Tributação sobre a Renda e (In)Justiça Fiscal

May 30, 2017 | Autor: Luiz Felipe Waitz | Categoria: Justiça Fiscal, Direito Tributário Brasileiro, Direito Fiscal, Imposto De Renda, Thomas Piketty
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PUC DEPARTAMENTO DE DIREITO

TRIBUTAÇÃO SOBRE A RENDA E (IN)JUSTIÇA FISCAL por LUIZ FELIPE WAITZ

ORIENTADOR: Carlos Guilherme Francovich Lugones 2016.1

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO RUA MARQUÊS DE SÃO VICENTE, 225 - CEP 22453-900 RIO DE JANEIRO - BRASIL

TRIBUTAÇÃO SOBRE A RENDA E (IN)JUSTIÇA FISCAL por LUIZ FELIPE WAITZ

Monografia apresentada ao Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) para a obtenção do Título de Bacharel em Direito. Orientador(a): Carlos Francovich Lugones

2016.1

Guilherme

Dedicatória Esse trabalho é minha primeira aventura no meio acadêmico. O concebi e o executei pensando em algo além do que simplesmente uma monografia de conclusão de curso. O tema não me veio de repente; ele surgiu lá por volta do sexto período, quando ouvi um professor dizer que "em tempos de positivismo jurídico, a palavra 'injustiça' sumiu do vocabulário jurídico. O direito nunca é injusto. Ele, no máximo, é inconstitucional". Essa sentença me entrou na cabeça e eu avaliei que, realmente, não fazia sentido o emprego da palavra injustiça no Direito. Eu nunca havia me referido a determinada norma como injusta. Até que, em certa aula, outro professor explicava sobre o ICMS e, ao se referir ao fato de que o tributo estava imbuído no preço do produto e que, por esse motivo, o comprador ou consumidor, independente da sua capacidade contributiva, sempre suportaria a mesma carga tributária, disse à turma que tal forma de se tributar o consumo, muitas vezes de bens indispensáveis à existência humana, sem discriminar a capacidade econômica do contribuinte era uma injustiça. Aquela foi a primeira ocasião na minha vida em que a palavra injustiça foi usada em termos jurídicos. Naquele momento eu reconheci que determinada norma podia ser constitucional, e que ao mesmo tempo, podia ser injusta. Naquele momento, o Direito realmente começou a fazer sentido em minha vida Essa monografia é um pequeno trabalho, um tímido primeiro passo que tento dar em direção a algo bem maior. Não só à excelência acadêmica, não só à minha auto-determinação, mas acima de tudo a um projeto de luta por maior justiça social. É minha humilde contribuição à todos que lutam, na seara tributária, por uma forma pacífica e justa de redução das desigualdades sociais. É a esta causa que eu quero dedicá-la. "Enquanto houver sobre a terra ignorância e miséria, obras desta natureza poderão não ser inúteis" - Victor Hugo

Agradecimentos Este trabalho é o encerramento de um ciclo que começou muito antes do primeiro período do curso de Direito. Ele é produto de uma boa educação, de um sentimento profundo de curiosidade e vontade de saber, associada a uma erudição ímpar que me foi garantida na infância. Por todos esses fatos, o primeiríssimo agradecimento é aos meus pais, Marilisi e Luiz Eduardo, que me proporcionaram, além da vida, a capacidade de realizá-lo. Quero também agradecer ao meu orientador, o Professor Carlos Guilherme Francovich Lugones, que aceitou a missão de me guiar no percurso, e que me auxiliou na conclusão deste trabalho. Outros agradecimentos, não menos meritórios, vão à minha família, sempre unida e companheira, aos meus amigos e colegas da faculdade, que durante esses cinco anos me acompanharam e compartilharam das minhas alegrias, angústias, tristezas e todas as experiências inerentes ao curso de Direito, por comporem as melhores lembranças que guardarei da Faculdade. Também dignos de agradecimento e lembrança são meus amigos do Bichara Advogados, com quem tive o prazer de desfrutar da minha primeira experiência com o Tributário aplicado, assim como também pude aprender muito e fazer amizades que considero bastante. Por fim, quero agradecer a todos os professores que contribuíram para a minha formação, desde os tempos do Colégio Santo Agostinho, onde aprendi a importância de cultivar o amor à Ciência e a Ciência do Amor, e também aos meus mestres da PUC - Rio, que entre amizades, respeito e diálogos, me confirmaram a frase do grande jesuíta António Vieira, 'A boa educação é como moeda de ouro: em qualquer lugar tem valor.'

Resumo: O objetivo do presente trabalho é promover uma investigação sobre a tributação sobre a renda, em especial o Imposto de Renda, suas origens, finalidades e sua aplicabilidade nos dias de hoje, levando em consideração a sua gênese histórica, a sua fundamentação jurídica e as suas consequências fiscais e econômicas. Pretende-se destrinchar, nesta breve dissertação, o conceito (e os conceitos) de renda dos quais o legislador se apropriou para instituir o IR, confrontá-lo com a noção econômica de renda e ainda incentivar um debate crítico sobre a eficácia da política de progressividade no âmbito desse tributo, bem como das novas visões econômicas e jurídicas sobre a problemática da concentração de renda e da justiça fiscal. Palavras-chave: Renda, Imposto de Renda, Justiça Fiscal, Piketty

Abstract: The goal of the present work is to provide an investigation on Income taxation, specially concerning the Income Tax, its origins, its aims, and its applicability nowadays, considering its historical birth, its legal foundation, and its fiscal and economical consequences. We intend, on this brief dissertation, to explore the concept (and the concepts) of income from which the legislator took notation in order to establish the Income Tax, and analyze it under the economical concepts of Income, and also to promote a discussion on the efficiency of its policy of progressive tax rate, as well as the recent economical and legal studies on the matter of income concentration and fiscal equality Keywords: Income, Income Tax, Fiscal Equality, Piketty

Siglas e Abreviações

CC - Código Civil CRFB - Constituição da República Federativa do Brasil (Constituição Federal) CSLL – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido CTN - Código Tributário Nacional FTR - Flat Tax Revolution ICMS - Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação IGF- Imposto sobre Grandes Fortunas IPI - Imposto sobre Produtos Industrializados IPTU - Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana IR - Imposto de Renda/Imposto sobre a Renda IRPF - Imposto de Renda de Pessoa Física IRPJ - Imposto de Renda de Pessoa Jurídica ITBI - Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis e de Direitos a eles relativos ITCMD - Imposto sobre Transmissão causa mortis e Doação ITR - Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural RE - Recurso Extraordinário REsp - Recurso Especial RIR - Regulamento do Imposto de Renda (in casu, Decreto 3.000/99) STF - Supremo Tribunal Federal STJ - Superior Tribunal de Justiça

Sumário Introdução ...................................................................................................... 6 Considerações preliminares ........................................................................... 8 Capítulo I - A História da tributação sobre a Renda ..................................... 9 Na Grã-Bretanha ........................................................................................ 9 Nas terras germânicas .............................................................................. 14 No Brasil .................................................................................................. 18 Uma breve análise global da História da tributação sobre a Renda ......... 29 Capítulo II - O(s)Conceito(s) de Renda e o Direito Tributário Brasileiro. . 37 Capítulo III - Princípios Jurídicos aplicáveis ao Imposto de Renda ........... 44 A Supremacia Constitucional................................................................... 44 A Constituição Tributária......................................................................... 46 Capítulo IV - Crítica à tributação atual sobre a Renda e a Injustiça Fiscal. 54 A Flat Tax Revolution .............................................................................. 54 Renda e Consumo no Brasil entre as eras FHC e Lula ............................ 56 A Posição Econômica – Thomas Piketty e o Capital no Século XXI ...... 59 O IGF – Imposto sobre Grandes Fortunas ............................................... 64 Conclusão .................................................................................................... 71 Bibliografia .................................................................................................. 73

6 'A maior desgraça de um país pobre é que em vez de produzir riqueza, produz ricos” Mia Couto.

Introdução O objetivo do presente trabalho é estudar não só a tributação sobre a renda no Brasil, principalmente sob a forma do Imposto de Renda, mas também estudar a injustiça fiscal inerente à aplicação desse modelo. Para isso, comparamos a situação brasileira com a de outros países, e pesquisamos o Direito Tributário Comparado, principalmente em fontes portuguesas, para a construção do raciocínio. O trabalho começa com um breve histórico do surgimento da tributação moderna sobre a renda, enfatizando seu surgimento no Reino Unido, nas terras germânicas e, por fim, no Brasil. Outros países como a França, por exemplo, que possuem uma interessante História de sobre a renda, foram deixados de lado por mera questão metodológica: o trabalho ficaria demasiado longo e correria o risco de se transformar em uma dissertação histórica, escapando ao seu objetivo. Sempre que possível, fizemos referência a momentos históricos da tributação sobre a renda além dos países citados quando tal referência se mostrou indispensável. A segunda parte do trabalho é dedicada a uma breve discussão sobre os conceitos econômicos de renda mais em voga na Economia e a sua acepção e absorção pelo Direito Tributário Brasileiro. A terceira parte compreende o estudo do Direito Tributário Nacional concernente à tributação sobre a renda, com enfoque no Imposto de Renda. O estudo começou com uma análise dos princípios constitucionais aplicáveis à seara tributária, seguido pela aplicação das normas constitucionais tributárias e sua conjugação com o ordenamento infraconstitucional. Por fim, a última parte trata das inconsistências entre os princípios da justiça fiscal e a tributação sobre a renda, mormente na conjuntura do

7 Estado Social. É feita uma análise sobre as teorias revolucionárias do economista francês Thomas Piketty e suas ideias de combate à desigualdade por meio da justa tributação sobre a renda.

8

Considerações preliminares A fim de promover uma melhor análise da tributação sobre a renda e sua relação com uma maior ou menor promoção de justiça fiscal, consideramos importante estudar o fenômeno econômico da renda como produto histórico próprio do capitalismo. Consideramos que o próprio surgimento do capitalismo também é produto histórico resultante do Liberalismo Europeu originado no Século XVIII. Além disso, também consideramos que a renda, aqui tomada como fruto da atividade laboral ou industrial do Homem, é percebida de maneira desigual pelos agentes que concorreram na sua formação e que, somada a fatores intrínsecos à contemporânea tributação sobre a renda, cujo escopo originário era justamente a redução do impacto fiscal sobre a discrepância das capacidades contributivas, hoje está desvirtuada, seja pelas inovações na economia, seja pelo desentendimento entre essas inovações e o direito tributário pátrio. É por essas razões que se inicia o presente trabalho com uma breve revisão histórica do surgimento da tributação sobre a renda na GrãBretanha, na Prússia (e depois na Alemanha), e, por fim, no Brasil. No curso dessa monografia, tomaremos o cuidado de expressar aquilo que, nas searas histórica e econômica, julgamos necessário enfatizar, sem, no entanto, se desvirtuar nem do tema, nem dos objetivos do trabalho.

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Capítulo I - A História da tributação sobre a Renda Na Grã-Bretanha

Os primeiros vestígios de uma tributação moderna sobre a renda que se tem notícia no mundo ocidental são encontrados na Grã-Bretanha do final do século XVIII. Na época, a Inglaterra estava em guerra com a França desde 1793, em função das Guerras Revolucionárias Francesas (1793-1802) e das Guerras Napoleônicas (1803-1815). A tributação inglesa que vigia até então tinha por base as teorias de economia política de Adam Smith (1723-1790), nas quais estão sustentados os cânones do Liberalismo Clássico. Segundo Smith, a origem da riqueza era o trabalho, desempenhado por meio da livre iniciativa e da propriedade privada, cuja riqueza imediatamente gerada correspondia ou a rendas ('rents’), ou a lucros (‘profits’) ou a salários (‘wages’). Assim, a política tributária vigente tinha por base não só a capacidade contributiva do agente, mas também considerava que a tributação sobre a renda e o patrimônio devia respeitar o princípio da 'tributação voluntária'. Um exemplo desse ideal eram os ‘Expenditure Taxes’ (‘Impostos sobre gastos’), que recaíam, majoritariamente, sobre o patrimônio de famílias abastadas, de maneira que os fatos geradores eram a propriedade de bens considerados luxuosos e supérfluos, de alto valor econômico, considerados totalmente contingentes às necessidades humanas, tais como carruagens, talheres, objetos de prata e até mesmo serviçais e cães ‘de porte nobre’ (NÓBREGA, 2013, p.18).Em resumo, o imposto só era recolhido por

aqueles

potenciais

contribuintes

que,

de

elevado

poder

aquisitivo,voluntariamente dispensassem seus cabedais em tais luxos. Uma das formas de tributação mais curiosas dessa época eram justamente as taxações sobre janelas das residências (o que, na época, era artigo de luxo), levando muitos ingleses a literalmente cobrirem as janelas das suas casas com tijolos. Ainda hoje é possível vislumbrar essas 'janelas de tijolos' em alguns imóveis antigos das cidades britânicas.

10 A ideia por trás do fato estava centrada no dogma liberal já vigente na Inglaterra de que o tributo só deveria ocorrer sobre a riqueza, compreendida até então como o patrimônio, e que, portanto, somente aqueles indivíduos que desejassem ter um patrimônio ostensivo deveriam ser contribuintes dos ‘Expenditure Taxes’. Como conclusão, o tributo não era obrigatório, posto que ainda que o indivíduo possuísse um vasto cabedal, o imposto só incidiria sobre a propriedade e uso de bens luxuosos, conforme já explicado. Tal sistema tributário se mostrou insuficiente para arcar com as despesas bélicas. A solução encontrada pelo Primeiro-Ministro William Pitt, the younger, (1783-1801; 1804-1806), foi propor ao Parlamento Inglês, pelos idos de 1797, uma nova política tributária com o fito de custear a guerra contra a França. Era o nascimento do chamado ‘Triple Assessment’ (‘Tripla avaliação/Triplo lançamento’ em tradução livre). O ‘Triple Assessment’ mais consistia em um novo modelo de tributação do que em um ‘imposto sobre a renda’ propriamente dito. A ideia de Pitt era manter a tradição dos ‘Expenditure Taxes’, com a diferença de que, a partir da vigência do novo modelo, o tributo seria cobrado tendo como base de cálculo não os ‘gastos e dispêndios contingentes’ feitos, mas antes os gastos e dispêndios feitos no ano anterior ao da incidência do tributo. Foi estipulada uma classificação dos contribuintes em três segmentos, com base nos gastos feitos: Até sessenta libras anuais: isentos; entre sessenta e duzentas libras, a cobrança do tributo se daria em alíquotas variáveis entre 0,83% (zero vírgula oitenta e três por cento) e 10% (dez por cento). Acima desse valor, as alíquotas eram sempre de 10% (dez por cento). (LEONETTI, 2003, p. 5). Em muitos casos, o tributo a ser recolhido também tinha a sua base de cálculo triplicada, originando o nome ‘Triple Assessment’. Além disso, a nova política fiscal foi a primeira a classificar os contribuintes conforme a sua capacidade contributiva (GROSSFELD & BRYCE, 1983, p. 213); (TILBERY, 1987, p. 300).

