Túlio Piva, o mais improvável samba - Uma História da Música Popular de Porto Alegre, Capítulo XI

June 9, 2017 | Autor: Arthur de Faria | Categoria: Samba, Música Popular Brasileira, Porto Alegre
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Túlio Piva, o mais improvável samba

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Quem diria: flautista

– Como é que um cara lá do meio do mato, de Santiago do Boqueirão, me sai sambista? 2

Essa foi a pergunta que o então jovem jornalista e radialista Paulo Deniz fez pra seu colega Carlos Nobre. O ano era 1954 e Nobre puxara Deniz prum canto dos estúdios da Rádio Gaúcha para apresentá-lo ao farmacêutico prático Túlio Simas Piva. Nascido dia quatro de dezembro de 1914, Túlio era, então, um ilustre desconhecido em Porto Alegre – mas habitué das rodas boêmias locais, frequentadas pelo futuro humorista Nobre. Volta e meia ele se tocava da sua missioneira Santiago do Boqueirão (450 km a noroeste de Porto Alegre, quase fronteira com a Argentina) pra mostrar pros amigos da Capital os sambas que compunha com aquela batida de violão que começava a se fazer cada vez mais comentada. O curioso é que a Santiago de então era uma cidade do… tango. Quem ditava o sucesso eram as rádios Belgrano e El Mundo, transmitindo direto de Buenos Aires – e o ritmo portenho era a base do repertório das serenatas que Túlio liderava pela cidade. Mais ainda: até os 25 anos, Túlio Piva era tangueiro de carteirinha. Também gostava um tanto de música regionalista gaúcha, a ponto de apresentar um programa na rádio local com esse repertório, chamado Coisas do Rio Grande. Samba, só se houvesse um bom motivo. Como em 1932. Aos 17 anos, viajou de Santiago a Porto Alegre pra ver Os Azes do Samba. Ok, você não lembra: Noel Rosa, Francisco Alves, Mário Reis, Nonô e o bandolinista gaúcho Pery Cunha, todos juntos, em excursão conjunta pelo sul. Vale reler, no capítulo anterior, o encontro de Lupicínio Rodrigues com os Azes. Mas a prova definitiva do sujeito peculiar que era Túlio, é que o boêmio-família começou a compor quando… casou! A data é 1940. E aí você pensa: o cara fez um tango, certo? Errado. Em vez de tango ou milonga, veja só, saiu um samba! E sambão: Tem Que Ter. Música essa que permaneceria inédita por 16 anos, até o encontro citado cinco parágrafos atrás. Tem Que Ter, sua primeira música, seria também seu maior hit, para sempre. A letra, mais simples e didática impossível, dizia: O samba, pra ser samba brasileiro Tem que ter pandeiro, (oi, diz que tem!) tem que ter pandeeeeiro O samba, pra ser samba na batata 3

Tem que ter mulata, tem que teeeeer mulaaaata O grande achado era a peculiar batida no violão. Um negócio que contrariava várias lógicas da execução violonística mas, surpreendentemente, funcionava. Túlio usava as cordas graves mais como um surdo do que propriamente para fazer harmonia, e as agudas pareciam sintetizar algo entre os tamborins e os taróis de uma escola de samba. E era isso que, lá no começo do texto, Paulo Deniz tinha acabado de escutar – e adorado. Tudo isso exatos dez anos antes de Jorge Ben ganhar o Brasil pelo mesmo mérito: uma peculiar batida de samba no violão. Ou seja: voltamos a 1954. *

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Mal ouviu a canção, Deniz rebocou seu compositor direto para o ensaio do recém-fundado Conjunto Melódico de Norberto Baldauf, então num momento de ascensão meteórica. Baldauf ficou encantado com o suingue e a originalidade daquilo, num momento em que ambas qualidades – suingue e originalidade – estavam em alta no mercado. Acertou ali mesmo uma promessa: ia gravar. Demorou, mas cumpriu: dois anos depois, tá ela lá, em Ritmos da Madrugada nº 2, segundo LP do Conjunto.

Cool é apelido: o segundo disco do Baldauf Começaria ali a carreira discográfica de Tem Que Ter… (que viraria Tem Que Ter Mulata só anos mais tarde, a partir da gravação do sambista paulista Germano Mathias) Registrada em dezenas de discos no Brasil, Venezuela, Estados Unidos e até na Rússia, a música rendeu a Túlio algumas gratas surpresas. Como a que teve numa tarde de Carnaval em que passeava por Montevidéu. Lá longe, ouve aproximar-se uma murga – o bloco de carnaval deles. E o que 4

vinham tocando, na maior animação? …debe tener mulata, debe tener mulata...

