Trinh T. Minh-ha: Em rumo a uma etnografia experimental no cinema

July 15, 2017 | Autor: Gustavo Soranz | Categoria: Ethnographic Film, Documentary Film, Documentário, Trinh Minh-ha, Filme Etnográfico
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Trinh T. Minh-ha: Em rumo a uma etnografia experimental no cinema1 Trinh T. Minh-ha: In towards an experimental ethnography in film Gustavo Soranz2 (Doutorando - Unicamp)

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Trabalho apresentado no XVI Encontro Socine de Estudos de Cinema e Audiovisual na sessão: Documentário no mundo. Bolsista da FAPEAM. Professor do Uninorte (AM). É membro do Núcleo de Antropologia Visual da Ufam (NAVI/UFAM) e do Centro de Pesquisas em Cinema Documentário da Unicamp (CEPECIDOC). 2

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Resumo Apresentamos um histórico dos pontos de contato entre cinema e antropologia, destacando como certos paralelismos entre ambos os campos e as tradições que desenvolveram permitem compreender como a estética fílmica e a teoria social podem se iluminar mutuamente, a fim de sustentar a noção de etnografia experimental no cinema, cuja obra da cineasta Trinh T.Minh-ha poderia ser tomada como exemplo significativo.

Palavras-chave Antropologia, cinema, documentário, antropologia visual, Trinh T.Minh-ha.

Abstract Here is a history of contact points between cinema and anthropology, highlighting how certain parallels between both fields and traditions that have developed allow us to understand how the filmic aesthetics and social theory can illuminate each other in order to sustain the notion of experimental ethnography in film whose work the filmmaker Trinh T.Minh-ha could be taken as a significant example.

Keywords Anthropology, film, documentary, visual anthropology, Trinh T.Minh-ha

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Sabemos que cinema e antropologia tem uma longa relação. Conforme já registrou Marc Henri Piault (2002), o processo histórico das sociedades centrais do ocidente no final do século XIX, com as diversas invenções e inovações tecnológicas surgidas, aliadas a uma nova ideologia científica, de práticas acumulativas e analíticas, colocam este como um “século de convergências incríveis”, convergências estas que nos levam a observar uma série de paralelismos entre cinema e antropologia, presentes desde seus marcos de origem. O autor destaca o ano de 1888 como o de várias simultaneidades importantes. Neste ano, Franz Boas, crítico dos determinismos biológicos e geográficos, assim como do evolucionismo cultural, considerado um dos pais fundadores da antropologia cultural contemporânea, publica os resultados de sua expedição ao Ártico, onde viveu dois anos entre os Inuit. Neste mesmo ano, Étienne-Jules Marey apresentou na Academia de Ciências de Paris a primeira cinta de fotografias sequenciais tiradas com seu canhão cronofotográfico, o primeiro protótipo de uma câmera de filmagem. Em ambos os casos, temos experiências que seriam fundamentais para os avanços que cinema e antropologia levariam a cabo em termos tecnológicos, metodológicos e epistemológicos dali em diante. Segundo Anna Grimshaw (1999), este período é marcado pela expansão capitalista, revelando crescente competição entre os impérios coloniais, algo que acaba por revelar mudanças decisivas em ideias fundamentais, resumidas pela autora na concepção de que a velha noção de “civilização européia” entrava em crise, baseada que estava em critérios de “separação, hierarquia e exclusão” (GRIMSHAW, 1999, p. 40). Nesta nova ordem, a diferença sociocultural presente nas colônias passou a provocar os impérios coloniais, de modo a despertar novos interesses. Assim, cinema e antropologia são parte e espelham este período de mudanças fundamentais, e são decisivos para reconhecer a necessidade em se elaborar novas formas de interpretação, que dessem conta da complexidade de modos de vida existentes nessas diferentes localidades.

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Para a autora, cinema e antropologia podem ser vistos como práticas modernas e distintivas do século XX, que representam rupturas decisivas com formas e convenções existentes, além disso, os paralelos entre ambos vão muito além dessa certidão de nascimento contemporânea que compartilham. Ela aponta simetrias notáveis nas quatro primeiras décadas das tradições que vão se desenvolver em ambos esses campos, que podem ser analisadas à partir de três importantes pares: a) Alfred Cort-Haddon e os irmãos Lumière, b)Bronislaw Malinowski e Robert Flaherty e c) Alfred Radcliff-Brown e John Grierson. Segundo Grimshaw, esses pares esboçam

um movimento que culmina no estabelecimento de categorias distintas: “etnografia científica” e “cinema documentário” por volta dos anos 1930. Nesse ponto ambas as tradições espelham uma à outra. Porém, o que é igualmente notável é que, apesar de sua combinação inicial na expedição ao Estreito de Torres, cinema e antropologia se tornam práticas separadas, não integradas. (1999, p. 37-38)