11 A política almejada por Pitt foi duramente combatida no Parlamento. Apesar de aprovado, o ‘Triple Assessment’ provou-se logo um fracasso, e o produto da arrecadação não atingiu sequer a metade da previsão ministerial. Pitt, todavia, não se deu por derrotado, e em 3 de dezembro de 1798, propôs uma nova bula aos parlamentares. Uma de caráter consideravelmente revolucionário. A nova proposta mantinha o custeio da Guerra como escopo, mas buscava corrigir os erros do ‘Triple Assessment’, tais como a evasão e a sonegação fiscal. Segundo o novo programa, o imposto não incidiria sobre gastos ('expenditures'), mas sim sobre a renda em si, entendendo-se aqui a já mencionada riqueza tripartite smithsoniana (rents, profits e wages). O Estadista Inglês estava criando a primeira forma de tributação sobre a renda propriamente dita, institucionalizando conceitos basilares até hoje usados na nomenclatura do imposto de renda hodierno; a saber, 'fonte', 'renda', etc. A fiscalização sobre o novo imposto seria majorada: Pitt foi o preceituador do processo administrativo fiscal moderno, e pai do chamado 'lançamento por homologação'. A nova política previa que a declaração do montante de renda pessoal auferida deveria partir do próprio contribuinte. Além do mais, por se tratar de interferência estatal na esfera privada dos indivíduos, o procedimento fiscal adotado deveria ser de completo sigilo, almejando preservar a intimidade dos contribuintes. (GROSSFELD & BRYCE, 1983, p. 215). A discussão parlamentar foi férrea, e o novo imposto foi chamado de ''monstruous proposition''. Considerou-se que se tratava de uma abominação por parte do Estado de confiscar a propriedade dos súditos e de investigar a fundo a vida íntima dos ingleses. Além disso, criticou-se a renda como demonstrativo de riqueza preferível a ser tributado no lugar dos gastos efetivados. GROSSFELD e BRYCE escrevem: "Usar a renda como padrão de riqueza era visto como falta de bom senso, e incompatível com o

12 princípio de que a tributação devia ser voluntária1." (GROSSFELD & BRYCE, 1983, p. 216). No entanto, o primeiro-ministro consegue maioria no Parlamento, arguindo ser o novo tributo indispensável para manter as despesas bélicas. A moção é aprovada e o novo imposto sobre a renda sui generis, o primeiro no mundo, é executado e se mostrou um sucesso. O imposto de Pitt sobreviveu até 1802. Naquele ano, foi assinado o Tratado de Amiens, cessando as hostilidades com a França. Finda a Guerra, findo o imposto. A Paz, todavia, durou menos de um ano, e em 1803, o primeiro-ministro, Henry Addington (1801-1804) resolveu ressuscitar o imposto, propor duas mudanças ao new income tax; a saber, o tributo continuaria a incidir sobre a universalidade da renda percebida, mas o lançamento do crédito tributário não seria feito sobre a totalidade das rendas, mas sim vários 'sub-lançamentos', sob as várias espécies de renda, somando no final o montante a ser devido. (GROSSFELD & BRYCE, 1983, p.219; ZILVETI, 2013, p. 170) Foi a primeira vez na história em que se deu mais atenção ao conceito de fonte de renda passível de ser mais ou menos tributada, conforme as circunstâncias. Outra medida importante da reforma de Addington foi o estabelecimento do 'stoppage at the source', comumente referido hoje em dia como 'retenção na fonte'. Todas as fontes de renda publicamente conhecidas passaram a ser tributadas na fonte, tais como juros anuais (yearly interests), rendas advindas do aluguel ou uso de propriedade imobiliária (rents), anuidades (annuities), bem como os salários dos funcionários públicos. (GROSSFELD & BRYCE, 1983, pp. 219-220). O imposto de Addington sobreviveu até o fim das Guerras napoleônicas. Com a paz firmada em 1816, o tributo foi extinto. Passados 26 anos desde o fim do imposto no Reino Unido, o primeiro-ministro Robert Peel (1841-1846), enfrentando grave crise de arrecadação no erário inglês, propõe ao Parlamento ‘ressuscitar’ o imposto de renda de Addington, por um período de três anos, como medida para 1

No original: "To make income the standard of wealth was regarded as making little sense and being inconsistent with the principle that taxes were voluntary"

13 combater a escassez da fazenda pública. Se os ‘impostos de guerra’ de Pitt e Addington já haviam provocado considerável revolta e indignação política, o ‘imposto de paz’ de Peel desencadeou uma onda ainda maior de reprovação pública. Segundo consta, a aprovação no Parlamento só foi possível quando a própria Rainha Vitória se mostrou favorável à cobrança. Apesar de estar previsto para durar apenas três anos, o imposto foi sendo constantemente prolongado por Peel e pelos ministros whigs que o sucederam. Em 1845, Peel defendeu novamente no Parlamento a manutenção do imposto. Em 1853, um ato foi passado, definindo renda como 'rendimentos pagos pela monarquia pelo uso das suas propriedades, rendas públicas da própria coroa, lucro das empresas e sociedades de fato, rendimento do capital de residentes no Reino Unido' (ZILVETI, 2013, p. 172), assim como a renda do trabalho referente às pessoas físicas. Quando o primeiro-ministro liberal William Ewart Gladstone, na sua primeira gestão de 1868 a 1874, argumentando a insatisfação dos britânicos com o imposto, pretendeu extingui-lo, os próprios parlamentares liberais, que tanto fizeram campanha moral contra o ‘imposto gigante’ (‘a giant’), mas que compreendiam que sem ele as receitas públicas voltariam a escassear, ajudaram a eleição de Benjamin Disraeli, um dos mais icônicos primeiros-ministros conservadores da Inglaterra. Disraeli se dizia também desgostoso com o imposto ressuscitado por Peel, mas argumentava que ele deveria ‘morrer naturalmente’. Por volta da eleição de Disraeli, em 1874, o imposto, de tanto sucessivamente prolongado, já era familiar dos contribuintes que pagavam e dos políticos que arrecadavam. Deveria ‘morrer lentamente’. Está vivo até hoje.

14 Nas terras germânicas

O imposto implementado por Addington na Inglaterra já tinha chamado a atenção dos alemães, principalmente na Prússia. Já há muito tempo as ideias de Adam Smith eram discutidas na Universidade de Köninsberg (atual Kalingrado, Rússia) e o Reino da Prússia também estava mergulhado na conjuntura das Guerras contra a França. Desde o Tratado de Basileia em 1795, a Prússia foi obrigada a fazer a Paz com a França, mas não sem antes ceder os territórios à esquerda do Reno, bem como se comprometer com a manutenção e custeio das guarnições francesas que lá estavam aquarteladas. A situação se agrava com a morte de Frederico Guilherme II (17441797), cuja sucessão política foi marcada pelo encolhimento das finanças públicas do Reino. Foi nesse contexto em que surgiu no cenário político o barão Karl vom Stein (1757-1831), estadista iluminista que promoveu a reforma do Estado Prussiano. Vom Stein era conhecedor das inovações fiscais promovidas por Addington na Inglaterra, e com o aval do Governo, resolveu estabelecer o imposto de renda segundo o modelo inglês nas províncias da Lituânia e da Prússia Ocidental (1808), mas com duas inovações: i) ao contrário de Addington, o imposto prussiano não previa retenção na fonte. ii) O imposto idealizado por vom Stein possuía alíquotas progressivas, podendo chegar a até 20% da declaração de renda feita pelo contribuinte, enquanto que o imposto britânico era apenas proporcional. Houve resistência por parte do Pariato, temeroso quanto aos seus privilégios fiscais, mas independentemente dos seus protestos, a situação financeira do Reino continuava alarmante, e em 1812 o tributo já era exigido em todos os domínios da Prússia. Sua vida foi curta, pois apesar de bem estudado e aplicado, o Imposto de Renda não conseguiu atingir seus objetivos porque não havia renda na Prússia. A carência e a pobreza estavam generalizadas de tal maneira que em 1813 o imposto foi suspenso

15 nas províncias mais pobres e, com a derrota de Napoleão em Leipzig (1814) e os acordos de Paz, o Imposto de 1812 foi revogado. As reformas tributárias prussianas que sucederam as Guerras Napoleônicas acabaram por abandonar a ideia de imposto de renda e estabelecer, em 1820, um extravagante imposto 'de classes', ou um imposto sobre 'aspectos externos da riqueza', considerado mais adequado ao reflexo da sociedade. Todavia, enquanto os prussianos se firmavam naquela tributação esdrúxula, os pequenos Estados Alemães, seguindo os exemplos inglês e o prévio prussiano, passaram a instituir impostos sobre renda, com mais ou menos particularidades o diferenças, nos seus territórios. Foi assim no Ducado de Saxe-Weimar (1821), seguido pelos reinos da Saxônia e de Hannover (ambos em 1834). Apenas em 1847, com o fiasco de arrecadação do 'imposto de classes', é que as discussões sobre um novo imposto de renda voltaram a flamejar na Prússia. A primeira proposta de ressurreição do imposto prussiano se deu naquele ano, mas foi duramente combatida no Parlamento e declinada. Previa um imposto geral sobre toda a renda anual igual ou superior a 400 táleres, de maneira que as alíquotas seriam de 2,0% (dois por cento) para a renda infundada', ou seja, aquela advinda do trabalho, e de 3,0% (três por cento) para a 'renda fundada', ou seja, aquela advinda diretamente do uso da propriedade. Interessante notar aqui o uso que os alemães fizeram de uma divisão das origens da riqueza: aquela proveniente do trabalho, típico da pequena e média burguesia, e a riqueza advinda do empréstimo. aluguel ou cessão do uso da terra, típico da alta burguesia e da aristocracia, mostrando, talvez, uma tendência em promover uma taxação mais equilibrada entre as diferentes personagens do teatro socioeconômico prussiano. Não se possui prova suficiente para provar, mas há motivos para suspeitar de que os alemães tenham sido os primeiros a identificar que os mais abastados deveriam arcar com maior tributação não só por motivos econômicos, mas também sociais.

16 No ano seguinte, durante os movimentos liberais da 'Primavera dos Povos', que agitavam as últimas falperras do Antigo Regime, o imposto foi novamente posto a prova no Parlamento. Os parlamentares confessaram que, de fato, o 'imposto de classes' foi um desastre, pois além de irracional e antiquado, o crescimento das populações urbanas tinha complicado o modo de identificar a que 'classe social' determinado contribuinte pertencia, bem como que a alíquota máxima estabelecia de 144 táleres para fins do imposto era baixa demais, sem corresponder à real discrepância econômica entre ricos e pobres. (GROSSFELD & BRYCE, 1983, p. 231). Mas, se por um lado reconheciam a necessidade do tributo, discordavam do modo como ele viria a ser aplicado: o projeto previa a declaração compulsória de renda pelo contribuinte. Esse detalhe era considerado pelos idealizadores do projeto como crucial para o seu sucesso; ao passo que a oposição o abominava. Somente em 1851, com a lenta permeação da Revolução Industrial nos Estados Germânicos, a Prússia voltou a ter um imposto de renda. Os mais pobres não seriam afetados: continuariam a pagar o 'imposto de classes'. Somente os mais ricos (renda anual igual ou maior do que 1000 táleres) estariam sujeitos ao tributo, que, no entanto, independia de declaração de renda, que, somada à quase inexistência de punição para os casos de evasão fiscal, tornou esta uma prática nacional entre os pagadores. Os alemães, sempre muito atentos ao poder das palavras, poeticamente apelidaram o novo sistema tributário de 'Lug und Trug-System' ("Sistema do 'Minta e Trapaceie' ", em tradução livre). Para tentar inibir a evasão evidente, várias reformas fiscais foram implementadas; todas sem sucesso, posto que não combatiam a raiz do problema: a falta de obrigatoriedade de declaração e a punição leniente aos sonegadores. Nessa conjuntura, ressalta-se aqui a reforma de 1873. No Reino da Saxônia, entretanto, já se havia compreendido que as mudanças trazidas pelas reformas liberais eram inevitáveis e irreparáveis. Era o fim da

17 era da riqueza fundiária aristocrática, e o início do capitalismo e do livre cambismo burguês. A renda era a nova fonte da verdadeira riqueza. Nesse sentido, em 1878, a Saxônia alternou sua legislação sobre o imposto de renda, criando novas classificações de contribuintes conforme a renda, corrigindo as antigas, instituindo a declaração compulsória de renda e o processo administrativo tributário incisivo e rigorosamente punitivo aos detratores. Despontou como a vanguardista daquilo que viria a ser (finalmente) o grande imposto de renda alemão. (GROSSFELD & BRYCE, 1983, p. 235) A Prússia copiou os saxônicos em sua última grande reforma fiscal (1891). O imposto de renda passou a ser o principal tributo do recém surgido Império Alemão, unificado sob o cetro dos Reis da Prússia. Era um tributo que trabalhava com os conceitos de 'fonte', 'declaração compulsória', seguindo ainda a nunca esquecida influência britânica (no caso, o imposto idealizado por Addington). Com a chamada 'Erzbergersche Finanzreform' (1919-1920), i.e. a grande reforma tributária após a derrota na I Guerra Mundial (1914-1918), seguida pela Proclamação da República de Weimar, o Ato da Reforma de 1891 foi mantido na íntegra, exceto por uma pequena alteração: mais uma vez seguindo o modelo Addington, o imposto de renda seria retido na fonte.

18 No Brasil

Não existe consenso na doutrina sobre o momento em que se iniciou a tributação sobre a renda no Brasil. Os historiadores do Direito Tributário apontam os anos de 1808, 1843, 1922 e 1924 como possíveis datas da instituição da tributação sobre a renda. Sobre esse desacordo, BARBOSA CORREA diz: "No entanto, em virtude das divergências existentes na própria conceituação de renda, encontramos duas vertentes a reconhecer o nascimento do imposto de renda no Brasil: uma, seguida porpoucos (sic), que aponta os mencionados anos de 1808 e 1843; outra, a tradicional, que indica como gênese o ano de 1924 (baseada na Lei de 1922). Essas duas correntes contrapõem-se, sob os fundamentos de que a primeira aceita serem considerados como impostos de renda os impostos incidentes apenas sobre uma única espécie de rendimento, o rendimento de Ilicação ou vencimento percebido dos cofres públicos como remuneração por serviços, ou, ainda, os dividendos distribuídos; enquanto a segunda só admite a presença do imposto de renda, no tributo que alcança os rendimentos globais, ferindo os vários acréscimos do patrimônio do indivíduo ou das sociedades, em todas as suas manifestações." (BARBOSA CORREA, 1994, p. 250)

O autor citado já fornece algumas informações sobre os tributos elencados. Ainda assim cabe esclarecer algumas particularidades. O Alvará de 27 de Junho de 1808, assinado pelo então Príncipe Regente D. João, que para o Brasil tinha se mudado com a corte em virtude da invasão francesa a Portugal, estabelecia a cobrança e coleta do imposto da Décima dos prédios urbanos. Consistia na cobrança de 10% (dez por cento) do rendimento líquido dos proprietários de imóveis urbanos e de detentores de direitos forais e enfiteuses para custear a coroa portuguesa, consoante seus artigos I e III: I. Os proprietarios de todos os predios urbanos que estiverem em estado de serem habitados, desta Corte e de todas as mais Cidades, Villas e Logares notaveis situados á beira-mar neste Estado do Brazil e de todos os meus Dominios, menos os da Asia que pela decadencia em que se acham, merecem esta isenção, e os que pertencem ás Santas Casas das Misericordias, pela piedade do seu Instituto, pagarão daqui em diante annualmente para a minha Real Fazenda 10% do seu rendimento liquido. III. Os mesmos 10% pagarão os senhores directos pelos fóros, que perceberem, instituidos nos referidos predios urbanos acima designados. (Manteve-se a grafia original)

19

Percebe-se que o fato gerador da Décima Urbana era a propriedade ou posse de imóveis residenciais 'que estiverem em estado de serem habitados', porém a base de cálculo era realizada sobre a renda, e o tributo era também pago pela renda. Não se pode dizer, na nossa opinião, que seja um tributo sobre a renda no sentido moderno do termo, uma vez que o imposto de renda propriamente dito é fruto conjunto de um momento histórico, de um modelo econômico e de um substrato político que o Brasil não ostentava àquela época. Também, prima facie, parece que a Décima Urbana era o que Henry Tilbery chamou de 'imposto nominal (ou medido) sobre o patrimônio', sendo este "o imposto calculado sobre o patrimônio, mas na realidade suportado pela renda" (TILBERY, Henry. 1987, p. 286), no entanto, verifica-se que, apesar do fato gerador de natureza patrimonial, o bem tributado era o 'rendimento líquido'. Já no Brasil Império, durante o reinado de Pedro II (1840-1889), foi sancionada a Lei 317 de 1843,regulamentada pelo Decreto nº 349 de 20 de abril de 1844, que estabelecia no seu artigo 23 uma contribuição ordinária a ser paga somente durante aquele ano sobre os vencimentos percebidos dos cofres públicos. Verbis: Art. 23. Fica creada a seguinte contribuição extraordinaria durante o anno desta lei. § 1º Todas as pessoas que receberem vencimentos dos Cofres Publicos Geraes, por qualquer titulo que seja, ficão sujeitas a uma imposição, que será regulada pela maneira seguinte: De

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3:000$000

4

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20 »

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8:000$000

á

8:000$000 para cima

9

»

10

»

O parágrafo 2º, todavia, fazia uma ressalva, ao passo que o 3º definia os 'vencimentos': § 2º Ficão exceptuados da regra estabelecida no paragrapho antecedente os vencimentos das praças de pret de terra e mar, e os vencimentos dos militares em campanha. § 3º Na palavra vencimentos se comprehendem quaesquer emolumentos que se perceberem nas Secretarias, ou Estações Publicas. (Manteve-se a grafia original)

A importância dessa lei, e em especial do artigo destacado, é de que previa-se um desconto sobre o rendimento percebido dos cofres públicos. Em outras palavras, a contribuição incidiria majoritariamente sobre o salário de funcionários públicos. Os militares em campanha foram isentos da contribuição em virtude da Guerra dos Farrapos (1835-1845), que ainda provocava o Império, e que foi justamente o escopo da contribuição proposta para aquele exercício de 1843. No mês de dezembro de 1865, tem início a Guerra do Paraguai (1865-1870). Novamente o fator bélico vem a se mostrar determinante nas inovações tributárias, pois com ele vem não só a majoração dos gastos públicos, como também a queda na arrecadação em virtude da isenção concedida aos militares. Durante a fala do trono de 3 de maio de 1866, o próprio Imperador Pedro II confessa aos parlamentares: "O estado de nossas finanças é embaraçoso; para esse objeto chamo principalmente a vossa atenção. Recomendo-vos pois com maior empenho o melhoramento do meio circulante, a firmeza do nosso crédito, e o equilíbrio da despesa com a receita."( Império Brasileiro - Falas do Trono, p. 364)

Em 1867, durante o curso do conflito, o Gabinete de Ministros propôs ao Imperador a nova 'Lei de Despeza Geral' (Lei 1.507/1867), que previa as seguintes disposições:

21 Art. 10: Cobrar-se-ha de cada pessoa nacional ou estrangeira que residir no imperio, e tiver por sua conta casa de habitação arrendada ou própria, ainda que nella não more, um imposto de 3% sobre o rendimento locativo annual não inferior a 480$000 na corte, a 180$000 nas capitaes das Províncias do Rio de Janeiro, S. Paulo, Bahia, Pernambuco, Maranhão e Pará, a 120$000 nas demais cidades e a 60$000 nos mais lugares.