Suíngue é apelido: o LP do Germano, ainda broto *

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Ainda motivado por aquele impacto inicial, Deniz lhe carrega para o exclusivíssimo Clube da Chave, que reunia a nata boêmia da cidade. Era lá que ele, Deniz, já respeitado no rádio, promovia o Encontro com Gente Nova. E mesmo que essa novidade estivesse às portas dos 40 anos de idade, o sucesso foi igual. Imediatamente

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Glênio Peres, também boêmio e radialista, convida Túlio para seu programa A Saudade Bate à Sua Porta, na Rádio Farroupilha. Foram tantas emoções em tão curto espaço de tempo que o pacato cidadão voltou pra Santiago tão empolgado quanto confuso. Era um responsável empresário e pai de família (o que seria por toda a vida, como bem caracterizou o genro Jayme: Túlio era boêmio do lar, fumava e bebia moderadamente. Inclusive não sabia beber, cometendo heresias, tais como misturar uísque com guaraná ou vinho tinto com refrigerantes).

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Uma das primeiras fotos na condição de "artista" Mas, como o próprio Túlio escreveria anos mais tarde, com o casamento e o samba, uma transformação se deu em minha vida, uma verdadeira mudança de hábitos e costumes. O boêmio que eu era, parceiro das madrugadas, das tertúlias e serestas, deu lugar ao

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homem sério, voltado para o lar e para o trabalho. E, curiosamente, foi aí que nasceu o compositor, pois até então eu só cantava a música dos outros. Leva um ano pra convencer a família. Mas em 1955 se manda pra Capital com malas e bagagens. Para um cidadão da fronteira – filho de um bem estabelecido comerciante italiano com uma professora brasileira – Porto Alegre resplandecia como uma Pasárgada de possibilidades. E ele sabia que não dava pra perder essa segunda chance. Afinal, a primeira ele perdera. *

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Em 1941 ele fora à capital com uma missão: pedir para o pianista e compositor Paulo Coelho passar pra partitura justamente Tem Que Ter. Era a forma de inscrevê-la num concurso da Rádio Nacional do Rio de Janeiro e ninguém em Santiago do Boqueirão sabia ler ou escrever música. Paulo, que já estava doente, morreu pouco depois (vale dar uma relida no capítulo referente a ele). Pra completar a sensação de que a canção parecia ser um pé-frio em forma de samba, meses depois a partitura chega de volta à casa de Túlio, em Santiago, num envelope postado direto da Rádio Nacional. Com um imenso carimbo vermelho escrito: Recusado! Dez anos depois, em 1950, ele tentaria de novo um concurso de rádio, dessa vez promovido pela Rádio Farroupilha, e ganharia em duas categorias: melhor samba e melhor marcha. Só que, pelo jeito, isso não deu maior repercussão: quando finalmente mudou-se pra Porto Alegre, apenas cinco anos depois, ninguém lembrava disso. Mas desta vez ele tinha decidido: ia ser pra valer. A Drogaria Piva foi instalada na Rua da Praia (Rua dos Andradas) quase com a Dr. Flores, coração da cidade. Era uma versão reduzida e mais específica da Casa Piva, fundada pelo pai de Túlio, José, décadas antes em Santiago. Ali, a Casa Piva ocupava uma quadra inteira – e ali o guri tinha crescido atendendo no balcão e vendo o sucesso de produtos como o sabonete Limol, conhecido em todo o Rio Grande do Sul. José Piva era uma figura rara, com grande tino pra negócios, ouvinte assíduo de música erudita, do tipo que volta e meia viajava a Paris para saber das novidades.

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Animação não parecia ser o forte da família Piva - ao menos na frente do poderoso chefão italiano da casa. Pois em 1956 a Drogaria Piva fervia como Alka-Setzer, convertido em ponto de encontro vespertino da boemia portoalegrense. Neste mesmo ano passa uma temporada em Montevidéu, tocando com sucesso nas rádios e casas noturnas (o que explica a murga de anos mais tarde). Na volta, graças à repercussão da estada uruguaia, é contratado pela Rádio Gaúcha. A coisa começava a engrenar. *

