígio, visibilidade, vários prêmios (como o American Book Award) e elogios de revistas e jornais como TIME, The New York Times, Washington City Paper, The Los Angeles Times Book Review, The Utne Reader, Details, além de Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Carta Capital. Suas reportagens, contudo, não ganham a forma de um texto jornalístico comum, mas são plasmadas em imagens seqüenciadas ajuntadas em páginas (como nesses gibis repletos de ratinhos falantes e moços testosteronizados metidos em fantasias colantes que tanto seduzem crianças e adolescentes). E ao contrário das revistas de super-heróis americanas (que costumam ter 22 páginas), os livros de Sacco apresentam histórias longas. Gorazde tem 227 páginas e os dois volumes de Palestina têm, juntos, 282 páginas. Os livros de Joe Sacco resultam da união eficiente de duas linguagens aparentemente tão díspares: os quadrinhos e o jornalismo. E funcionam de forma extraordinária. As velhas categorias não podiam mais contê-lo e um novo nome teve que ser cunhado para definir seu trabalho: ‘jornalismo em quadrinhos’ (comics journalism). Sacco pertence hoje ao restrito grupo dos autores de histórias em quadrinhos reconhecidos e respeitados dentro e fora de seu meio. E imaginar que um dos primeiros livros a fazer sentido nessa bagunça seria uma história em quadrinhos. (Entertainment Weekly, sobre o livro ‘Palestina’)

3

INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Salvador/BA – 1 a 5 Set 2002

Um estilo

O jornalismo vive de notícias. E poucas coisas rendem mais notícias que guerras e conflitos nesse mundo belicoso em que vivemos. Das fotos de Robert Capa na Guerra Civil Espanhola à cobertura da CNN na Guerra do Golfo, a imagem da guerra sempre esteve presente no imaginário mundial do Século XX. Nosso novo milênio também recebeu seu batismo de fogo com os atentados ao World Trade Center e ao Pentágono e a conseqüente invasão do Afeganistão sendo assistidos ao vivo em cadeia mundial. Muitos jornalistas se especializaram na cobertura de conflitos internacionais. E diversas são as formas utilizadas para fazer essas coberturas, entre as quais podemos citar: matérias de jornal, de revistas, programas de rádio e televisão, filmes, documentários, livros, sites na Internet, CD-Roms, exposições de fotografias e histórias em quadrinhos. Neste último tópico (um tanto inusitado para uma cobertura de guerra), o grande destaque internacional são os livros em quadrinhos de Joe Sacco, Palestina – uma nação ocupada, Palestine – in the gaza strip (inédito em português) e Área de segurança Gorazde. Para criar suas histórias em quadrinhos, Joe Sacco fez opções muito acertadas, tanto graficamente quanto narrativamente. Como principais características de seu trabalho, podemos citar: a) Narrativa principal em primeira pessoa – Os quadrinhos-reportagem de Sacco começam e são conduzidos através do relato de sua própria presença nos locais, conversando com as pessoas. Ele também se desenha como um dos personagens em cena: um repórternarrador. b) Tom confessional (de raiz autobiográfica) –Sacco segue a trilha dos quadrinhos alternativos dos anos sessenta e setenta, passando pelas confissões autobiográficas indiscretas de Robert Crumb e pela crônica do cotidiano pessoal de Harvey Pekar. Nessas histórias, os autores costumam confessar suas fraquezas e limitações, estabelecendo uma espécie de pacto de sinceridade com o leitor. c) Traço propositalmente descuidado – O estilo de desenho de Joe Sacco, com seu traço esquemático e suas hachuras desenhadas a mão, também remonta diretamente aos quadrinhos underground, sobretudo ao trabalho de Robert Crumb, reconhecido como o ‘papa’ do gênero. Este estilo se impôs historicamente como uma espécie de grito de liberdade em

4

INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Salvador/BA – 1 a 5 Set 2002

