Tributo para quê? Para quem?

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Tributos para o Bem Comum Um estudo sobre ética e tributação Agosto 2015

Conteúdos

A Christian Aid é uma organização internacional que se mantém fiel à ideia de que o mundo pode e deve ser rapidamente transformado em um lugar onde todos possam viver suas vidas integralmente, livres da pobreza e das desigualdades. Desenvolvemos um trabalho global em prol de mudanças profundas que permitam a erradicação das causas da pobreza e da desigualdade, lutando por igualdade,dignidade e liberdade para todos, independentemente de fé ou nacionalidade. Somos parte de um movimento mais amplo que busca a justiça social. Por meio de uma abordagem integrada de erradicação da pobreza, trabalhamos em todo o mundo com o objetivo de expor a indignidade da pobreza, desafiando e mudando sistemas e instituições que favorecem os ricos e poderosos em detrimento dos pobres e marginalizados. Christian Aid é membro da Aliança ACT

Revisão de Texto Bárbara Gonçalvez Design Gráfico Caco Bisol e Christian Aid

Apresentação

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Prefácio edição Reino Unido e Irlanda

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Parte 1 Tributos e Ética: desafios e possibilidades 7

Tributo para quê? Para quem? Quilombolas de Abaetetuba: Uma história de sucesso contra uma cobrança injusta de impostos

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Recomendações Finais

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Parte 2: Contribuições atuais para o debate no Brasil Uma coisa nos falta. Exigências do Evangelho contra a riqueza e 20 a propriedade Histórias de sobrevivência e resistência: Reflexões bíblicas sobre justiça 24 econômica Expediente, Autores e contribuições

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Apresentacão

O sistema  tributário bresileiro funciona como um instrumentos de manutenção da desigualdade. Dados de 2008/2009 do IPEA estimam que 10% das familias mais pobres destinam 32% de sua renda para o pagamento de impostos enquanto 10% das familias mais ricas empenham apenas 21% de sua renda para o mesmo fim. A cobrança desproporcional de impostos sobre bens e serviços em detrimento de cobranças sobre renda e patrimonio penaliza os mais pobres e privilegia os mais ricos mantendo assim as distâncias entre ambos.

A cada 30 reais oriundos da cooperação internacional, 45 saem dos países receptores da ajuda em forma de evasão fiscal. Com esse dado em mãos a Christian Aid há anos tem se empenhado em uma campanha global por Justiça Tributária. Esta campanha visa promover maior transparência no sistema financeiro e principalmente na ação de empresas multinacionais. O objetivo principal dessa ação é que os sistemas fiscais deixem de ser mecanismos de reprodução da pobreza e da desigualdade.

4  Tributos para o Bem Comum: um estudo sobre ética e tributação

Em 2014 a Christian Aid convidou um grupo de parceiros do Brasil para participarem de uma reflexão inédita para muitos: o que a teologia tem a dizer sobre justiça tributaria? O Conselho Nacional das Igrejas Cristãs (CONIC), o Serviço Anglicano de Diaconia e Desenvolvimento da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB), e o Instituto de Estudos Socio Economicos (INESC) aceitaram a proposta e se engajaram em um bonito processo de troca de saberes teologicos, sociais e econômicos. O artigo Tributos e Ética: desafios e possibilidades. Tributo para quê ? Para quem ? organizado por Dom Francisco de Assis da Silva, Primaz da IEAB é o resultado dessa troca na qual participaram ativamente, Joabe Cavalcanti (Igreja da Inglaterra), Joanildo Burity (Fundação Joaquim Nabuco), Romi Bencke (CONIC), José Antonio Moroni (INESC) e Caio Magri (Instituto Ethos). O texto integrou a publicação global da Christian Aid Tax for the Common Good: a study of tax and morality,  lançada em outubro de 2014. A publicação que você tem em mãos é uma edição brasileira desse texto onde preservamos o prefácio de Rowan Williams, ex Arcebispo da Cantuária e Presidente do Conselho da Christian Aid, o texto organizado por Dom Francisco, o estudo de caso elaborado a partir das informações da Comissão Pró Indio de São Paulo (CPI) sobre taxação de terras quilombolas e as recomendações finais. Considerando os desafios atuais percebemos nessa publicação uma oportunidade de trazer outras vozes brasileiras, outras vozes proféticas,

acerca de temas da nossa conjuntura. A taxação de heranças e grandes fortunas é um assunto em discussão no Congresso brasileiro e é parte importante de uma proposta de justiça tributária no Brasil.Nesse sentido, a teóloga metodista Nancy Cardoso, a partir da história do jovem rico retratada nos evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, compartilha algumas reflexões sobre o tema da propriedade. Cardoso apresenta o posicionamento de Jesus acerca da riqueza e da propriedade registrados nos evangelhos e desafia a ver nos mais pobres, nos endividados, pequenos e cansados, a medida do Reino de Deus. A contribuição feita pela Pastora e teóloga batista Odja Barros é sobre heranças a partir de narrativas bíblicas que envolvem mulheres e os dilemas de acesso à heranças. O texto nos conduz a uma análise critica do modelo concentrador de riquezas e gerador de desigualdade também entre homens e mulheres e propõe alternativas a partir das experiências de resistência narradas. Esta publicação pretende contribuir para o debate sobre o tema da justiça tributária na defesa de uma proposta radical baseada no bem comum, ou seja, aquele que está à serviço de toda uma comunidade como elemento básico de uma vida digna.  Esperamos que esses textos possam apoiar a ação profética e transformadora de movimentos sociais, organizações baseadas na fé, ONGs, mulheres e homens comprometidos com a superação das desigualdades no Brasil. Sarah de Roure Assessora do Programa da Christian Aid no Brasil

Prefácio da edição Reino Unido e Irlanda

Nessa publicação tão oportuna, a Christian Aid apresenta uma série de argumentos teológicos e éticos em prol da promoção e defesa da justiça tributária. Muitas nações em desenvolvimento são afetadas pela ação de empresas multinacionais que manipula seus lucros reais, para maioria das pessoas, a sonegação de impostos é uma prática errada. Nesta perspectiva, o presente estudo pretende explorar o que há por trás desse sentimento, analisando como ele está ancorado em profundos princípios cristãos. Além disso, pretende-se projetar o que seria um tributo bom, eficaz e justo. Falar de justiça, porém, exige de nós certa atenção, pois, frequentemente, definimos este

termo de forma simplista: ‘aquilo que se deve a alguém ou a alguma coisa’. Com esta definição, porém, corremos o risco de pensar em justiça de forma limitada, sem considerar seu conteúdo emocional positivo ou seu significado espiritual. Walter Brueggemann, em seu livro: Theology of the Old Testament, (Teologia do Antigo testamento) insiste que, segundo a Bíblia, o termo ‘justiça’ refere-se à redistribuição de bens e do poder, de modo que todos possam desfrutar daquilo que Deus deu à raça humana, aportando ao tema uma dimensão de transformação. A este fator acrescentamos, ainda, a importância das relações interpessoais. Ou seja, não basta redistribuir riquezas e influência, o que propomos é um conjunto renovado de interações sociais e

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cuidado mútuo. Esta definição mais abrangente do termo está mais próxima daquela proposta pela cultura judaico-cristã e de suas escrituras. Segundo a tradição hebraica, a palavra justiça (tsedaqah) está associada a erguer-se, concordar com alguém ou algo, caminhar na direção certa. Em outras palavras, trata-se da qualidade de uma pessoa ou uma situação em que se está em sintonia com aquilo que é verdadeiro e real. Desta forma, Cometer ‘tsedaqah’ ou ‘fazer justiça’ significa agir de modo a se relacionar com a verdade, com Deus e com o mundo divino. A famosa tríade apresentada no livro do profeta Miqueias (6:8) - fazer justiça, amar com misericórdia e caminhar humildemente com Deus – indica que agir justamente está interligado à compaixão e a um bom relacionamento com Deus. ‘Erguer-se’ significa viver como se deve; para isso é preciso se sensibilizar diante da urgência das necessidades ou da dor do outro, e do autoconhecimento verdadeiro diante do Criador. Em Jeremias 22:15-16 isso é ainda mais evidente. Segundo esta passagem, a justiça e o conhecimento de Deus andam juntos, e ‘conhecer’ Deus de verdade é defender os pobres e necessitados. Nessa perspectiva, injustiça é definida pelas Escrituras Hebraicas como ‘violência’, ou seja, é ‘reduzir a zero’ aquele com quem deveria se relacionar bem. Recusar-se a conhecer a Deus, traindo-o com deuses de criação pessoal para servirem aos seus próprios interesses, é o mesmo que se recusar a ‘conhecer’ a necessidade do outro que está ao seu lado. Jesus ecoa a linguagem dos profetas sobre ‘justiça, misericórdia e lealdade’ (Mateus 23:23). Estar ‘em Cristo’ significa ser ‘justo’ e caminhar de acordo com a sua ‘justiça’ – ou seja, andar no caminho certo, juntando-se a Cristo na sua relação com Deus, o Pai. E o que segue é que, em cada membro da comunidade, Cristo é ativo, pois é em cada um de nós que a relação de Cristo com Deus ganha vida – uma relação direita, um alinhamento verdadeiro. Na comunidade, cada membro está empoderado pelo Cristo presente em si, fazendo com que Cristo se torne mais real para o próximo. Se quisermos usar a linguagem de ‘dívidas’, podemos dizer que aqui cada um deve a todos, e

todos a cada um; e o serviço mútuo é a essência de uma vida conjunta. ‘A justiça’ se torna uma questão da liberdade de cada pessoa para dar o que recebeu, para fazer a sua contribuição para o todo interdependente – onde todos têm a consciência de que não têm nada além do que receberam, para que nenhum indivíduo tenha o direito da posse absoluta sobre qualquer propriedade. Agir justamente é agir de acordo com a verdade: a justiça é a precisão com que enxergamos e agimos. A nossa justiça não é oferecer às pessoas o que elas precisam, e nem apenas reconhecer os seus direitos ou reivindicações; é uma tentativa de agir de acordo com a realidade da maneira em que Deus a criou – que inclui a individualidade e a dignidade de todos os outros, e o chamado de todos para serem ‘doadores’ na comunidade humana, para que cada um oferece o que falta ao outro. É uma visão ativa e recíproca de justiça, baseada numa visão exigente da verdade de Deus como aquela que devemos servir e reconhecer em todas as coisas. Então, como podemos aplicar esses valores à justiça tributária no cenário internacional? Em que sentido uma empresa multinacional é chamada para ser um ‘doador’ para a comunidade humana? E para com quem a empresa tem a responsabilidade de providenciar o que precisam para serem livres e, então, mais humanamente ativos? As recomendações dessa publicação oferecem algumas sugestões de como podemos começar a responder a essas perguntas, e espero que possam facilitar a reflexão e a tomada de decisão daqueles que conseguem influenciar o comportamento e a política das corporações para que a justiça tributária, enfim, se torne realidade. Nós da Christian Aid acreditamos que tudo isso é crucial para atingirmos o objetivo de colocar muitas nações no caminho para uma maior autodeterminação e para o fim da dependência de ajudas e doações vivida por certos países . Com um entendimento criativo de justiça, talvez possamos desempenhar um papel criativo na libertação de todos para dar e receber os dons do florescimento humano. Rowan Williams Outubro 2014

