Três perspectivas sobre a análise material da música popular feita por Adorno

June 2, 2017 | Autor: Ricardo Nachmanowicz | Categoria: Theodor Adorno, Música, Teoría Crítica, Filosofia Da Musica
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Três perspectivas sobre a análise material de Adorno.

Enquadramento 1. A relação entre a cultura musical de Adorno e as fronteiras nacionais do início do século XX. A cultura musical defendida por Adorno possui um contorno geográfico bastante preciso. É formado pelo eixo Alemanha-Áustria e pouco aberto à europa central. De acordo com o regente Leon Botstein, a Bohêmia, Moravia, Slovakia, Hungria, Polônia e Norte América figuravam para os expoentes da segunda escola de Viena e Adorno, como culturas musicais extraterritoriais, periféricas e atrasadas. Bèla Bartók, que segundo Adorno foi o mais proeminente compositor dos territórios periféricos, era por ele elogiado com muita condolescência, ao mesmo tempo, criticado livremente por sua limitação frente às novas estéticas musicais. Mais especificamente, criticava-lhe o elemento folclórico em suas obras. Em 1925 Adorno se referia a Bartok como um compositor que: “encandecia cinzas do folclore húngaro”. Contudo em 1965 Adorno elogia os esforços e o uso da excentricidade em Bártok e a lê como uma tentativa de paridade com a música europeia. Uma retratação um tanto quanto arrogante e que pode ser melhor contextualizada. Bartok se notabilizou como um pioneiro em etnomusicologia e em compreender as categorias da música popular em sua divisão entre música popular urbana (música popularesca) e a música popular rural (música folclórica). Em um texto introdutório intitulado o que é a música popular? Bartók se refere à música folclórica com enorme consideração, estritamente musical. Os estudos e publicações de Bartok a esse respeito vão de 1912 a 1944, e sua conclusão sobre as características mais gerais da música folclórica figuram-na como sintética ao invés de simples, de concisa ao invés de repetitiva, e via-a como a sedimentação de uma virtude musical que produzia-se com o efeito de aperfeiçoamento pelo tempo. Características opostas à música popular urbana. O modelo de crítica de Adorno à música popular é similar à crítica de Bartók reservada à música popular urbana, porém, Adorno faz a crítica da tradição musical popular em bloco, não se importando com considerações materiais dessa música (seja urbana ou rural), embora finja fazer uma análise material em Sobre música popular. O verdadeiro horizonte crítico de Adorno residia na necessidade de que toda a música popular e toda música séria conservadora e redentora fosse ultrapassada. [Adorno nesse sentido não cede nem aos Beatles, nem ao Jazz, nem a Tchaikovsky e nem às vozes búlgaras]. Judit Frigyesi no livro Bela Bartok e a virada do século de Budapeste (2000) ressalta um aspecto importante sobre a obra de Bartok. Segundo a autora Bartok foi formado em uma cultura musical comum à segunda escola de Viena, liderada por Schoenberg. Nela importava a unicidade do estilo e a sobriedade da composição em detrimento dos maneirismo românticos. Critérios aos quais Bartok sempre manteve como objetivos

pessoais. Contudo, para Schoenberg o critério de unicidade não foi apenas formal mas material, estrutural e sistêmico. Segundo Schoenberg: Diante de quais circunstância ele [o compositor] sente a urgência em escrever alguma coisa que já tenha sido dita [...]? Um compositor de verdade não compõe meramente um ou dois temas, mas um peça como um todo... Sua concepção musical é um único ato, compondo a totalidade [...]. (Schoenberg In Frigyesi 2000,24).

Para Schoenberg a unidade e organicidade do objeto musical só poderia ser garantida com a técnica dodecafônica. Para Bartok a atonalidade, a unicidade orgânica e o projeto de uma nova música deveria ascender de um solo social, da riqueza e da atonalidade natural da música folclórica húngara. A   posição   de   Adorno   sobre   a   música   popular   já   vêm   por   isso   modelada   pelo   embate  entre  os  modelos  de  Schoenberg  e  Bartok.  Escolhendo  a  perspectiva  do   fim  absoluto  de  uma  tradição  representacionalista  em  música  e  por  isso  em  prol   da  originalidade  do  material.         A  implicação  formal  dessa  premissa  é,  similar  à  vida  das  plantas,  a  exigência  de   que   o   material   tenha   uma   continuidade   causal   e   necessária,   em   um   desdobrar   gradual  e  linear  entre  o  tema  (ou  a  semente)  e  a  forma  final  (a  planta).       Diametralmente   oposto   à   essa   forma   musical   encontra-­‐se   o   modelo   modular,   formado   por   colagens.   Adorno   critica   tanto   a   música   Jazz   quanto   Stravinsky   nesse   sentido.   Em   Filosofia   da   Nova   Música   essa   diferença   é   conceituada   como   expressivo-­‐dinâmico   (representado   pela   forma   sonata   e   por   Schoenberg)   e   o   rítmico-­‐espacial  (representado  pelo  tambor  e  por  Stravinsky)  são:     “dois   tipos   de   audição   [que]   se   excluem   reciprocamente   em   virtude   da   alienação   social   que   separa   sujeito   e   objeto.”[...]   “tudo   o   que   surge   como   objetividade   coletiva   está   sujeito   à   ameaça   da   alienação,   da   dureza   repressiva  da  mera  existência”.  