relação aos quadrinhos ‘bem-acabados’ da produção mais comercial, além de se aproximarem também das charges de jornal, automaticamente associadas a um comentário mais crítico do cotidiano. d) Uso do preto e branco em detrimento da cor – Quadrinhos em preto e branco são mais baratos e rápidos de serem produzidos, permitindo afastar-se bastante da linha de montagem dos quadrinhos das grandes editoras. Mas o mais importante, no caso de Sacco, é o impacto psicológico do preto e branco. E aqui estamos no mesmo terreno da fotografia e do cinema, quando optam pelo preto e branco. Alguém já disse que a realidade é colorida, mas o preto e branco é mais realista. e) Personagens ligeiramente caricaturais em um cenário realista – Scott McCloud, em seu livro Desvendando os quadrinhos, propõe que os desenhos realistas correspondem a uma visão externa, física do mundo, enquanto um traço caricatural está a serviço de uma visão interior, subjetiva, psicológica. O traço de Sacco é mais realista nos cenários e ligeiramente caricatural no tratamento das personagens. Seguindo o mesmo pensamento, o traço das personagens é mais realista nas cenas dramáticas e um pouco mais caricatural nas cenas de intimidade ou de descontração. f) Auto-representação mais caricatural que as outras personagens – Uma espécie de derivação do item anterior. Como conseqüência, os leitores se identificam instintivamente com a subjetividade da personagem do repórter-narrador. A característica gráfica mais marcante de sua auto-representação é o fato de ele estar sempre de óculos, com as lentes formando um vazio sem detalhes: seus olhos nunca são desenhados. Quando Sacco é mostrado de perfil, a região dos olhos é simplesmente sombreada com hachuras. Seu rosto é como uma máscara de olhos vazados que nós, leitores, vestimos. Todos os itens acima convergem para a criação dessa aura de ‘realismo humanista’ que tem se mostrado extremamente eficiente no jornalismo em quadrinhos de Joe Sacco. Esses itens não constituem uma fórmula padrão, mas tão somente uma ente tantas combinações possíveis dentre as imensas possibilidades dos quadrinhos. E as alternativas são muitas: uso de cor ou PB; arte pintada; coloração a mão; coloração por computador; arte em linhas sem hachuras; diferentes estilos de traço, seja mais caricatural, mais realista ou até mesmo expressionista; narrativa em primeira ou em terceira pessoa; texto com ou sem recordató-

5

INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Salvador/BA – 1 a 5 Set 2002

rios, com narrativa mais centrada na ação ou nos diálogos; narrativa mais verbal. Muitas e muitas e muitas possibilidades. A especificidade do trabalho de Sacco é uma conseqüência das pequenas decisões que ele foi tomando pelo caminho. O falcão maltês

Desde sempre, a humanidade se ocupa em fazer guerra, em discutir a guerra, em glorificar ou execrar a guerra. Ela permeia todas as nossas formas de produção cultural, das ufanistas esculturas de soldados gregos aos estarrecidos e estarrecedores olhos da mãe que perde o filho pequeno na Guernica, de Picasso. Os quadrinhos não fogem à regra. Se de um lado o Capitão América, de Simon e Kirby, se alistou na Segunda Guerra para colaborar com o esforço contra o nazismo, de outro, Corto Maltese, de Pratt, atravessa os conflitos em busca simplesmente de seu quinhão de aventura. Enquanto soldados gregos se eternizam heroicamente em Os 300 de Esparta, de Miller, judeus são reduzidos a ratos subhumanos em Maus, de Spiegelman. Em nosso artigo Guerra de papel publicado na revista Você/UFES (1998), defendíamos a idéia de que a capacidade de produzir obras de alta qualidade com um tema tão espinhoso e delicado quanto a guerra é uma prova de maturidade da linguagem dos quadrinhos. O trabalho de Sacco é mais um argumento nessa luta. Nascido na Ilha de Malta, Joe Sacco passou a infância na Austrália e se formou em jornalismo nos Estados Unidos. Desde a universidade, já se interessava por quadrinhos. Começou profissionalmente com HQs mais tradicionais, migrando depois para temas autobiográficos. Sua breve experiência como jornalista foi em uma revista de crítica de quadrinhos, The comics journal. Após sair da revista, Sacco vagou pela Europa durante quatro anos, enquanto publicava uma revista própria, Yahoo, que durou seis números. Nesta revista, suas histórias autobiográficas foram se impregnando de sua experiência de ‘cronista viajante’, ganhando aos poucos um tom mais jornalístico. Sacco é, por definição, um cidadão do mundo. Mas poderíamos dizer que ele é um maltês com olhos de falcão que consegue fazer emergir o humano, mesmo em situações limite como a guerra. Sacco desenha histórias em quadrinhos com temas jornalísticos ou autobiográficos. Ou ambos. Gosta de se desenhar com os lábios de Mick Jagger, seu ídolo. Tá quente ou tá frio?

6

INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Salvador/BA – 1 a 5 Set 2002

Marshall McLuhan classificou como quentes os meios de comunicação de alta resolução ou densidade de informação e como frios os meios de baixa resolução. Assim, o cinema é quente, a televisão é fria. A literatura é quente, os quadrinhos são frios. Devido a sua baixa resolução ou incompletude, os meios frios demandam uma maior participação e envolvimento do público. Quando Joe Sacco molda suas reportagens em forma de histórias em quadrinhos, ele está agindo de acordo com essa premissa. E mais ainda, ao optar por um desenho com contornos duros, sem cor e com hachuras. Baixa densidade de informação solicitando uma participação mais intensa do leitor. Nas últimas duas décadas, temos presenciado uma verdadeira revolução na área dos quadrinhos, com uma ampliação tanto dos recursos técnicos e gráficos como dos temas abordados e das faixas de público atingidas. Grandes criadores estão atentos (e ativos) diante das enormes possibilidades gráfico-narrativas dos quadrinhos como uma linguagem sofisticada, envolvente e sintética. Essa revolução é um reflexo da maturidade dos quadrinhos contemporâneos.