Parte 1 Tributos e Ética: desafios e possibilidades

Tributo para quê? Para quem? Francisco de Assis da Silva1

Abordagem bíblico-teológica em uma perspectiva cristã Existem diferentes perspectivas teológicas com as quais podemos iniciar uma discussão sobre questões tributárias. No entanto, 1. Organizador; Dom Francisco de Assis da Silva (Primaz da IEAB) Colaboradores: Joabe Cavalcanti (Igreja da Inglaterra), Joanildo Burity (Fundação Joaquim Nabuco), Romi Bencke (CONIC), José Antonio Moroni (INESC) e Caio Magri (Instituto Ethos)

independentemente do ponto de partida escolhido, é necessário refletirmos sobre o Estado e sua interação com a sociedade e seus indivíduos enquanto cidadãos, pois é de responsabilidade estatal a manutenção de uma ordem social capaz de garantir a boa convivência entre todos, a partir de princípios inegociáveis de civilidade, dignidade e respeito mútuo. A organização de cada Estado depende das condições políticas e culturais de cada contexto. Em nenhuma circunstância, porém, eliminase a função primordial de uma organização que promova justiça e dignidade para todas as pessoas. Qualquer distorção dessas premissas põe em risco a garantia de estabilidade social. Os textos bíblicos permitem identificar uma abordagem de princípios que seriam mínimos

8  Tributos para o Bem Comum: um estudo sobre ética e tributação

para a existência de uma relação saudável entre Deus e a humanidade, assim como entre os indivíduos vivendo em sociedade. O Velho Testamento apresenta como a relação entre Deus e o gênero humano evolui de uma esfera criacionista para uma relação baseada na afirmação da dignidade de todas as pessoas (imagem e semelhança do próprio Deus). Desta forma, valores como justiça e amor são essenciais para a manutenção de padrões harmônicos. Toda vez que essa harmonia é rompida, estabelece-se uma relação confusa que precisa ser corrigida. Uma das mais claras imagens retratada nas Escrituras é a relação entre Deus e a humanidade. Nesta relação Deus (Yahweh) não permite a opressão. Por isso, os movimentos de libertação vividos ao longo da História sempre são afirmações do caráter de Deus diante de situações onde a dignidade humana não é respeitada e, por consequência, onde a organização social está estabelecida com base na opressão, injustiça, corrupção e degradação da vida. Neste sentido, a tradição profética ressaltará sempre que a existência do Estado não era a proposta originária de Deus para sua aliança com Israel – há várias passagens que ressaltam isso (cf. Deut 17, 1420; I Sam 8) – mas uma vez que ele se torna uma realidade, trata-se de monitorar de perto a atuação desta instância, denunciando com coragem quaisquer desvios. No Novo Testamento, a análise política do Estado deve ser feita de forma minuciosa e com bastante atenção. Nos discursos de Jesus é perceptível o reconhecimento da legitimidade do Estado, porém existe também uma profunda crítica a como o Estado se relaciona com “a sociedade” (conceito inexistente no mundo neotestamentário). Em Mt 20,25-27 a crítica se dirige ao modelo autoritário e explorador que a dominação romana implementava. No questionamento sobre a legitimidade do imposto a César, Jesus se opõe às esferas de ordem legal e ética, afirmando que mesmo pretendendo ser divino, o Império não é maior que Deus, e portanto, o “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. O tema da obediência ao Estado é apresentado na primeira carta de Pedro (2:13,16), nela o autor incentiva a aceitação da autoridade estatal (do Imperador) que seria enviado por Deus para punir os malfeitores. Na mesma linha da compreensão do Estado como autoridade legítima para o bem comum, encontramos a referência que Paulo faz em Rm 13:1,7. Aqui, temos uma arquitetura da legitimidade do Estado e da relação que os cristãos precisam cultivar com ele. Nessa passagem, o Estado não apenas é necessário, mas representa um instrumento divino para a regulação da sociedade, sempre na direção do

bem comum, e, portanto, deve ser respeitado. Segundo o mesmo texto, o respeito às prescrições das autoridades garante a dignidade de cada indivíduo, a dignidade da sociedade e o combate ao mal. Assim, o Estado, como forma de organização social mais complexa, precisa atender aos fins para os quais deve existir: a garantia da dignidade de todas as pessoas, o estabelecimento de uma ordem justa e, por decorrência, o uso de mecanismos e instituições que legitimem claramente a consecução de seus fins. Para isso, o Estado necessita de mecanismos de implementação legítima dos objetivos pactuados com e entre os governados. Um desses mecanismos é o poder de tributar seus cidadãos para garantir o cumprimento de sua função pública e social. Na verdade, esta interpretação já é uma tomada de posição ético-política, uma vez que os registros históricos revelam uma tendência fortíssima à utilização do tributo como meio de sujeição à autoridade estatal (personalizada ou não). Numa sociedade assimétrica em termos de distribuição de renda e bens, a função do Estado deve ser, numa perspectiva teológica, a de buscar a eliminação das desigualdades quando estas afetam a dignidade humana e criam situações de injustiça. A legitimidade do Estado reside, então, na consecução do bem comum. Quanto a isso, vale observar o autorretrato de um chefe de Estado apresentado em Sl 72: “Pois ele liberta os pobres que pedem socorro, os oprimidos que não têm quem os ajude. Ele se compadece dos fracos e dos pobres e os salva da morte. Ele os resgata da opressão e da violência, pois aos seus olhos a vida deles é preciosa”. (72:12-14) Em uma sociedade marcada pela distribuição de renda desigual, a função do Estado, em uma perspectiva teológica, deveria ser a eliminação das desigualdades e de tudo aquilo que afeta a dignidade dos indivíduos. A partir dessas premissas, devemos considerar o que chamaríamos de ética da relação entre Estado e Sociedade. Um dos textos mais antigos do Primeiro Testamento revela a esquina hermenêutica vivida pela sociedade hebraica quando optou pela monarquia ao invés de continuar em seu sistema tribal, liderado por juízes. O famoso diálogo entre os líderes do povo e o sacerdote Samuel (I Sam 8) representa a rejeição de Deus como autoridade estatal maior, e a demanda por um rei, ou seja, de um modelo administrativo similar as demais nações. Samuel lembra a todos que tal rei será o responsável pelo controle total da sociedade e terá autoridade para

Tributos para o Bem Comum: um estudo sobre ética e tributação

utilizar dos filhos e filhas do povo a seu favor e poderá tributar. Observa-se, aqui, um contexto de conflito ideológico entre duas correntes politicoreligiosas no antigo Israel: a sacerdotal e a profética. A opção do povo em aceitar esta forma representava a transição de uma teocracia para a monarquia, um abandono, por assim dizer, da supremacia divina sobre o conjunto da sociedade. Importante destacar que, na instituição de Saul como rei, Samuel aponta diretamente alguns critérios que deveriam inspirar a nova ordem: clareza, ética e justiça social! (I Sam 12,1-5; v.tb. Isa 33,15-16). Se o Estado tem que se basear em um alicerce composto de valores ético-morais, cabe ao mesmo, no cumprimento de sua finalidade, garantir que estes valores permeiem as instituições, suas práticas e seus resultados. Assim, se a tributação é a forma principal de auto- sustentação do Estado, a destinação dos recursos arrecadados depende do entendimento assumido pelos setores dirigentes. Por isso, o tributo pode servir tanto para reforçar a dominação, como pode estar em conformidade com critérios etico-políticos que visam servir a sociedade, especialmente os setores excluídos ou vulneráveis (no linguajar bíblico simbolicamente representados pelos pobres, os estrangeiros, os órfãos e as viúvas). No contexto brasileiro, a partir da década de 1960, setores das Igrejas desenvolveram profunda reflexão a respeito da desigualdade estrutural dentro dos Estados. Este modelo de reflexão teológica, chamado de Teologia da Libertação, questionava a concentração da riqueza e a institucionalização da injustiça social e, mesmo não se detendo especificamente na questão tributária, recuperou profetismo e suas leituras, cobrando do Estado o cumprimento do seu papel de promotor da justiça social.

A questão da tributação e as implicações éticas de sua gestão: Tributo para quê? Uma vez entendida a relação teológica entre autoridade estatal, e ética social, colocamos em evidência que a capacidade de tributar é uma das prerrogativas legítimas do Estado. Devemos considerar que a instituição dos tributos, a administração da receita tributária e a aplicação dos recursos precisam ser feitas obedecendo a princípios éticos, em uma estrutura administrativa que garanta a aplicação dos recursos na implementação de políticas públicas cujo objetivo é o enfrentamento todas as formas de desigualdades. Como forma de garantir o bom

uso do recurso público, é um imperativo ético a prestação de contas (accountability) do agente estatal perante a sociedade. Todo cidadão tem o direito de saber de quem o Estado arrecada, quais mecanismos que usa para arrecadar, quais mecanismos de distribuição e para quem distribui. Um dos instrumentos para distribuição do imposto recolhido são justamente as políticas públicas, por isso a forma como são concebidas é primordial para sua eficiência. No entanto, muitas dessas políticas geram efeitos contrários ao esperado, ou seja, são ações que terminam por arrecadar de quem menos tem para distribuir pra quem tem mais contribuindo, assim, para o aumento da concentração de riqueza. No Brasil, por exemplo, a política de juros altos é uma forma de distribuição ao inverso. Constata-se, portanto, que a arrecadação de tributos não é um fim em si mesmo e nem deve ser usada para fins de reforço da estrutura estatal em detrimento dos cidadãos e tampouco deve ser usada como mecanismo de manutenção dos privilégios das elites. O tributo é um instrumento de redistribuição das riquezas e redução das desigualdades. Por consequência, os recursos provenientes do tributo deveriam possibilitar a garantia do bem comum, a equidade e a justiça social. Por extensão, a obrigação de pagar tributo transforma-se em um direito social em que o Estado se apropria dos recursos oriundos da sua capacidade tributária, a fim de promover o bem coletivo.

