Tudo o que você sempre quis saber sobre escrivaninhas, mas tinha medo de perguntar

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Tudo o que vocˆe sempre quis saber sobre escrivaninhas, mas tinha medo de perguntar∗ Mission´ario Jos´e [email protected] 2012

Poucas coisas no mundo possuem a elegˆancia de uma chave de fenda. E menos ainda possuem sua versatilidade. Chaves de fenda s˜ao baratas, desempenham com excelˆencia a fun¸c˜ao para a qual foram criadas – girar parafusos de tamanho compat´ıvel, no sentido hor´ario e anti-hor´ario – e com louvor algumas outras fun¸c˜ oes poss´ıveis, como tocar guitarra. Por isso mesmo s˜ao fabricadas em diversos tamanhos, pois n˜ao existe uma chave de fenda que aperte ou afrouxe todos os parafusos do mundo, nem que dˆe conta sozinha de todas as maneiras poss´ıveis de se tocar guitarra com chave de fenda. A maioria das ferramentas e m´aquinas com as quais convivemos tem caracter´ısticas semelhantes, servem muito bem a um ou dois prop´ositos, quebram o galho em outros trˆes ou quatro, e sempre podem servir bem para escorar uma porta, ou como peso de papel. Mas, repito, poucas possuem a elegˆancia de uma chave de fenda. No extremo oposto de uma classifica¸c˜ao imagin´aria de geringon¸cas com diversos graus de utilidade encontra-se o computador, a mais deselegante e in´ util de todas as m´ aquinas que o ser humano j´a teve a capacidade de inventar e vender, naturalmente mais caro do que o necess´ario. Deselegante por n˜ ao ter forma definida, al´em do h´abito conden´avel de viver se metendo por todo canto, muitas vezes sem ser chamado. In´ util por fazer de um tudo, ∗

Texto originalmente encartado no Volume 2 da revista MI - M´ usica Independente em ´ Pernambuco - sob a curadoria de Diego Albuquerque, Raul Luna e Rodrigo Edipo. Para maiores informa¸co ˜es acesse: http://mionline.com.br/

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o que ´e o mesmo do que fazer nada e vice-versa. E no entanto estamos rodeados de computadores, e isto ´e muito bom. Se comparado a uma ferramenta ou instrumento ao qual j´ a estamos acostumados, o computador vai sempre perder feio em gra¸ca e simplicidade no uso, e de fato n˜ao h´a nada que justifique seu emprego como uma imita¸c˜ao de escrivaninha ou de est´ udio de grava¸c˜ ao al´em de uma redu¸ca˜o nos custos monet´arios. O que nem sempre compensa o tamanho do arrodeio que precisamos fazer – com nosso corpo, mente e esp´ırito – para us´ a-lo desta maneira, pois o grande trunfo do computador ´e justamente ser mutante, podendo fazer tudo aquilo para o que ainda n˜ao se inventou ferramenta melhor. Essa tem sido mais ou menos a minha sensa¸c˜ ao ao lidar com m´ usica e computadores ao longo dos u ´ltimos quinze anos. Sempre que eu tento repetir, dentro de um software, alguma coisa que eu j´ a tenha feito antes com outras ferramentas, a sensa¸c˜ao ´e semelhante `a que se deve ter usando uma chave de fenda como salva-vidas. Por outro lado, quando a l´ ogica musical de um determinado sistema come¸ca a ficar clara, surgem ideias que para serem executadas `a base de ´atomos demandariam uma conta banc´ aria que eu n˜ao tenho nem pretendo ter, ou recursos humanos que eu tenho vergonha na cara o bastante para n˜ao requisitar. Hoje em dia vivemos um momento interessante observando que essa tendˆencia imitativa na formata¸c˜ao de computadores e softwares come¸ca a ser substitu´ıda, em escalas maiores, por outras abordagens. Podemos nos questionar se o uso de computadores no dia a dia teria a escala que tem n˜ao fosse o “formato escrivaninha” que a Xerox propˆos, a Apple copiou e a Microsoft terminou de estragar ali entre o final dos anos 70 e o come¸co dos anos 80, uma ´epoca em que as pessoas s´erias estavam ocupadas organizando surubas e dan¸cando ao som da Donna Summer. A proposta de botar uma escrivaninha dentro da tela de um computador moldou a maneira como eu e vocˆe fazemos uso dele, mas eu n˜ao vejo muita utilidade nela al´em de convencer algu´em que n˜ ao quer comprar um computador a mudar de ideia. Para fazer m´ usica, a quest˜ao se multiplica. Botar um est´ udio de grava¸c˜ao em cima da escrivaninha – e poder fazer isso em casa sem levar uma bronca da patroa – ´e um caminho que tem tido um certo respaldo comercial, e determina uma maneira de abordar o processo criativo e sua execu¸c˜ao. Fica mais f´ acil se o objetivo for fazer um disco ou m´ usica para um comercial 2