Art. 22. Todas as pessoas, que receberem vencimentos dos cofres publicos geraes, provinciais ou muuicipaes, comprehendidos os pensionistas, jubilados e aposentados, ficão sujeitas ao imposto de 3% sobre os mesmos vencimentos, exceptuados os inferiores a 1:000$000.

Se os funccionarios perceberem porcentagem ou emolumentos, serão estes, segundo as lotações a que se proceder administrativamente, accumulados aos vencimentos para a percepção do imposto. (Manteve-se a grafia original)

Entre outras, a grande diferença entre esta lei e a de 1843 era que a contribuição prevista no artigo 22 tinha caráter permanente. Roque Antonio Carrazza conta um episódio curioso sobre a Lei de 1867: "Já em 1867, durante o Segundo Império, Francisco de Montezuma, o Visconde de Jequitinhonha, conselheiro de D. Pedro II, fazia praça que, embora ninguém gostasse de contribuir com somas de dinheiro para a mantença do Estado, havia boas possibilidades de o IR vingar, pois acreditava que "entre nós há muita gente que antes quer parecer que é rica, do que confessar que é pobre." "(CARRAZZA, Roque Antonio. 2009, pp. 23-24)

No período que vai de 1867 até a queda da monarquia, a carência do Direito Brasileiro de uma legislação tributária organizada e conservada não impediu que diversas normas fossem editadas regularizando tributos diversos ligados a rendimentos. BARBOSA CORREA chama atenção para o Decreto 3.977/1867 (que regulava a Lei 1.507/1867), cujo artigo 5º previa a restituição do excedente tributado nos casos em que o vencimento percebido pelo contribuinte que consistisse apenas em porcentagem e que não excedesse o montante de mil réis, indicando que já existia uma noção de 'retenção na fonte', bem como para o Decreto 5.690/1874, que introduziu um novo regulamento ao imposto de indústrias e profissões (BARBOSA CORREA,. 1994, p. 252)

22 Na última década do Império, o então Ministro da Fazenda Imperial Afonso Celso de Assis Figueiredo, Visconde de Ouro Preto, apresentou à Câmara dos Deputados um projeto que consistia em implementar um imposto sobre a renda, de forma que: Cobrar-se-ão 5% sobre a renda dos contribuintes, que não pagarem o imposto de subsídios, de vencimentos, ou de indústria e profissões. A arrecadação deste imposto terá por base a declaração da renda, feita pelo próprio contribuinte. Somente a renda 400$ para cima está sujeita ao imposto. No caso de recusar-se o contribuinte a fazer a devida declaração, substituirá a esta o cálculo da renda, feito pelos lançadores, que tomarão por base o valor locativo da casa de habitação e outros sinais exteriores de riqueza.

Um projeto moderno, revolucionário e ousado para a época, empregando, pela primeira vez, a palavra renda (e não rendimento); atenta às já citadas inovações britânicas e germânicas da auto-declaração e dos 'sinais exteriores de riqueza'. A proposta, entretanto, foi derrotada no Legislativo. O Conselheiro Lafayete, sucessor de Ouro Preto no Ministério da Fazenda, voltou a tentar estabelecer o imposto de renda no Império, ao fim de 1883. Seu projeto, que também não foi aprovado, foi o primeiro a discriminar a origem da renda para fins de tributação no Brasil: Art. 4º É criado no Império o imposto geral sobre a renda, fundado nas seguintes bases, podendo estabelecer-se diversas classes e subdivisões de taxas: 1º Da renda das terras, fazenda ou antes de todos os imóveis por natureza, cuja taxa deve ser paga pelo proprietário, 2%; 2º Da renda dos mesmos imóveis, pelo seu gozo, taxa paga pelo rendeiro, 1%; 3º Proventos ou lucros industriais, comerciais ou de outra natureza ou proveniência, juros de letras ou depósitos em caixas econômicas, somas dadas por empréstimos a particulares, ações de companhias (dispensadas estas de 1½% do imposto de indústrias), todos os salários ou ganhos, ou todas as percepções pessoais, a título de trabalho, ou indústria, 2%; 4º Pensões, anuidades, dividendos ou rendas sobre títulos de fundos públicos, 2%; 5º Subsídios de membros do poder legislativo, vencimentos de qualquer natureza, percebidos por funcionários e pensionistas do Estado, abolido o atual imposto de 2%, 1%. § 1º São isentas as rendas cujo conjunto for de 600$ para baixo. (NÓBREGA, 2013. pp. 26-27)

23 Não obstante a negatória do Parlamento, é possível perceber que os dois últimos projetos apresentados mostram um amadurecimento do Direito Tributário brasileiro, se comparado aos seus antecedentes da época joanina ou ainda do ínicio do Segundo Reinado. A aplicação e efetivação do imposto de renda no Brasil ficaria a cargo da República, mas muito devendo aos visionários do fim do Império. Durante a primeira década da República, várias foram as tentativas de instituir no Brasil o imposto de renda de maneira perene. Cristóvão Barcelos da Nóbrega cita vários exemplos, a começar por Rui Barbosa, que foi o primeiro Ministro da Fazenda do Brasil República, e que em 1891 elaborou um relatório sobre a situação fiscal do país, no qual já defendia a instituição do imposto. Paralelamente, na Assembleia Constituinte republicana de 1890-1891, discutiu-se a instituição de um 'imposto sobre indústrias e profissões e sobre a renda do capital', de autoria do Senador Muniz Freire, mas que foi aprovada somente em parte, prevalecendo o imposto somente sobre indústras e profissões. (NÓBREGA, 2013, p. 27). Nóbrega cita ainda, tentativas infraconstitucionais de instituição do imposto de renda nos anos de 1896, 1898 e 1904. Todas infrutíferas. Considera-se importante, no entanto, mencionar duas medidas legislativas interessantes para a história da tributação no Brasil: A Lei 2.321/1910, que foi a Lei Orçamentária para o Exercício de 1911; e a Lei 2.919/1914, que foi a Lei Orçamentária para o Exercício de 1915. A primeira norma previu, no seu texto, tributação sobre a renda como fonte de receita ordinária a favor da União. Todavia, na mesma seção 'Impostos sobre a Renda' (artigos 27 a 31), previa impostos sobre o 'consumo de água' e sobre 'casas de sports', mostrando total incongruência com o que realmente deveria figurar como renda2.

2

Disponível em 'http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1910-1919/decreto-2321-30dezembro-1910-586767-publicacaooriginal-110408-pl.html', acesso em 03 mai 2016.

24 A segunda norma, baixada na conjuntura da Primeira Guerra Mundial, associada à crônica crise arrecadatória da República, instituiu a tributação a ser paga 'sobre as quantias que forem effectivamente recebidas em cada mez por quaesquer pessoas (civis ou militares) que percebamvencimentos, ordenados, soldo, diaria, representação, gratificação de qualquer natureza, porcentagens, quotas, pensões graciosas ou de inactividade,

provenientes

de

reforma,

jubilação,

aposentadoria,

disponibilidade, addição, ou qualquer outro titulo pela prestação de serviços pessoaes' (Seção IV, artigo 31 do Decreto), e que, além de estabelecer

uma

tabela

de

alíquotas,

previa

uma

porcentagem

consideravelmente elevada para os vencimentos percebidos pelo Presidente da República, Senadores, Deputados e Ministros de Estado, que seria de 20% (vinte por cento), mas que, curiosamente, seria de apenas 8% (oito por cento) para o Vice-Presidente da República3. As discussões sobre a instituição do imposto de renda no Brasil ficam cada vez mais dinâmicas e frequentes e, a partir da década de 1920, fica cada vez mais claro que a possibilidade da introdução do tributo era iminente. Ainda em 1920, Otávio Rocha, deputado federal, argumentou favoravelmente a um imposto sobre as rendas maiores que 6:000$000, cuja tributação progressiva, de alíquotas variando de 1% (um por cento) a 10% (dez por cento), permitida a dedução de custos familiares ao limite de 5% (cinco por cento) por pessoa. (NÓBREGA, 2013, p. 29). Finalmente, em 1922, a Lei Orçamentária para o Exercício do ano seguinte (Lei 4.625/1922) previa, no seu artigo 31, a instituição de um ‘imposto geral sobre a renda, que será devido, annualmente, por toda a pessoa physica ou juridica,residente no territorio do paiz, e incidirá, em cada caso, sobre o conjunto liquido dos rendimentos de qualquer origem’, introduzindo, de uma vez por todas a tributação moderna sobre a renda no Brasil. 3

Disponível em 'http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1910-1919/lei-2919-31-dezembro-1914574617-publicacaooriginal-97722-pl.html', acesso em 03 mai 2016

25 O artigo da nova lei introduziu os princípios até hoje vigentes de universalidade,

(inciso

I),

generalidade

(inciso

III),

bem

como

estabelecendo um valor mínimo de respeito à renda necessária à sobrevivência (ou, em outras palavras, um máximo de isenção) de seis contos de réis (Inciso II). As rendas anuais abaixo desse valor não seriam taxadas. Naturalmente, aplicar a tributação desse moderno imposto, qual seja, identificar os contribuintes, suas rendas e rendimentos, fiscalizar a correta declaração, coleta e aplicação do tributo e da lei tributária exigia uma burocracia que o Brasil, no momento, carecia. Apesar da previsão legal, o despreparo das instituições, associado a uma inexperiência numa cobrança daquela magnitude provaria ser um desafio, impedindo que a cobrança se desse em 1923, conforme previsto: eram necessárias novas ações no sentido de promover a tributação. Foi por isso que o inciso VII do Artigo 31 da Lei 4.625/1922 dispôs o seguinte: VII- O Poder Executivo providenciará expedindo os precisos regulamentos e instrucções, e executando as medidas necessarias, ao lançamento, por forma que a arrecadação do imposto se torne efectiva em 1924. (Grifamos)

Foi a Lei 4.783/1923, que dispôs sobre o Orçamento para o Exercício de 1924, que satisfez, no campo legal, as exigências da Lei Orçamentária anterior. À época, oscilava-se entre qual dos modelos de tributação sobre a renda se deveria adotar como paradigma. Se os já expostos modelos britânico ou prussiano, com recolhimento na fonte (Reino Unido) ou um modelo rígido, severo, baseado na atuação fiscal investigativa sobre o contribuinte (Prússia), se seria adotado o modelo cedular francês, ou ainda, se haveria inspiração no mais recente imposto de renda da época: o estadunidense,

criado

em

1913

pela

XVI

Emenda

Constitucional.(LEONETTI, 2003, pp. 11-12; NÓBREGA, 2013, p. 33). Nessa conjuntura, sob a batuta de Francisco Tito de Souza Reis, foi proposto e implementado um novo modelo de divisão das rendas, em

26 categóricas e rendimento líquido, que corresponderia ao rendimento total diminuído das eventuais deduções. Segundo o artigo 3º da Lei 4.783/1923, a divisão e classificação das rendas seria a seguinte (Destacou-se também itens que pareçam interessantes à análise, bem como omitiu-se os de menor importância): Art. 3º: O imposto sobre a renda creado pelo art. 31 da Lei nº 4.625, de 31 de dezembro de 1922, recahirá sobre os rendimentos produzidos no paiz e derivados das origens seguintes: 1ª categoria- Comercio e qualquer exploração industrial, exclusive agrícola; 2ª categoria - Capitaes e valores mobiliarios; 3ª categoria - Ordenados públicos e particulares, subsídios, emolumentos, gratificações, bonificações, pensões e remunerações sob qualquer título e forma contractual; 4ª categoria - Exercício de profissões não commerciaes e não comprehendidas em categoria anterior. (...) § 2º Quem pagar rendimento a residentes fóra do paiz, responde pela arrecadação do imposto devido por estes. § 3º O lançamento do imposto far-se-ha de accôrdo com a declaração dos contribuintes, exceptuados os casos previstos em regulamento e observado o seguinte (Omitimos) (...) § 6º As pessoas physicas e jurídicas que pagarem rendimentos produzidos no paiz serão obrigadas a prestar os esclarecimentos solicitados pelos agentes fiscaes quanto às pessoas que os receberem e as importancias pagas. § 7º As declarações dos contribuintes estarão sujeitas á revisão dos agentes fiscaes, que não poderão solicitar a exhibição de livros de contabilidade, documentos de natureza reservada ou esclarecimentos, devassando a vida privada. § 8º As taxas do imposto recahido sobre os rendimentos de cada uma das categorias referidas neste artigo, serão as constantes da seguinte tabela: Até 10:000$, isentos;

Entre 10:000$ e 20:000$, 0,5% (meio por cento); Entre 20:000$ e 30:000$, 1% (um por cento); Entre 30:000$ e 60:000$, 2% (dous por cento); Entre 60:000$ e 100:000$, 3% (tres por cento); Entre 100:000$ e 200:000$, 4% (quatro por cento);

27 Entre 200:000$ e 300:000$, 5% (cinco por cento); Entre 300:000$ e 400:000$, 6% (seis por cento); Entre 400:000$ e 500:000$, 7% (sete por cento); Acima de 500:000$, 8% (oito por cento).

Percebe-se que o piso de isenção subiu de seis contos de réis para dez contos de réis, mas que manteve-se o critério da universalidade, bem como estipulou-se que o contribuinte deveria fazer a declaração anual de sua renda, vedado ao fisco exigir a apresentação de livros fiscais para preservar a intimidade financeira dos contribuintes. Também foi concebido um novo aparato burocrático junto ao Tesouro Nacional, que, conforme já dito, se mostrava indispensável para a coleta da vultosa receita que iria entrar nos cofres públicos. Nos dizeres de Cristóvão Barcelos da Nóbrega: "Não faltavam nesse órgão funcionários zelosos e competentes. Faltava o órgão de que não se podia prescindir para a arrecadação dos impostos pessoais diretos. A estrutura do Tesouro Nacional estava voltada para os tributos indiretos, cuja percepção divergia totalmente da desejada para o imposto de renda. Instituí-lo sem dotá-lo de uma máquina administrativa adequada seria sacrificar o novo tributo e submetê-lo ao risco de desmoralização." (NÓBREGA, Cristóvão Barcelos da, 2013, p. 33)

Para tanto, e tomando a fiscalidade norte-americana como exemplo, foram instituídas as Delegacias Regionais da Receita Federal. Cada Estadomembro da Federação teria uma Delegacia Regional, responsável pelo recolhimento e repasse das receitas do novo imposto, bem como para quaisquer diligências necessárias ao seu bom funcionamento. Junto a cada Delegacia Regional funcionaria um Conselho de Contribuintes, destinado a averiguar e julgar questões de lançamento e outros eventuais litígios que surgissem no bojo da fiscalização. (NÓBREGA, 2013, p. 34). Finalmente, em 1924, o imposto de renda, tão largamente avaliado, pensado e repensado, combatido e protestado, seria de fato posto em prática. Já acompanhado da devida previsão legal, bem como do aparelho

28 burocrático competente, ainda foi promulgado o Decreto nº 16.581, de 4 de setembro de 1924, que apresentou o primeiro regulamento do imposto. Apesar de, naturalmente, já ter sido substituído, NÓBREGA, na sua História do Imposto de Renda no Brasil, laureia esse decreto como o escultor de conceitos basilares para a tradição tributária brasileira, entre os quais desta os conceitos de contribuinte, ano-base, rendimentos tributáveis (e não-tributáveis), deduções, entre outros. A História do Imposto de Renda no Brasil, desde 1924 até a atualidade nem sempre acompanhou as grandes mudanças políticas ou jurídicas da Nação. Depois da Constituição de 1934, que previu a possibilidade da União de decretar impostos de renda e proventos de qualquer natureza, excetuada a renda cedular de imóveis (artigo 6º, I, 'c'), o imposto de renda não foi expressamente previsto em nenhuma constituição brasileira até 1988. Entre 1937 e 1988, era passível de instituição apenas em vias infraconstitucionais. Grandes inovações para o Direito Tributário pátrio viriam com a Emenda Constitucional 18/1965, que renovou a tributação ao impor o critério econômico como recurso de classificação dos impostos. Além disso, foi a primeira medida no nicho constitucional a delimitar e regular as competências tributárias dos entes federativos, até então um tema 'esquecido' pelas constituições brasileiras. A década de 1960, apesar de negra para a História do Brasil em virtude da instalação do regime ditatorial militar que assombraria até 1985, foi de grandes progressos para o Direito Tributário. Além da supra-citada emenda, não se pode deixar de destacar a Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966 - O Código Tributário Nacional - que foi a primeira codificação tributária da História do país, na qual o imposto de renda está regulado nos artigos 43 a 45. A Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional 1/1969 em nada de relevante alteraram o preconizado pela Emenda Constitucional 18/1965.