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Até os anos 1960, como vimos, era comum que cantores de renome viajassem pelo país para cantar nas principais emissoras de cada região, acompanhados pelas orquestras locais. De quebra, alguns aproveitavam pra caçar canções inéditas. Foi assim que o samba batucado de Túlio começou a pegar fama: Germano Mathias 9

faz muito sucesso em São Paulo com sua citada versão de Tem Que Ter Mulata e aí o resto veio de roldão: Elza Soares, Miltinho, Joel de Almeida, Carmélia Alves, Dupla Ouro e Prata, Gasolina, Francisco Petrônio, Noite Ilustrada e muitos outros do crème de la crème do samba (principalmente paulista) dos anos 1950 e 60. Luiz Vieira vira, além de intérprete, parceiro e amigão. São Paulo. Quem já refletiu sobre isso foi o escritor, professor e teórico gaúcho Luís Augusto Fischer: fiquei pensando na afinidade do samba de Túlio Piva com São Paulo, e não com o Rio. O estilo de Túlio era mais para o manso, um samba elegante, sem efusão, discreto, (...) meio abstrato, no sentido de que não é relato de vivência, mas alusão a itens do mundo do samba, assim meio de longe. Faz sentido: ele não nasceu no morro. O jornalista Osvil Lopes, décadas atrás, havia escrito sobre a conexão paulista desde um outro enfoque: Túlio Piva está para a cultura popular do Rio Grande do Sul como Adoniran Barbosa está para São Paulo. (...) A diferença é que os paulistas são menos rígidos em mostrar afetividade e reconhecimento de seus valores.

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Best Friends: Luiz Vieira (no centro) e Túlio. Mais Miltinho (à esquerda na foto) Alguns dos melhores artistas gaúchos daqueles anos também se põem a registrar os sambas de Túlio em versões tão variadas como podem ser o estilo cool melódico de Breno Sauer, Conjunto Flamingo e Peixoto Primo, o suingue bárbaro de Caco Velho – que lhe dedica um compacto duplo inteiro (quatro faixas) em 1961 – ou a parceira de Teixeirinha, Mary Terezinha, em seus hoje raríssimos e esquecidos discos solo de samba, MPB e Bossa Nova. Falando em esquecido, o lado regionalista do compositor também é levado a disco por grupos como Os Araganos ou Os Minuanos. Nem precisava elencar todo esse escrete pra deixar clara a importância de Túlio como compositor. Três nomes seriam suficientes: o Conjunto Farroupilha, os paulistas Demônios da Garoa – que quase só gravavam Adoniran Barbosa e registraram várias de Túlio – e a maior cantora da cidade naquele começo de anos 60: a adolescente que era uma espécie de mascote da turma de boêmios: Elis Regina. Em 1962 e 63, Elis (então escrevia-se Ellis) leva a disco duas músicas de Túlio, uma em cada um dos seus dois primeiros LPs decentes. Aproveitando o momento de popularidade, o próprio Túlio tinha finalmente estreado em disco, no compacto duplo Isto é… Samba! –, de 1961, pela gravadora Hi-Fi Variety.

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Isto é... Samba! Em 63, passa a apresentar um programa diário na Rádio Difusora. Diário, nada: noturno: de segunda a sexta, 21 às 23h. O nome? Gente da Noite – tirado do samba recém-composto em homenagem ao amigo jornalista Antonio Onofre, o Dono da Noite, o hino boêmio era então seu novo sucesso. Gente da noite, Que não liga preconceito. Tem estrelas na alma E a lua dentro do seu peito.

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Gente da vida cansada, Que ergue seu mundo Na madrugada. Gente que canta e que chora. Chora de saudade quando a noite vai embora. Apenas um ano mais novo que Lupicínio Rodrigues, Túlio corria atrás do tempo perdido, refazendo um ciclo bastante parecido: estreia tardia como intérprete de seus sambas, programas de rádio, gravações e crescente popularidade. Gente da Noite se manteria no ar por quatro anos, sedimentando o nome de Túlio Piva como referência local de samba e boemia. Quando saiu do ar, estávamos em 1968, o ano que não terminou. Um ano revolucionário, jovem, mas que foi surpreendentemente bom para o cinquentão. *

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O mais legal não foi ser aclamado por uma plateia jovem e contestadora, quando grande parte da sua turma era dada como velha e ultrapassada. Também não foi o mais legal fazer um samba vencer a segunda edição do Festival Sul-Brasileiro da Canção Popular, num momento em que quem fazia música no Rio Grande do Sul queria ser ou MPB ou tropicalista. Tampouco o mais legal foram as três vezes que tiveram de repetir Pandeiro de Prata depois do anúncio das vencedoras. Bom mesmo, de lavar a alma, foi o arrastão em que os cinco mil presentes na plateia do ginásio do Grêmio Náutico União levaram o coroa, nos ombros, até a rua.

