TUDO É CORPO: ESQUIZOFRENIA E TEORIA DOS INCORPORAIS EM DELEUZE E ARTAUD

May 26, 2017 | Autor: Daniela Lima | Categoria: Gilles Deleuze, Acontecimiento, Estoicismo, Esquizofrenia
Share Embed


Descrição do Produto

TUDO É CORPO: ESQUIZOFRENIA E TEORIA DOS INCORPORAIS EM DELEUZE E ARTAUD

Daniela Lima Universidade Federal do Rio de Janeiro Quando tiverem Conseguido fazer um corpo sem órgãos, então o terão libertado dos seus automatismos e devolvido sua verdadeira liberdade. Então o terão ensinado a dançar às avessas como no delírio dos bailes populares e esse avesso será seu verdadeiro lugar1.

Há um desafio em escrever sobre aquilo que se busca e não sobre aquilo que se sabe. Se essa busca se iniciasse em um quarto escuro, onde repousa sobre uma velha mesa de madeira uma vela apagada, quais possibilidades estariam adormecidas na escuridão à espera do fogo? Uma vela tocada pelo fogo ilumina o quarto. Dois corpos se encontram: vela e fogo. Para os Estóicos, o fogo, que é corpo, é causa na vela, que também é corpo, do atributo ser queimada. “Todos os corpos são causas uns para os outros, uns em relação aos outros, [...] de certas coisas de natureza completamente diferente. [...] Não são qualidades e propriedades físicas, mas atributos”. (DELEUZE, 2009, p.5). Esses efeitos não são propriamente corpos, mas incorporais. A teoria dos incorporais no estoicismo é a primeira parte da busca dessa reflexão. A segunda parte é pensar, na esteira de Deleuze e Artaud, a relação entre esquizofrenia e teoria dos incorporais. Uma das primeiras questões que antecedem qualquer busca é, como sugere Zourabichvili (2016, p. 37): como se chegar a um pensamento necessário? Não é a necessidade de pensar que está em jogo, mas a busca pelo pensamento necessário.

1

ARTAUD, 2014, p.57.

O problema mais geral do pensamento talvez seja o da sua necessidade: não a necessidade de pensar, mas como chegar a um pensamento necessário. A primeira experiência do pensamento é a de que não temos escolha, a de que não enunciaremos o que almejamos. O pensador está feliz quando não tem escolha. (ZOURABICHVILI, 2016, p.37) Segundo Zourabichvili, a filosofia sempre admitiu a correlação entre pensamento e necessidade. Pensar/buscar o necessário é buscar a verdade. Não como uma revelação, mas como a justa medida do conhecimento.

1. Eis que agora tudo sobe à superfície: Deleuze e os Estóicos

A verdade está no corpo. Ou melhor: nos corpos, em “suas tensões, suas qualidades físicas, suas relações, suas ações e paixões e o estados de coisas correspondentes” (DELEUZE, 2009, p.5). Segundo Deleuze, esses estados de coisas, ações e paixões, são determinados pela relação entre corpos. No entanto, “não há causas e efeitos entre corpos: todos os corpos são causas, causas um com relação aos outros, uns para os outros” (Ibidem). Os Estóicos propõem uma cisão totalmente nova entre causa e efeito. Rementendo as causas unicamente às causas e os efeitos aos efeitos. Partindo do exemplo da navalha apresentado por Bréhier (2012), é possível dizer que quando a navalha corta a carne, a carne não adquire uma nova qualidade, mas um atributo novo, “ser cortada”. O atributo “encontra-se, de certa forma, no limite, na superfície do ser, e não pode mudar a sua natureza” (BRÉHIER, 2012, p.32). Os atributos não são corpos, mas incorporais e, como tais, não podem sofrer ação ou agir sobre outros corpos. O ato de cortar não modifica em nada a natureza da navalha, mas é causa para outro corpo, no caso a carne, de alguma coisa incorporal.

Estes efeitos [...] não são qualidades e propriedades físicas, mas atributos [...]. Não são coisas ou estados de coisas, mas acontecimentos. Não se pode dizer que existam, mas que subsistem ou insistem, tendo este

mínimo do ser que convém ao que não é uma coisa, entidade não existente. Não são substâncias ou adjetivos, mas verbos. Não são agentes nem pacientes, mas resultados de ações e paixões, impassíveis”. (DELEUZE, 2009, p. 5-6)

Retomando o exemplo de Bréhier: enquanto a navalha penetra lentamente na carne, coexistindo com ela em todas as suas partes, a carne recebe, então, o novo atributo de “ser cortada”, mas a navalha se retira da carne como o líquido de um vaso, ou seja, sem alteração da natureza ou da essência de ambos os corpos. Não se trata de “misturas” no fundo dos corpos ou de alterações definitivas que permitam o surgimento de novas qualidades, mas de acontecimentos incorporais na superfície dos corpos, que resultam dessas interações. Não se trata daquilo que se encontra na profundidade do oceano, em suas águas turvas, onde é impossível enxergar, mas daquilo que está na superfície. “Os Estóicos descobriram o efeito de superfície, [...] o mais encoberto tornou-se o mais manifesto” (DELEUZE, 2009, p.8).