29 Nos tempos da redemocratização, é mister destacar a regulação dada pela Constituição Cidadã à matéria do imposto de renda, de competência privativa da União, previsto no Inciso III do artigo 153, quando o inciso I do parágrafo terceiro do mesmo artigo já destaca que o referido imposto 'será informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade, na forma da lei'. O inciso II do parágrafo, entretanto, que preconizava que o imposto 'não incidirá, nos termos e limites fixados em lei, sobre rendimentos provenientes de aposentadoria e pensão, pagos pela previdência social da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a pessoa com idade superior a sessenta e cinco anos, cuja renda total seja constituída, exclusivamente, de rendimentos do trabalho.' foi revogado pela Emenda Constitucional 20/1998. Na seara infraconstitucional, uma mudança que se considera importante destacar é a Lei 7.713, de 22 de dezembro de 1988, que extinguiu a modalidade cedular de classificação dos rendimentos (apesar de algumas características suas ainda subsistirem hoje em dia) e introduziu o Sistema Global de Apuração, junto ao sistema em bases correntes, de apuração mensal da renda e retenção na fonte, por vezes também chamado de 'Pay as You earn system'. Uma breve análise global da História da tributação sobre a Renda

O objetivo de transcrever aqui a História da tributação sobre a renda na Inglaterra, nas terras germânicas e no Brasil consiste em demonstrar o imposto de renda moderno não só como fruto do Direito (ou de promover lições de História do Direito Tributário), mas antes como fruto da História em si. Conforme afirmado no início desta monografia, tomar-se-á muito cuidado para não fugir nem do tema proposto, nem da seara científica do Direito. Todavia, considera-se que tudo o que foi exposto até aqui, acrescido das considerações que serão feitas agora, terão peso em partes posteriores do presente trabalho e serão elementares para a sua conclusão.

30 Com isso, concorda-se com Barbosa Correa quando diz que se deve 'exigir do estudioso do direito tributário a visão voltada, com igual interesse, para o direito, para o econômico, para a História e até para a antropologia' (BARBOSA CORREA, 1994, p. 249). É desnecessário provar que o Estado, enquanto ente políticoeconômico, independente do momento histórico, na guerra ou na paz, sempre dependeu de recursos.Se atendermos para a 'teoria da continuidade do Estado' exposta por Bobbio (segundo a qual a entidade política 'Estado' não é exclusiva da modernidade); (BOBBIO, 2011, p. 70), verificamos que para atingir esses recursos, o Estado Antigo não conseguia conceber um sistema fiscal racional, perene e bem estruturado como o Estado moderno. A solução era vislumbrar os espólios de guerra como fonte primária de receitas. (DANIEL, 2014, p. 25). Todos os grandes impérios bélicos da Antiguidade se sustentaram assim, e a maior expoente dessa ideologia foi sem dúvida a política expansionista da Roma Imperial. Apesar de DANIEL expor que o Império Romano já concebia a separação das reservas pessoais do Imperador das finanças públicas do Império, bem como de um aparato destinado à coleta e custódia de das reservas imperiais (que teria, inclusive, originado as palavras 'fiscus' e 'aerarium') (DANIEL, 2014, p. 46), e NABAIS se referir ao Império Romano como 'um bom estado fiscal' (NABAIS, 2010, p. 115), pretendemos, neste trabalho, utilizar o termo Estado Fiscal para referir-se exclusivamente ao Estado Moderno, racional, pós-século XVIII, de ideologia liberal-burguesa ou social, ao qual chamaremos de Estado Fiscal propriamente dito, pelos motivos que serão expostos adiante. Esclareça-se, desde já, que o termo 'Estado Fiscal' (em alemão, 'Steuerstaat') foi cunhado e conceituado em 1885 por Lorenz von Stein4. José Casalta Nabais define Estado Fiscal como 'O Estado cujas necessidades financeiras são essencialmente cobertas por impostos' 4

Em seu livro Lehrbruch der Finanzwissenschaft (1885)

31 (NABAIS, 2015, p. 192). Importante ressaltar, entretanto, que o vocábulo 'impostos' utilizado pelo autor tem o sentido lato de 'transferências (de propriedade) da economia (privada) para o Estado' (Idem), e não no sentido estrito de prestação tributária desvinculada da atuação estatal. Conforme dito, da Antiguidade à Idade Média, a fonte primária de obtenção de recursos pelos entes políticos era, justamente, o butim, o espólio. O 'tributo', à época, era uma prestação pecuniária exigida coercitivamente por um poder sobre outro, ou como prova de fidelidade, ou com o fito de evitar hostilidades. A partir do Século XVI e o início da Idade Moderna, a Europa verifica a transmutação da sua fragmentação política em Estados Nacionais Modernos, a ascensão das grandes monarquias absolutas e a abertura do Mundo para os recursos e culturas africanos, asiáticos e americanos. Nessa época, o Antigo Regime teve seu auge. Tinha como faceta política o absolutismo monárquico e a centralização do poder e, como faceta econômica, o 'Estado Patrimonialista', compreendido aqui aquele 'no qual o Estado, ou melhor, a Coroa, era titular de um conjunto significativo de rendimentos provenientes do seu património e direitos realengos' (NABAIS, 2010, p. 116). Era um Estado motivado pela pessoalidade, pelos privilégios, pela centralização e intervenção econômica. A Sociedade, dividida em classes ou 'estados' (estamentos) entre os quais a mobilidade social era impossível, uma vez que determinada pelo nascimento, compreendia uma tributação basicamente incidente sobre o patrimônio, posto que este era visto como o verdadeiro sinal de riqueza. Basta lembrar do já mencionado caso inglês dos 'Expenditure Taxes', ou ainda o imposto 'de classes' prussiano de 1820: ambos vislumbravam o patrimônio e seu uso como 'aspectos externos da riqueza'. Além disso, sob a vigência do Antigo

32 Regime, prevaleciam os privilégios fiscais detidos pela nobreza e pelo clero, que por isso eram imunes a muitas das tributações vigentes5. No período que vai da segunda metade do Século XVIII à primeira metade do Século XIX, época referida pelo historiador britânico Eric Hobsbawm como 'A Era das Revoluções'6, o mundo experimentou duas revoluções importantíssimas: a Revolução Industrial e a Revolução Francesa. A primeira, oriunda da Grã-Bretanha, modificou totalmente a concepção econômica de produção, aplicando os princípios do Liberalismo Econômico e inaugurando o Capitalismo, que tem por princípios a livre iniciativa, a propriedade privada, o trabalho e a perseguição do lucro. A Revolução Francesa destronou o Absolutismo Bourbônico, impôs uma República Constitucional moderna e expandiu seus ideais pela Europa como uma peste, principalmente durante as revoluções liberais de 1848. Pelo modelo revolucionário burguês francês, o Estado deveria ser mínimo, no sentido de respeitar as liberdades e direitos individuais. Se o Antigo Regime era marcado pela pessoalidade, vontade e patrimonialismo, o novo Estado de Direito era pautado pelo Império da Lei, pela impessoalidade, racionalidade, moralidade pública, a eficiência e a separação entre o público e o privado. Pierre Bourdieu é poético ao se referir à transição dos regimes: 'O princípio dinástico foi substituído pelo princípio jurídico da forma mais brutal, mais decisiva: eles7 o guilhotinaram...' (BOURDIEU, 2015, p. 450). Essas revoluções provocaram não só mudanças, mas também desafios ao Direito Tributário: Primeiro, era necessário que o tributo, o 5

Em muitos países europeus à época do Antigo Regime era comum os estamentos estarem divididos entre três 'estados': o primeiro estado, que englobava o Clero; o segundo estado, que compreendia a nobreza e o Pariato; por fim, o terceiro estado, que reunia todos os outros segmentos sociais. Pela lógica da época, como o primeiro e o segundo estados protegiam o reino contra os perigos deste mundo e do 'outro' (os nobres lutavam; os clérigos, oravam), parecia injusto onerá-los com maiores encargos, devendo a tributação recair e ser suportada somente pelo terceiro estado. 6 O termo utilizado é título de uma obra do mencionado historiador, com edição brasileira pela Editora Paz e Terra. 7 Bourdieu está se referindo aos magistrados, o que quer dizer, à classe jurídica revolucionária.

33 fisco e as finanças públicas se adequassem ao novo modelo político do Estado Liberal. Segundo, pelo princípio da gravitação da riqueza inerente à tributação, o tributo deveria orbitar em torno da maior expressão de riqueza. O tempo de tributação majoritariamente incidente sobre o patrimônio (riqueza estática) ficara para trás. Se na era do capitalismo a riqueza era fruto da junção de 'trabalho e capital', nada mais inteligente do que desviar a mira do alvo para a renda (riqueza dinâmica) proveniente desse casamento. Nos dizeres de Seligman, em seu clássico Essays on Taxation: "Com a crescente diversificação da sociedade, os poderes de produção das próprias várias classes se diferenciam. Mais do que isso, existem agora muitas formas de riqueza, que são derivadas não da propriedade, mas do trabalho. E uma vez que é difícil quantificar o trabalho, é o produto do trabalho que agora ganha importância." (SELIGMAN, 1895, pp. 16-17)8

Desta forma, com o surgimento do Liberalismo e o novo modo de produção capitalista, a renda, compreendida aqui, em conceito largo, como produto do trabalho ou do capital, passa a figurar como o maior expoente de riqueza. Seguindo a lógica liberal, a associação política, cuja lei deve ser a expressão da vontade geral,tem por finalidade assegurar os direitos do Homem, cuja garantia necessita de uma força pública para sua defesa, e cujos gastos com mantença e administração da coisa pública devem ser custeados pela coletividade de cidadãos9, a administração tributária deve recolher o mínimo exigível e passível de ser exigido de cada cidadão para custear o Estado, sem perturbar a privacidade do indivíduo, de maneira impessoal e eficiente. Surge o Estado Fiscal propriamente dito. O século XIX conheceu a expansão do Liberalismo na Europa, de forma mais feliz em alguns países do que em outros, em função das 8

Em tradução livre. No original: "With the growing differentiation of society, the productive powers of the various classes themselves differ. Moreover, there are now many forms of earnings which are derived not from property, but from industry. And since it is difficult to capitalize industry, it is the product of the industry which now becomes of importance." 9 Respectivamente artigos 6º, 2º, 12º e 13º da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789).

34 Revoluções Liberais de 184810 e os anos que se seguiram. Esses eventos consolidaram paulatinamente o capitalismo no continente. Contudo, as inovações advindas da nova era desencadearam novos desafios, principalmente na área social. O capitalismo gerou uma onda de prosperidade que, apesar de sem precedentes na história econômica da humanidade, foi acompanhada por um crescimento assustador da desigualdade de renda e da exclusão social, dando azo à diversas reclamações e movimentos sociais. A guerra tácita entre empresários e proletários serviu como causa para diversas críticas ao sistema capitalista, bem como à ideologia liberal. As massas trabalhadoras, produtoras da riqueza, ficavam excluídas da participação desta. Em adição, inexistia àquele tempo legislação trabalhista, previdenciária e seu rol de direitos protetivos básicos aos trabalhadores. A tensão prosseguiu e avançou até o início do Século XX, quando o Estado se viu obrigado a deixar de ser mero observador não-interventor da esfera socioeconômica e agir como ente garantidor dos direitos mínimos do excluídos pelo Capital. Era o nascimento do Estado Social, preocupado com as carências e necessidades dos seus cidadãos. Se o Estado Liberal se apresentou como Estado de Direito, o Estado Social se apresentou como Estado Democrático, no sentido substancial do termo Democracia11. Foi um agente provedor de igualdade pela mitigação das desigualdades e preocupado com a eficiência da economia. Em 1932, o economista sueco Karl Gunnar Myrdal (1898-1987)12 foi um dos primeiros idealizadores do Estado de Bem-Estar Social (inglês: Welfare State.), ao 10

Entre as grandes mudanças que ocorreram no período, destacam-se a bem sucedida Revolta dos parisienses que derrubou o rei Luís Filipe de França, o 'Rei Burguês' e inaugurou a Segunda República Francesa. Manifestações semelhantes, importantes apesar de malogradas, ocorreram no mesmo ano na Áustria e na Prússia. Nesse sentido, confira-se 'Lembranças de 1848 - As jornadas revolucionárias em Paris', de Alexis de Tocqueville, bem como o capítulo 4 da obra 'Soberania e Constituição - Para uma crítica do Constitucionalismo', de Gilberto Bercovici. 11 O termo 'Democracia Substancial' é usado por Bobbio para significar o 'governo para o Povo', quando não necessariamente é feito pelo Povo. Ao 'governo do Povo', Bobbio chamou de 'Democracia Formal' .Confira-se, nesse sentido, Norberto Bobbio, 'Liberalismo e Democracia', capítulo 7. 12 A obra principal de Gunnar Myrdal, 'Aspectos Políticos da Teoria Econômica', de 1930, possui uma edição brasileira de 1969, pela Editora Zahar.

35 advogar que as novas políticas sociais, ao contrário das políticas de combate à pobreza anteriores, deveriam ser vistas como investimentos, e não como custos, uma vez que ao se proceder com o bem-estar básico da população, se evitariam ônus no futuro. Já no pós-guerras, o Estado Social evolui para um Estado Democrático de Direito, ou aquilo que Paulo Bonavides chamou de 'Estado Social propriamente dito', definindo-o como 'o mais adequado a concretizar a universalidade dos valores abstratos das Declarações de Direitos fundamentais', e concluindo ser este: "Um Estado, pois, para debelar as crises e recessões da ordem capitalista, sem fechamento, porém, do sistema político, que permanecia pluralista e aberto. Um Estado, certamente, de economia de mercado, embora debaixo de alguma tutela ou dirigismo , que pouco ou nada lhe afetava as estruturas, posto que interditasse determinados espaços da ordem econômica, subtraídos ao livre jogo das forças produtivas."(BONAVIDES, Paulo, 2013, p. 33)

O papel do Estado Fiscal propriamente dito na nova conjuntura jurídica-política do Estado Social Democrático de Direito seria justamente mobilizar a arrecadação fiscal mirando a parcela de riqueza principal (a renda), para que, respeitados os limites contributivos individuais, se procedesse com a tributação eficaz, e os recursos obtidos fossem utilizados nos custeios da finalidade do Estado, qual seja, a promoção do bem comum13. No entanto, nos últimos vinte anos, tem-se observado uma mudança na tributação mundial (e brasileira), associada, principalmente, à onda neoliberal das décadas de 1980 e 1990, que diminuiu, consideravelmente, a tributação sobre a renda das pessoas jurídicas, ao passo que, no caso brasileiro, reduziu as alíquotas do imposto de renda de pessoas físicas e intensificou a tributação sobre o consumo. Essas mudanças oneram a parcela mais pobre da população bem como a classe média, enquanto as 13

Nesse sentido, recomenda-se a leitura de um dos textos de José Casalta Nabais citados no presente trabalho, a saber 'Reflexões sobre quem paga a conta do Estado Social'. (Consultar Bibliografia)

36 parcelas controladoras das grandes riquezas são brindadas pelas baixas alíquotas. Essas situações serão todas avaliadas, e todo o discurso histórico demonstrado até aqui não será de pouca importância para as considerações finais.