Tributos e democracia Como indicado anteriormente, a capacidade de estabelecer tributos não é absoluta, sendo regulada por instituições sujeitas ao crivo representantes da sociedade, além de obedecer a princípios historicamente consolidados. Assim sendo, os mecanismos de tributação do Estado estão legitimados pela estrutura legal e pela ordem constitucional democrática de um país. O que significa dizer que definição e o alcance do tributo não são atribuições pessoais do governante, mas sim uma reponsabilidade regulada e mediada jurídica e politicamente. Tendo como referência o modelo de democracia representativa existente no Brasil, em que o sistema tributário (aí entendido não apenas a cobrança de impostos, mas também a definição dos gastos públicos) depende da aprovação de instâncias legislativas, onde diferentes segmentos sociais estão sub-representados, somos levados a nos questionar sobre a legitimidade de tal sistema. O quadro abaixo nos mostra a origem dos parlamentares. Como podemos perceber,

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a grande maioria está vinculada ao setor empresarial que é peça importante no mecanismo de arrecadação. Nota-se, pela força parlamentar do referido grupo, que não é por acaso que todo projeto de reforma tributário que procure enfrentar a perversidade do nosso sistema, reequilibrando a balança tributária a favor das classes de menor renda, não é aprovada. Vale ressaltar que o gráfico abaixo inclui os demais setores representados no Congresso, tais como os setores da educação e da saúde.

quando falamos de bem-estar-social, estamos nos referindo a um ambiente social, político, econômico, cultural que tem como estratégia comum a busca pela igualdade e a valorização da diversidade. Tal perspectiva está diretamente associada ao artigo 3º da Constituição Federal que dispõe sobre os objetivos fundamentais do Estado brasileiro que são: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização; reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos (CF, art 3º)

Tendo em vista a fragilidade do sistema representativo brasileiro, em que o eleitor não se sente representado por seus governantes, e o vínculo direto entre o sistema tributário e o político, concluímos que, para se enfrentar as “mazelas” do nosso modelo de tributação, antes é necessário pensarmos em reformas que visem fortalecer os mecanismos de democracia direta e a proibição de financiamento privado de campanhas e dos partidos. Enfim, é necessária a instauração de mecanismos capazes de integrar aos espaços de poder, grupos sociais até então subrepresentados. Sem isso, o sistema tributário continuará tirando dos pobres para entregar aos ricos.

Ao observarmos a legislação brasileira, constatamos que toda essa imbricada rede de processos legais deveria garantir que as práticas tributárias atingissem sua finalidade de promoção da justiça social. No entanto, o Brasil permanece uma sociedade caracterizada por suas desigualdades. Em países marcados pela concentração de riquezas e distorções do acesso aos direitos, a aplicação do princípio da justiça redistributiva torna-se elemento fundamental da política pública. Concluímos, assim, que para o alcance do bem comum, a sociedade deve estar integrada ao Estado por meio de mecanismos de participação e fiscalização das prestações de contas, de modo a garantir que o poder tributário estatal sirva para promover o bem comum ao invés de perpetuar privilégios. Ao mesmo tempo,

A capacidade tributária do Estado deve ter como fim o bem estar social, por isso a justiça tributaria é uma peça fundamental no cumprimento da finalidade das instâncias públicas. Neste caso,

O Congresso por representacão Empresários têm três vezes mais representantes que sindicalistas Educação

Empresarial

273

69 66

Ambientalista Fonte: Diap

Ruralista

160

213

15

55

91

Sindical

79

Saúde Comunicação Evangélica Feminina

Tributos para o Bem Comum: um estudo sobre ética e tributação

o Estado, legitimado por um sistema político eficaz, precisa estar munido de poderes que lhe permitam regular a atividade econômica de forma a garantir, pela tributação, a redistribuição de riquezas, evitando desigualdades sociais e, por consequência, a injustiça. Nessa perspectiva, damos continuidade ao nosso estudo, analisando dois aspectos importantes da sociedade injusta a qual tentamos combater: a relação entre modelo econômico e a concentração de riquezas.

Poder econômico e concentração da riqueza A discussão política a respeito da ética no campo da economia atravessa séculos. Nos marcos do sistema capitalista, o conflito entre Estado e Mercado encontra-se, hoje, em uma importante encruzilhada hermenêutica. Por um lado há os que defendem a economia de livre mercado absoluto, firmados no princípio de que o sistema capitalista tem a capacidade de se autorregular e produzir riqueza que beneficiem a todos. Por outro lado, temos aqueles que defendem que o Mercado precisa ser mais fortemente regulado pelo Estado, de modo a garantir que os cidadãos mais fragilizados economicamente não percam sua capacidade competitiva e não sofram exclusão. Neste modelo, a capacidade tributária do Estado funcionaria como um instrumento legítimo (entre outros) para garantir que todos os segmentos sociais usufruam de condições justas de dignidade e bem estar. O que observamos atualmente é que, diante da supremacia econômica do modelo neoliberal, baseado na concentração de capital, as empresas, as grandes corporações e o mercado financeiro detém o poder de subordinar os demais atores, impondo, inclusive aos Estados, a submissão aos seus interesses. Este é um fenômeno que vem se aperfeiçoando ao longo da história. O Capitalismo, baseado no acúmulo de capital, reestruturou-se a partir da internacionalização dos movimentos corporativistas e patrimonialista dos grandes conglomerados econômicos que, por deterem o poder financeiro, político, cultural e midiático, são capazes de impor suas agendas ao sistema político e internacional. Este crescente poder tem implicações na regulação das relações econômicas e sociais em virtude da conjugação dos seguintes fatores: os Estados precisam estimular o desenvolvimento, o emprego e suas políticas sociais, enquanto que as empresas de grande porte utilizam de seu poder econômico para extrair do Estado as vantagens que lhes garantam a maximização de seus lucros. Ocorre uma espécie de ciclo pernicioso cujo resultado tem sido o acúmulo cada vez maior de riquezas e o aumento das desigualdades.

Nessa correlação de forças, cabe ao contribuinte ocupar o espaço de maior vulnerabilidade na cadeia tributária. Tal aspecto torna-se evidente no sistema brasileiro quando constatamos que a incidência de tributos é maior sobre o consumo do que sobre a riqueza, os lucros e a renda. A fim de melhor entendermos este processo, analisaremos como a permanência do modelo econômico neoliberal inviabiliza garantia de direitos fundamentais dos cidadãos e, por consequência, a concretização da finalidade maior do Estado, que é a justiça social.

Neoliberalismo e a impossibilidade de garantir direitos Como dito anteriormente, o advento do neoliberalismo impôs aos Estados um modelo de gestão que privilegia os setores econômicos e financeiros em detrimento das demandas sociais por garantia de direitos e soberania. Um exemplo dessa difícil equação é a adoção de controle de juros por parte do Estado. Neste modelo, a sociedade é diretamente afetada e não goza de nenhuma autonomia ou mecanismo de participação para influir em decisões que não somente afetam o bolso do contribuinte, como também a economia em seu conjunto. Em virtude da prioridade atribuída pelos governos ao mercado, alguns teóricos afirmam que o Estado, hoje, não passa de um gestor econômico, sustentado por representações políticas financiadas pelo grande capital. Como consequência, qualquer iniciativa de controle dos fluxos de capital ou das regras de livre mercado é vista com profunda desconfiança. A supremacia dos interesses econômicos e sua incidência na política têm fragilizado as democracias representativas e, por conseguinte, a sociedade. A imposição das agendas desenhadas pelos conglomerados internacionais evidencia a força dos critérios econômicos na política, gerando uma série de consequências negativas na vida dos povos. Como foi destacado durante a Cúpula dos Povos, no Rio de Janeiro, em 2012: “O capitalismo também leva à perda do controle social, democrático e comunitário sobre os recursos naturais e serviços estratégicos, que continuam sendo privatizados, convertendo direitos em mercadorias e limitando o acesso dos povos aos bens e serviços necessários à sobrevivência”. Os Estados estão fragilizados em meio à tensão entre economia interna e bem estar social versus economia global. Nesse sistema, buscase conciliar interesses que sempre acabam favorecendo o mercado financeiro, base da economia global. O Estado perde, assim, sua

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capacidade de prover aos cidadãos serviços e direitos fundamentais. Tal capacidade fica condicionada a uma tributação excessiva ou a captação de recursos internacionais, aumentando ainda mais sua vulnerabilidade econômica.

Obstáculos à uma justa tributação Além da fragilidade política e econômica descrita anteriormente que limita o potencial de promoção de justiça social via modelo tributário eficiente, são muitos os artifícios para a evasão fiscal de grandes empresas, especialmente nos países em desenvolvimento. O uso de endereços fiscais fictícios é um deles. Na realidade brasileira, isso tem sido uma prática usual por meio de guerras fiscais, na qual domicílios fiscais são escolhidos a partir da baixa tributação oferecida pelos municípios ou estados, sob a justificativa de geração de empregos. A guerra fiscal, mesmo acontecendo dentro de um parâmetro de legalidade, revela sua face perversa por se justificar pela ampliação do lucro, desconsiderando, assim, a função social da atividade econômica. Por tanto, trata-se de um jogo de interesses que acontece dentro dos parâmetros da atração e utilização do capital produtivo, com diferentes níveis de redução ou extinção da atividade tributária. Outro obstáculo a ser enfrentado é a existência dos paraísos fiscais cuja função, em termos gerais, é facilitar o transito do capital financeiro, especulativo, e de origem duvidosa, e dar morada segura, rentável livre de tributação, ou de tributação reduzida, a esses investimentos. Isso faz com que os investidores, desprovidos de compromisso social, sejam atraídos como que naturalmente para esses paraísos. Os entes fiscais precisam apenas ter sua personalidade jurídica em um lugar sem que, necessariamente, sua base física e operacional esteja nele. Por meio de contratos terceirizados, as empresas garantem a produtividade de suas bases físicas, com o beneficio tributário oferecido pelo local de sua sede jurídica. Ou seja, usa-se um artifício que é legal, mas que esconde uma prática imoral. Outro desafio imposto aos Estados no processo de consolidação de sua eficiência tributária e cumprimento de suas finalidades é a evasão de divisas decorrentes das atividades econômicas das grandes corporações. A falta de mecanismos de controle mais precisos de circulação do capital financeiro em nível internacional permite a realização de remessas de lucros e dividendos para os chamados paraísos fiscais. Um relatorio da Tax Justice Network de 2012 apontou que os paraísos fiscais detinham em torno de 21 a 32 trilhões de dólares de investimentos ocultos e livres de tributação. De