Não mais penetrar, mas deslizar de tal modo que a antiga profundidade nada mais seja, reduzida ao sentido inverso da superfície. [...] E se não há nada para ver por trás da cortina, que basta seguir o mais longe, estreita e superficialmente possível.[...] Os acontecimentos em sua diferença radical em relação às coisas, não são mais em absoluto procurados na profundidade, mas na superfície, neste tênue vapor incorporal que se desprende dos corpos, película sem volume que os envolve. [...] É seguindo a fronteira, margeando a superfície, que passamos dos corpos ao incorporal.

Ou ainda, para citar Paul Valéry: “o mais profundo está na pele”. Essa descoberta dos Estóicos se desdobra em reflexões em vários campos do conhecimento, mas a busca dessa reflexão é estabelecer (ou quem sabe destruir) pontes entre a Teoria dos Incorporais e a esquizofrenia.

2. Deve-se minar esse muro e atravessá-lo: o caso de Artaud

É o próprio corpo que chegou ao limite de sua distensão e de suas forças e que precisa, apesar de tudo, ir mais longe. É uma espécie de ventosa aplicada sobre a alma, cuja acridez corre como um vitríolo, até as fronteiras últimas do sensível. [...] Esta distensão na ordem física é como a imagem invertida de um estreitamento que deve ocupar o espírito em todo corpo vivo. (ARTAUD, 2011, p. 213)

Em Linguagem e Vida, Artaud descreve em detalhes seu corpo aberto, permeável, atravessado, sem barreiras, ou, como descreve Deleuze (2009), corpo esquizofrênico. A primeira evidência da esquizofrenia é a ruptura da superfície do corpo: “não há mais fronteiras entre as coisas [...], precisamente porque não há mais superfície dos corpos” (DELEUZE, 2009, p. 89). Para Freud, o esquizofrênico percebe a pele como uma longa colcha permeada por inúmeros buracos, uma espécie de “corpo-coador”. Esse corpo perfurado engoliria, em sua fome irrefreável, todas as coisas que o cercam. Tudo penetra e afunda na profundidade do corpo-coador.

O corpo todo não é mais que profundidade e leva, engole todas as coisas nesta profundidade escancarada que representa uma involução fundamental. Tudo é corpo e corporal. Tudo é mistura de corpo e no corpo, encaixe, penetração. [...] Uma árvore, uma coluna, uma flor, uma vara crescem através do corpo; sempre outros corpos penetram em nosso corpo e coexistem com suas partes. [...] Como não há superfície, o interior e o exterior, o continente e o conteúdo não tem limite preciso e se afundam na universal profundidade. (DELEUZE, 2009, p. 90)

Nada mais frágil do que a superfície. Segundo Deleuze (2009), bastam alguns passos para que uma falha seja aumentada. A loucura parece acontecer devagar e de repente, como descreve

Susanna Kaysen, “a maioria das pessoas chega aqui [à loucura] aos poucos, abrindo de furo em furo a membrana que separa o aqui do lá fora, até aparecer uma brecha. E quem resiste a uma brecha? No universo paralelo, ficam revogadas as leis da física. Nem sempre o que sobe, desce; um corpo em repouso não tende a permanecer assim e nada garante que toda reação corresponderá a uma reação igual e contrária”. O corpo esquizofrênico, sem superfície, parece desafiar as leis da física e também o estatuto dos incorporais. Quando Deleuze retoma a teoria dos incorporais, encontra uma dualidade de partida: de um lado, estariam os corpos, de outro, os acontecimentos, ou seja, os efeitos incorporais. Quando pensamos em linguagem, o sentido seria um efeito incorporal deslizante na superfície do corpo: “não há dúvida de que este sentido imaterial é o resultado das coisas corporais, de suas misturas, de suas ações e paixões. Mas o resultado é de uma natureza completamente diferente da causa corporal” (DELEUZE, 2009, p.89). Mas, se o sentido como efeito está sempre na superfície do corpo, como ele se apresentaria em um corpo perfurado e sem bordas demarcadas? Neste posto, o corpo esquizofrênico parece esticar e esgarçar dualismo estóico. Na falência de superfície do corpo esquizofrênico, o sentido se mistura ao corpo. “A palavra no seu todo perde [...] sua capacidade de recolher ou de exprimir um efeito incorporal distinto das ações e das paixões do corpo. [...] A palavra deixou de exprimir um atributo de estado de coisas, seus pedaços se confundem com qualidades sonoras insuportáveis, fazem efração no corpo em que formam uma mistura, um novo estado de coisas como se eles próprios fossem alimentos venenoso, ruidosos, excrementos encaixados. As partes do corpo, órgãos, determinam-se em função dos elementos decompostos que os afetam e os agridem” (DELEUZE, 2009, p.90). Em Artaud, tudo é sugado para a profundidade: tudo é corpo, sangue, órgãos, tecidos, tudo é corporal. A capacidade da palavra de exprimir um sentido incorporal desaparece mergulhada na materialidade corpo esquizofrênico. Ou seja, a palavra é recolocada na ordem do corpo. O corpo está nas palavras. As palavras estão no corpo. A palavra estilhaçada de sentido é sugada para a profundidade do corpo. Talvez pela violência com que os estilhaços das palavras atinjam o corpo e seus órgãos mais internos é que Artaud sonhasse com um corpo sem órgãos. O corpo sob a pele é uma fábrica superaquecida, e, do lado de fora, o doente brilha, reluz, por todos os poros explodidos. (ARTAUD, 2011, p. 285)