37

Capítulo II - O(s)Conceito(s) de Renda e o Direito Tributário Brasileiro. No Direito Tributário Brasileiro, a renda, seja ela de pessoa natural ou jurídica, é tributada de diversas maneiras. Cita-se, como exemplos, para além do imposto de renda (IR), a Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (COFINS), Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/PASEP), a Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL), estas incidentes sobre faturamento e lucro, bem como os tributos incidentes sobre o consumo e sobre o patrimônio que, em alguns casos, apesar de incidentes sobre esses fatores, são suportados pela renda. Neste trabalho, atentaremos principalmente para o IR e a tributação sobre o consumo. A primeira grande questão a ser enfrentada envolvendo a noção de renda é a distinção entre o conceito econômico de renda e o conceito jurídico de renda, mormente o adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro. As ciências econômicas costumam definir renda como acréscimo patrimonial, incremento de capacidade aquisitiva, ou até mesmo como a som, em um determinado período de tempo, entre aquilo que foi consumido e aquilo que foi poupado. Quando a Constituição Brasileira, em seu artigo 153, III14, atribuiu à União Federal a competência para instituir o imposto de renda, a boa hermenêutica constitucional exige que a interpretação jurídica de 'renda e proventos de qualquer natureza' não pode estar desassociada dos conceitos de renda providos pelas ciências econômicas. Em outras palavras, o conceito jurídico de renda, para fins de tributação, deve ter correlação

14

Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: III - renda e proventos de qualquer natureza;

38 científica com o conceito econômico de renda, ou com um dos conceitos economicamente determináveis sobre o que poderia vir a ser renda. Tanto Alcides Jorge Costa como Carlos Araújo Leonetti identificam diversas correntes que forneceram conceitos interessantes sobre a renda. Costa, citando Walter Ryser, diz que a renda pode ser analisada sob três óticas: produção, repartição e consumo. (COSTA, 1994, p. 20). Do ponto de vista da renda como repartição, a renda 'constitui o produto da atividade da empresa distribuído aos diversos agentes da produção'. Quanto ao consumo; a renda consistiria na soma daquilo que foi consumido àquilo que foi poupado, desde que a poupança não fosse tributada de outra forma. É no quesito produção, contudo, que se encontra a maior riqueza teórica sobre a renda. Nesse sentido, os dois autores citados introduzem a teoria da fonte e a teoria do acréscimo patrimonial. A teoria da fonte entende que renda é o fruto da produção laboral/industrial humana que possa ser percebido periodicamente em uma fonte renovável de riqueza. Para compreendê-la, é necessário levar em consideração a distinção entre renda e capital, entendendo este como a parte do patrimônio do indivíduo que produz riqueza nova, regular e periódica sem a sua destruição. Ou seja, é toda aquela parcela de riqueza da qual o indivíduo pode dispor sem prejudicar o seu patrimônio. Em outras palavras, como bem colocou LEONETTI, 'segundo essa teoria, nem todo acréscimo patrimonial seria renda, mas apenas se fosse, ao menos em tese, renovável periodicamente' (LEONETTI, 2003, p. 20). Em oposição à teoria da fonte, a teoria do acréscimo patrimonial entende que renda consiste na variação patrimonial do indivíduo entre dois períodos distintos, desconsiderando a origem da nova riqueza. Não importaria, nesse caso, se a fonte da riqueza fosse renovável, regular ou periódica; o que importa é se restou verificado um aumento do poder econômico individual, seja pelo incremento de ativos, seja pelo crescimento líquido do patrimônio. Por isso, para essa teoria, os ganhos de capital, aqui

39 compreendidos como a receita percebida pela venda de um bem ou ativo, deve ser tributada. Para a teoria da fonte isso é inconcebível, posto que, apesar de se traduzir em um fluxo monetário, não consiste em riqueza nova. Da mesma maneira, doações, heranças e legados deveriam ser tributados pela teoria do acréscimo patrimonial, uma vez que integram definitivamente o patrimônio do beneficiado. É curioso notar o modo como essas teorias influenciaram não só a tributação e a economia, mas também a gramática. As palavras utilizadas para significar 'renda' nas línguas inglesa e alemã são 'income' e 'einkommen', respectivamente, ao passo que os franceses usam a palavra 'revenu' para representá-la.15 No século XX, dois economistas norte-americanos, Robert M. Haig e Henry C. Simons produziram conceitos de renda que foram considerados basilares para a compreensão do fenômeno. O primeiro, disse em 1921 que renda era 'o valor monetário do aumento líquido do poder econômico de um indivíduo em dois momentos'; O segundo, em 1938, definiu renda pessoal como 'a soma algébrica do valor de mercado do consumo e da variação do patrimônio entre o início e o final do período em questão". Da junção dos dois conceitos, surgiu o chamado Critério Haig-Simons, que predicava: "renda é o valor monetário de aumento líquido do poder de consumo de um indivíduo durante um determinado período. É igual ao montante efetivamente consumido durante o período somado aos acréscimos patrimoniais líquidos". (LEONETTI, 2003, p. 22).16

O critério Haig-Simons é interessante, pois, além de nitidamente identificar renda como acréscimo patrimonial independente de fonte estável 15

A palavra 'income' tem sua formação morfológica pela junção 'in + come', significando 'aquilo que entra', ou 'aquilo que vem de fora' e indicando a ideia de uma riqueza nova e independente que se agrega à capacidade econômica do indivíduo. O mesmo sentido tem 'einkommen' ('ein + kommen'). Já 'renevu' tem origem latina na construção verbal revenir, que significa 're vir', ou 'vir novamente', 'retornar', etc., indicando a ideia de estabilidade e previsibilidade. 16 A tradução que apostamos aqui foi feita pelo próprio Professor Leonetti em seu livro, em referência à ROSEN, Harvey S. Public Finance. 4 ed. New York, NY: Irwin/McGraw-Hill, 1995, p. 360-1. A citação no inglês original era: "Income is the money value of the net increase to an individual's power to consume during a period. This is equal to the amount actually consumed during the period plus net additions to wealth".

40 e renovável, previu a importância da dedutibilidade das despesas incorridas na obtenção do referido acréscimo. Ao mesmo tempo, deu sustento à ideia de que o consumo nada mais é do que o uso da renda. Esse 'consumo' deve ser entendido de maneira ampla, naturalmente, compreendendo desde compras contingentes no varejo até a aquisição de uma residência. Em outras palavras, a renda só teria duas destinações: ou seria despendida no consumo, ou seria poupada. Por outro lado, cumpre lembrar que, por esse critério, se a renda deve ser acréscimo patrimonial, sendo passível de dedução para fins tributários os dispêndios feitos para sua manutenção, seria incabível a tributação de qualquer entrada patrimonial sob título de reconstrução de patrimônio perdido ou lesado. Esses são os motivos que levaram a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a declarar a não incidência de imposto de renda sobre fluxos monetários a título de indenização por dano material17. Outra questão importante é a envolvendo renda como aquisição de disponibilidade econômica ou disponibilidade jurídica. Sobre essa divisão, Rubens Gomes de Souza, que em 1957 colaborou com a elaboração do anteprojeto do Código Tributário Nacional, distinguiu a realização da separação do rendimento. Segundo o autor, a realização seria a 'verificação, efetiva ou potencial, de um acréscimo patrimonial'; a separação

seria

'a

possibilidade

de

se

dispor

dêsse

acréscimo

independentemente e separadamente do capital que o produziu'. Ao tratar da diferença entre a disponibilidade econômica da disponibilidade jurídica, SOUZA, quanto à primeira, diz que guarda relação com a realização da renda, e que consiste na obtenção real de riqueza nova. 17

Nesse sentido, confira-se o REsp 1.152.764-CE (2009/0150409-1), de relatoria do então Ministro Luiz Fux. Julgado em23/06/2010. Quanto à não-incidência de Imposto de Renda sobre indenização a danos materiais sofridos, o STJ editou a Súmula 498: Súmula 498: não incide imposto de renda sobre a indenização por danos morais.

41 Quanto à segunda, o autor aponta que está relacionada à separação da renda, e significa a possibilidade do indivíduo de, ainda que não tenha percebido o fluxo monetário, seja detentor ou titular legal de um futuro ou possível fluxo monetário, e que o futuro rendimento possa ser identificado e separado para fins tributários. Diz o autor: "Do ponto de vista estritamente fiscal, cabe, com efeito, distinguir entre a realização, traduzida pela disponibilidade econômica de uma riqueza, e a separação, traduzida pela sua disponibilidade jurídica. Pela constatação de que o impôsto visa o resultado dos atos ou fatos jurídicos independentemente da sua natureza formal, conclui-se, necessariamente, que o fato gerador do impôsto de renda é a aquisição da disponibilidade econômica de uma riqueza. Já o título de que decorre a sua disponibilidade jurídica apenas desempenha, na definição de incidência, um papel ulterior e complementar, o de permitir a discriminação dos rendimentos para sua classificação por cédulas".(Negritos no original);(SOUZA, 1970, p. 344-345)

No mesmo estudo, Rubens Gomes de Souza usa o exemplo dos rendimentos advindos de um título jurídico sob condição resolutiva. Nesse caso, apesar da condição, aquele que perceber os rendimentos adquiriu disponibilidade econômica e por isso sujeita-se à tributação sobre a renda, apesar de ainda não ser o titular jurídico pleno. Já LEONETTI usa como exemplo de distinção entre as duas disponibilidades o exemplo de uma Sociedade Anônima que, em decorrência do aumento do capital social, distribui ações gratuitas entre seus acionistas, e questiona se a tributação sobre a renda deveria incidir imediatamente após a distribuição das ações (quando ocorreria uma dilação da disponibilidade jurídica do indivíduo), ou se só deveria ser levada a cabo caso o acionista vendesse as ações ganhas, obtendo renda com o fluxo monetário da venda e, portanto, incrementando sua disponibilidade econômica. (LEONETTI, 2003, p. 28-29). Por fim, importante considerar a redação dada ao artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN):

42 Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica: I - de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos; II - de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.

Pela leitura do artigo, percebe-se que o legislador, para fins do imposto de renda, contemplou ambas as possibilidades de obtenção de disponibilidade. Consoante a leitura do caput, tanto a aquisição de disponibilidade econômica quanto a de disponibilidade jurídica constituem fato gerador do imposto de renda. Seguindo a linha de raciocínio, também é possível identificar nos incisos I e II as teorias da renda enquanto produção (teoria da fonte, no inciso I e teoria do acréscimo patrimonial no inciso II) ao predicar que renda é tanto o produto do capital, quanto do trabalho, como qualquer outra forma de obtenção ou alargamento de poder econômico ou extensão patrimonial não oriunda do trabalho ou do capital. É claro que essa regra não é absoluta. Considerando-se, por exemplo, o caso de uma doação, uma transmissão de bens (móveis ou imóveis) e direitos inter vivos, ou ainda mortis causa, é evidente que, apesar de constituírem renda segundo a teoria do acréscimo patrimonial (pois seriam 'proventos de qualquer natureza'), esses fatos jurídicos possuem seu próprio regime de tributos. Incidiria o ITBI ou o ITCMD conforme o caso. Se o IR incidisse também, haveria a hipótese de bitributação, uma vez que entes federativos distintos tributariam sobre o mesmo fato gerador18. Vários outros tributaristas ilustres apresentaram seus conceitos de renda. Leandro Paulsen afirma que a renda 'é o acréscimo patrimonial

18

Alcides Gomes da Costa não concorda com essa posição. Para o autor, o legislador constitucional não vedou a criação ou cobrança de dois impostos diferentes incidentes sobre a mesma matéria. Contudo, o autor confessa que, apesar do silêncio do constituinte, tal prática seria um agravante econômico considerável, e por isso, desaconselhável. (COSTA, 1994, p. 29)

43 produto do capital ou do trabalho.' enquanto que proventos 'são os acréscimos patrimoniais de uma atividade que já cessou'. (PAULSEN; MELO, 2015, p. 56) e vai adiante ao dizer: "A renda e os proventos sujeitos à tributação são o que é acrescido ao patrimônio, o que entra de novo, sem correspondência no passivo, o lucro ou resultado gerado pelo capital, pelo trabalho ou proveniente de outra fonte. Não se trata de uma grandeza bruta, mas líquida, que pressupõe, quando for o caso, obtenção." (PAULSEN; MELO, 2015, p. 58)

Roque Antonio Carrazza alerta, contudo, que acréscimo patrimonial não se confunde com patrimônio, e que o IR não pode ser confundido como um imposto que onera o patrimônio. Nesse sentido, o ilustre mestre ensina que: "Anote-se que "patrimônio", na esteira do art. 91 do CC, é a universalidade jurídica (universitas iuris) de direitos e obrigações da pessoa, com valor econômico. Pois bem, o imposto sobre a renda não nasce in concreto do fato "possuir patrimônio", mas da circunstância de haver em favor do contribuinte, dentro do período de apuração, acréscimo patrimonial, isto é, mais direitos que obrigações". (CARRAZZA, 2009, P. 41);(Itálicos no original)

Isso reforça a ideia de que o imposto de renda, de maneira alguma, poderia ser classificado como tributo incidente sobre o patrimônio, dado que este e renda não se confundem. Entretanto, é possível que determinadas formas de tributação sobre o patrimônio sejam, na realidade, suportadas pela renda, conforme se demonstrará adiante.

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Capítulo III - Princípios Jurídicos aplicáveis ao Imposto de Renda A Supremacia Constitucional

A Constituição Federal da República Brasileira constitui norma fundamental do Estado Brasileiro e do Ordenamento Jurídico pátrio. Como norma máxima do Direito Brasileiro, todo o ordenamento lhe deve observar e estar em harmonia e consonância com ela. A vigente carta constitucional foi promulgada e solenemente proclamada em 05 de outubro de 1988, encerrando, no campo institucionaljurídico, o período negro de terrorismo estatal promovido pelo Regime Militar. Sua base ideológica é o respeito à democracia, à legalidade e à afirmação histórica dos Direitos Humanos. Porém, no campo fático, a Nova Constituição Brasileira foi documento atestador da assustadora diferença socioeconômica imperante no Brasil: o abismo discrepante entre ricos e pobres, a exclusão social dos miseráveis a serviços básicos como a alimentação, a saúde e os direitos e carências básicos19. Nesse sentido, a Constituição afirmou um novo conceito de Cidadania, e um novo ideal de República, que lhe valeu a alcunha de 'Constituição Cidadã'. Apresentou o Estado Brasileiro como dotado de objetivos humanísticos, filantrópicos, humanos e pacifistas20. Em suma, a atual Carta Magna é o que o ilustre mestre lusitano J. J. Gomes Canotilho chamou de Constituição Dirigente, compreendida aqui aquela que dirige a coisa pública no sentido de saciar as carestias dos cidadãos e é, portanto, instrumento fundamental de mudança social, política e econômica. 19

Quando da promulgação solene da Constituição, cumpre lembrar a fala de Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte: "Num país de trinta milhões quatrocentos e um mil analfabetos, afrontosos vinte e cinco por cento da população, cabe advertir: a Cidadania começa com o alfabeto". 20 O preâmbulo da Carta Magna afirma que os "representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, [...]e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil"

45 Seguindo esse raciocínio, reproduzimos o artigo primeiro da Constituição Cidadã: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Da leitura atenta do referido dispositivo, desprende-se que o Estado Brasileiro i) é uma República; ii) é Republicano. Ambos os termos, apesar da semelhança, não são sinônimos. República compreende a forma de governo na qual o Chefe de Estado e o Chefe de Governo são cidadãos eleitos, direta ou indiretamente pelo conjunto de cidadãos eleitores, para um mandato político de tempo certo e com responsabilidade política perante a nação21. O Princípio Republicano, ou ainda Republicanismo, implícito à ordem constitucional de 1988 e, in casu, extraído do inciso II do referido artigo, se define pela ausência de privilégios de qualquer espécie, para qualquer segmento ou grupo social, seja na esfera dos direitos civis, políticos ou sociais. Este conceito tem fundamental aplicação na seara tributária ao declarar que o tratamento fiscal deve ser igual à todos, só sendo lícita a concessão de imunidade ou isenção àqueles que, por razões

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Dalmo de Abreu Dallari traduz como características da forma republicana de governo a temporariedade, a eletividade e a responsabilidade. (Dallari, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 32ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2013. 306 p. - A página em questão é a 227). Roque Antonio Carrazza, em seu célebre Curso de Direito Constitucional Tributário, define República como sendo: "o tipo de governo, fundado na igualdade formal das pessoas, em que os detentores do poder político exercem-no em caráter eletivo, representativo (de regra), transitório e com responsabilidade". (CARRAZZA, 2015, P. 72)

46 especiais em virtude da sua própria qualidade, sejam ou merecedores ou necessitados da referida proteção22. Desenrolando-se o texto constitucional, o artigo 3º elenca os objetivos da República Federativa do Brasil: Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Somando a prédica do artigo 1º ao 3º, percebe-se que o Brasil é um Estado Democrático de Direito, republicano, que possui valores fundamentais e persegue objetivos específicos. Como é aceito pela doutrina, inexiste hierarquia entre as normas constitucionais enquanto professoras de normas. Contudo, para fins de interpretação da Constituição (e do próprio ordenamento jurídico), é evidente que certas disposições possuem maior ou menor peso. Dessa forma, por estarem inseridos no corpo constitucional, que, conforme se explicou, é supremo, e pela sua própria natureza de valoração, esses princípios devem guiar o estudo e a aplicação de todo o Direito Brasileiro. A Constituição Tributária A Constituição Federal disciplina a tributação e o orçamento no artigo 145 e seguintes. Lá são feitas as distinções entre as espécies tributárias e a repartição das competências federativas tributárias.