2ª camada: No princípio era o jornalismo O que é um texto jornalístico? No início do Século XIX, essa pergunta seria respondida de forma simples e inequívoca: Texto jornalístico é o texto que podemos ver estampado nos jornais, aqueles cadernos periódicos e descartáveis impressos papel barato que divulgam as notícias de nosso mundo. Simples assim. Mas as coisas mudaram bastante nesse meio tempo, sobretudo quando as tecnologias eletro-eletrônicas entraram em campo, como o telégrafo, o telefone, o gravador de som, o rádio, o cinema, a televisão, o computador e até mesmo um simples celular. E, se para McLuhan, a imprensa de tipos móveis inventada por Guttenberg descortinou para nós uma galáxia, diante da Internet não podemos imaginar menos que incontáveis universos paralelos, tanto em termos de alcance quanto de velocidade. Estamos apenas no limiar desse multiverso. O pensamento jornalístico não se expandiu somente sobre essas novas tecnologias. Velhos suportes também foram sendo apropriados, incorporados, modificados. Desde sempre, na verdade. Não são poucos os jornalistas que optam hoje por publicar suas reportagens em

7

INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Salvador/BA – 1 a 5 Set 2002

forma de livro, mas se pensarmos no trabalho de Euclides da Cunha em Os sertões ou no de Heródoto sobre as guerras greco-pérsicas, veremos que esse princípio nem é tão inovador assim. Os cancioneiros medievais também iam de um reino a outro cantarolando novidades, como uma espécie de talk-show ambulante. Já naquela época, notícia era entretenimento. E o que eram os antigos cronistas viajantes da América selvagem senão precursores dos repórteres da National Geographic e do Discovery Channel? O new journalism de Truman Capote e Tom Wolf, inclusive, fez também o caminho inverso e inundou o jornalismo tradicional de procedimentos tipicamente literários. Hoje, todos os caminhos se cruzam e as fronteiras não são mais tão claras. Gianfrancesco Guarnieri levou para o palco a luta do movimento sindical brasileiro em Eles não usam brack-tie. Óperas antigas são relidas e transpostas para novos cenários, como O navio fantasma de Wagner, que, nas mãos de Gerald Thomas, acontece imprensada conta o Muro de Berlim, entretecendo comentários visuais sobre a história do Século XX. E o que podemos dizer das canções de protesto perseguidas por nosso passado regime militar? Ou da Guernica de Picasso? Ou da fotografia de Sebastião Salgado? Ou do Capibaribe sem plumas de João Cabral de Melo Neto? Ou de nossa literatura de cordel? Qual, então, o espanto em alguém fazer jornalismo em quadrinhos? Para além de Joe Sacco

Joe Sacco forçou os suportes tradicionais dos quadrinhos e do jornalismo a tal ponto e de forma tão bem sucedida e marcante que fez com que um novo nome fosse atribuído ao que ele faz: jornalismo em quadrinhos. Mas não podemos dizer que ele tenha inventado o conceito. Um pouco de história talvez seja esclarecedor. Para lembrar os feitos do normando Guilherme, o Conquistador, foi bordado um longo tecido (70 m) conhecido como a Tapeçaria de Bayeux (Século XI). São imagens seqüenciais associadas a textos breves estabelecendo uma narrativa. Em síntese, uma história em quadrinhos reportando um fato. Em 1969, Gerard Blanchard já chamava a Tapeçaria de Bayeux de ‘reportagem bordada’ (reportage brodé). Não poderíamos chamá-la hoje de reportagem em quadrinhos? Outros exemplos bastante conhecidos de narrativas gráficoseqüenciais de fatos históricos são a Coluna de Trajano (Século II), onde uma faixa helicoidal sobe pela coluna contando os feitos militares do imperador romano Trajano, e a Co-