O primeiro par da análise proposta por Grinshaw observa a proximidade entre as primeiras filmagens dos irmãos Lumière, exibidas na sessão de 1895, com a primeira expedição a campo Britânica no Estreito de Torres, conduzida por Cort-Haddon em 1898, que incluiu o cinematográfo como um de seus itens essenciais de trabalho científico. Em comum, estas experiências compartilham o interesse em estabelecer um embate direto com a experiência da vida. No caso dos Lumière, sair às ruas de Paris. No caso da expedição de Cort-Haddon, sair para o mundo não-europeu. Em ambos os casos, sair e ver com os próprios olhos para poder mostrar, por meio do filme, aquilo que se via nesse movimento da vida, porém, ainda de um ponto de vista fixo. O segundo par de análise proposto pela autora tem o ano de 1922 como ponto chave. Neste ano, Malinowski publica “Argonautas do Pacífico Ocidental”, relato do seu trabalho de campo nas Ilhas Trobriand, e

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Flaherty lança “Nanook do Norte”, retrato da vida de um eskimó Inuit no ártico canadense. Como sabemos, o livro de Malinowski vai fundar um novo método de trabalho em campo, uma inserção junto aos sujeitos estudados, conhecido como obervação participante, ao passo em que o filme vai fundar um modelo de cinema que se convencionou como o paradigma clássico do documentário. Em ambos os casos, temos um modo de olhar o mundo que privilegia o olho único do observador na organização das partes em um todo coerente.

Mas é essa ilusão de “mostrar” o mundo que marca o trabalho de cada um como uma transição na criação de práticas especializadas, a etnografia científica e o filme documentário. Enquanto que cada um reivindica mostrar o mundo como ele é, eles estão de fato nos “contando” sobre o mundo; e é esse movimento incompleto realizado em ambos os trabalhos que provoca a sua eterna reexaminação (GRIMSHAW, 1999, p. 41).

O terceiro par de análise aproxima dois grupos distintos. Por um lado o grupo de antropólogos liderados por Radcliff Brown e, por outro, o grupo de cineastas liderado por John Grierson. Neste período histórico, por volta de 1930, já temos a completa separação do que se convencionou como cinema documentário e do que se definiu como etnografia científica, cada qual com seus métodos, práticas profissionais e locais de produção já estabelecidos, entretanto, compartilhando uma abordagem semelhante sobre a sociedade, onde a ênfase está nas ações das pessoas em prol de um bem coletivo, suprimindo sua individualidade.

Ainda em observação à relação entre cinema e antropologia, Piault enfatiza que o cinema se

apropriou mais rapidamente dos domínios reservados à antropologia, não hesitando em circular suas câmeras nos mundos exóticos, oferecendo imagens atraentes para as fantasias do ocidente. Para além do conteúdo próprio à ficção, aos documentários e aos filmes de viagens e de exploração, suas técnicas foram enriquecidas pelas exigências e as condições de filmagem características da atitude antropológica. (PIAULT, 2002, p. 62-63)

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A passagem acima permite notar que, na consolidação de suas estratégias, o cinema documentário se favoreceu dos métodos de trabalho estabelecidos no campo da antropologia, ainda que suas tradições tenham se distanciado à partir da década de 1930, permitindo ao campo do cinema documentário burilar aquela que é uma de suas grandes marcas distintivas em relação a outras tradições de cinema, a preocupação com a postura ética. A antropologia moderna, por sua vez, vai consolidar cada vez mais seus métodos em torno da etnografia escrita, afirmando padrões de cientificidade desejados para o empreendimento dessa representação cultural, o que vai ensejar, por parte de alguns antropólogos interessados nas imagens em movimento, uma série de critérios científicos para validar o filme como uma etnografia de valor antropológico, de tal modo que o uso do filme na pesquisa antropológica sofre com essas contingências. Por outro lado, com as diferentes mudanças sociais, com os processos culturais cada vez mais complexos e rupturas epistemológicas conduzidas nas disciplinas, surge uma tendência crescente de experimentação na escrita etnográfica, uma espécie de reação filosófica às convenções de realismo que imperavam na antropologia. Estava em curso um debate sobre a natureza da interpretação nas descrições etnográficas, destacando-se uma consciência por parte de destacados antropólogos, em sua maioria norte-americanos, da evidenciação da estrutura narrativa e retórica da etnografia. Essa tendência ganha evidência em 1984, quando acontece o Seminário Writing Cultures, no Novo México, nos Estados Unidos, cuja proposta era reinterpretar o passado recente da antropologia cultural e abrir suas possibilidades futuras (CLIFFORD & MARCUS, 1986), debatendo sobre a natureza da interpretação nas descrições etnográficas. Em síntese, podemos dizer que a antropologia se abria para a consideração de que as narrativas etnográficas possuiam uma estética, que não eram isentas de um olhar subjetivo do antropólogo, ao mesmo tempo