22

Por merecedores, podemos exemplificar o caso da imunidade dos templos e cultos religiosos, prevista no artigo 150, VI, 'b', CRFB, posto que, em decorrência do princípio do Estado Laico, não se deve tributar as liturgias, sob pena de onerá-las. Como exemplo de necessidade, cite-se a isenção do IRPF concedida aos que não obtêm renda o suficiente para tributação, por respeito à sua condição econômica.

47 Para o presente estudo, é de relevante interesse o artigo 150, que dispõe sobre a limitações constitucionais ao poder de tributar23. Diz o artigo: Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça; II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos; [...]

O primeiro inciso estabelece o princípio da legalidade tributária. Associado ao artigo 5º, II24, da Constituição, é desdobramento do ideal republicano. Por esta regra, é vedado ao Estado a instituição ou agravo de uma cobrança sem que seja por meio de Lei. Desta maneira, devem ser respeitadas as disposições constitucionais quanto ao processo legislativo, observar os requisitos e limitações materiais e formais da Constituição. Cumprir, em suma, aquilo que Goffredo Telles Júnior chamou de senso grave da ordem25. O inciso II estabelece o princípio da isonomia tributária. Este princípio possui ligação umbilical com o princípio do republicanismo, e predica a vedação ao estabelecimento de tratamento diferenciado a contribuintes que estejam em situação contributiva equivalente. Conforme se afirmou acima, a República não tolera privilégios, e uma das marcas do 23

Foi justamente considerando a importância das limitações ao poder de tributar que o Chief Justice John Marshall proferiu sua célebre frase “O poder de tributar envolve o poder de destruir” (in McCulloch v. Maryland)

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Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; 25 O senso grave da ordem opõe-se ao senso leviano da ordem, e consiste na condução da coisa pública com responsabilidade, respeito às instituições democráticas e republicanas, à cidadania e ao Estado Democrático de Direito. A expressão foi cunhada por Goffredo Telles Júnior quando da leitura do documento histórico da Carta aos Brasileiros, em 11 de agosto de 1977, na luta pela abertura política durante a Ditadura Militar.

48 Antigo Regime era justamente a concessão de regalias em função de nascimento ou classe social. Tais benesses não têm lugar na presente ordem constitucional. O que é importante ressaltar é a necessidade da interpretação desse dispositivo em consonância com o parágrafo primeiro do artigo 145 da Constituição26, que prescreve a necessidade de avaliação da situação fiscal do contribuinte na hora de tributá-lo. A união das duas regras constitucionais é de natureza complementar, e parece dizer: se é vedado tributar de forma desigual os que estão em situação equivalente, a diversidade do quantum tributado deve ter como pedra angular de cálculo a situação financeira e econômica do pagador. Apesar do artigo falar em capacidade econômica, entendemos que o correto seria ler capacidade contributiva, uma vez que pode ocorrer de dois contribuintes terem a mesma capacidade econômica (por exemplo: ambos recebem a mesma faixa salarial, moram no mesmo bairro, têm o mesmo número de dependentes, etc.), mas possuem capacidades contributivas diversas (suponha que um dos contribuintes tenha um dependente que carece de cuidados médicos específicos, cujos custos sejam exorbitantes). No exemplo dado, é evidente que ambos os contribuintes possuem, em tese, o mesmo poder econômico. Porém os dispêndios a que um dos contribuintes tem que atender mostra que este consome parte de sua renda com gastos que certamente preferiria não ter, podendo até mesmo dizer que são gastos compulsórios pela sua própria natureza. O que se pretendeu mostrar é que os dois contribuintes gozam da mesma capacidade econômica, mas não se pode dizer que estão no mesmo patamar tributável.

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Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos: § 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

49 Além disso, ressalte-se que, se a Constituição de 1988 instituiu no seu artigo 3º, inciso III27, a erradicação da pobreza como um dos fundamentos da República, parece inconsistente (aliás, incoerente) que os tributos destinados a financiar o financiamento do Estado agravassem ainda mais o pauperismo crônico de certas famílias brasileiras, que são as mais carentes da atuação do Poder Público no sentido de realizar o plano constitucional. Ainda sobre a correlação entre a necessidade de observância da capacidade contributiva e o princípio republicano, ensina CARRAZZA: "Acrescentamos que o princípio da capacidade contributiva hospeda-se nas dobras do princípio da igualdade e ajuda a realizar, no campo tributário, os ideais republicanos. Realmente, é justo e jurídico que quem, em termos econômicos, tem muito pague, proporcionalmente, mais imposto do que quem tem pouco. Quem tem maior riqueza deve, em termos proporcionais, pagar mais imposto do que quem tem menor riqueza. Noutras palavras, deve contribuir mais para a manutenção da coisa pública". (CARRAZZA, 2015, p . 103)

O já mencionado artigo 153 da Constituição trata da competência tributária da União Federal. Conforme exposto, a previsão constitucional do IR está no inciso III do dispositivo. O parágrafo 2º do referido artigo, entretanto, fornece três informações cruciais sobre o imposto: § 2º O imposto previsto no inciso III: I - será informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade, na forma da lei; (Grifamos)

Verifica-se que a norma constitucional atribui ao imposto de renda a obrigação de respeitar os três critérios elencados. É mister esclarecer brevemente cada um deles.

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Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (Grifamos)

50 Por generalidade, entende-se a capacidade de se identificar como devedor do imposto de renda todo e qualquer sujeito de direito que praticar seu fato gerador. Ou seja, aquela pessoa, física ou jurídica, que auferir renda, perceber rendimentos ou adquirir disponibilidade econômica ou jurídica. Como bem definiu Luiz Felipe Silveira Difini: "Generalidade significa que o tributo deve abranger todos os contribuintes que pratiquem o ato ou que estejam em igual relação com o fato descrito na hipótese de incidência". (DIFINI, 2008, p. 88)

A aplicação desse critério está em consonância com a regra do artigo 126 do CTN, que estabelece que a capacidade tributária independe da capacidade civil ou jurídica do contribuinte28. Desta forma, o critério da generalidade estabelece que o marco pessoal para a instituição do imposto de renda é o acréscimo patrimonial independentemente do sujeito. Em obediência ao critério da generalidade, o legislador pátrio estabeleceu que é devedor do imposto de renda tanto aquela pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no Brasil e que auferiu renda advinda do exterior, como também a pessoa física ou jurídica estrangeira, residente ou domiciliada no exterior, mas que por algum motivo ou atividade, obteve renda no território nacional. A situação das pessoas físicas nacionais ou estrangeiras e sua relação com o IRPF estão reguladas pelo Decreto 3.000/99 (RIR/99). Por universalidade, entende-se que o imposto de renda deve incidir sobre a universalidade do acréscimo patrimonial ou aquisição de disponibilidade percebida. Não interessaria, portanto, a origem da renda: se

28

Art. 126. A capacidade tributária passiva independe: I - da capacidade civil das pessoas naturais; II - de achar-se a pessoa natural sujeita a medidas que importem privação ou limitação do exercício de atividades civis, comerciais ou profissionais, ou da administração direta de seus bens ou negócios; III - de estar a pessoa jurídica regularmente constituída, bastando que configure uma unidade econômica ou profissional.

51 proveniente de fonte, se de natureza salarial ou avulsa, não importando também se esta tiver origem em atividade imoral ou ilícita. O critério da universalidade comporta o princípio do non olet29, que é justamente a indiferença do sujeito ativo tributário em relação à origem lícita ou antijurídica do fato gerador. A Hipótese de incidência prescrita em lei, quando veiculada ao mundo fático pelo fato gerador não carece de juízo moral sobre o mesmo para ser juridicamente exigível30. No filme Oliver, (1968), dirigido por Carol Reed e baseado na obra Oliver Twist, de Charles Dickens, o personagem Fagin (interpretado por Ron Moody), um notório batedor de carteiras, versifica em uma das suas falas: 'Por que deveríamos nos matar de trabalhar para depois termos que pagar impostos? Melhor obter alguma renda não tributável! Melhor bater uma carteira ou duas!'31. Ou seja, pela lógica de Fagin, como sua 'atividade profissional' é criminosa, não incidiria imposto sobre a renda advinda dos furtos. Pelo princípio do non olet, todavia, não interessa ao Estado se a atividade é o ou não criminosa. Basta a prática do fato gerador via percepção de renda. Nesse sentido, confira-se o informativo 637 do STF (de 22 a 26 de agosto de 2011), cuidando da parte das decisões da primeira turma daquela corte: “Non olet” e atividade ilícita É possível a incidência de tributação sobre valores arrecadados em virtude de atividade ilícita, consoante o art. 118 do CTN [...]. Com base nessa orientação, a 1ª Turma conheceu parcialmente de habeas corpus e, na parte conhecida, por maioria, denegou a ordem. Na espécie, o paciente fora condenado pelo crime 29

O termo 'non olet' vem do latim, e significa 'não cheira'. Reza a lenda que a origem do nome do princípio teria relação com o imperador romano Vespasiano (9-79), que instituiu uma taxa sobre o uso das latrinas públicas. Diante da repulsa de seu filho Tito em razão do 'fato gerador' malcheiroso, Vespasiano respondeu 'Pecunia non olet' ('Dinheiro não cheira'). 30 Costuma-se indicar o artigo 118 do CTN como base para o desenvolvimento do 'non olet': Art. 118. A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se: I - da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis, ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos; II - dos efeitos dos fatos efetivamente ocorridos. 31 No inglês original (em versos): "Why should we break our backs stupidly paying tax? Better get some untaxed income! Better pick a pocket or two!"

52 previsto no art. 1º, I, da Lei 8.137/1990 [...] e sustentava a atipicidade de sua conduta, porque inexistiria obrigação tributária derivada da contravenção penal do jogo do bicho (Decreto-Lei 6.259/44, art. 58). O Min. Dias Toffoli, relator, assinalou que a definição legal do fato gerador deveria ser interpretada com abstração da validade jurídica da atividade efetivamente praticada, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos. Ressaltou que a possibilidade de tributação da renda obtida em razão de conduta ilícita consubstanciar-se-ia no princípio do non olet. Assim, concluiu que o réu praticara sonegação fiscal, porquanto não declarara suas receitas, mesmo que resultantes de ato contravencional. O Min. Luiz Fux aludiu ao caráter sui generis da teoria geral do direito tributário. Acrescentou que seria contraditório o nãopagamento do imposto proveniente de ato ilegal, pois haveria locupletamento da própria torpeza em detrimento do interesse público da satisfação das necessidades coletivas, a qual se daria por meio da exação tributária. Vencido o Min. Marco Aurélio, que concedia a ordem por entender que recolhimento de tributo pressuporia atividade legítima. Precedente citado: HC 77530/RS (DJU de 18.9.98). HC 94240/SP, rel. Min. Dias Toffoli, 23.8.2011. (HC-94240) (Grifamos e sublinhamos)

Por fim, a progressividade, comumente chamada de critério Robin Hood, que destina promover uma distribuição mais adequada do fardo tributário consoante a capacidade contributiva e assim promover uma maior justiça fiscal. A lógica da progressividade se opera por meio da classificação de valores líquidos de renda auferida, identificados como segmentos de renda, que servirão para a base de cálculo do lançamento do crédito tributário correspondente. A essas bases de cálculo, aplicar-se-ão alíquotas diversas, cujo percentual aumenta conforme o acréscimo da faixa de riqueza. Dessa maneira, um tributo progressivo não se confunde com um tributo proporcional, posto que neste, ocorre o aumento da base de cálculo em função da natureza do fato gerador, mas a alíquota permanece a mesma. Nos tributos progressivos, com o aumento da base de cálculo ocorre também o aumento da alíquota aplicada. Exemplos de tributos com caráter proporcional são o ICMS, o IPI, o ITBI e o ISS (quando incidente sobre receita).

53 No Brasil, existe uma faixa de renda auferida que é isenta de IRPF em virtude da preservação do mínimo existencial. A tabela de cálculo do IPRF para o exercício de 2016 foi a seguinte: Base de cálculo (R$)

Alíquota (%)

Parcela a deduzir do IRPF (R$)

Até 22.499,13

Isento

-

De 22.499,14 até 33.477,72

7,5

1.687,43

De 33.477,73 até 44.476,74

15

4.198,26

De 44.476,75 até 55.373,55

22,5

7.534,02

Acima de 55.373,55

27,5

10.302,70 Fonte: Receita Federal do Brasil32

A progressividade foi imposta ao Direito Tributário Brasileiro como fomento à concretização do princípio da capacidade contributiva. Ela reforça o já explicitado mantra 'quem pode mais, deve pagar mais' e traduz a possibilidade de que todos, na medida da sua capacidade, contribuam para a coisa pública e para as finalidades do Estado, tal que possam ter o retorno dessa contribuição na medida das suas necessidades. O STF já firmou entendimento de que a aplicação do critério da progressividade

aos

tributos

depende

de

expressa

previsão

constitucional33.A Constituição Federal prevê que além do IR, o IPTU e o ITR também serão progressivos. Entretanto, a progressividade aplicada a esses últimos não tem escopo na capacidade contributiva, mas sim no cumprimento ou descumprimento da função social da propriedade (IPTU) ou da produtividade da terra (ITR). Ressalta-se ainda que o estudo da propriedade da aplicação do critério progressivo a esses impostos foge do tema do presente trabalho, e que os mesmos foram aqui classificados como progressivos apenas por obediência e coerência ao texto constitucional.

32

Disponível em http://idg.receita.fazenda.gov.br/acesso-rapido/tributos/irpf-imposto-de-rendapessoa-fisica#c-lculo-anual-do-irpf. Acesso em 22 mai 2016. 33 Nesse sentido, confira-se os REs 386.098/MT; 227.033/SP; 234.105/SP; 225.132/RS e 229.457/SP

54

Capítulo IV - Crítica à tributação atual sobre a Renda e a Injustiça Fiscal A tributação contemporânea sobre a renda, tanto no plano brasileiro quanto internacional, tem sido alvo de constantes estudos, seja por juristas da seara tributária, seja por economistas, que procuram conjugar a sua aplicação com as suas consequências econômicas e sociais. O cenário oferecido pela década de 1990 e pelo primeiro decênio do Século XXI é registro da coexistência entre o modelo tradicional de tributação sobre a renda, que, desconsideradas as eventuais particularidades de cada país, se apresenta como um imposto progressivo incidente sobre a totalidade do acréscimo patrimonial obtido em determinado período de tempo, e as novas modalidades de tributação sobre a renda, entre elas, a chamada flat tax revolution. Nesse processo dialético, apenas uma coisa é comum aos dois sistemas: os segmentos socioeconômicos de baixa e média renda são mais tributados do que aqueles que usufruem da maior parcela da riqueza. Serão analisadas agora as principais causas que geraram esse desentendimento entre riqueza e tributação sobre a renda. A Flat Tax Revolution

A Flat tax revolution (FTR) ou 'Revolução tributária planificadora' em tradução livre, é uma política fiscal em voga na Europa, mormente nos países bálticos e naqueles ex-componentes da extinta União Soviética, mas que já ganha proporções globais em maior ou menor expressão. Segundo NABAIS, essa política consiste na 'substituição dos actuais impostos sobre o rendimento por um imposto proporcional, simples, e com uma alíquota relativamente baixa' (NABAIS, 2010, p. 136). Em outras palavras, a FTR é a adoção de uma modalidade de tributação mais branda sobre a renda, adotando o cálculo proporcional em detrimento do progressivo e atribuindo alíquotas baixas às respectivas bases de cálculo. Essa política trata com especial carinho a tributação sobre a renda das sociedades empresárias, bem como a tributação sobre a percepção de