3. A grande estrangeira (ou aquilo que está próximo)

Em La grande étrangère: à propos de littérature, Foucault trata a literatura como uma espécie de passagem secreta entre dois mundos. A metáfora parece se aproximar do conceito de fissura. Para Deleuze, a fissura é aquilo que não é interior nem exterior ao corpo: “havia uma fissura silenciosa, imperceptível, na superfície, único acontecimento de superfície, como suspenso sobre si mesmo, plantado sobre si, sobrevoando seu próprio campo” (DELEUZE, 2009, p.158). A fissura seria a fronteira incorporal, um espaço de interferência e cruzamento entre aquilo que há de mais interno ou, como definiria Jean-Luc Nancy, de mais “estrangeiro”, e aquilo que é externo. As bordas da fissura são como a encosta de uma praia, onde os pensamentos arrebentam como ondas. E, como as ondas, oscilam entre tocar as bordas com suavidade ou com a violência própria da demolição. A fissura separa dois processos de natureza diferente, a “linha reta incorporal e silenciosa na superfície” (DELEUZE, 2009, p. 159) e os golpes exteriores e interiores dos mares ruidosos que a atingem. Os golpes impiedosos aprofundam e inscrevem a fissura no corpo. Se a ordem dos corpos é ela mesma fendida, como impedirmos sua destruição, ou seja, a plena efetuação de uma mistura corporal, como se dá no corpo esquizofrênico? É o que indaga Deleuze, em A Lógica do sentido:

Como não haveríamos de chegar a este ponto em que nada mais se pode, além de soletrar e gritar, uma espécie de profundidade esquizofrênica, mas não mais absolutamente falar? Se existe a fissura na superfície, como evitar que a vida profunda se transforme em empresa de demolição [...]? Será possível manter a insistência da fissura incorporal evitando, ao mesmo tempo, fazê-la existir, encarná-la na profundidade do corpo? (DELEUZE, 2009, p. 160)

A pergunta de Deleuze nos mostra que carregamos essa frágil cicatriz, que, ao se abrir, desorganizaria a linguagem e a própria vida. É essa cicatriz metafísica e incorporal, que nos separa da esquizofrenia. Cicatriz que seria, ela mesma, o lugar e o obstáculo do pensamento.

Quando Artaud descreve a erosão do pensamento como radical impotência e, ao mesmo tempo, autopoder, está descrevendo essa cicatriz, essa fissura. “Toda vida é, obviamente, um processo de demolição”, essa frase de Fitzgerald, em The crack up, parece descrever precisamente o esgarçamento das bordas que nos separam de mundos outros, de misturas outras, ou seja, da efetuação dessa fissura no corpo. Não vivemos fora do mundo e o mundo (interno e externo) se choca diariamente contra a frágil fissura, como descreve Deleuze:

A

guerra,

a

bancarrota

financeira,

um

certo

envelhecimento, a depressão, a doença, a fuga do talento. [...] Todos esses acidentes ruidosos já produziram seus efeitos de imediato; e eles não seriam suficientes por si sós, se não escavassem, se não aprofundassem algo de uma outra natureza e que, ao contrário, só é revelado por eles à distância e quando já é muito tarde : a fissura silenciosa. (DELEUZE, 2009, p.157)

No entanto, diferentes fissuras possuem diferentes resistências às coisas do mundo:“a fissura continua sendo apenas uma palavra enquanto o corpo não estiver comprometido” (DELEUZE, 2009, p. 164), ou seja enquanto, o corpo se apresentar, em linhas gerais, como um corpo saudável não há risco de ruptura. Mas por que essa ideia de corpo saudável bastaria? Por que não pensar em outra saúde? A saúde daqueles que, dispostos a autodestruição, nos ofereceram “tudo o que foi bom e grande na humanidade” (DELEUZE, 2009, p. 164), como, por exemplo, Artaud, Nijinski e Van Gogh. É por essa fissura - seja arrebentando suas bordas ou apenas tateando seus limites - é que o pensamento emerge: “a fissura é desejável, porque, talvez, nunca pensamos a não ser por ela e sobre suas bordas” (DELEUZE, 2009, p. 164). Talvez esse não seja o fim, mas o início de uma busca.

BIBLIOGRAFIA ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. São Paulo: Perspectiva, 2014. BRÉHIER, Émile. A teoria dos incorporais no estoicismo antigo. São Paulo: Autêntica, 2012. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2009. FOUCAULT, Michel. A grande estrangeira. São Paulo: Autêntica, 2016. KAYSEN, Susanna. Garota, interrompida. São Paulo: Random House, 1993. ZOURABICHVILI, François. Deleuze: uma filosofia do acontecimento. São Paulo: Editora 34, 2016.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.