\"Tudo está interligado\": a comunicação vista pela Encíclica Laudato si\'

June 30, 2017 | Autor: Moisés Sbardelotto | Categoria: Teologia, Ecología, Igreja Católica, Catolicismo, Papa Francisco, Laudato Si
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pela Encíclica Laudato si’

L

ouvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe Terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras”. Essas palavras de São Francisco de Assis (1182-1226), no século XIII, são retomadas por outro Francisco (1936-), o atual bispo de Roma, no século XXI, como inspiração para sua nova encíclica, intitulada Laudato si’ (Louvado sejas). É um documento papal histórico, pois se trata da primeira encíclica a abordar exclusivamente – e extensivamente – a Criação, que é tanto nossa “irmã, com quem partilhamos a existência”, quanto a nossa “boa mãe, que nos acolhe nos seus braços” (n. 2). E, na tradição judaico-cristã, como explica o pontífice, “dizer ‘criação’ é mais do que dizer natureza, porque tem a ver com um projeto do amor de Deus, em que cada criatura tem um valor e um significado”, é “um dom que vem das mãos abertas do Pai de todos […] que nos chama a uma comunhão universal” (n. 76). Trata-se de uma verdadeira ecoencíclica, O Mensageiro de Santo Antônio

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centrada no “urgente desafio de proteger a nossa casa comum” (n. 13), que convida a uma virada ecológica no âmbito católico. Muito já foi debatido sobre as grandes contribuições desse texto em torno daquilo que o papa Francisco chama de “ecologia integral”. Por isso, aqui, queremos ler a encíclica a partir da comunicação, e a comunicação a partir da encíclica, ou seja, analisar os eixos comunicativos internos do texto, os circuitos comunicacionais aos quais se dirige e também a própria visão bergogliana sobre a comunicação que desponta em várias partes do texto do pontífice. A Laudato si’ é um documento amplo, dividido em seis capítulos e 246 parágrafos, com 172 notas de rodapé. O idioma do título já é uma inovação, pois, ao contrário das encíclicas anteriores, não se trata de uma expressão em latim, língua (cada vez menos) oficial da Igreja: a frase vem do italiano arcaico, do século XII, tempos de São Francisco de Assis. Ao longo da encíclica, o papa Francisco dialoga com inúmeros interlocutores,

começando pela Sagrada Escritura, depois os documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), passando por diversos santos e doutores da Igreja (de São Francisco de Assis a Santa Teresa de Lisieux [1873-1897]), e por seus antecessores no papado, principalmente São João Paulo II (1920-2005), citado 36 vezes, e o papa Bento XVI (1927-), mencionado 26 vezes. Ele também retoma o pensamento de vários autores de ciências e experiências diversas, citados nominalmente, como o escritor italiano Dante Alighieri (1265-1321), o filósofo protestante francês Paul Ricoeur (1913-2005), o teólogo italiano Romano Guardini (1885-1968), o paleontólogo jesuíta francês Teilhard de Chardin (1881-1955), o teólogo jesuíta argentino Juan Carlos Scannone (1931-). Assim, a encíclica assume diversas contribuições – religiosas, mas também seculares; católicas, mas também ecumênicas –, enriquecendo a doutrina social da Igreja, na qual o novo documento se insere. A perspectiva ecumênica do documento também se destaca logo no início. Pela

primeira vez em um texto magisterial, em toda a história, o pensamento não católico é citado e apropriado pelo magistério pontifício. O papa Francisco dedica nada menos do que três parágrafos (números 7, 8, e 9) do primeiro capítulo – reunidos no entretítulo “Unidos por uma preocupação comum” – ao pensamento e à ação do patriarca ecumênico Bartolomeu I (1940-), da Igreja Ortodoxa, reconhecido por sua atuação ecológica e apelidado, por isso, de “patriarca verde”. Também são inúmeras as citações de documentos das mais diversas Conferências Episcopais de todo o mundo, de um total de quinze países – por exemplo, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), com seu documento de estudo A Igreja e a questão ecológica (1992), citado duas vezes –, além do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam) e da Federação das Conferências Episcopais da Ásia (FABC), sinal de colegialidade também em nível magisterial. De todas as citações, 22 são de órgãos episcopais, mais de 12% do total. Assim, recolhendo e reunindo as reflexões das diversas Igrejas locais em um documento que passa a compor o magistério eclesial, o papa Francisco, em primeiro lugar, diversifica e descentraliza o pensamento da Igreja, harmonizando as mais diversas perspectivas geográficas e culturais sobre o tema da Criação. Em segundo, também concede um peso maior a tais contribuições, reconhecendo e elevando as reflexões e as teologias locais como parte do próprio ensinamento de toda a Igreja, em um magistério concretamente sinodal e colegial. Mas a Laudato si’ não se restringe à Igreja, nem mesmo apenas a um público cristão: sinal disso é a primeira das duas orações finais da encíclica, escrita em linguagem inter-religiosa, podendo ser rezada por todos os fiéis das demais tradições religiosas que acreditam em Deus. Além disso, destaca-se a inédita presença do pensamento não cristão no interior do magistério católico: o papa Francisco cita uma reflexão do mestre espiritual islâmico Ali Al-Khawwas1, que é mencionado, mesmo que em nota de rodapé no parágrafo 233, quando fala da presença do mistério em cada elemento da Criação, ou, nas palavras do pensador muçulmano, “o ‘segredo’ sutil em cada um dos movimentos e dos sons deste mundo”. Também são citadas, diversas vezes, declarações de organizações civis