8

INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Salvador/BA – 1 a 5 Set 2002

luna Vendôme (1810), inspirada na coluna de Trajano, com a narração em imagens da campanha e da vitória dos franceses na batalha de Austerlitz. Os quadrinhos, do modo como os conhecemos hoje, explodiram como linguagem e se disseminaram pelo mundo a partir do final do Século XIX, mas durante a primeira metade do Século XX, seu campo temático ainda se restringia quase exclusivamente ao humor e à aventura. Os movimentos de contracultura dos anos sessenta e setenta alteraram radicalmente esse quadro. É bem sabido como os bares da Califórnia foram inundados de autores de livros e quadrinhos vendendo seu próprio trabalho underground, fugindo das estruturas de produção e distribuição industriais em busca de uma maior liberdade de expressão. Essa prática se alastrou pela juventude mundial como rastilho de pólvora naqueles anos contestadores e incendiários. No Brasil da revolta contra a ditadura militar, a aclimatação gerou até uma versão tupiniquim do nome, ‘udigrudi’, corruptela de underground. A apropriação dos quadrinhos como parte desse processo contracultural não foi gratuita nem inofensiva. Ao contrário, se revelou bastante estratégica. A literatura, o teatro, a pintura e as outras artes tradicionais sempre foram arena de debates e revoluções, tanto estéticas quanto ideológicas. Enquanto isso, os quadrinhos se mantinham numa quase absoluta ingenuidade. Obviamente, como qualquer produto cultural, os quadrinhos também refletem a ideologia de quem os produz, mas até os anos cinqüenta essa ideologia acontecia mais no âmbito do subliminar. Os quadrinhos underground desempenharam, então, um duplo papel: de um lado, permitiram ampliar o leque de ferramentas a serviço dos processos revolucionários; de outro, operaram uma inversão maliciosa de valores ao trazer histórias sujas, cruéis e realistas para uma linguagem onde antes reinavam alegres bichinhos falantes e exemplares e corajosos heróis. No final das contas, esse fenômeno não se restringiu somente aos quadrinhos underground, projetando seus reflexos até mesmo sobre o conservador mercado de super-heróis, como o Arqueiro Verde, que nas mãos da dupla Denny O’Neil (roteiro) e Neal Adams (desenhos) passou por alguns apuros mais sintonizados com a realidade, como quando descobriu que o adolescente Ricardito, seu companheiro de aventuras, era viciado em heroína (saga publicada no início dos anos setenta). Já nos anos oitenta, podemos citar Brought to Light e Maus como bons exemplos de jornalismo em quadrinhos. O livro Brought to light (1989), com duas histórias apresenta-

9

INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Salvador/BA – 1 a 5 Set 2002

das como a graphic docudrama, é uma das primeiras reportagens em quadrinhos nos mesmos moldes das posteriores Palestina e Gorazde. A primeira história, Flahspoint – the La Penca bombing, com texto de Joyce Brabner e desenhos de Tomas Yeates, fala do envolvimento da CIA no atentado para matar Eden Pastora, líder dos Contra, em 1984 na Nicarágua e em outras ações na América Latina. O texto e os desenhos seguem uma linha bem tradicional de docudrama e se baseiam em investigações/testemunho dos jornalistas Martha Honey e Tony Avirgan. Por outro lado, a segunda história, Shadowplay – the secret team, com texto de Allan Moore e desenhos de Bill Sienkiewicz, é uma fantasia em tom de fábula que complementa a primeira. Em um bar decadente, uma águia americana antropomorfisada oferece seus ‘serviços patrióticos’ de extrema direita enquanto relata alguns ‘casos de sucesso’ de suas ações na América Latina. Os dados foram extraídos da Declaração de Evidência elaborada pelo Christic Institute. O desenho é expressionista e cheio de ousadias gráficas, um belo exemplo do trabalho de um artista então no auge da fama. Aqui, o grafismo exacerbado fez com que a denúncia investigativa soasse um pouco fantasiosa, mas isso não significa que esse tipo de desenho seja inadequado ao jornalismo em quadrinhos, pois o jornalismo comporta abordagens completamente diversas entre si. Alguns anos mais tarde, Sienkiewicz lançou Voodoo child, uma belíssima biografia de Jimy Hendrix onde o aspecto lisérgico de seu desenho é uma solução extraordinariamente adequada para a história de um astro da geração sexo, drogas e rock and roll. Maus – a história de um sobrevivente (1986-1992), com texto e desenhos de Art Spiegelman, não é uma reportagem investigativa tradicional como Palestina ou Brought to light, mas a classificação como jornalismo é plenamente cabível. Sua narrativa, de teor autobiográfico, se dá em dois tempos. No atual, Spiegelman nos conta a difícil convivência com seu pai Vladek, um judeu mesquinho e pouco emotivo. No tempo passado, a narrativa mostra a dura luta de Vladek para sobreviver em um campo de concentração nazista. O desenho segue a linha despojada dos quadrinhos underground, em sintonia com o texto autobiográfico, recurso que seria depois seguido por Sacco. Maus rendeu a Spiegelman um Pullitzer especial em 1992 (o prêmio não prevê a categoria quadrinhos), além de se tornar o argumento-chave na demonstração da maturidade atual da linguagem dos quadrinhos.