    Enquadramento  2.    Aspectos  de  um  a  priori  contingente  na  análise  material  da   música  popular.       À   sombra   dos   grandes   titãs,   resta   à   música   popular   urbana   norte-­‐americana   o   esteriótipo   de   uma   música   irrefletida   sob   ingerência   da   produção   de   subjetividades  do  mundo  administrado.       Revela-­‐se   nesse   diagnóstico:   (1)   um   aspecto   hegemônico   do   mundo   administrado,   (2)   a   crítica   ao   aspecto   estático,   cômodo   e   heterônomo   dos   produtos  musicais  dessa  cultura.       Já não há mais qualquer “arte popular” cujas canções e jogos possam ser tomados e sublimados pela arte. A abertura dos mercados juntamente com o efeito do processo de racionalização burguesa colocou o todo da sociedade […] sobre categorias burguesas, e as categorias da música vulgar

contemporânea são, todas juntas, aquelas da sociedade burguesa racionalizada, que, afim de permanecer consumível, são mantidas dentro dos limites da consciência que a sociedade burguesa impõe às classes oprimidas, bem como a elas mesmas. O material usado pela música vulgar é o obsoleto e degenerado material da arte musical. (Adorno 1932, p. 373 [Sobre a situação social da música] IN Max Paddison [A crítica criticada: Adorno e a música popular]).

    O critério 1 e 2 foram afixados de modo a priori, em uma axiológica disfarçada ao modo da tradição idealista.   Uma análise séria deveria deduzir esses princípios do material ao invés de subsumi-los esquematicamente.       Segundo   Adorno   o   fetichismo   encontra-­‐se   sobretudo   no   recurso   de   pseudo-­‐ individualização   –   e.g   improviso,   excêntrico,   blue   note,   breaks,   etc.   –   que   produziriam  uma  tênue  camada  de  liberdade  sob  formas  rígidas  de  composição.       Mas   se   pensarmos   no   uso   do   trítono   e   da   sensível   na   música   clássica,   dos   Schoks   no   expressionismo   de   Schoenberg   e   no   uso   livre   da   atonalidade,   são   eles   igualmente   exemplos   de   tênues   liberdades   incorporadas   como   modelo   da   estrita   forma  adotada,  igualmente  rígida.       O   mesmo   pode   ser   dito   do   pretenso   efeito   substitutivo   da   audição.   Tão   válido   para  a  escuta  do  Jazz  quanto  para  a  Suíte  para  piano  Op.25  de  Schoenberg.       A  teoria  de  Adorno  de  que  a  música  popular  trabalha  com  figuras  absolutas  sem   implicação   para   a   estrutura   musical,   na   prática,   revela-­‐se   pouco   pertinente   aos   critérios   fenomenológicos   de   escuta,   onde   toda   mudança   implica   em   uma   alteração   da   percepção   da   totalidade.   Assim   como   em   uma   suíte   de   Bach,   implica   uma  estrutura  de  contrastes.     Por   fim   o   argumento   da   promoção  da  personalidade   não   se   diferencia   da   carreira   de   um   Karajan   ou   Liszt,   que   vacilavam   constantemente   entre   a   fama   e   a   seriedade.       Adorno   parece   sugerir   que   a   música   popular   é   inerentemente   passível   de   ser   industrializada.   Uma   avaliação   redondamente   equivocada.   Vide   as   relações   entre   as  orquestra  Filarmônicas  e  o  estado  burguês.           Enquadramento  3.  O  folclore,  o  urbano,  a  técnica  e  a  reprodutibilidade  técnica.       Para   o   morador   da   cidade,   tanto   a   música   radical   quanto   a   música   folclórica   encontram-­‐se   em   uma   posição   equidistante,   ambas   estão   afastadas   por   igual   dessa   realidade.   A   técnica   de   plugging   em   “fazer   o   ouvinte   extasiar-­‐se   com   o   inevitável”   é   de   fato   o   instrumento   material   do   fetichismo   musical,   porém,   ela   denuncia  a  fragilidade  da  música  comercial  em  sua  dificuldade  de  se  naturalizar.    

O  único  rompimento  possível  às  estratégias  dos  meios  de  comunicação, segundo Adorno, reside na experiência de recusa ou de negação. Essa última relativa à angústia de Heidegger, quebra com a rede imediata de significações pré-estabelecidas e torna apta a edificação de uma escuta musical radical, sendo a condição de abertura à autenticidade do fenômeno musical. Contudo, o estado de coisas é tal que o mesmo pode ser reivindicado para a escuta de nossa tradição folclórica do candomblé, da Folia de Reis, do congado, da música caipira e ainda para a produção musical urbana da periferia pobre que é exportado em seus pedaços à indústria de todo o mundo. Nos EUA Woody Guthrie fez carreira na rádio KFVD nos anos 30 onde foi apresentado à esquerda californiana, gravando musicas de protesto em Nova York até o final dos anos 40 aproveitando-se de toda a indústria radiofônica. Por fim, sem se tratar de uma questão de análise material, porque ela não foi bem conduzida, é válida a crítica à música popular urbana estritamente comercial, mesmo que fora de suas categorias imanentes, como contraponto ao bloqueio cultural que incidiu sobre a música Nova. As grandes obras de Schoenberg e Stravinsky completam 100 anos e ainda são rejeitadas pelo grande público de etiqueta erudita. Fora das considerações estéticas e musicológicas, Adorno foi hábil em cerrar fileiras.    

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