TRINTA ANOS ESTA NOITE.pdf

June 2, 2017 | Autor: Ivo Brito | Categoria: HIV/AIDS, Saúde Coletiva, Saúde Publica, Políticas de Saúde
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PÓSFÁCIO AO LIVRO A SÍNDROME: HISTÓRIAS DE LUTA CONTRA AIDSi Ivo Brito

TRINTA ANOS ESTA NOITE Passados trinta anos da resposta a epidemia da aids no Brasil, tenho a certeza de que o caminho percorrido não foi vencido totalmente. O percurso nem sempre se mostrou satisfatório, mas os obstáculos encontrados foram vencidos com muita luta e coragem. Ao longo de toda a trajetória, cada um dos militantes à frente do maior programa de saúde pública do país, tinha a tarefa de responder a uma das maiores epidemias mundiais, manter-se em pé, fazer acontecer coletivamente e passar o bastão para o sucessor, numa corrida sem vencedores. É como vejo cada um dos capítulos que compõem o livro escrito por diferentes atores. Mais do que um programa ou departamento, a resposta à epidemia se constitui e se realiza como movimento social. É daí que derivam opiniões e visões diversas sobre o projeto político de construção da resposta brasileira a epidemia. Lair Guerra de Macedo, a pioneira, teve a ousadia de impor-se à cegueira da burocracia e contrariando a regra, traz em sua mala de viagem os primeiros exemplares de AZT, para atender um número reduzido de pessoas com aids. Lair trazia a solidariedade e estava ciente, à época, que a corrida contra aids não poderia ser vencida se não se combatesse o preconceito e o estigma. Seu gesto marcaria para sempre o modo de conduzir o então programa de aids. É assim o relato de Euclides Castilho: uma crônica do presente a partir da experiência vivida ao lado de uma mulher guerreira, que fundou as bases do que é hoje a resposta institucional a epidemia de aids no Brasil. Os anos que se sucederam a primeira gestão da Lair foram marcados por três fatos importantes. As medidas de controle do sangue a partir da Lei do Sangue de 1991, resultante de fortes pressões sociais. A constituição de um movimento nacional de pessoas vivendo com HIV/Aids. E o interregno na gestão Collor, período que pôs fim ao diálogo entre estado e sociedade, rompendo assim o ciclo de convivência e participação da sociedade civil no processo decisório do programa de aids. Com o impedimento de Collor, Lair retorna ao comando do programa até o fatídico acidente em Recife, em 1996. Mas o bastão seguia firme seu percurso. A corrida não estava perdida. Em 1995 é realizada a primeira compra de medicamentos ARV. Em 1996, o país sanciona a lei que assegura acesso universal ao tratamento a todas as pessoas com aids. A reflexão sobre tratamento e prevenção tem início muito antes das medidas atuais, uma antecipação que irá marcar decisivamente o rumo da resposta brasileira. Para que tudo isso se traduzisse em estrutura, organização e sustentabilidade era necessário “combinar ações universais... com medidas realmente efetivas para grupos em que a epidemia hoje se concentra, como jovens gays, entre os quais as prevalências são 20 vezes maior que na população e geral”. É esse o alerta que o artigo de Jarbas Barbosa, atual Secretário de Vigilância em Saúde, chama a atenção de todos. Se em uma situação emergencial foi necessário constituir estruturas assistenciais especializadas para atender a demanda de pacientes, hoje o desafio que se coloca é o de organizar a resposta a partir das redes de atenção, tendo papel preponderante