55 dividendos e de outras bonificações pagas aos acionistas de sociedades anônimas. As alíquotas do tributo nos países bálticos variavam entre 20% (vinte por cento) e 30% (trinta por cento) no início da década de 1990, quando da sua instituição. Na Rússia e na Ucrânia, as alíquotas são ainda mais baixas: 15% (quinze por cento). NABAIS explica que o fenômeno está se espalhando pela Europa. Cita que Portugal, por exemplo, tributa o rendimento pessoal em 42% (quarenta e dois por cento), enquanto que a média percentual europeia, que em 2006 era de 40% (quarenta por cento), tende a cair. (NABAIS, 2010, p. 137) O ponto interessante da FTR é que ela gerou literalmente uma guerra fiscal entre os países europeus. Cada Estado busca promover uma tributação mais atraente para um investimento produtivo, dentro das suas capacidades, claro. Conforme dito, seu surgimento se deu em alguns ex-membros da URSS, justamente com o fito de superar, no médio prazo, o débito econômico e empresarial de décadas sob o regime socialista de Moscou. É natural que alguns países, por suas discrepâncias econômicas e desenvolvimentistas, não podem concorrer com outros: A Rússia está pareada com a Ucrânia. Mas não pode competir com a Dinamarca, por exemplo. A Dinamarca tem um potencial econômico comparável com o da Noruega, mas não tem condições de competir com a Alemanha, ainda que promova uma tributação sobre a renda quase irrisória, pois o potencial alemão de atração de investimentos em muito supera o danês. A questão é que, enquanto essa guerra fiscal silenciosamente engole a Europa, os típicos Estados Sociais europeus carecem de recursos para manter seus programas de atendimento. Com a adoção do modelo proporcional em detrimento do progressivo, associada às baixas alíquotas, ocorre uma menor arrecadação pelo Erário em relação à taxação das grandes riquezas. Estas ficam cada vez mais blindadas pela competição fiscal entre os Estados, e o Fisco não tem escolha a não ser carear mais ainda as classes baixa e média, que trabalham e são as que mais carecem da

56 atuação estatal. Adicionando aqui os acontecimentos dos últimos dois anos, referindo-se à migração em massa de refugiados de origem sírio-libanesa aos países da Comunidade Europeia, a situação se agrava ainda mais: são necessários recursos para atender à carestia dos refugiados, que não possuem nem patrimônio e nem emprego. O resultado são recursos escassos para atender uma demanda não planejada, associada à intangibilidade das grandes rendas, e, no plano social, uma falência do Estado de Bem-Estar social e uma guerra do 'nós contra eles' entre cidadãos natos e imigrantes34. Renda e Consumo no Brasil entre as eras FHC e Lula

No tocante a particularidades brasileiras, a injustiça fiscal na tributação sobre a renda apresenta várias faces. Uma das mais notórias é justamente a Lei 9.250/95, feita durante o primeiro governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1994-2002),e que introduziu diversas inovações ao imposto de renda de pessoa física. Entre uma das mudanças trazidas, destaca-se a isenção de tributação sobre a renda advinda do pagamento de dividendos de sociedades anônimas e instituições financeiras aos seus acionistas. O argumento da Lei seria de que a sociedade empresária, na origem, já é tributada sob o IRPJ sobre seu acréscimo patrimonial, e que, quando da divisão dos lucros entre os acionistas, a incidência de um novo imposto de renda sobre os dividendos (tanto IRPF quanto IRPJ) acarretaria num bis in idem, e seria por demais oneroso à atividade empresária. Cabe lembrar que essa época representou a introdução do Neoliberalismo no Brasil durante os Governos Collor e FHC. Também à época o Brasil ainda amargurava os efeitos da hiperinflação oriunda da década de 1980, que só foi controlada coma implementação do Plano Real. Associando a necessidade de atrair novos investimentos com a busca por novos meios de tributação sem agravar o setor empresarial, o Governo optou por aliviar a tributação sobre a renda dos grandes empresários, 34

Nesse sentido, recomenda-se a leitura da obra 'O Precariado - A nova classe perigosa', de Guy Standing, com edição brasileira publicada pela Editora Autêntica.

57 isentando os dividendos, ao passo que incrementou a tributação sobre o consumo. (GONDIM; LETTIERI, 2014, p. 64-65). O problema advindo dessa situação é que a tributação sobre o consumo, por sua própria natureza, não respeita o princípio da capacidade contributiva, são tributos indiretos sobre a renda (incidentes sobre o consumo, mas pagos pela renda), de maneira que os mais pobres relativamente pagam mais tributo sobre o consumo do mesmo bem do que os ricos35. No final dos nos FHC e no início do Governo Lula (2003-2010), o Governo Federal implementou por todo o Brasil o programa do Bolsa Família, que tinha por escopo amenizar as crônicas disparidades sociais do país, bem como o exclusivismo econômico e as carências básicas dos setores mais pobres da população brasileira. Apesar do fomento louvável do programa, a elevada carga tributária sobre o consumo faz com que uma parcela considerável da verba destinada ao programa volte aos cofres públicos pela via tributária. Este foi o entendimento de Misabel Derzi, em entrevista à revista Consultor Jurídico: “Quem é miserável e recebe bolsa-família devolve 50% do que ganha ao Estado devido à tributação sobre o consumo.” A afirmação é da tributarista Misabel Derzi, para quem, ao focar a tributação no consumo, o Brasil oprime o mais pobre que, no preço do que compra, arca com os 54% equivalentes a exigências fiscais. Misabel afirmou ainda que o Imposto de Renda favorece a acumulação, assim como tributos sobre herança e doações. E as empresas são beneficiadas com subvenções. “Há um silêncio politicamente orquestrado que não podemos aceitar. Quem é muito pobre não tem condições de pagar imposto algum”, criticou." (Consultor Jurídico, 06 de novembro de 2014)

Assim, percebe-se que, ao passo que os mais ricos são isentos, desde 1995, de recolher o imposto de renda sobre os dividendos percebidos, as

35

Nessa época, a tributação incidente sobre a renda ou o lucro das pessoas jurídicas foi consideravelmente reduzido. O IRPJ das Instituições Financeiras foi de 25% para 15%; O adicional de IRPJ foi reduzido de 10% e 18% para 10%; A CSLL caiu de 30% para 8% (depois foi elevada para 9%). (GONDIM & LETTIERI, 2014, p. 65)

58 classes pobres, e a classe média trabalhadora são as verdadeiras mantenedoras do Estado Brasileiro. Ressalta-se que a parcela do PIB (que, em 2008, tinha 15,2% formado pela tributação sobre o consumo) utilizada pelo Governo Federal para arcar com as despesas do Bolsa Família em 2008 foi de 0,4%, o que equivaleu a mais ou menos um dia e meio de trabalho do contribuinte brasileiro médio. Já a fatia utilizada pelo Governo para pagar a dívida pública às mesmas instituições financeiras que possuem isenção do IR sobre a partilha de dividendos foi de 5,6% do PIB, com o equivalente a vinte dias e meio de trabalho. O Jornal espanhol El País publicou notícia recentíssima de 27 de maio de 2016 sobre o rombo nas contas públicas brasileiras e questionou a isenção concedida em 1995 aos super ricos. Segundo o plano fiscal do Governo do Vice-Presidente interino Michel Temer, o aumento dos tributos, associado à austeridade fiscal, é condição sine qua non para contornar a crise. A tributação das classes altas, todavia, parece estar fora de questão. De acordo com a reportagem, em 2013, 2,1 milhões de Brasileiros eram donos ou acionistas de empresas, e prossegue: “[...] Caso a cobrança desse tributo [o Imposto de Renda sobre dividendos de acionistas], que foi extinto em 1995, no Governo Fernando Henrique Cardoso, voltasse a ser cobrado, o Governo poderia arrecadar mais de 43 bilhões de reais por ano, segundo estudo feito pelos pesquisadores Rodrigo Orair e Sérgio Gobetti, do Instituto de Pesquisa Aplicada (Ipea). O montante representa, por exemplo, ¼ do rombo esperado nas contas públicas de 2016, estimado na semana passada em 170,5 milhões de reais. A regra não foi alterada nos anos Lula e Dilma. [...] Hoje, grande parte do que os empresários ricos ganham não é tributada. Um trabalhador com salário de 8.000 reais paga um imposto de renda de 27,5%. Já um dono de uma grande empresa que fatura mais de 500.000 reais a título de lucros e dividendos pode não pagar nada como pessoa física.”36

De todos os países ocidentais que instituíram, em algum momento, a isenção da tributação sobre a renda advinda dos dividendos, apenas o Brasil 36

Disponível em http://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/19/economia/1463677506_618660.html. Acesso em 28 mai 2016

59 e a Estônia a mantêm37. Em outros países, as alíquotas são de 27,12% (Austrália), 25% (Bélgica), 22,58% (Chile), 30,34% (EUA). 44% (França), com as mais elevadas sendo Portugal (28%) e o Reino Unido (30,5%).38 A Posição Econômica – Thomas Piketty e o Capital no Século XXI

A posição dos economistas quanto à tributação sobre a renda sempre foi de disparidade. Ao passo que os expoentes da Escola Austríaca, como Hayek e Mises, argumentavam que o agravo da tributação sobre renda poderia desestimular o investimento econômico e a aventura no mercado ao taxar os lucros, devendo o agente econômico buscar a sua riqueza em um mercado livre, os economistas de tendência mais keynesiana, junto aos teóricos de Esquerda, vislumbravam a tributação sobre a renda como uma maneira

de

melhor

distribuir

o

acúmulo

desigual

de

riquezas,

principalmente sob a modalidade da tributação progressiva. A atitude da Economia perante a tributação sobre a renda foi revolucionada pela publicação, em 2013, do livro O Capital no Século XXI, do economista francês Thomas Piketty39. Piketty dedicou doze anos de pesquisa aos fluxos das grandes riquezas privadas do planeta. Seu trabalho de pesquisa foi publicado no livro, no qual é feita a afirmação chocante de que a desigualdade de renda global atingiu um nível no qual 1% (um por cento) da população mundial, aproximadamente quarenta e cinco milhões de pessoas, controla cerca de 50% (cinquenta por cento) do total de riqueza do planeta. O ponto de partida de Piketty é avaliar os grandes patrimônios europeus e norte-americanos, considerando a sua formação nos séculos 37

Atualmente tramita no Senado Federal o Projeto de Lei 588/2015, de autoria do Senador Lindbergh Farias (PT-RJ), que busca a revogação da isenção concedida pela Lei 9.250/95. Até o fim desse trabalho, o projeto ainda aguardava relator no Senado. 38 Dados retirados da notícia. 39 Thomas Piketty (Clichy, 1971) é formado pela London School of Economics e pela École des Hautes Études en Sciences Sociales. Foi professor de Economia do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e hoje dá aulas na École d’Economie de Paris. Sua obra possui edição brasileira dos seus livros O Capital no Século XXI; A Economia da Desigualdade e É possível salvar a Europa?,todos pela Editora Intrínseca, bem como uma coletânea de alguns artigos seus, lançados pela Editora Veneta, sob o título Thomas Piketty e o Segredo dos Ricos, utilizada na bibliografia.

60 XVII, XVIII e XIX até o advento da Primeira Guerra Mundial, na qual a destruição provocada pelo conflito devastou os grandes patrimônios e dissipou as grandes fortunas (PIKETTY, 2014a, p. 22) O economista avaliou que, após o período entre guerras, todavia, boa parte das grandes fortunas perdidas conseguiu ‘ressuscitar’, em um período de tempo muito curto, e, em alguns casos, conseguiu superar o seu montante anterior à guerra. Piketty defende a tese de que tal fato econômico só foi possível devido a uma tributação cada vez mais leniente com as grandes fortunas, permitindo a isenção da taxação, seja de dividendos, seja de ganhos de capital, e defende que o emprego da progressividade e da tributação mais equiparável à capacidade contributiva individual são fundamentais para a redução das desigualdades. Um caso especial, segundo ele, são as instituições financeiras. Os bancos de crédito, que seriam um ramo acessório ao mercado de produção, acabam obtendo com as taxas de juros e o spread bancário vantagens econômicas e patrimoniais em muito superiores à riqueza efetivamente produzida no mercado industrial, por exemplo. Em outras palavras, aquele segmento da economia que é um meio para objetivo final (leia-se, a produção de um bem, a promoção de um serviço e a circulação de ambos) acaba sendo o agente econômico mais poderoso e influente da economia de mercado. Uma prova disso é a crise de 2007-2008 nos EUA, cujos efeitos ainda se fazem sentir no Mundo. Os bancos, com sua possibilidade de ‘fazer dinheiro em cima de dinheiro’, acabaram virando verdadeiros monstros de concentração de renda e poder econômico, completamente desvirtuados de seu papel econômico de prestamista ao produtor da riqueza. Na economia capitalista do século XXI, a Instituição Financeira acabou virando o centro das atenções. O grosso do ganho de riqueza não mais advém do fator produtivo, mas sim dos mecanismos e engrenagens das instâncias bancárias. É aplicável aqui a expressão de Joel Kurtzmann: the

61 tail wags the dog (‘O rabo abana o cachorro’), e caberia à tributação amenizar ou nulificar essa situação de desigualdade alarmante. A obra de Thomas Piketty é extremamente discutida nos ciclos acadêmicos e profissionais de economistas e tributaristas. Na já mencionada entrevista de Misabel Derzi ao consultor jurídico, destaca-se: Misabel, que é sócia do escritório Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, concorda com a afirmação do economista Thomas Piketty, famosa no best seller O Capital no Século XXI, de que é a tributação a maneira mais efetiva de diminuir abismos sociais. [...] Misabel citou Piketty para falar de justiça econômica e justiça distributiva. Ela concorda com o economista quanto aos benefícios que o capital pode trazer, desde que o Estado seja interventor para corrigir desigualdades. “Piketty encontra no Direito Tributário a fonte para o combate à desigualdade, por poder fazer uma redistribuição justa de riquezas”, afirmou. “Se seu estudo tivesse sido feito com base em dados brasileiros, ele teria ficado estarrecido.” Ela lembrou que, para fazer suas avaliações, o economista até chegou a pedir dados ao Brasil, mas teve o acesso negado. Seus levantamentos se basearam em informações de inventários e declarações de Imposto de Renda para medir o aumento e a redução de acumulações de capital entre o Século XVIII e o ano de 2010. A tributarista comemorou a conclusão de Piketty de que a melhor maneira de acabar com a desigualdade seria a criação de um imposto global sobre o ganho de capital. “É um sonho, uma utopia útil, mas corrigiria distorções”, comentou. “Os 1% de multimilionários escondem seus ganhos atrás de holdings que formam outras holdings espalhadas por todo o mundo, às quais fisco nenhum tem acesso. Por isso é que se tributa a classe média e os pequenos empresários são obrigados a ser transparentes.”

Em 2015, o Brasil foi alvo de um estudo por parte do IPCIG (International Policy Center for Inclusive Growth - Centro Internacional de Políticas para Crescimento Inclusivo), que é uma parceria de pesquisa entre o Governo Federal e a Organização das Nações Unidas, cujo resultado foi disponibilizado em dezembro daquele ano. O estudo avaliou a concentração de renda e a sua correspondente tributação no Brasil, e teve, como base, as pesquisas de Piketty e seu parceiro acadêmico Anthony Atkinson. O resultado da pesquisa foi espantoso. Suas quatro conclusões foram as seguintes: Em primeiro lugar, a concentração de renda brasileira supera a de qualquer outro país com dados disponíveis. As proporções de concentração

62 são as seguintes: o décimo mais rico da população brasileira concentra 52% (cinquenta e dois por centro) de toda a renda nacional. O centésimo mais rico, 23,2% (vinte e três vírgula dois por cento),o milésimo mais rico, 10,6% (dez vírgula seis por cento). Entretanto, o meio milésimo mais rico controla 8,5% (oito vírgula cinco por cento) da renda, ao passo que países sul-americanos como Uruguai e Colômbia apresentam níveis muito mais igualitários (3,3% e 5,4% por meio milésimo, respectivamente). Em segundo lugar, a relação entre a renda dos super-ricos brasileiros (meio milésimo da população) e a quantidade proporcional de imposto de renda paga por estes é bem menor quando comparada à proporção entre a renda auferida por uma família de classe média e o que essa família paga de imposto. Em terceiro lugar, essa distorção se deve ao aspecto retrógrado da legislação brasileira sobre a tributação sobre a renda (notadamente a Lei 9.250/95), que isenta os dividendos da incidência do IR. Dessa forma, em 2013, cerca de cinquenta mil super-ricos receberam renda a título de dividendos, sem recolher imposto de renda por causa da dita isenção. Por fim, em quarto lugar, o potencial brasileiro de distribuição de riquezas via tributação sobre a renda é baixíssimo. O Brasil perde até mesmo para seus conterrâneos continentais latino-americanos40. A situação apresentada pelo estudo do IPCIG mostra que a situação da tributação sobre a renda no Brasil sofre um desencontro: os que têm maior renda, ou que recebem maior renda não recolhem imposto, enquanto que a classe trabalhadora é a que arca com as despesas públicas e custeia o Estado e as políticas sociais. Ou seja,se está diante de uma verdadeira aberração tributária e de uma encenação de justiça fiscal.