acordo com o relatório, se esses investimentos fossem normalmente tributados, eles gerariam uma receita fiscal de 190 a 280 bilhões de dólares2! No plano internacional, o manejo financeiro em regimes tributários territoriais distintos confere às grandes empresas o artifício de estarem fisicamente em um território, mas escaparem de sua incidência fiscal. Em termos gerais, o que observamos é a diminuição da carga tributária das sedes físicas gerando o aumento do faturamento. Este lucro ou retorna à matriz da empresa ou é destinado a paraísos fiscais, reduzindo, assim, a participação positiva, ou contribuição socioeconômica no país em que os lucros são adquiridos. O mesmo recurso de evasão fiscal afeta diretamente o processo de contribuição social quando contratos de prestação de serviços ou mesmo contratação de força de trabalho se dão a partir de regulamentos trabalhistas de suas sedes, em detrimento da legislação onde a atividade fim está sendo executada. Nas economias em desenvolvimento, esta prática se constitui em imoralidade porque evita a promoção da justiça social. No Brasil, por exemplo, desde a época das chamadas Superintendências Regionais de Desenvolvimento, era comum ver empreendimentos industriais que recebiam incentivos fiscais e até mesmo os terrenos para a instalação de seus parques. Contudo, após o fim do período de benefício fiscal, as empresas beneficiadas encerravam suas atividades alegando elevação de custos e consequente prejuízo. Este quadro gerou, durante anos, fenômenos de migração de mão de obra com todas as implicações sociais decorrentes do fechamento de fábricas e desemprego. No caso nordestino, as empresas se beneficiavam do baixo custo de matéria prima - normalmente acessível - e de mão de obra cujas condições salariais estavam abaixo das demais regiões do país. Outro mecanismo muito usado por empresas é o de estabelecer relações de terceirização, transferindo custos de mão de obra e obrigações sociais, aumentando assim faturamento na linha final do consumo e, por conseguinte, ampliando seus lucros. Embora algumas dessas modalidades estejam em consonância com as legislações referentes ao tema, sabe-se que o que a maximização dos lucros, em detrimento de seus compromissos sociais e fiscais constitui prática lesiva à soberania dos povos. Recentemente, com o aumento da fiscalização do trabalho tem sido recorrente inclusive o crescimento de casos de trabalho escravo, normalmente promovido por terceiros que tem contratos para manufatura com 2. http://www.taxjustice.net/cms/front_content.php?idcat=148

Tributos para o Bem Comum: um estudo sobre ética e tributação

grandes empresas. Observa-se, portanto, que o processo de internacionalização das empresas e do capital financeiro possibilita a evasão fiscal e, por conseguinte, reduz a arrecadação de impostos e a capacidade dos Estados, sobretudo daqueles em desenvolvimento, em investirem em políticas públicas de promoção da justiça social. A seguir, analisaremos o impacto do modelo tributário brasileiro a fim de entender de que forma ele permite a manutenção de uma estrutura social tão desigual.

Sistema Tributário Brasileiro e as desigualdades sociais Não é de hoje que se levantam críticas ao sistema tributário brasileiro. Uma primeira observação que se deve fazer é a respeito da multiplicidade de tributos e de regulamentos diferentes que dificultam o processo de fiscalização e o controle tributário. Quanto mais complexo um sistema tributário, maiores são os riscos de ineficiência e do não cumprimento de suas finalidades.

Ao que se refere ao modelo brasileiro, o modelo de arrecadação de impostos permite que, em termos proporcionais, a incidência sobre renda de pessoa física seja maior e mais controlada do que a tributação sobre empresas, operações financeiras. A Tabela 1 expõe esta faceta: Se considerarmos como finalidade maior do tributo a promoção do bem estar e a justiça social, gerados pela redistribuição de riquezas via investimento estatal em serviços adequados à população, constatamos, ao observar a tabela acima, que o modelo tributário em questão não atende este objetivo. Ao contrário, os números indicam que a política tributária brasileira é profundamente desigual, visto que a taxação maior sobre o consumo permite que as classes de menor poder aquisitivo sejam, proporcionalmente, mais afetadas pela carga de impostos do que as classes mais abastadas. Em outras palavras, na ponta do consumo, ricos e pobres pagam a mesma conta, ou seja, há um o tipo de isonomia completamente injusta que impossibilita o reequilibro social, via redistribuição dos benefícios gerados pela riqueza. Os indicadores apresentados a seguir evidenciam ainda mais a perversidade do sistema tributário brasileiro, pois deixa claro que a incidência tributária é proporcionalmente maior sobre a renda daqueles que possuem menores salários (Tabela 2):

Tabela 1. Carga tributária por base de incidencia – ano 2009 Tipo de base

participação na Carga Tributária Total (%)

Consumo

47.36

Renda

19.88

Folha de salários

26.05

Propriedade e Transações Financeiras

4.91

O modelo brasileiro reforça, ainda, a desigualdade regional, privilegiando os estados do Centro Sul em detrimento dos do Norte e Nordeste; a  desigualdade entre mulheres e homens - já que essas são maioria no trabalho informal e nas atividades não remuneradas. Os tributos têm um caráter regressivo contribuindo para a concentração de renda e perpetuando a desigualdade estrutural e multifacetada do Brasil.

Fonte: Ministério da Fazenda; Receita Federal.

Tabela 2. O peso dos impostos por renda Renda

% de comprometimento

Dias trabalhados por ano para pagar os impostos

R$ 724 (salário mínimo)

37%

153 dias

R$ 6.000,00

23%

115 dias

R$ 22.000,00

17%

106 dias

Fonte: OBGE/POF

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O grande desafio que se coloca para o sistema tributário brasileiro é justamente como inverter esta lógica de arrecadar mais de quem menos tem, para distribuir entre quem mais tem. Tais mudanças dependem de alterações constitucionais e são de responsabilidade dos parlamentares brasileiros, no entanto as bancadas de maior representatividade no Congresso Nacional estão associadas ao empresariado e a grupos de interesse cujo trabalho visa apenas angariar lucro e mais poder. Como mencionado anteriormente, o que observamos é a formação de um circulo vicioso que só será rompido mediante reformas políticas que tenham por base as premissas defendidas pelas organizações da sociedade civil articuladas à plataforma de reivindicação dos movimentos sociais.

Empresas e Justiça Tributária A inequidade do sistema tributário brasileiro nos mostra que o rigor aplicado aos contribuintes individuais e a sua renda, não é o mesmo aplicado às empresas. No entanto, já existem governos e ONGs que defendem uma maior regulação das atividades econômicas das empresas e das grandes corporações. Atualmente, o modelo de tributação aplicado aos lucros e aos ganhos de capital é muito flexível, sem contar os já mencionados artifícios de transferências de lucros e uso de brechas legais para eximir-se do pagamento de impostos. De acordo com pesquisa realizada por Christian Aid em 2008, cerca de 160 bilhões de dólares são subtraídos dos países em desenvolvimento mediante mecanismos de fuga tributária das grandes corporações. (Hungry for Justice Report) No Brasil, segundo dados da Receita Federal, somente em 2013 foram sonegados cerca de R$ 415 bilhões, o que representaria, a título de comparação, mais de uma década e meia de investimentos no Programa Bolsa Família que, no mesmo ano, teve orçamento de R$ 24 bilhões. A evasão fiscal brasileira, segundo estimativas, responde por cerca de 13,4% do PIB. No mundo, nosso país só perde para a Rússia. (Revista Valor Econômico, 09.11.2013) Estes problemas poderiam ser evitados se houvesse uma melhor regulação da ética do sigilo fiscal das grandes corporações. Submetida a regulações contratuais em seus países de origem, as subsidiárias se resguardam do fornecimento de informações exatas quanto às suas movimentações financeiras. A fim de evitar os grandes fluxos de capital associados à evasão fiscal, ativistas anticorrupção defendem que as empresas sejam obrigadas a divulgar seus lucros, receitas e pagamentos de impostos nos países em que operam, de modo a evitar que

profissionais contábeis elaborem estratégias que permitam o pagamento reduzido de impostos. Grupos empresariais continuam contrários às medida de regulação e cada vez mais investem em políticas de gestão tributária que, em outros termos, significa o planejamento de ações que possibilitem o pagamento de menos impostos. O princípio da maximização de lucros e as políticas de planejamentos fiscais agressivas são parte essencial do espirito financista aguçado do capitalismo moderno. Vivemos sob o paradigma de que eficiência econômica significa ter mais dinheiro do que bens e serviços. Sob uma ótica teológica, porém, este modelo é reprovável exatamente por colocar em situação de vulnerabilidade os mais pobres. Mesmo se considerarmos a mentalidade do mundo bíblico como anterior ao capitalismo, são perceptíveis alguns princípios claros de organização social e econômica que condenam a ganância e o acúmulo. Se observarmos o que Ano do Jubileu representou para a sociedade judaica (Levíticos 25:15 e 27) constatamos que, entre outras coisas, existem duas diretivas cujo objetivo é esclarecer a importância do uso da terra e seu retorno ao proprietário anterior. Tal prática seria necessária como forma de se evitar a acumulação excessiva entre credores e garantir a libertação de escravos. Ao que se refere à história econômica brasileira, percebe-se que a concentração de terra e de riquezas tendeu sempre a aumentar, mesmo diante das políticas redistributivas aplicadas ao longo das últimas décadas. Uma hipótese para isso é que as tais políticas não tiveram escala e alcance para mudar esta realidade. De fato, sua efetividade e expansão poderiam estar associadas a mudanças no sistema tributário capazes de favorecer a redistribuição de renda no país.

Justiça Fiscal e responsabilidade social das empresas No Brasil, o princípio da responsabilidade social está presente em sua Constituição e referese ao direito a propriedade e às mais diversas atividades econômicas exercidas no país. Assim, a consolidação deste princípio depende da capacidade do setor empresarial em respeitar os direitos dos indivíduos com os quais interage, seja ele empregado ou consumidor. Ao que se refere à legislação tributária, as empresas estão compulsoriamente atreladas a essas normas, o que não apenas as vinculam ao Estado mas também a sociedade, foco das políticas públicas. Por isso, a sonegação de impostos, ainda quando realizada em conformidade com a legislação local e nacional, representa a falta de compromisso do empresariado para com a população.

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Vale ressaltar que a responsabilidade social não pode estar limitada a atividades de marketing nem aos interesses de promoção das marcas. Sabe-se que, em muitos casos, mesmo os investimentos empresariais em ações sociais podem ter uma conotação negativa por fazerem parte de uma estratégia de redução da incidência tributária nos custos das empresas. O maior problema observado nesse tipo de estratégia é que, enquanto os gastos dos governos no setor social estão atrelados a uma estratégia de política pública, o investimento social proveniente do setor privado é realizado segundo critérios estabelecidos por ele mesmo e, por conseguinte, são de menor eficiência a nível global. Em um sistema justo, a ação social das empresas deveria estar associada ao cumprimento de suas responsabilidades tributárias, de modo que tais inciativas viriam a complementar os investimentos provenientes do Estado nos setores de promoção social. Transparência e compromisso são duas armas eficazes que evitariam o uso de artifícios e brechas legais para sonegação de impostos, e seriam um verdadeiro antídoto contra a corrupção. Considerada um problema sistêmico, a corrupção é resultado da confluência entre interesses corporativos que envolvem agentes públicos, empresas e indivíduos. O resultado desse conluio é sempre o prejuízo para o conjunto da sociedade. Não é a toa que um dos pontos da reforma do sistema político brasileiro reivindicado pela sociedade civil, inclui a supressão do financiamento privado (majoritariamente de empresas) de campanhas políticas. Está mais que evidente que este tipo de suporte político destinado aos partidos e candidatos se constitui em prejuízo das sociedade e das políticas públicas, pois os beneficiados sempre garantem seus benefícios por meio de contratos vultosos com o governo.