a atenção básica. Não se trata de substituir os serviços de maior complexidade pela atenção básica, mas de ordenar os arranjos possíveis de modo a que o sistema opere na perspectiva da integralidade e da equidade. Daí a importância de se incorporar as tecnologias atuais de diagnóstico, tratamento e de prevenção, combinando-as em toda a cadeia de produção dos serviços de saúde, inclusive nos territórios onde as populações mais vulneráveis se encontram, interagem e estabelecem suas relações sexuais. Olhando para o futuro é possível dizer que o alcance da resposta depende da nossa ousadia e de nossa capacidade para dar o próximo passo rumo ao controle da epidemia no país, tendo como pano de fundo um olhar estratégico para o campo de prática da vigilância em saúde. É esse campo que nos dará a nervura necessária para que possamos entender melhor e com qualidade a situação de saúde e os contextos sociais que a determinam. Todo esse movimento não seria possível se não fosse o papel desempenhado, dia após dia, por cada uma das organizações não governamentais, atuando em diferentes frentes de resistência e de solidariedade. Seu capital social acumulado desde o início da epidemia promoveu impactos substanciais na resposta a epidemia. É nos movimentos sociais de luta contra a aids a origem de inúmeras experiências de intervenção exitosas, autônomas e solidárias, muitas delas se converteram em políticas públicas no decorrer dos anos. Na primeira gestão do Pedro Chequer, ampliou-se as oportunidades de apoio a sociedade civil mediante o financiamento de projetos de base comunitária, muitos deles para organizações que se encontravam fora do circuito tradicional, como, por exemplo, trabalhadores rurais, população indígena, população negra, organizações de mulheres, seringueiros, entre outros. Uma posição que era marcada pelo foco na equidade. Podemos dizer que esta experiência iria mais tarde influenciar decisivamente as políticas públicas de saúde. Cito duas iniciativas relevantes que me vem à memória. A primeira foi a estratégia de redução de danos e com ela todo o debate sobre a questão das drogas. Esta experiência trouxe para o centro do debate a questão da autonomia e o direito do usuário de fazer uso sem abster-se, sendo que ao poder público competia assegurar os meios e as condições para que se fizesse o uso seguro da droga. Uma revolução no campo de prática da prevenção. A segunda foi a mobilização e o protagonismo do movimento aids na elaboração do programa de governo “Brasil sem Homofobia”, na gestão Lula, que resultou em seguida nas muitas iniciativas setoriais na saúde, na agenda de direitos humanos, na assistência social e na educação. Hoje estas iniciativas estão consolidadas e contempladas no Plano Plurianual (PPA) e se expressam em ações concretas e já são sustentáveis e descentralizadas. A descentralização é a marca da gestão do Alexandre Grangeiro. Deu início a uma tendência irreversível, transformar um programa verticalizado em uma instância programática horizontalizada, alinhando a resposta a epidemia as mudanças em curso no SUS, logo após a publicação da Norma Operacional de Assistência a Saúde (NOAS). Viabilizou a modalidade de transferência fundo a fundo mediante a criação de incentivo específico, assegurando a sustentabilidade programática com transferência para estados e municípios. Uma mudança radical e ao mesmo tempo contraditória, pois teria que vencer a cultura institucional vigente: “a

AIDS foi deixando de ser um problema de saúde pública para se tornar uma política pública de saúde bem sucedida. E a corda bamba do gestor do Programa de AIDS passou a ser o