10

INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Salvador/BA – 1 a 5 Set 2002

Nos anos noventa, Sacco não foi o único a misturar jornalismo e quadrinhos. Ao contrário dos cult/alternativos Sacco e Spiegelman, o roteirista e desenhista Joe Kubert é um respeitável membro da grande indústria americana de quadrinhos comerciais. Desenhou desde heróis tradicionais como The Flash, Tarzan ou Homem-Gavião até histórias aventurescas de guerra como Sargento Rock e Ás inimigo. Sua escola, a Joe Kubert School of Cartooning and Graphics (aberta em 1976) formou e forma gerações de astros da indústria quadrinística americana. Kubert é um standard da tradicional indústria americana de quadrinhos, mas a dura realidade da Guerra na Bósnia invadiu seu trabalho através dos faxes enviados por seu amigo Erwin Rustemagic. Ervin é um empresário internacional e agente de arte de Sarajevo. Quando os tanques invadiram e isolaram a cidade, seu único meio de contato com os clientes e amigos era uma máquina de fax, que usou para enviar centenas pequenas notas sobre o conflito e sua luta para manter a família viva. Kubert era um dos destinatários dessas mensagens. Nas suas mãos, elas viraram um livro de quadrinhos chamado Fax from Sarajevo – a story of survival (1996), ganhador de diversos prêmios americanos e internacionais. O que impressiona especialmente em Fax from Sarajevo é ver um grande domínio da técnica narrativa tradicional sendo usado para documentar um fato real. A palavra ‘jornalismo’ é ampla o suficiente para abarcar tanto os repórteres da CNN em campo de batalha quanto as revistas sensacionalistas que perseguem astros de Hollywood à cata de fofocas. Assim, não podemos restringir a idéia de ‘jornalismo em quadrinhos’ a trabalhos nos moldes estritos de Joe Sacco. Será que uma cartilha em quadrinhos feita por uma associação de moradores denunciando um problema local da comunidade não preenche os requisitos de jornalismo em quadrinhos? Para responder, é só imaginar a pergunta de modo diferente: se esse mesmíssimo conteúdo de denúncia tivesse ganho a forma de um texto escrito apresentado no jornalzinho do bairro, ele seria jornalismo? Se a resposta da segunda pergunta for sim, a da primeira também deverá ser. Assim como no jornalismo tradicional, as reportagens em quadrinhos podem ser produzidas tanto para periódicos como para não-periódicos. A revista Details enviava quadrinistas para fazer coberturas jornalísticas, dentre os quais o próprio Joe Sacco. Sua QH de seis páginas sobre os julgamentos dos crimes da Guerra da Bósnia em Hague, Holanda, é,

11

INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Salvador/BA – 1 a 5 Set 2002

portanto, uma reportagem em quadrinhos para um periódico. No caso específico de Palestina, Gorazde, Maus, Brought to light e Voodoo child, o que temos não são reportagens curtas como as de jornais e revistas, mas verdadeiros livros-reportagem. Edvaldo Pereira Lima, em seu livro Páginas ampliadas – o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura, diz que o livro-reportagem “avança para o aprofundamento do conhecimento do nosso tempo, eliminando, parcialmente que seja, o aspecto efêmero da mensagem da atualidade praticada pelos canais cotidianos de informação jornalística”. Esse aprofundamento dos temas apresentado pelo livro-reportagem é o mesmo presente no jornalismo em quadrinhos quando desenvolvido em forma de livro, o que nos permite classificar as obras acima citadas como um tipo de livro-reportagem.

3ª camada: No princípio eram os quadrinhos Moacy Cirne, em A explosão criativa dos quadrinhos (1970), afirma que as raízes metalingüísticas, políticas, sociais e econômicas dos quadrinhos “se formam e se projetam no espaço-tempo gráfico das revistas e jornais”. Mais à frente, ele reitera: “os quadrinhos nasceram dentro do jornal – que abalava (e abala) a mentalidade linear dos literatos”. Na época, Cirne, assim como a grande maioria dos teóricos, situava a origem dos quadrinhos na rivalidade dos grandes grupos jornalísticos do final do Século XIX ancorada pelo desenvolvimento tecnológico da indústria editorial. Hoje, essa data é aceita como um momento crucial de transformações na linguagem dos quadrinhos modernos, mas não mais como sua real origem. A premissa de Cirne, contudo, continua precisa e indispensável, pois desde muito antes os cartuns e os quadrinhos já evoluíam quase sempre em uma verdadeira simbiose com as páginas dos jornais. Desde o Século XVIII que os jornais têm charges, cartuns e até mesmo quadrinhos. A charge inglesa desse período, inclusive, já tinha até balão. E desde então, praticamente não há jornal no mundo sem seus cartunistas. Angelo Agostini, o italiano que trouxe os quadrinhos para o Brasil, publicava suas HQs em jornais em plena metade do Século XIX. Desde o início do Século XX, todo grande jornal tem sua seção de tirinhas de quadrinhos, suas charges e suas caricaturas. Muitas vezes, a charge vale por um editorial e vem em destaque na primeira página. Além disso, os ilustradores