Tributo para quem? O enfrentamento à pobreza e às desigualdades sociais só será bem sucedido mediante uma restruturação do sistema tributário que leve em conta a relação entre o capital e o trabalho. Não há nenhuma evidência concreta de que o aumento da circulação financeira tenha incidência no processo de melhoria e justiça social, por isso, a consolidação de um sistema tributário eficaz depende da capacidade dos Estados de fiscalizar suas economias e de regulamentar a circulação de capitais. Quando observamos a realidade atual em que a evasão fiscal no Brasil corresponde a R$ 415 bilhões. Deste valor, podemos deduzir que, mediante a política de juros altos, esta soma

pode dobrar no espaço de um ano, pois, quando colocado no mercado, este dinheiro pode ser emprestado, gerando taxas que remunerarão seus donos e as instituições financeiras. O problema deste modelo de investimentos é que nele, apenas uma ínfima parte do faturamento passa pelo o Estado, mesmo quando os investimentos são feitos em títulos do próprio governo. O enfrentamento da desigualdade social depende de políticas distributivas cuja concretização está atrelada a existência de um sistema tributário eficaz. Tomando o exemplo brasileiro, a soma dos orçamentos do Programa Bolsa Família, do Seguro Desemprego, do programa Minha Casa Minha Vida, representam um montante ínfimo dentro da massa tributária nacional. Paralelamente, para gerir os encargos financeiros da dívida pública, o Governo se obriga a promover o superávir primário e a priorizar atividades de mercado em detrimento do bem estar social. A deficiência do sistema tributário brasileiro, em termos de retorno concreto dos tributos para as políticas sociais é reconhecida inclusive pelo próprio CDES - Conselho de Desenvolvimento Economico e Social, que afirma que: “O sistema é injusto porque o retorno social é baixo em relação à carga tributária. Dos 34,9% do PIB arrecadados em 2008, apenas 10,4% do produto retornaram à sociedade na forma de investimentos públicos em educação, saúde, segurança pública, habitação e saneamento” Justiça fiscal é tão necessária quanto a democracia. O principio clássico de exigir de cada um o que é justo e conferir a cada um o que é necessário deveria inspirar os sistemas tributários. No entanto, a supremacia do modelo capitalista financeiro impõe grandes barreiras à concretização do princípio de justiça social. Um bom exemplo disso foi a crise internacional de 2008. Para salvar o sistema financeiro internacional, os governos e as instituições financeiras fizeram circular um montante da ordem de USD 3 trilhões que foram capazes de evitar o colapso do sistema. Mesmo se considerarmos a imaterialidade desses recursos, muito desse “dinheiro” se concretiza em forma de obrigações e títulos futuros, é curioso notar a abundância de capital existente e nos perguntarmos como fica a desigualdade social neste cenário? A prática imoral das corporações em manter seus lucros fora do alcance tributário dos países em desenvolvimento consolida o mercado financeiro, tal qual descrito anteriormente, e colabora para o

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aumento das injustiças sociais. É preciso rigidez para corrigir as brechas legais existentes no sistema de tributação. Um consenso internacional de Governos e de organizações da sociedade civil precisa ser criado para enfrentar esta distorção que amplia ainda mais a concentração de capital e mantém o ciclo perverso de exclusão e pobreza! No âmbito da sociedade brasileira existe uma mobilização de setores populares, movimentos sociais, ONGs, e de associações de classes de trabalhadores, cujo objetivo é a defesa de uma reforma tributária baseada no princípio da progressividade (quem mais tem, mais paga), de modo a garantir que a distribuição dos tributos favoreça o processo de redução das desigualdades. Espera-se, portanto, que o sistema tributário seja eficiente e que os recursos arrecadados sejam aplicados de forma justa pelo Estado. Entre as propostas defendidas por estas organizações estão: a) Instituir a progressividade dos impostos. b) Aumentar a transparência sobre a tributação. Recentemente, entrou em vigor no Brasil uma norma que determina que os cupons ficais devem especificar o montante sobre o valor total que representa o tributo cobrado. c) Desonerar integralmente a cesta básica, como forma de amenizar a situação de pobreza de boa parte da população. A tributação de produtos alimentícios básicos representa uma alta carga tributária entre a população de menos renda, por isso é necessário o pagamento progressivo, ou seja, proporcional à renda de cada um. d) Instituir maior tributação dos bens supérfluos e de luxo; e) Corrigir a tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) e aumentar sua progressividade. Um exemplo que nos permite observar a injustiça do modelo atual é que em 1996, a insenção do IRPF era garantida a todos que recebiam até 9 salários mínimos, ao passo que pela tabela atual, quem recebe mais de 2,52 salários mínimos já é obrigado a pagar esse imposto; f) Tributar os lucros e dividendos distribuídos; g) Instituir a cobrança do imposto sobre herança e doações; h) Aumentar os impostos sobre a propriedade da terra; Esta alteração permitiria ao Brasil

enfrentar um de seus maiores problemas sociais: a extrema concentração de terras, muitas das quais improdutivas enquanto milhões de famílias sem terra buscam meios de garantir sua subsistência. i) Tributar as remessas de lucros. Dados do Banco Central revelam que a remessa líquida de lucros e dividendos ao exterior alcançou, somente em 2012, US$ 28,6 bilhões, cerca de R$ 66 bilhões (ao câmbio de março de 2014) j) Cobrar IPVA sobre embarcações e aeronaves; k) Instituir o imposto sobre grandes fortunas (IGF), conforme previsto no Artigo 153, inciso VII, da Constituição Federal, prática utilizada em alguns países desenvolvidos; Nesta perspectiva, o objetivo maior não é aumentar a carga tributária, mas sim torná-la mais justa, garantindo sua maior incidência entre aqueles que possuem mais recursos, e que os maiores beneficiados sejam aqueles que mais precisam. Tão importante quanto estas mudanças é assegurar uma ampla reforma política que dê à sociedade mecanismos de definição de prioridades para a destinação da receita tributária. Por meio da ampliação do controle e da fiscalização sobre a política tributária será possível garantir que política pública seja uma ação de Estado e não apenas uma estratégia de governo. O ponto de partida para isso seria a adoção do princípio da cidadania tributária, na qual o tributo é uma obrigação definida pelo Estado, ao mesmo tempo em que é direito do contribuinte monitorar a gestão pública. Quanto mais consciência nós, cidadãos, tivermos sobre a importância da tributação como instrumento legítimo que confere ao Estado os recursos para promoção do bem estar social, maior será sua adequação ao controle social, o que implicará menor risco de desperdício dos gastos públicos. Por fim, salientamos a importância de se entender a importância da transparência das políticas tributárias, em seu contexto de forte demanda, por parte das organizações da sociedade civil, por maior participação e controle social em diversas áreas de atuação do Estado. No Brasil, as discussões sobre tributação deve sempre enfatizar a importância da participação cidadã enquanto ator social que monitora e controla quem paga os tributos, e quem os coleta, e como os recursos provenientes deste modelo de arrecadação é convertido em benefício para a população.

Quilombolas de Abaetetuba: uma história de sucesso contra uma cobrança injusta de impostos

Na Amazônia Brasileira, no Município paraense de Abaetetuba, cerca de 1.200 famílias quilombolas vivem próximas à natureza, junto a grandes rios. Elas se sustentam, primordialmente, dos alimentos que produzem e da renda gerada pela venda de produtos nativos, como o açaí e farinha de mandioca. Diante do estilo de vida adotado por essas comunidades, observa-se que, para essas famílias, seu principal bem é a terra cujo título de propriedade foi concedido em nome da associação quilombola em 2002. O reconhecimento legal deste direito deu às comunidades, a proteção necessária frente ao agronegócio, às empresas mineradoras e de madeireiras, que frequentemente provocam a expulsão dos camponêses pobres de suas terras. Entretanto, neste caso, o título recebido não pôs fim à luta pela permanência dos quilombolas em suas terras. Em 2011, a associação das 11 comunidades existentes em Abaetetuba foi surpreendida com uma cobrança judicial impagável de R$ 18 milhões de imposto pela terra, o ITR. “Apesar de falarem dos nossos direitos na Constituição Federal e na Convenção 169, chegou essa dívida. Muitas das expectativas que a gente tinha depois de tanta luta para conseguir a terra escaparam das nossas mãos por conta disso”, diz Edilson da Costa, coordenador da associação quilombola. O tributo está previsto na Constituição Federal de 1988 e tem por objetivo regular o uso das terras conforme a função social da propriedade. Até o momento, são imunes ao ITR as pequenas propriedades rurais que não possuam outro imóvel e que seja explorada por um pessoa só ou por uma família. Também estão isentos desse imposto os imóveis rurais parte do programa oficial de reforma agrária e aqueles em que a área total está de acordo com o tamanho limite

estabelecido para pequenas propriedades e cujo proprietário não possui imóvel urbano. A legislação que regulamenta o ITR foi omissa quanto às terras protegidas dos antigos quilombos e a Receita Federal entendeu que a cobrança do imposto era devida, determinando que tais associações fossem acionadas, inclusive judicialmente, em virtude do não pagamento das tributos cujo montante era milionário. Além da insegurança trazida por uma dívida impagável, os quilombolas se viram impedidos de acessar programas sociais, já que suas associações não conseguiam mais obter a certidão negativa junto à Receita Federal, fazendo da tão sonhada conquista da titulação um grande pesadelo. Entretanto em novembro de 2014 a solução veio com a aprovação da Lei 13.043, que acaba com a cobrança do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural em terras quilombolas. “A gente não tem palavras para expressar o tamanho da alegria. Além de uma vitória, é também nossa libertação”, comemora Edilson.A mudança foi articulada pela Comissão Pró-Índio de São Paulo juntamente com a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombo das Ilhas de Abaetetuba, Inesc, CNBB, Movimento Sem Terra e ABRA como uma forma de agilizar a resolução do problema. O caso narrado anteriormente sobre cobrança de tributos referentes a propriedade de terra exemplifica um problema estrutural do sistema tributário brasileiro, em que os mais pobres pagam uma maior porcentagem sobre seus recursos em tributos do que os m ais ricos. Enquanto os mais pobres da sociedade pagam quase metade de seus ganhos em impostos (a maioria indireto, incluído no preço de bens e serviços), os ricos pagam menos de um quarto dos seus ganhos.