40

O resultado final do estudo pode ser conferido em http://www.ipcundp.org/pub/port/OP312PT_Tributacao_e_distribuicao_da_renda_no_Brasil_novas_evidencias_a _partir_das_declaracoes_tributarias_das_pessoas_fisicas.pdf

63 As ideias de Piketty para consertar o problema de países como o Brasil, que possuem uma tributação esdrúxula sobre a renda e o patrimônio, que, ao invés de combaterem o problema da disparidade socioeconômica terminam por agravá-la, guiam-se por duas necessidades: tributar progressivamente a renda e tributar os ganhos de capital e aquisições gratuitas de patrimônio (mormente doações e heranças). No quesito da tributação progressiva, Piketty ressuscitou um debate que alguns economistas já consideravam encerrado. Por muito tempo, economistas políticos de Esquerda consideravam que a Progressividade da tributação sobre a renda era condição para seu real fundamento de melhor distribuição da riqueza. Desde a década de 1970, o debate sobre a tributação progressiva diminuiu nos fóruns econômicos41.Thomas Piketty reacende esse debate, e expõe que não só a mitigação da progressividade foi o que permitiu a reconstrução dos patrimônios astronômicos no Pós-Guerra, da mesma forma ela é o instituto capaz de reduzir a discrepância entre os super-ricos e as classes de menor poder econômico. (PIKETTY, 2014b, p. 482-483). Nesse aspecto, não só a isenção sobre os dividendos poderia subsistir, mas também a tributação sobre esses deveria ser criteriosamente progressiva. Em última análise, cumpre lembrar: grandes acionistas geralmente faturam fortunas isentas de IR sem ter que sequer sair de casa para trabalhar. No quesito da tributação sobre o acréscimo gratuito de patrimônio por via de doações e heranças, Piketty considera sua tributação importante pois tais operações corresponderiam a uma aquisição de poder econômico injustificada pelo contribuinte. Leia-se: seriam quase um regalo, pois não houve esforço ou contraprestação por parte do donatário/herdeiro. Operarse-ia, desta forma, uma automática desigualdade patrimonial; um acréscimo infundado. Daí a necessidade da sua tributação.

41

Sobre o assunto, recomendamos a leitura do artigo 'O Mito da Progressividade', de Maurin Almeida Falcão

64 O Ordenamento Jurídico brasileiro já comporta tributos com hipótese de incidência em tais casos: são os já mencionados ITBI, de competência municipal, e o ITCMD, de competência estadual. Em primeiro de maio de 2016, no apagar das luzes do seu Governo, a Presidente Dilma Rousseff, após aprovar uma correção da tabela do IRPF em 5%, enviou projeto de lei (PL 5.205/16) ao Congresso Nacional objetivando tributar, a título de IR, as heranças com valor superior a R$ 5 milhões, bem como as doações com valor superior a R$ 1 milhão.Enquanto o projeto não anda no Congresso, tributaristas brasileiros já discutem se a medida é cabível, se não resultaria em bis in idem ou se seria hipótese de bitributação. Não é intenção do presente trabalho dissertar sobre esse projeto de lei e seus eventuais vícios, mas o fato da sua criação não deixa de ser um interessante incremento à discussão. O IGF – Imposto sobre Grandes Fortunas

A origem do imposto sobre grandes fortunas tem origem francesa. A França começou a tributar a renda logo nos primeiros anos da I República (1792-1804), apesar de ser um tributo tímido. Um imposto de renda moderno, com respeito à universalidade, à generalidade e à progressividade só foi estabelecido em 1914, diante do desespero do governo francês por recursos, tendo em vista iminente guerra contra o Império Alemão. A taxação das grandes fortunas na França foi instituída em 1982, e já teve alíquotas extravagantes como 75% (setenta e cinco por cento) por exemplo, e está em vigor até hoje. No Brasil, a Constituição Federal, no seu artigo 153, VII, estabelece a competência da União para estabelecer e tributar as Grandes Fortunas, assim definidas nos termos de Lei Complementar. Entretanto, desde a promulgação da Carta Magna, o referido tributo ainda não foi implementado no Brasil por inércia do Legislador. Uma das concorrentes reclamações a respeito da demora em regular o IGF brasileiro é aquela que atribui a leniência do Legislativo ao lobby

65 político de super-ricos, que usariam sua influência junto a parlamentares para fraudar a votação do projeto. Não pretendemos, nesse trabalho, entrar nesse mérito. Por tudo que já foi exposto nesta monografia; por toda a mentalidade republicana da nova Constituição e seu desencontro com uma situação fática de extrema concentração de riqueza e de tributação regressiva e injusta, a ideia de se tributar grandes fortunas soa interessante na busca por maior equidade fiscal. A questão envolvendo o IGF não é simples, todavia. Para evidenciar um dos primeiros problemas concernentes à sua implementação, cumpre indagar o que se entende por ‘Grandes Fortunas’. Primeiramente, entendemos que se deve adotar um padrão de cálculo de riqueza para se estabelecer o conceito de grande fortuna. A História da tributação apresenta três vetores: renda, patrimônio e consumo. Se a renda for usada como padrão de cálculo para grandes fortunas, deve-se estabelecer um quantum mínimo de forma que se possa dizer que, ‘o contribuinte X que em um pré-determinado período de tempo obter uma renda mínima de R$Y será, para fins de tributação, considerado contribuinte do IGF’. Se o patrimônio for usado, deve-se promover uma discriminação da universidade patrimonial do potencial contribuinte, de maneira que se esclareça que, ‘se o patrimônio atingir o valor mínimo de R$Y, será possível a cobrança do IGF’. Por fim, se o consumo for usado como padrão, deve-se observar dois fatores: i) o somatório do fluxo monetário referente a um determinado período de tempo, dissipado no consumo de bens e serviços contingentes ao contribuinte; ii) a essencialidade dos bens ou serviços consumidos. Deve-se conjugar a necessidade que provocou o consumo com a forma com que essa necessidade foi saciada.

66 Imagine-se, como exemplo, dois indivíduos ordinários, com o mesmo poder aquisitivo, que desejam comprar carros. Ambos têm a necessidade de deslocar-se por longas distâncias sem depender do transporte público. O primeiro indivíduo adquire um carro novo, de fabricação nacional, com preço de mercado dentro da média e com valor comercial também médio. Já o segundo indivíduo compra um carro de luxo, importado, com preço de mercado e valor comercial que em muito superam o quíntuplo do carro comprado pelo primeiro indivíduo. No exemplo dado, os dois indivíduos tinham a mesma necessidade: deslocar-se de maneira livre, confortável e segura. Ambas as necessidades foram saciadas pela compra do carro próprio. Ambos tinham o mesmo poder de compra. O primeiro indivíduo, no entanto, optou por um bem ordinário, de preço dentro da média, gerando, no ato da compra, um fluxo monetário em nada ostensivo. Já o segundo optou por um bem de luxo e conforto contingentes e não essenciais à sua necessidade primária. O segundo indivíduo disponibilizou-se a pagar mais para ter mais. O fluxo monetário gerado no ato de compra foi chamativo, excepcional, e por atingir um mínimo de R$Y, despendido na aquisição de um bem luxuoso, haveria identificação de grande fortuna, e o tributo seria exigível. Exemplo semelhante pode ser aplicado, conjugando agora o fator renda X fator patrimônio para fins de cálculo do IGF. Imagine-se dois vizinhos de porta. Um é CEO de uma grande empresa internacional, obtendo uma renda anual exorbitante, a título de salário, eventual participação societária e afins. O outro é um advogado, cuja renda advém do seu trabalho e é bem inferior à renda auferida por seu vizinho. No entanto, este advogado possui uma valiosíssima biblioteca, bem como uma pinacoteca composta por Rembrandts, Van Goghs e Monets, que recebeu de herança ou por doação. Conforme dito, ambos moram no mesmo endereço, recolhem o mesmo IPTU e a mesma taxa condominial. Suponha-se que possuam o

67 mesmo número de dependentes e que ostentem o mesmo padrão de consumo. Questiona-se: qual deles deveria ser tributado por um eventual IGF? Note-se, ambos possuem um valor patrimonial líquido altíssimo. O valor do imóvel é o mesmo, e a renda do CEO é certamente equiparável, em valores monetários, à pinacoteca e à biblioteca do advogado. Qual deles apresenta uma ‘grande fortuna’? Se somente for tributado o CEO, cuja grande riqueza é representada por sua renda, sem se tributar o advogado, se está tributando o trabalho, se está tributando uma riqueza dinâmica, uma pessoa cuja atividade profissional gera riqueza, um riqueza que foi gerada com um ônus (a atividade laboral; o trabalho), ao passo que a riqueza estática do vizinho advogado não gera riqueza, e foi obtida de maneira gratuita. Além disso, se ao tributar-se a riqueza rentável (a renda), excluindo da incidência do IGF a riqueza patrimonial (os bens de alto valor), o que se está fazendo na verdade é permitindo que, se o contribuinte transformar a sua grande riqueza rentável em grande riqueza patrimonial, estará se presenteando com a não incidência do IGF. Por outro lado, se somente o advogado for tributado, se para não tributar o fruto do trabalho a riqueza rentável for excluída da incidência do IGF, e o CEO for declarado isento, se estará diante de um quadro em que o advogado contribuinte se verá obrigado a dissipar o seu patrimônio para pagar o tributo, pois o não dispor de uma grande renda, ele terá que vender os quadros e os livros para evitar ser executado, e, ao final, se verá privado dos seus bens por força da tributação. Isso é inquestionável operação de confisco por meio de tributo, que é vedada pela Constituição Federal42.

42

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: IV - utilizar tributo com efeito de confisco;

68 Foi diante das grandes dificuldades de definir ‘grandes fortunas’ e de combater a evasão que a tributação sobre as grandes fortunas que muitos países ou não a instituíram o tributo; ou o instituíram para depois o revogar ou corrigir. Entre os que instituíram e revogaram encontram-se o Japão (instituído em 1950, abolido em 1953), a Itália (instituído em 1946, abolido em 1947) e Alemanha (abolido em 1955). Países como EUA e Reino Unido nem chegaram a implementar, enquanto que na França, as correções de alíquota são recorrentes. (MOTTA, 1996, p. 33). Estas não são as únicas críticas que podem ser dirigidas ao instituto do IGF. Frequentemente economistas e tributaristas o atacam, alcunhando-o de falacioso e de que afugentaria eventuais investimentos de capital, bem como promoveria a evasão e fuga das grandes fortunas da órbita nacional. Exemplo muito citado disso é o caso do renomado ator Gérard Depardieu, dono de um dos maiores patrimônios privados da França, que em 2012 abriu mão de sua cidadania francesa e abraçou a russa. Seu argumento foi a divergência ideológica do Governo Socialista do Presidente François Hollande, bem como a intolerância ao pagamento do IGF francês. Em que pese o argumento sólido de dificuldade de instituição do IGF, bem como o já citado rol de fracassos em diversos países, o argumento de que o IGF promoveria uma ‘fuga em massa’ dos ricos e das riquezas é risível. É globalmente sabido que os detentores de patrimônios volumosos fazem uso corrente dos paraísos fiscais para evadir renda e evitar tributação. Esse é um problema recorrente no Brasil (país que não taxa grandes fortunas), mas não é um problema exclusivamente brasileiro. Super-ricos de todo o mundo praticam a evasão fiscal para esses ‘refúgios’, seja para ocultar-se da tributação sobre a renda, seja para lavar dinheiro. Prova maior disso foi o recente escândalo dos Panama Papers, no qual se descobriu um ardiloso esquema de evasão de patrimônio e renda não declarados para paraísos fiscais na América Central.

69 No Brasil, vários projetos de Lei já foram apresentados almejando tornar real a tributação sobre grandes fortunas no Brasil. Existe considerável diversidade entre os projetos quanto a saber qual seria a melhor forma de se aplicar o tributo, se seriam permitidas deduções de outros tributos na base de cálculo e se haveria incidência somente sobre o patrimônio, ou se a renda, enquanto riqueza dinâmica, também seria computada. Entre os projetos mais famosos estão o os seguintes: O PL 162/89, do então Senador Fernando Henrique Cardoso, que consideraria, para fins de grandes fortunas o patrimônio cujo ativo fosse superior a dois milhões de cruzados novos, e também a renda bruta não provinda de trabalho assalariado e que fosse superior a trezentos mil cruzados novos anuais. Eram permitidas deduções, como por exemplo o valor do imóvel próprio, bem como o de objetos de valor artístico ou histórico considerável. O PL 227/08, da então Deputada Federal Luciana Genro, que objetivava a tributação do patrimônio superior a R$ 2 milhões com alíquotas variáveis de 1% (um por cento) a 5% (cinco por cento) e não permitia dedução do IR da base de cálculo do IGF. O projeto chegou a ser aprovado na Comissão de Constituição e Justiça em 2010 e desde então está parado aguardando inclusão em pauta para votação. (Houve substitutivo do Deputado Federal João Dado, para passar o valor das alíquotas para 0,3%, mínimo, e 1%, máximo)43. Disso fica a conclusão de que o IGF é um assunto que deve ser tratado com cuidado. Apesar de alguns economistas e tributaristas enfatizarem o seu potencial de distribuidor social de riquezas, outros o colocam como uma opção de risco, podendo ser muito mais destruidora do que edificante. Deve-se analisar criteriosamente seu meio de aplicação, bem

43

Outros projetos incluem o PL 108/89, do Deputado Federal Juares Marques Batista; o PL 208/89, do Deputado Federal Antônio Mariz; o PL 218/90, de autoria do Poder Executivo e o PL 268/90, do Deputado Federal Ivo Cersósimo.

70 como especificar com precisão o que seria ‘grande riqueza’ sob pena de criar disparate fiscal ainda maior.

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Conclusão O presente trabalho esforçou-se por demonstrar que a renda e a sua tributação, para fins de análise da justiça fiscal, devem levar em conta o seu histórico como tributação inerente ao modelo capitalista, no qual a renda é fruto da riqueza produzida pelo trabalho realizado pelas classes trabalhadoras associadas ao Capital. A importância da lição histórica é compreender que os dois fatores capital e trabalho moldaram o mundo moderno, influenciaram as teorias econômicas da renda como riqueza típica da Idade Contemporânea e, consequentemente o Direito Tributário. As revoluções liberais que derrubaram o Antigo Regime e inauguraram a era do capitalismo proclamaram

as

liberdades

e

direitos

fundamentais

do

Homem,

influenciando, inclusive, a seara tributária O capitalismo, todavia, produziu uma discrepância de acúmulo de riquezas, fazendo com que os empresários e os detentores de capital obtivessem vantagens econômicas muito maiores e com muito mais facilidade do que a classe trabalhadora. O Estado Social surgiu com o fito de promoção da justiça social e melhor repartição da riqueza como agente político-econômico ativo. No entanto, para a promoção da Justiça Social, o Estado carece de recursos. Numa sociedade na qual a diferença entre ricos e pobres é nítida, foi-se mister aplicar o princípio essencialmente republicano da capacidade contributiva, de maneira que cada um pudesse contribuir para a coisa pública na medida da sua capacidade econômica. Apesar dos esforços das políticas sociais, a sociedade do Século XXI, despontou com a concentração de 50% da riqueza global nas mãos de apenas 1% da população mundial, fato oriundo de problemas típicos do capitalismo e inerentes à concentração de riqueza e de capital cada vez maior na mão dos mais ricos

72 A tributação sobre a renda, cuja aplicação precária ou desligada das reais discrepâncias socioeconômicas acabou por ajudar essa situação de concentração de renda, pode, agora, segundo Thomas Piketty, ser a solução para acabar ou consideravelmente mitigar as diferenças globais de renda, sem, entretanto, destruir o capitalismo. O Brasil, nesse cenário, apesar da sua Carta Constitucional cidadã pregadora do Republicanismo, dos Direitos Humanos, do princípio da capacidade contributiva e marcada pela busca de uma sociedade livre, justa e igualitária, com a redução das desigualdades sociais, é obrigada a conviver com um sistema tributário regressivo, que contribui de maneira quase estúpida para a concentração da renda. A situação de distribuição de riquezas no Brasil, problema de raízes históricas, é ainda piorada pela falta de revisão, pelo Estado Legislador, da tributação sobre a renda, mormente na isenção presenteada aos acionistas e detentores de dividendos, que acumulam muito mais renda, sem, no entanto, serem tributados. Isto delega a conta do Estado Social à classe trabalhadora, que justamente mais precisa do Estado Social. Por fim, isso faz o Brasil figurar como um país no qual o trabalho é pesadamente tributado, ao passo que os ganhos empresariais (que não são trabalho. São antes de tudo um trabalho fictício) não estão sujeitos à tributação. Nesse cenário, ao menos que um comprometimento sério com a justiça fiscal e social seja levado a cabo, será bastante difícil para a Constituição Brasileira construir a ordem de justiça que é tanto buscada quanto merecida.

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