12

INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Salvador/BA – 1 a 5 Set 2002

das matérias jornalísticas freqüentemente constroem pequenas narrativas em quadrinhos para fazer a reconstituição de crimes ou outros acontecimentos. A relação entre o design dos jornais e as charges, caricaturas e quadrinhos fica mais clara quando lembramos que muitas vezes os chargistas eram também os próprios diagramadores dos jornais que ilustravam. Nos jornais menores, sobretudo os satíricos, costuma haver uma verdadeira preponderância da imagem sobre o texto, mas os grandes jornais também se valem da ilustração e da diagramação para alavancar as vendas. Em Jornal, história e técnica, Juarez Bahia ressalta a importância do peso informativo dos elementos visuais no jornal. Segundo ele: A caricatura, que se define como reportagem gráfica – do traço de humor ao desenho que documenta um fato –, lança os jornais e revistas numa espécie de passarela da fama. Quanto maior o espaço, mais notoriedade, mais popularidade. (Bahia, juarez. Jornal, história e técnica)

Nossos grandes caricaturistas e cartunistas como Manuel de Araújo Porto Alegre, Angelo Agostini, Vera Cruz, Rafael Bordalo Pinheiro, J. Carlos, Belmonte, Nássara, Péricles, Millôr, Jaguar, Ziraldo, Henfil, Paulo Caruso e Chico Caruso (entre tantos outros) extrapolam completamente o status de simples ilustradores. Seus nomes são destaque na própria história do jornalismo brasileiro. Pensamento gráfico

Os quadrinhos e o jornal têm uma relação muito mais profunda do que pode parecer à primeira vista. Essa relação não é unicamente histórica, ela chega também ao nível estrutural. Um autor de quadrinhos pega a sua história, divide em partes e dispõe cada uma dessas partes em um quadro com sua imagem e textos necessários. Esses quadros são justapostos, são ajuntados lado a lado nas páginas. Algumas vezes, o autor colocará um único ou uns poucos quadros por página, outras vezes, vários quadros menores. O leitor, por sua vez, ao ler esses quadros, vai reconstituindo, pouco a pouco, a história narrada. Ora, não é assim também que se faz um jornal? Os jornalistas dividem os acontecimentos em partes, que são trabalhadas em matérias, com o texto e as imagens necessárias. Depois, juntam essas partes em páginas, compondo esse objeto que chamamos jornal.

13

INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Salvador/BA – 1 a 5 Set 2002

Em ambos os casos, a página constitui uma espécie de diagrama espaço-temporal (o espaço-tempo gráfico de Cirne). Tanto a página dos quadrinhos quanto a do jornal é uma configuração espacial (bidimensional) que se articula com o tempo do objeto dessa representação. No caso dos quadrinhos, se articula com a fluidez temporal da história narrada (cada ‘aqui’ na página é um ‘agora’ da linha cronológica da narração). No caso do jornal, se articula com a condensação temporal do ‘agora’ do mundo, suas causas e conseqüências (cada ‘aqui’ na página é uma faceta ou aspecto do agora do mundo). O pensamento gráfico do jornal e o da revista em quadrinhos é fundamentalmente o mesmo: o objeto do discurso é retalhado em unidades menores dispostas em páginas. Mas duas são as diferenças fundamentais. A primeira, quanto ao objeto do discurso, que na revista em quadrinhos é quase sempre uma história a ser narrada e no jornal é essa coisa que chamamos vagamente de ‘cotidiano’ ou ‘realidade’. A segunda diferença é quanto ao processo de leitura. As matérias (módulos gráfico-estruturais do conteúdo do jornal) podem ser lidas fundamentalmente em qualquer ordem ou quantidade. Os quadros de uma HQ, ao contrário, devem ser todos lidos e, salvo raríssimas exceções, lidos em uma ordem prédeterminada. Essas diferenças são suficientemente claras e evidentes para que ninguém pretenda afirmar que uma revista em quadrinhos e um jornal são a mesma coisa. Contudo, o fato de se articularem sobre um mesmo pensamento gráfico é muito significativo. Se considerarmos o fato de que tanto os quadrinhos quanto o jornal, do modo como os conhecemos, terem evoluído quase sempre juntos desde o Século XVIII, veremos que esse pensamento gráfico em comum não é mera coincidência. Ele foi sendo conquistado por essa parceria entre quadrinhos e jornal. Quadrinhos e jornal