Recomendações finais

As recomendações aqui presentes foram extraídas da publicação original e são complementares ao artigo ‘Tributos e Ética: desafios e possibilidades Tributo para quê? Para quem?, esta reflexão contribui, ainda, para uma melhor perspectiva de ação diante do nosso objetivo de atuar em prol da justiça social em nossoas comunidades. Os autores desenharam sua proprias conclusões e recomendações, olhando para o

objetivo dos tributos e as responsabilidades de governos, companhias e indivíduos. Eles fazem sugestões em dois sentidos: de baixo para cima e de cima para baixo.

O cumprimento dos compromissos internacionais Há um claro dever do países em agir em prol do bem comum para todos os seus cidadãos e cidadãs. Devem assegurar que suas políticas não sejam predatórias nem no desenho nem em sua execução. Desta forma, somos lembrados da exigências éticas necessárias para que os líderes internacionais cumpram seu ambicioso acordo estabelecido em Lough Erne na Irlanda, durante o encontro do G8 em 2013. Nessa ocasião eles se comprometeram a:

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• compartilhar informações • revisar as regras de taxação das empresas • rever como os governos prestam contas de suas finanças e propriedades. A declaração também deixou claro que os países ricos têm o dever de ajudar os países em desenvolvimento. Essas questões têm muito a ver com as políticas que a Christian Aid tem defendido durante anos. Caso sejam implementadas, teriam um grande potencial positivo. Mas isso é apenas “se”; até o momento da redação desse texto, permanece a preocupação de que as negociações internacionais não têm dado a devida atenção às necessidades dos países em desenvolvimento que, até muito recentemente, têm sido excluídos dessas negociações. Existe um risco real de os líderes políticos globais falharem em seu dever de fazer o sistema funcionar para todos. Todos nós temos a responsabilidade de exigir uma prestação de contas e transparencia dos líderes globais e se as atuais estruturas internacionais não estão funcionando então devemos procurar formas alternativas para tal. Mesmo que as estruturas sejam objeto de muitas críticas (como quando o Papa Bento XVI fez um chamado para uma autoridade pública global), ainda assim permanecem como um meio de conduzir o debate em direção ao ‘desenvolvimento de infraestruturas nacionais e internacionais para garantir um comércio justo, igualitário e benéfico para todos’.

Assumindo responsabilidades individuais É necessário que haja um posicionamento ético de indivíduos, de executivos de empresas, acionistas, políticos e outros. As reivindicações vindas dos países em desenvolvimento desafiam o status quo político, sugerindo que, para alcançar o bem comum, será necessária uma nova visão política onde todos têm a liberdade de expressar as suas opiniões e trabalharem juntos por uma sociedade igualitária, próspera e coesa. Essas ideias representam grandes desafios no mundo de hoje, mas também uma combinação poderosa que, se levadas adiante, têm o potencial de mudar o foco dos debates sobre práticas tributárias. Muitas vezes essas ideias se dissipam por se aterem a minúcias, quando, na verdade, ‘uma discussão sobre tributos deve sempre enfatizar a necessidade da sociedade monitorar e controlar quem os paga; quem os coleta; como os impostos são usados e quem se beneficia do seu uso’. Trabalhar sobre este tema nos estimulará a agir e a contribuirá para que a tributação seja percebida como uma força poderosa para garantir o bem comum, como ele pode e deve ser.

Parte II: Contribuições atuais para o debate no Brasil

Uma coisa nos falta. Exigências do Evangelho contra a riqueza e a propriedade3 Nancy Cardoso1

E o jovem, ouvindo esta palavra, retirou-se triste, porque possuía muitas propriedades. Mateus 19, 22 Mas, ouvindo ele isto, ficou muito triste, porque era muito rico. Lucas18, 23 Mas ele, pesaroso desta palavra, retirou-se triste; porque possuía muitas propriedades. Marcos 10,22 A história do “jovem rico” é muito conhecida. Um encontro que não deu certo. Havia muita simpatia entre Jesus e o rapaz, a conversa foi conduzida de modo polido e os temas eram profundos e bem enunciados. Se para o “jovem” a conversa era sobre “herdar a vida eterna” para Jesus a conversa era sobre confrontar as formas de acumulação e riqueza. Os itens de vida familiar e comunitária citados por Jesus - Não adulterarás; não matarás; não furtarás; não dirás falso testemunho; não defraudarás alguém; honra a teu pai e a tua mãe - Marcos 10, 19 – configuram uma vida marcada pela ética no stricto sensu. Em outros termos, trata-se de relações fundamentais cujo objetivo é construir uma vida digna balizada e sustentada por uma avaliação mais ampla sobre os modos sociais de distribuição e consumo das 1. Nancy Cardoso, pastora e teóloga metodista, agente da Comissão Pastoral da Terra no sul da Bahia

riquezas socialmente produzidas. Porém, este direcionamento por si só não é suficiente. Não é o bastante! O registro da vida familiar e comunitária é diariamente confrontado pelo desafio maior que nos é apresentado por Jesus: uma coisa te falta! Quando Jesus aponta para o desafio de vender tudo que tem e dar aos pobres como condição de seguimento, a conversa se amplia para as formas sociais de organização da vida em sociedade, de modo especial, trata-se dos registros das formas de acumulação e de apropriação de propriedade. Mateus e Marcos vão registrar o fracasso da conversa e do encontro apontando a razão básica: porque ele possuía muitas propriedades! Lucas vai preferir o registo: porque era muito rico. Jesus vai deslocar todo o seguimento do evangelho na direção dos/as pobres; supera o registro das boas relações pessoais e radicaliza na direção da contradição básica da sociedade com a exigência de se desfazer de tudo que tem... de vender tudo, de dar aos pobres como condições para o seguimento. Esta radicalidade do seguimento de Jesus vai ser retomada a seguir na fala contundente: Então Jesus, olhando em redor, disse aos seus discípulos: Quão dificilmente entrarão no reino de Deus os que têm riquezas! Marcos 10, 23 Quatro questões precisam ser enunciadas aqui e resumidamente respondidas: 1. Na conjuntura da Palestina ocupada pelo Império Romano quem e como alguém ficava rico? 2. Na conjuntura da Palestina ocupada pelo Império Romano quem e como alguém acumulava muitas propriedades? 3. Que mecanismo social é este apontado por Jesus de “vender tudo e dar aos pobres”? Qual o impacto social? 4. Quem são os/as pobres? Qual o lugar e a voz deles no texto? A Palestina ocupada pelos romanos no século I da era comum era considerada periferia do

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Império, sem grande importância econômica ou política, mas, importante ponto geopolítico de passagem de tropas e mercadorias. De modo geral as pesquisas sobre este período apontam para um processo sistêmico de empobrecimento das populações locais, em especial do campesinato, de comunidades artesãs e de empregados/as e servos/ as: A sociedade era desigual e combinava às formas locais de opressão, mecanismos de exploração do Império; a classe alta era formada por funcionários estrangeiros ligados à administração romana e às lideranças do culto local em Jerusalém que detiam relativa autonomia política e econômica; um segundo grupo desta classe era constituído pelos proprietários de terra que representavam grupos familiares bem estabelecidos tradicionalmente e que historicamente dependeram de acordos com os impérios para a garantia da posse extensiva da terra nas formas de tributos e taxas que pesavam especialmente nos ombros do campesinato organizados na forma do trabalho servil; e havia, ainda, comerciantes que ocupavam funções no mercado importador-exportador e eram responsáveis pelo abastecimento de Roma e Jerusalém. Durante o governo de Antipas cresceu o latifúndio em prejuízo das pequenas

propriedades comunitárias que eram a característica do sistema tradicional dos judeus. A produção agrícola da Galiléia começou a orientar-se não mais a partir das necessidades das famílias como antes, mas sim, a partir das exigências do mercado. A arqueologia provou a existência de grandes propriedades que visavam a um maior excedente de produção para poder exportar. Os muitos impostos faziam diminuir a rentabilidade das pequenas propriedades. (MESTERS, 2005. p. 5). Um complexo sistema de cobranças, endividamento e execuções colocavam a engrenagem social para funcionar. O Império cobrava e as lideranças locais cobravam duplicando as formas de exploração. De modo resumido se poderia apontar para os seguintes mecanismos: Os impostos devidos ao Império dividiamse em diretos, cobrados dos produtos da terra (entre 20 a 25%), os de capitalização ou pessoal, que era o denário, e indiretos, que compreendiam os direitos de alfândega, de barreira (na entrada das cidades) e pedágio (pontes, atravessadouros de rios e encruzilhadas). Os impostos locais eram os do templo, destinados à manutenção

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do santuário e dos sacerdotes; o primeiro dízimo, a décima parte do primeiro produto da terra (ou primícias) e da agropecuária; o segundo dízimo, que deveria ser gasto em festa e beneficência, a ser pago no primeiro, segundo, quarto, quinto anos numa série de sete anos e cobrado do produto da terra e do gado; o terceiro dízimo ou dízimo dos pobres, a ser pago no terceiro e sexto anos, destinado aos órfãos, viúvas e prosélitos; as rendas do quarto ano, que prescrevia que o produtor, ao colher o produto da terra nos três primeiros anos, gastaria o resultado dessa primeira colheita em Jerusalém. (AZEVEDO, 2001)

Parte das elites locais alugavam o direito de participar dos modos de cobrança garantindo o cumprimento das exigências do Império e consolidando um estrato social colaboracionista com acesso às formas de acumulação de riqueza o que inviabilizava qualquer coesão social de resistência e autonomia. Este acesso à riqueza estava proporcionalmente relacionado ao dramático endividamento rural, por exemplo, no período herodiano, como atestam fontes rabínicas do período e a documentação sobre a execução de dívidas: ... lavradores desesperados pedindo empréstimos aos funcionários da administração herodiana e à aristocracia sacerdotal (hipotecas sobre as terras). Em muitos casos, essa ação legal transformava aldeãos outrora livres, que cultivavam a terra dos antepassados, em meeiros permanentemente empobrecidos, que ganhavam a vida com dificuldade em vastas propriedades aristocráticas (as quais aumentavam rapidamente) (HORSLEY. 2000). O endividamento sistêmico do campesinato fortalecia os grande proprietários que arruinavam as propriedades comunitárias tradicionais. Os muitos impostos faziam diminuir a rentabilidade das pequenas propriedades (MESTERS, 2005. p. 5). Além disso, a produção agrícola forçosamente se dirigia aos interesses de abastecimento do Império o que gerava crise do abastecimento local e ampliava as formas de pobreza e endividamento, doença e loucura, como bem aparece retratado nos Evangelhos.