e órgãos governamentais internacionais, e com a terra” (n. 66). Sinal disso são as como a Declaração do Rio (1992) e a Carta expressões mais utilizadas pelo pontífice da Terra (2000). ao longo da encíclica: O papa Francisco também não dirige sua carta de modo tradicional “aos bispos, • humano(a): 187 vezes; aos presbíteros e diáconos, às pessoas • Deus: 158 vezes; consagradas, aos fiéis leigos e a todos os • mundo: 147 vezes; homens de boa vontade”, a quem os papas • vida: 137 vezes; anteriores haviam dedicado seus textos. • ambiente: 89 vezes. Tendo em vista a deterioração global do ambiente, ele se dirige exO documento também é plicitamente a um público muito pedagógico, oferecenmuito mais amplo: “A cada do uma linguagem simples e Estamos pessoa que habita neste elementos importantes para em uma rede planeta” (n. 3). Ou seja, a prática cotidiana de cada e somos uma o processo de construção um de nós (como o capítulo do oikos (do grego, ‘casa, 5, intitulado “Algumas lirede de pessoas morada, ambiente comum’, nhas de orientação e ação”) em comunhão daí ‘ecologia’) envolve a toe também para a formação em Deus, dos, independentemente de ecológica integral das criancrença e de religião. Todos ças, jovens e adultos (como “conectados” somos irmãos e irmãs, filhos o sexto e último capítulo, entre nós e filhas de uma mesma intitulado “Educação e ese com Ele, “irmã mãe Terra”. piritualidade ecológicas”). Assim, em seu texto, o “Para além do sol”, como “compartilhando” pontífice “desce” da cátedra diz o pontífice em profunda com todos pontifícia para se colocar no poesia, concluindo a encíos nossos mesmo nível desses irmãos clica, “na expectativa da e irmãs, “elevando” – ao vida eterna, unimo-nos para irmãos e irmãs, reconhecer e assumir – a tomar a nosso cargo esta especialmente reflexão de outras culturas casa que nos foi confiada, os mais pobres, e de outros “fins de mundo” sabendo que aquilo de bom além de sua Argentina. E que há nela será assumido o amor do Pai dá as mãos às mais diversas na festa do Céu” (n. 244). contribuições, de dentro “Caminhemos cantando”, e de fora da Igreja. Dessa forma, o papa convida o papa Francisco: “Que as nossas pode se dirigir com credibilidade a todas as lutas e a nossa preocupação por este planeta pessoas e a cada uma delas, cristãs e não não nos tirem a alegria da esperança” (ibicristãs, sem exclusões nem privilégios, para dem). Um primeiro passo nessa caminhada falar de um tema tão importante e comparé ler, com abertura, dedicação e atenção, tilhado quanto a “casa comum”. esse revolucionário documento papal – e Com a Laudato si’, o papa Francisco deseja pô-lo em prática em nosso dia a dia pessoal, lançar um “convite urgente”: a “renovar o comunitário e também eclesial. diálogo sobre a maneira como estamos construindo o futuro do planeta”, um “debate que Nota nos una a todos, porque o desafio ambiental 1 Dados biográficos não encontrados (N.R.). que vivemos e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós” (n. 14). Por isso, defende uma “nova solidariedade universal”, um “desenvolvimento Moisés Sbardelotto sustentável e integral”, na confiança de que “as coisas podem mudar” (n. 13). Jornalista, autor do livro E o verbo se fez bit: a comunicação A Laudato si’ vincula ecologicamente e a experiência religiosas na as “três relações fundamentais intimamente internet (Santuário) ligadas: as relações com Deus, com o próximo O Mensageiro de Santo Antônio Setembro d e 2 0 1 5

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“Tudo está interligado” a comunicação vista

Cristo e as outras criaturas [s.d], autor desconhecido

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