No Século XVIII, os primitivos quadrinhos de então estavam apenas iniciando sua longa jornada em direção à sofisticação técnica moderna. O aspecto gráfico de uma página de jornal também era um simples amontoado de textos. O Século XIX (palco de grandes transformações sociais decorrentes da Revolução Francesa e das revoluções científicoindustriais) testemunhou tanto a gestação dos quadrinhos modernos quanto o alastramento dos jornais pelo mundo e seu desenvolvimento técnico e gráfico. Na virada do Século XIX

14

INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Salvador/BA – 1 a 5 Set 2002

para o XX, muitos jornais eram já verdadeiros impérios comerciais enquanto as grandes estrelas dos quadrinhos eram disputadas a peso de ouro. Algumas personagens foram objeto de processos judiciais milionários, como o Yellow Kid ou os Sobrinhos do Capitão. O Século XX viu os quadrinhos se descolarem dos jornais com a criação das revistas especificamente de quadrinhos (uma evolução dos antigos suplementos dominicais dos jornais). Mas a relação entre quadrinhos e jornais sempre continuou e continua forte. Muitos jornais ficaram permanentemente marcados por seus cartunistas/quadrinistas. Alguém consegue imaginar o antigo Pasquim sem o Sig, o ratinho do Jaguar? Hoje os quadrinhos se desenvolveram e estão se afirmando como uma linguagem completa e independente. Mas eles nunca abandonaram totalmente os jornais. Grandes trabalhos de quadrinhos continuam sendo criados especificamente para jornais, como a inesquecível Mafalda, de Quino, os irreverentes Calvin e Haroldo, de Bill Watterson, o inteligente e divertido Non sequitur, de Wiley, ou a inesquecível Rê Bordosa, de Angeli. E em Avenida Brasil (Isto É), Paulo Caruso faz histórias em quadrinhos curtas (mas cheias de atitude política) em cima de fatos marcantes do cotidiano político nacional. A surpresa, portanto, não é que alguém tenha resolvido fazer reportagens longas em quadrinhos. O que espanta é: por que demorou tanto?

Uma conclusão (a quem interessar possa) A pergunta mais imediata sobre o jornalismo em quadrinhos é: isso é realmente um novo gênero que terá seguimento ou é apenas um estilo pessoal que ficará restrito às obras de Joe Sacco? A julgar pelo fato de que o trabalho de Sacco não ter surgido do nada, mas ser uma evolução de várias experiências anteriores de outros autores, dá para supor que essa prática continuará interessando a outros autores. Essa pergunta, contudo, só pode ser respondida com conjecturas, pois ainda não dá para se garantir que reportagens longas em quadrinhos virão a ser realmente comuns ou freqüentes. Não é no futuro do jornalismo em quadrinhos que estão as mais importantes questões de sua existência, mas em seu presente. Por exemplo: essa categorização, ‘jornalismo em quadrinhos’, deve ser entendida como uma subcategoria do jornalismo ou como uma sub-

15

INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Salvador/BA – 1 a 5 Set 2002

categoria dos quadrinhos? Ou de ambos? Ou de nenhum? E qual a importância dessa classificação? À primeira vista, nos parece que essa nova nomenclatura serve fundamentalmente para a crítica literária ou jornalística ter parâmetros para julgar ou comentar esses livros. A mídia costuma ter dificuldade em analisar algo novo, que não se enquadre em categorias préexistentes. Classificar a produção de Sacco (criando uma nova categoria) é uma maneira de domá-la, de digeri-la, de se livrar dela, de abandoná-la em um canto mais confortável das coisas que têm um nome. Há também o fator mercadológico. O mercado americano de publicações é extremamente setorizado. Jornais e revistas de notícias são vendidos em bancas de jornais. Revistas em quadrinhos são vendidas em lojas de quadrinhos. Livros são vendidos em livrarias. Quem compra somente livros não freqüenta uma loja de quadrinhos. As lojas de quadrinhos são freqüentadas fundamentalmente por crianças, adolescentes e jovens, quase nunca por adultos instruídos. Neste cenário, produzir uma obra em quadrinhos para esse público adulto requereu um certo redimensionamento mercadológico. Essa mudança de parâmetros começou sutilmente nos anos sessenta com os autores dos quadrinhos underground vendendo sua produção de mão em mão e tomou corpo em 1978, quando Will Eisner publicou Um contrato com Deus em forma de livro e o pôs para vender em livrarias ao invés de lojas de quadrinhos. Mas ele não conseguiu fazer isso assim, sem mais nem menos. Para convencer uma editora a publicá-lo, ele disse que havia inventado um novo tipo de linguagem, batizada de ‘romance gráfico’ ou graphic novel (no original em inglês). Desde então, várias HQs longas e auto-contidas foram lançadas como livro no mercado americano, sob a reconfortante chancela de graphic novel. Essa terminologia foi, para eles, estrategicamente indispensável, pois em inglês, as histórias em quadrinhos são chamadas de comic stories. Não dá para imaginar que uma história dramática e comovente como Maus, de Art Spiegelman, por exemplo, pudesse ser levada a sério pela imprensa sendo chamada de ‘história cômica’. Como graphic novel, ela rendeu a Spiegelman um Prêmio Pulitzer, abrindo as portas para uma maior visibilidade e aceitação dos quadrinhos como uma linguagem adulta. Abre-te, sésamo