Concluindo... o que nos falta! Assim, ser rico e/ou enriquecer na Palestina ocupada no tempo de Jesus significava participar ativamente dos mecanismos sociais de opressão e exploração e, também, contribuir de modo

significativo para a manutenção e fortalecimento a ocupação imperial na região. A riqueza do “moço rico” nos textos citados tinha sua origem no roubo, na corrupção e no tráfego de influência; era sinal direto de colaboracionismo com a ocupação romana e de espoliação e expropriação das maiorias trabalhadoras e pobres. Do mesmo modo, ter grandes propriedades na Palestina ocupada no tempo de Jesus significava destruir as formas comunitárias de vida na terra, comprometer a produção agrícola local priorizando os interesses do abastecimento do Império e expulsar as pessoas de suas aldeias formando as multidões famintas, doentes e desesperadas que vão ao encontro de Jesus. As muitas propriedades do “moço rico” tinham sua origem no roubo, na corrupção e no tráfego de influência. Por essas e por outras as riquezas e/ou propriedades do “moço” vão ser desafiadas diretamente por Jesus: uma coisa te falta! Para além do cumprimento da lei em seu registro formal, Jesus exigia o enfrentamento direto com a ocupação romana e seus mecanismos de opressão, exigia o reconhecimento dos modos ilícitos de acumulação de riquezas e propriedades como essencial, fundamental, inadiável e incontornável para o seguimento do Evangelho. Vender tudo e dar aos pobres enuncia estas exigências. Inviabiliza qualquer cumplicidade com a lógica da expropriação e endividamento e desafia para ir ao encontro dos pobres – homens e mulheres. Somente a ruptura com estes modos de opressão e a entrega em direção aos pobres crias estas condições de seguimento. O “moço” não é chamado a ajudar os/as pobres, nem mesmo a compartir seus bens com os/as pobres! Jesus não pede impostos e taxas mais justos... mas anuncia o fim de toda dívida! a ruptura com a lógica do Império e das elites. Por isso Jesus pede ao “moço” que venda tudo, ainda na lógica econômica existente, como um “programa de transição” para uma outra ordem possível... mas esta nova ordenação é tarefa e protagonismo dos/das pobres mesmos! dos/as pequeninos/as, cansados/as, endividados/as, enlouquecidos/as. São elas e eles que dão a medida do Reino.

Esta exigência de Jesus é parte essencial de nossa fé no Evangelho e deve participar de nossas críticas e buscas pela justiça, da criação de mecanismo de igualdade: romper com as formas de acumulação de riqueza e propriedade e caminhar com os/as pobres em suas lutas de libertação

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Qualquer outro atalho ou proposta reformista só se torna aceitável se fizer parte de um “programa de transição” que aponte para o pão nosso de cada dia, o perdão das dívidas e a superação do mal. Deus conosco!

da Palestina no tempo de Jesus. 2006. Disponível em: http://www.abiblia.org/doc/53.pdf Acessado em: 19 maio 2015

Bibliografia:

______. Arqueologia, história e sociedade na Galiléia: o contexto social de Jesus e dos Rabis. São Paulo: Paulus, 2000.

AZEVEDO, Gilson Xavier de. A Judéia no Tempo de Jesus e Jesus na Judéia de seu Tempo. TCC (Graduação em Teologia) - UNILOGOS, São Paulo: 2001. Disponível em: http://www.paideia.ubbi. com.br/tccteologia.pdf BOFF, Clodovis. Fé e compromisso político: pastoral operária de S. Bernardo do Campo. São Paulo: Paulinas, 1982. Disponível em: http://www. dhnet.org.br/direitos/ fe/igreja/clodovisboff.html . Acesso em: 19 maio 2015 CROSSAN, Jean Dominic. O Jesus Histórico. Rio de Janeiro: Imago, 1994. ______. Jesus: uma biografia revolucionária. Rio de Janeiro: Imago, 1995. FERREIRA. Reuberson Rodrigues; CELESTE. Rodrigo Fávero. Aspectos físicos e econômicos

HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império: o reino de Deus e a nova desordem mundial. São Paulo: Paulus, 2004. 156 pp.

HORSLEY, Richard A.; SILBERMAN, Neil Asher. A mensagem e o Reino: como Jesus e Paulo deram início a uma revolução e transformaram o Mundo Antigo. São Paulo: Loyola, 2000. v. 1. MEIER, J. P. Um judeu marginal: repensando o Jesus histórico. Rio de Janeiro: Imago, 1992. MESTERS, Frei Carlos. Prática libertadora de Jesus. Lanza, n. 1, fev. 2005. Disponível em: http:// www.ocarm.org/justice&peace/A%20Pratica%20 Libertadora%20de%20 Jesus.doc Acesso em: 25 maio 2015 ROCHA, Ivan Esperança. Dominadores e dominados na Palestina do I século. História, São Paulo, v. 23, n. 1-2, p. 239-258, 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/his/v23n1-2/ a12v2312.pdf Acesso em: 25 maio 2015

Histórias de sobrevivência e resistência: Reflexões bíblicas sobre justiça econômica Pra. Odja Barros2

A fim de contribuir com a campanha de justiça tributária e a discussão da taxação de grandes heranças como forma de diminuir a desigualdades existentes em nosso País, propomos uma reflexão bíblica a partir de narrativas que envolvem mulheres como protagonistas lutando por seu direito de herança. As mulheres representam um dos grupos mais desprotegidos nas estruturas sociais e econômicas da época bíblica. A situação das mulheres era de maior vulnerabilidade econômica, pois elas não eram consideradas cidadãs para acessar nenhum direito, logo se não tivessem um pai, um marido ou filhos homens elas perdiam completamente acesso à sua própria herança familiar. Os enredos evidenciam e denunciam que os sistemas sociais e econômicos da época, assim como nos dias atuais servem mais para favorecer os “fortes e não os “fracos” de uma sociedade. Também revelam que os sistemas legais mesmo que originalmente pretendiam garantir igualdade e justiça haviam caducado ou eram manipulados por manobras dos “donos do poder”. Os sistemas econômicos a serviço dos fortes garantem a perpetuação das desigualdades blindando a riqueza dos mais ricos e poderosos. As leis precisam ser revisadas e mudadas para que haja justiça e equidade econômica. O nosso objetivo resgatando essa memória bíblica é deixar que a própria dinâmica narrativas possa provocar reflexão sobre como as mulheres agiram diante da realidade de injustiça, tendo Deus ao lado delas e como suas atitudes desencadearam um processo de transformação de suas vidas e de outras pessoas empobrecidas, das leis da economia e das relações humanoas em suas comunidades.

Rute e Noemi: Vencendo a escassez e a pobreza nos campos do rico Boaz Podemos descrever rapidamente o enredo que

2. Odja Barros é pastora e teóloga batista,  membro da Aliança de Batistas do Brasil,  assessora do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos Ecumênico) e membro da junta executiva do CLAI (Conselho Latino  americano de Igrejas Cristãs). 

envolve a história dessas duas mulheres como protagonistas: Noemi e sua nora Rute. Noemi, uma mulher de família tradicionalmente israelita, vivia feliz com seu marido Elimelec e seus dois filhos: Maalom e Queliom. Uma grande seca se abateu sobre Belém de Judá, sua terra natal, e a família resolveu ir morar na terra de Moabe, em busca de uma vida próspera. Tudo transcorria bem até que, morre Elimelec, e Noemi fica viúva. Mas ainda lhe restaram os filhos, para cuidarem dela, dando-lhes segurança. Os filhos casaram com mulheres moabitas, uma chamavase Orfa e a outra Rute. A vida dessa família transcorria normal até que, morreram também os filhos Maalom e Queliom, ficando Noemi e suas duas noras desamparadas. Noemi decidiu então voltar para sua terra e pediu as duas noras que retornem à casa de suas mães, pois ela não teria mais nada o que oferecer. Orfa decidiu seguir o conselho da sogra, mas Rute, ao contrário decidiu seguir com Noemi. Após despedirem-se de Orfa, as duas viajaram juntas e estabeleceram-se em Belém. Era tempo de colheita de trigo cevada e Rute foi respigar nos campos (catar as sobras que caiam durante a colheita e que por Lei deviam ser deixada para os pobres recolherem). Com essa atividade Rute poderia sobreviver à fome, mas não significava viver com dignidade. Noemi lembrou que tinha um parente rico, Boaz, cujo nome significava “força”. Um homem muito rico e muito sábio. Rute foi respigar no campo que pertencia à Boaz. Era costume entre os israelitas para preservar sua própria linhagem, que o parente mais próximo deveria desposar a jovem viúva, da qual dependiam as esperanças de resgate da terra herança da família. Então, quando Noemi lembrou que Boaz era seu parente e que por já ter muita idade , ele não desejaria se casar com ela, pensou que Rute podia ocupar o seu lugar. Bem orientada por Noemi Rute executa o plano traçado para ter uma noite com Boaz na Eira (celeiro onde se armazenava a colheita) e assim forçar Boaz a se tornar seu resgatador (Goêl). Ao acordar e ver que era Rute que havia estado com ele, louvou sua atitude e não negou que seria ele um possível resgatador para ela, mas que havia um resgatador mais próximo a

Tributos para o Bem Comum: um estudo sobre ética e tributação

quem Boaz devia procurar diante do Conselho da cidade para resolver quem assumiria o resgate das terras de Elimelec. O resgatador mais próximo nega-se a fazê-lo depois de saber que em tomando as terras deveria também casarse com Rute. Com a recusa, Boaz torna-se o resgatador legítimo de Rute e ao casar-se com ela restaura o direito do falecido Elimelec sobre sua herança. Seu nome não mais seria apagado da comunidade e de seu povo e a herança voltaria para a casa de Noemi....... . Rute concebe um filho e a história termina com a louvação das mulheres a Noemi: “Louvado seja o Senhor que não a deixou sem resgatador! Que o seu nome seja celebrado em Israel! O menino lhe dará nova vida e as sustentará na velhice, pois é filho da sua nora que a ama e que é melhor do que sete filhos!” (4,14)

A situação do povo que transparece na história Entre as várias interpretações do livro e Rute, uma delas diz que a história de Noemi e Rute deixa transparecer indiretamente toda a situação de conflito em que vivia o povo num momento de retorno do cativeiro: Reconstrução econômica, social, politica e religiosa. Essa história bíblica é inspiradora para nós enquanto indivíduos,

Crédito: Christian Aid

mas acima de tudo para os que vivemos em comunidade, pois o livro de Rute é uma reflexão coletiva sobre a situação do povo. É uma história que nos fala de uma sociedade em busca de caminhos de vida melhor, principalmente para os grupos mais sofridos e explorados pelos sistemas e leis injustas. Como se estruturava aquela sociedade? •

Economia : Sociedade Agrária (1:22 e 2:23); Terra objeto de negócios (4:3); Os donos da terra eram pessoas importantes (2:1); A terra era trabalhada por empregados (2:3 e 9); A produção era de cevada, trigo (1:22 e 2:23); A produção era recolhida na eira, terreiro para ser debulhada pelo dono (3:2).