equilíbrio entre achar a boa notícia, o meio copo cheio, e dar a notícia necessária, o meio copo vazio”. O processo de aperfeiçoamento da descentralização continua até os dias de hoje, integra a lógica de funcionamento do sistema de saúde, e tem o desafio de colocar em prática ações que respondam a uma epidemia concentrada, sem, no entanto, perder de vista o alcance dos arranjos propostos pela regionalização. Mas a aids no mundo mostrava sua cara. Milhões de pessoas continuam sem acesso aos medicamentos e muitos países possuem legislações restritivas em relação ao uso de drogas, criminalizam as relações entre pessoas do mesmo sexo, tratam as trabalhadoras e talhadores sexuais como párias e caso de polícia, impõem barreiras comerciais e de propriedade intelectual para a produção de genéricos pelos países em desenvolvimento. Enfim, trinta depois, os avanços no campo dos direitos humanos e do acesso ao tratamento permanecem na agenda e são cruciais para o alcance das metas estabelecidas e acordadas internacionalmente. O texto de Paulo Teixeira, escrito na primeira pessoa, nos dá um panorama do debate político do contexto internacional e das disputas que marcaram sua gestão a frente do Programa Nacional de Aids. O país corria contra o tempo perdido, pois havia aderido às regras internacionais precocemente com a sua política de patentes de 1996. Esse fato iria condicionar toda a mobilização até a conquista do licenciamento compulsório do efavirez, que ocorreu na gestão de Mariângela Simão. Lembro como se fosse hoje, seus olhos molhados de lágrimas, antevendo os enormes desafios para superar o atraso e a lentidão da produção nacional, a pressão social e a convicção do dever cumprido. A gestão da Mariângela foi decisiva para o alinhamento da resposta com as estruturas formais do SUS, aproximando atores chaves, como por exemplo, CONASS e CONASEMS, Articulou internamente também uma resposta intersetorial, colocando a agenda da aids na agenda política de outros ministérios. Uma medida que se ajustava às orientações do matriciamento previsto pelo Plano Plurianual (PPA), inovando mais uma vez e aumentando a responsabilidade programática da resposta brasileira. O bastão mais uma vez mudava de uma mão para outra. Os arranjos políticos e os processos de construção de uma resposta esbarravam nas contradições inerentes a governança em país de desenvolvimento tardio. O contexto externo mostrava os avanços tecnológicos no tratamento, no diagnóstico e na prevenção. Os primeiros ensaios randomizados apontavam para o sucesso do tratamento como prevenção. A UNAIDS lançava a bandeira de que era necessária uma revolução no campo de prática da prevenção. Aliar as contradições internas com as tensões externas marcou a condução da gestão de Dirceu Greco. De um lado a pressão da sociedade civil para que as inovações fossem incorporadas, do outro as resistências internas e de outros setores sociais, entre os quais representantes da academia, que viam nas medidas biomédicas um recurso necessário, mas não suficientes para responder a situação epidemiológica e reverter a epidemia no país. A medicalização da prevenção era vista como uma medicalização da sociedade e com ela o debate da autonomia e da emancipação adquiriam relevância. A compreensão deste momento, seu conservadorismo e suas contradições precisam ser mais bem compreendidas a luz do “presidencialismo de coalizão”, que governa sob uma ampla base de apoio e por isso mesmo suscetível a fissuras conjunturais pontuais. Mas há também outro fator que merece destaque, qual seja, a sensibilidade do “presidencialismo de coalizão” à pressão da grande mídia”, que faz um governo com projetos sócias de grande envergadura

recuar em questões vitais para o controle da epidemia, como por exemplo, a suspensão de campanhas para populações de gays e prostitutas, cedendo assim às forças conservadoras e religiosas, em detrimento de uma posição clara e eficiente em contar o estigma e o preconceito. É preciso, no entanto, fazer um adendo. O mesmo contexto que fechava uma porta abria do outro lado oportunidades únicas e inéditas em termos de políticas públicas. O Ministério da Saúde aprova em 2010, a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Institui também em 2010 o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, que resulta numa mobilização nacional do setor saúde e na preparação dos serviços para atender a demanda destas populações. Estruturas de serviços são criados, a exemplo dos centros de referência para transexuais e os consultórios de rua. O momento atual resgata e reposiciona a resposta brasileira em seus três pilares: participação social, acesso universal e direitos humanos, mas sua delegação pressupõe um movimento intersetorial e participativo. A resposta a aids vai muito além de sua dimensão pragmática, se materializa no dia a dia de todos nós. O bastão seguirá seu rumo e todos nós seremos vencedores quando vencermos a epidemia e o preconceito. i

O posfácio não foi publicado na versão impressa e foi escrito para comentar a relevância de cada um dos artigos publicados, no entanto devido a censura efetuada ao artigo do Prof. Dirceu Greco, este posfácio não foi considerado relevante para a publicação oficial do livro.

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