16

INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Salvador/BA – 1 a 5 Set 2002

Uma mudança de nome permitiu a Eisner atingir o público adulto, vendendo seus quadrinhos em livrarias. Essa mudança de nome também permitiu a Spiegelman ter sido lido pelas pessoas certas, que puderam reconhecer em seu trabalho qualidades suficientes para lhe conferir um prêmio Pulitzer. Nomes são senhas, são passaportes ou, como se diz em inglês, são passwords, ‘passapalavras’. Nomes são senhas que movem pedras e nos permitem trilhar novos caminhos, como aquele ‘abre-te, sésamo’ das mil e uma noites. Como pudemos ver, o jornalismo em quadrinhos ajudou a ampliar um pouquinho mais as fronteiras das possibilidades da linguagem dos quadrinhos. Joe Sacco é um entre os muitos autores que estão fazendo experiências em várias direções diferentes, testando e expandindo os limites da linguagem das HQs. No caso de Sacco, em direção ao jornalismo. A criação do termo ‘jornalismo em quadrinhos’, por outro lado, ajudou a ampliar o espaço que as HQs têm na mídia, aumentando sua visibilidade junto ao público. Password, passaporte, passafronteiras. Pois a guerra que os quadrinhos têm travado nos últimos vinte anos tem sido a de deixar de ser vistos como um gênero menor e se impor definitivamente como uma linguagem completa, autônoma e sofisticada. O cinema também era menosprezado na primeira metade do século, mas venceu essa guerra. A dos quadrinhos ainda está em curso e muitas têm sido as pequenas, porém importantes vitórias. Tanto o jornalismo quanto os quadrinhos avançam sobre os terrenos vizinhos em busca de novos horizontes, mas a área de contato estabelecida entre os dois não constitui uma zona litigiosa. Ao contrário, ambos saíram ganhando: o jornalismo conseguiu ver mais humanizado um tema tão espinhoso quanto os conflitos internacionais e os quadrinhos conseguiram ser vistos com mais respeito e reverência pelo público e pela mídia. Isso nos leva a uma pergunta que talvez seja a mais estratégica nesse momento precioso onde autores como Eisner, Spiegelman e Sacco conquistam respeitabilidade em uma linguagem ainda tão subestimada. A quem interessar possa: Que outras vantagens em favor dos quadrinhos podem ser obtidas de situações como esta?

Bibliografia

17

INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Salvador/BA – 1 a 5 Set 2002

BAHIA, Juarez. Jornal, história e técnica – história da imprensa brasileira. São Paulo: Ática, 1990. BLANCHARD, Gerard. La bande dessinée – Histoire des histoires em images de la préhistoire à nos jours. Verviers: Marabout Université, 1969. CIRNE, Moacy. A explosão criativa dos quadrinhos. Petrópolis: Vozes, 1970. CLARK, Alan e CLARK, Laurel. Comics – uma história ilustrada da B.D. Sacavém: Distri Cultural, 1991. DUTRA, Aristides. Guerra de papel in: Você/UFES, nº 53. Vitória: SDPC/UFES, 1998. McCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Makron, 1995. PERRY, George e ALDRIDGE, Alan. The Penguin book of Comics. Middlesex: Penguin Books, 1971. SACCO, Joe. Área de segurança Gorazde – a guerra na Bósnia Oriental – 1992-1995. São Paulo: Conrad, 2001. SACCO, Joe. Natal com Karadzic. In: Comic Book – o novo quadrinho norte-americano. São Paulo: Conrad, 1999. SACCO, Joe. Palestina – uma nação ocupada. São Paulo: Conrad, 2000. SACCO, Joe. Palestine – in the Gaza Strip. Seattle: Phantagraphics Books, 1996. Sites Conrad Editora – www.conradeditora.com.br Drawn & Quaterly –www.drawnandquarterly.com El Archivo de Nessus – www.archivodenessus.com Fantagraphics Books – www.fantagraphics.com Universo HQ – www.universohq.com

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.