Política: As instituições políticas recebem pouco destaque no livro. Não se fala em rei. No inicio há uma breve referencia ao governo dos juízes. (1:1); Havia um tribunal onde as questões de decidia, sob juramento na presença dos anciãos e de testemunhas (4:2); Seguiam os costumes antigos (4:7-8); O tribunal se reunia na porta da cidade (4:1); para regulamentar os problemas da terra e do clã havia a lei do Levirato (2:20; 3:9), mas, parece que essas leis não eram bem observadas (4:3-6). A lei favorecia mais os

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ricos que os pobres (4:8) havia esquecimento ideológico do espirito das leis (Lv 25:24-25; Dt 15:7-11). Os direitos das mulheres, dos pobres e de estrangeiros são violados. •

Clãs familiares, comunidade: A unidade básica da sociedade era o clã, a grande família patriarcal (1:2). O que parece é que esses clãs familiares viviam uma fase de desintegração defender os direitos de cada um de seus membros. Havia ricos e pobres dentro do mesmo clã (3:10); Comunidades, clãs e famílias já não conseguiam se manter unidas para lutar e defender seus direitos e dos seus membros mais pobres (Ne. 5:8); A exploração entrou dentro da própria família. Havia falta de terra, de pão e de partilha!



Problemas sociais e econômicos enfrentados pelas famílias empobrecidas: Fome (1:1); Migração (1:1-7); Pobreza que obriga a catar as sobras da colheita (2:2); Impossibilidade dos pobres manterem a posse da terra(4:3); Recusa de um parente mais rico a ajudar o parente mais pobre do mesmo clã (4:6); Doença, morte e falta de futuro melhor (1:3-5); Velhice e dificuldade de manter a continuidade da família (1:11-12); A necessidade que obriga as pessoas viverem divididos e espalhados (1:1 e Ne. 5:1-5).

“casa familiar” (unidade social fundamental no período pre-monarquico) (Mayers, 2002). Na história de Noemi e Rute a reconstrução do povo passa pela casa familiar que estava sendo rompida pelo sistema econômico. É nessa dimensão social da casa familiar que aconteciam as atividades vitais de produção e reprodução. A dinâmica da vida na casa familiar autossuficiente envolvia uma ampla variedade de tarefas que envolvia a sobrevivência. Em cada casa familiar eram produzidos alimentos, roupas, pequenos móveis e coisas necessárias à manutenção básica da família. Havia também no interior da casa uma divisão do trabalho cuidadosamente organizada entre todos os membros da família: homens, mulheres, jovens e velhos. No sistema familiar de produção não era menos importante o papel da mulher do que do homem. Os homens participavam das tarefas agrícolas. No contexto da casa familiar quase sempre se caracterizavam pelo equilibrio interno de gênero e não por uma hierarquia. A presença da referência à casa de mãe no livro de Rute como expressão alternativa para falar de casa familiar não a partir do pai, mas da mãe representa ao mesmo tempo uma denúncia e um caminho para uma organização social mais justa.

“A Casa da Mãe” como projeto alternativo de justiça econômica

“Casa da mãe”, a lei do resgate e o acesso a terra como herança.

“Noemi: Disse às duas noras: Voltem cada uma para casa de sua mãe”. Voltar à casa da mãe e não à casa do pai. Foi esse o conselho de Noemi as suas noras. O uso do termo “casa da mãe” bêt (immãh) em substituição ao termo “casa do pai” (bêt’-ab) geralmente são indicativas de um texto escrito por mulher. Esta e outras singularidades leva a crer que o livro de Rute é literatura de resistência de mulheres como grupo que naquele instante não tinha voz e vez na discussão nacional, nos grandes projetos que prometiam conduzir o povo a tempos prósperos. O livro de Rute traz a sabedoria popular da “casa da mãe”. Por isso quero fazer uso dessa linha de interpretação para ler a história como uma proposta de economia da casa da mãe em oposição à economia da casa do pai.

Com a morte do pai e a morte dos filhos homens, a casa da mãe fica sem direito a herança da família. A lei do resgate estabelecia duas coisas: Primeiro que quando alguém, por motivo de pobreza, era obrigado a vender sua terra, então, seu parente mais próximo tinha obrigação de resgatar essa terra, isto é, devia compra-la de volta, não para si, mas para o parente pobre que corria o perigo de perdê-la (Lv 25, 23-25).Em segundo lugar, dizia que se alguém por motivo de pobreza, era obrigado a vender-se a sim mesmo como escravo, então seu parente mais próximo tinha obrigação de resgatar essa pessoa, isto é, devia pagar para que o irmão pobre pudesse reaver a sua liberdade. (Lv 25, 47-49). Este parente próximo era o Goêl, é uma palavra hebraica que significa aquele que resgata. O objetivo da lei do resgate, portanto, era defender e fortalecer a casa familiar como base da organização social, pois essas casas representavam a defesa para os indivíduos e para as famílias pobres contra as ambições dos poderosos, dos ricos e dos reis. A lei do resgate, quando observada impedia que alguém perdesse suas terras e outro acumulasse terras. A lei do resgate estimulava a corresponsabilidade de todos e todas pelo bemestar dentro da mesma família e comunidade.

Carol Meyers destaca alguns aspectos relevantes sobre a casa familiar como uma unidade social que compunha a estrutura social do Antigo Israel. Antes da ascensão da Monarquia a sociedade israelita funcionava em três diferentes níveis de organização social: As Tribos (nível mais amplo) Os clãs (unidade significativa que aglutinava a parentela) e a

Tributos para o Bem Comum: um estudo sobre ética e tributação

A Lei do parente mais próximo (Levirato) Para entender melhor o drama da casa da mãe onde não um resgatador é necessário lembrar outra lei, a chamada lei do Levirato ou Lei do parente mais próximo. A lei do Levirato estabelecia que no caso de um homem casado morresse sem filhos, o irmão do falecido devia casar-se com a viúva, e o filho que nascesse devia ser considerado filho não dele, mas do irmão falecido (Dt 25,5-10). Trata-se dos parentes da casa familiar, isto é a Lei do Levirato obrigada apenas os irmãos, filhos do mesmo pai, e não os primos e outros parentes. Não era como a Lei do Resgate obrigava todos os parentes do mesmo clã (grande família) a prestar ajuda ao irmão que estivesse passando necessidade. O objetivo da lei do Levirato era garantir a continuidade da família e impedir que por falta de herdeiro, a família se acabasse. No caso da família de Noemi, a situação era gravíssima. Maalon, o marido de Rute morreu sem deixar filhos. Conforme a lei do Levirato, o irmão de Maalon deveria casar com Rute e suscitar um filho para o falecido. Mas, não havia irmão! Noemi não tinha outros filhos e nem podia tê-los. A família de Noemi estava no fim. A lei do Levirato não podia ser invocada. E por isso que Noemi recorre à lei do resgate. Se a história do livro de Rute é a imagem da história do povo a partir da voz das mulheres e da casa da mãe, ela revela que as famílias dos pobres estavam sendo desintegradas pela ganancia e acumulo. Essas famílias eram obrigadas a vender terras e seus filhos e as leis de resgate e do levirato era negada aos pobres tornando-os incapazes de protegerse da ambição dos ricos. Havia até gente que se aproveitava da lei do resgate para comprar a terra dos parentes pobres. Por isso a exploração entre irmãos aumentava casa vez mais obrigando as pessoas a migrarem para terras estrangeiras. O livro de Rute conta uma história de luta resistência a partir dos mais empobrecidos. É projeto de resistência para fortalecer a unidade da casa familiar. A casa da mãe é caminho de reconstrução para uma sociedade destruída pela ambição dos poderosos e ricos.

“A Casa de Mãe” e a Estratégia de acesso à herança Duas mulheres viúvas elaboram estratégia para exigir do parente rico Boaz que cumpra a lei do resgate e dessa maneira possam ter acesso à herança do seu marido falecido. A casa da mãe tem outras estratégias que não a força e o poder. Elas lançam mão de outros recursos. Como na história das filhas de Selfaad, a casa da mãe se articula contra o sistema legal que protegia os ricos e desprotegia os pobres. A lei

do resgate estava desatualizada e favorecia a exploração e o empobrecimento das famílias. Na estratégia elaborada na “casa da mãe”, as duas Leis: do Resgate e do Levirato foram unidas. Separadas estas duas leis, já não resolviam o problema do povo. Só a Lei do Resgate, isto é, só a terra, sem um filho herdeiro não garantia a continuidade da família e favorecia o latifúndio. Só a Lei do Levirato, isto é, só o filho, sem a terra, não garantia o pão para sobreviver. Por isso a importância da afirmação de Boaz no tribunal: “Comprando o terreno de Noemi (o que dizia a Lei do Resgate) você estará também obrigado a casar com Rute, a moabita, mulher do falecido (o que diz respeito à Lei do Levirato que obriga a casar com a viúva). Desse modo, a herança do falecido continuará com o nome dele. (o que dizia a Lei depois da mudança). A estratégia da casa da mãe abriu precedente legal, unido às duas leis. Assim foi ampliada a lei do Levirato e qualquer parente do clã estava obrigado a observá-la, defendendo mais amplamente o direito da “casa da mãe”. A mudança na Lei prejudicou os “fulanos” que só pensavam em si mesmo, em sua própria casa e em fortalecer seu patrimônio e não estavam dispostos a sacrificarse pelos irmãos mais pobres. Foi essa a razão da recusa do resgatador mais próximo na história de Rute. “Não posso fazer isso, porque eu acabaria prejudicando meus herdeiros.” (Rute 4,6)

Aclamação da vitória da casa da Mãe! No final da história a “casa da mãe” é aclamada em Noemi. O povo pede que Rute seja como Raquel e Lia, as duas mães das doze tribos (4 11). O povo também pede que Rute seja como Tamar, aquela que levou Judá a cumprir seu dever de cunhado (4,12 e Gn 38). Pede ainda que ela seja a nova mãe do povo. A casa das mães representa novo começo e outro modelo de vida e justiça econômica. Que a “Casa da Mãe”, representada na história de Noemi e Rute inspire a construção de novos modelos econômicos mais solidariedade e justiça!

Concluindo A atitude de Noemi e Rute forçando os que estão no poder a olhar para baixo, para os gritos importunos do povo que denunciam a atitude abusiva e insensível de todos que ocupam o lugar de “juízes injustos” das nossas estruturas. O sistema tributário brasileiro precisa ser provocado a olhar para baixo. Não é justo que os ricos paguem o mesmo que a classe média e que os mais pobres continuem pagando

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a conta maior desse sistema que perpetua uma estrutura desigual. É preciso provocar nossas leis constitucionais para que estejam verdadeiramente a serviço dos mais “fracos” da sociedade. É preciso coragem e ousadia como a representada nas histórias dessas mulheres para “cutucar” os mais ricos, seus poderes e fortunas! E o que o Deus justo e compassivo esteja ao nosso lado fortalecendo as vozes mais enfraquecidas!

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