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em que a disciplina revisava e criticava as convenções do realismo que imperavam até aquele momento. Para essa nova vertente na antropologia os autores cunharam o termo etnografia experimental. Seguindo a proposta de paralelos entre a antropologia e o cinema, tal como elaborou Anna Grimshaw para pensar o desenvolvimento desses campos, vamos propor mais um momento histórico importante que pode evidenciar um contato entre essas tradições. Podemos pensar que a aproximação entre o campo do cinema experimental e o da etnografia experimental, tal como colocados acima, sugere a concepção de um cinema etnográfico experimental. Tal conceituação foi levada adiante por Catherine Russel, para quem (p. xii, 1999) o efeito de trazer o cinema experimental e o etnográfico juntos é o de iluminação mútua, permitindo se obervar o cinema experimental com outro viés além do eminentemente formal, incluindo um recorte teórico que valoriza o contexto cultural dos filmes e cineastas e, por outro lado, o da etnografia, considerar as inovações textuais alcançadas pelos filmes experimentais contribui para o projeto de revisão da crítica da representação e da autenticidade, pela qual certa vertente da disciplina está interessada. De acordo com Russel,

Da interpenetração entre o cinema de vanguarda e o etnográfico emerge uma forma subversiva de etnografia na qual crítica cultural é combinada com experimentos na forma textual. Se etnografia pode ser entendida como uma experimentação com a diferença cultural e a experiência de cruzamento cultural, uma etnografia subversiva é um modo de prática que desafia as várias estruturas de racismo, sexismo e imperialismo que estão inscritas implícita e explicitamente em tantas formas de representação cultural. Tomando ambos, etnografia e vanguarda, no sentido mais amplo possível, seus pontos de contato descrevem parâmetros de uma prática cultural que pode não ser “nova”, mas que ganha nova visibilidade. (1999, p. xii)

Segundo Russell, Trinh T. Minh-ha é uma das cineastas que mais se destaca no desenvolvimento de uma prática de cinema radical com contornos especificamente etnográficos, desenvolvendo em seus filmes críticas severas às formas de representação cultural, denunciando discursos que enfatizam um realismo objetivo e de lógica

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cartesiana, que não seriam capazes de dar conta da complexidade das formas de vida. Seu primeiro filme, Reassemblage – from the firelight to the screen, foi lançado em 1982, ou seja, é contemporâneo das discussões sobre a subjetividade da escrita etnográfica no campo da antropologia, que culminariam com o Seminário Writing Cultures, em 1984. Reassemblage desafia as convenções tradicionais encontradas na história do cinema documentário. De certo modo, a um só tempo, o filme dialoga com diversas expressões do cinema de não-ficção, do filme experimental, passando pelo etnográfico ao diário de viagem, deslocando as premissas relacionadas a essas searas fílmicas, contribuindo para alargar as fronteiras da prática cinematográfica. Ao não se enquadrar em definições rigorosas e categorizações previamente definidas, ele desafia o espectador a uma interpretação que estabeleça diálogo com essas diferentes tradições que ele coloca em contato. No campo dos estudos de cinema, ainda hoje, o filme segue sendo um exemplo destacado de trabalhos que apostam na reflexão crítica sobre a representação cultural no audiovisual, ou mesmo na dificuldade desta representação se dar de modo objetivo ou valisado por critérios de cientificidade, como os desejados por certas vertentes do campo do cinema etnográfico, desejosas de que as práticas fílmicas de representação cultural respondam a critérios próprios ao campo da antropologia escrita mais tradicional. No campo da antropologia, Reassemblage parece ter recebido maior atenção e crítica, uma espécie de reação aos ataques proferidos à disciplina pelo filme, considerada pela diretora como ciência de caráter masculino, que promove uma busca de sentido totalizante em seu afã descritivo, que possui pretensão de objetividade em detrimento do reconhecimento do aspecto subjetivo de seus relatos etnográficos. Reassemblage pode ser cotejado com a teoria social, de modo a contribuir para uma reflexão da qual é contemporâneo em relação às descrições culturais. Do embate entre a estética fílmica e a teoria social vemos surgir

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uma forma de etnografia que não mais pertence ao domínio estrito da antropologia como disciplina, mas uma etnografia que reposiciona sujeitos e incorpora outros métodos e instrumentos, para além das convenções tradicionais da disciplina na qual se originou. Uma etnografia experimental no cinema.

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Referências

CLIFFORD, J. & MARCUS, G. (Eds). Writing culture: the poetics and politics of ethnography. Los Angeles: University of California Press, 1986. GRIMSHAW, A. The ethnographer’s eye: ways of seeing in anthropology. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. MACDOUGALL, D. “Novos princípios da antropologia visual”. Cadernos de antropologia e imagem: Rio de janeiro, v. 21, n°2, 2005. pp. 19-31 PIAULT, M. H. Antropología y cine. Madrid: Cátedra, 2002. _________________. Antropologia e cinema. Catálogo II Mostra Internacional do Filme Etnográfico. 1994. p. 62-71 RUSSEL, C. Experimental ethnography : the work of film in the age of video. Durhan: Duke University Press, 1999. TRINH, T. M. Framer framed. Nova York: Routledge, 1992.

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