de televis˜ ao, pois de fato essas quest˜oes resolvem-se de uma maneira mais r´apida, e com maior precis˜ ao. E por acreditarmos que mais ´e melhor – tanto que eu nunca vi o reclame dizer “compre esse carro porque ele anda devagar pra caramba” ou mesmo “esse novo telefone da ma¸c˜azinha garante que vocˆe vai se perder de vez em quando” - essa solu¸c˜ao normalmente funciona muito bem, tanto que nomes como Pro Tools, Logic e Cubase j´a n˜ao s˜ao t˜ao alien´ıgenas quanto eram h´ a alguns anos atr´as. Uma das grandes limita¸co˜es deste formato, que a depender do ponto de vista pode ser uma vantagem, ´e sua conex˜ao visual direta com o pensamento musical ocidental em linha reta, da esquerda para a direita, com a sobreposi¸c˜ ao de diferentes camadas sonoras em diferentes n´ıveis de hierarquia. Esse tem sido o caminho da cria¸c˜ao musical desde a inven¸c˜ao da partitura, de onde estes programas herdaram sua organiza¸c˜ao temporal, via sequenciamento MIDI. Sendo um formato gen´erico o bastante, alternativas de baixo custo surgidas recentemente, como o Reaper 1 o Ardour 2 , j´a apresentam um desempenho de fazer frente (ou medo) aos seus concorrentes mais antigos, donos deste monop´ olio. Tamb´em ´e poss´ıvel desenvolver seus pr´oprios ambientes de cria¸c˜ ao musical e performance, no melhor estilo “fa¸ca vocˆe mesmo”, com softwares que s˜ ao em sua maioria gratuitos, como o Csound 3 , o SuperCollider 4 e o Pure Data 5 . Essa abordagem requer algum tempo para se adaptar ` a ideia de que vocˆe pode fazer qualquer coisa, em geral o melhor ponto de partida para n˜ ao se fazer coisa alguma, e exige um certo esfor¸co para aprender a fazer m´ usica a partir de linhas de c´odigo ou caixinhas que se ligam umas nas outras, o que n˜ao ´e nada demais para quem faz m´ usica a partir de bolinhas ou letrinhas com n´ umeros do lado. Mas m´ usicos que fazem m´ usica com bolinha, linha de c´odigo, caixinha ou letrinha por vezes passam muito tempo admirando a chave de fenda e esquecem de apertar o parafuso. Estes programas se valem de uma peculiaridade extremamente interessante do mundo digital, o fato de que dentro dos computadores, por tr´as dos 1

http://www.reaper.fm http://ardour.org 3 https://csound.github.io 4 http://supercollider.github.io 5 https://puredata.info 2

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diversos inv´ olucros que usamos para dar sentido a cord˜oes intermin´aveis de zeros e uns, estamos lidando com dados e n˜ao com objetos. Podemos ent˜ao derivar conte´ udo sonoro tendo como base a grada¸c˜ao de cores de uma fotografia, ou criar imagens com forma e movimento gerados a partir da grava¸c˜ao de uma crian¸ca aprendendo a falar. Estas conex˜oes, sempre arbitr´arias, n˜ao s˜ao novidade, mas o ambiente digital oferece uma s´erie de ferramentas para estes fins que simplesmente n˜ao existem do lado de fora da caixa. Um terceiro grupo ´e formado por softwares que se colocam no meio do caminho e ocasionalmente conversam com ambas as origens, como ´e o caso do Ableton Live6 ou do Reason7 , que reprogramam algumas ferramentas tradicionais explorando outros aspectos de seu potencial, e ao mesmo tempo oferecem um ambiente em que ´e mais f´acil sair jogando. Essa linhagem, por assim dizer, sofre menos por conta de sua pr´opria l´ogica do que pelo equ´ıvoco bastante arraigado de que para us´a-los vocˆe precisa ser um cara moderno e descolado, que combina da maneira certa cortes de cabelo e roupas que n˜ao deram muito certo em outras ´epocas na esperan¸ca de que dessa vez a mistura dˆe liga. Sendo um m´ usico fascinado por ouvir e ver como as pessoas fazem m´ usica, eu n˜ ao me canso de observar a rela¸c˜ao entre m´ usicos e instrumentos, e como ela se desenvolve numa via - espiral e de m˜ao dupla - onde para cada calo na m˜ ao, na boca ou no processo criativo existe uma marca correspondente no instrumento ou na ferramenta, e neste contexto o computador, doppelg¨ anger nosso de cada dia, ainda tem muito a nos esclarecer sobre seu papel. Apesar de ter sido proposto – e ainda ser vendido – como solu¸c˜ao final de todos os problemas, ´e provavelmente atr´as de suas limita¸c˜oes e falˆencias onde se esconde o maior potencial a ser explorado.

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https://www.ableton.com https://www.propellerheads.se

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