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Consagração é ISSO. O resto é marquetchim Os primeiros lugares do Festival ganhavam o direito de participar do III Festival Nacional de MPB da TV Excelsior, apelidado O Brasil Canta no Rio. Lá, em pleno pré AI-5, tentariam a sorte no meio dos cobrões da geração dos festivais – além de Túlio, embarcaram nessa os jovens César Dorfmann – com Sonho – e Raul Ellwanger – com O Gaúcho. A expectativa era grande e as esperanças, maiores ainda. O grupo que o acompanhava era da pesada: Tempo 6 – que tinha, entre outros, o crooner galã Edgar Pozzer e a cantora Anamaria Bolzoni. Só que aí, na hora h, frente às 23 mil pessoas que lotavam o Maracanazinho, o som simplesmente pifou. No meio da música. Apesar de todos os protestos, não deixaram repetir e Túlio não levou prêmio nenhum. Frustradíssimo, abraçou-se no consolo da solidariedade de muitos concorrentes que acharam tudo uma grande sacanagem – até uma comissão da Mangueira pediu desculpas em nome do povo carioca. Só restou o prêmio de consolação de ouvir Pandeiro de Prata num dos dois LPs do festival, cantada por um esfuziante Jair Rodrigues acompanhado por, entre outros, a melhor dupla de violões do Brasil: Dino e Meira. Ninguém entendeu aquilo até hoje, alguns apostam em sabotagem, porque a música era uma das 14

preferidas. Quem acabou vencendo foi Modinha, do Sérgio Bittencourt, com o Taiguara e o pai do compositor, ninguém menos que Jacob do Bandolim. Seguida de Marcos Valle, Tuca, Alcyvando Luz e uma insuspeita parceria entre Carlos Imperial e Ataulfo Alves, Você Passa, Eu Acho Graça.

Uma das duas edições do LP do Festival. A outra não tem os gaúchos. *

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Em 1975 o samba e o choro tinham retornado com tudo. E Túlio vive para ver o que Lupicínio, por exemplo, não viu: a volta do gênero ao gosto de quase todas as classes sociais e apetites intelectuais. Samba não era mais uma coisa (só) de coroas boêmios em seus guetos. Era chegada a hora de assumir definitivamente essa nova vida: chega a disputar (e perder) uma vaga de vereador pelo PMDB, mas decide que agora é fechar a drogaria e virar 100% sambista. Artistas como Cartola e Nelson Cavaquinho – pra não falar em Clementina de Jesus – estreavam em disco já com mais de seis décadas de vida. Nessa onda, a mesma Continental que estava

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lançando os jovens Almôndegas contrata o coroa de 61 anos de idade para gravar seu primeiro LP: Túlio Piva.

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O primeiro e caprichado LP: puta som, puta capa, texto de contracapa do Hamilton Chaves... Na sequência, seria sócio de dois bares-restaurantes que marcariam a noite de Porto Alegre pelos próximos 10 anos: Pandeiro de Prata abre em janeiro desse mesmo 1975, mas não dura. Então, com o inseparável amigo e comparsa Lúcio do Cavaquinho (e mais tarde em trio com a cantora Eneida Martins), em outubro do mesmo ano, inaugura o Gente da Noite: muito sucesso. A casa se transforma num dos santuários da boemia porto-alegrense, recebendo artistas de fora e mantendo na folha de pagamento alguns dos melhores instrumentistas de samba da capital.

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Só que dinheiro que é bom… nada. Os donos ou ficavam compondo sambas no escritório ou estavam tocando no palco, enquanto o pessoal da administração cuidava do caixa. Não precisa dizer no que deu…

Túlio tinha seu próprio bar, mas fazia bonito dos outros redutos boêmios da cidade, como o Chão de Estrelas, da mítica Adelaide (na foto, entre Túlio e Demósthenez Gonzales, recebendo um carinho do Lúcio do Cavaquinho, sob o olhar do genro de Túlio, Jayme). Mas eles nem tavam nem aí. Afinal, as alegrias eram diárias: foi ali que Túlio, já coroa, se redescobrindo, compôs a maior parte dos seus 500 sambas. E a coisa engrena: em 1977, pela Chantecler, vem o segundo disco: Gente da Noite, com Túlio acompanhado por Plauto Cruz, a cantora Eneida Martins e o Triunvirato do Samba (Lúcio do Cavaquinho, Fabrício e Cabeça, a banda da casa do Pandeiro de Prata).

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O segundo disco, em dupla com Eneida Martins Em 1978, é contratado para uma temporada de duas semanas no Teatro Jogral de São Paulo (onde sempre foi muitíssimo mais conhecido do que no Rio) e o resultado é tão bom que acaba ficando um mês. Em 1979, o terceiro LP: Pandeiro de Prata. Nesse ano, Porto Alegre já tem, novamente, uma gravadora, a Isaec. E o trabalho sai por ela, que começava a montar seu cast.

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Também é o ano em que, no Gente da Noite, estreiam os netos – filhos da filha única, Vera. Rodrigo Piva (Porto Alegre, 15/3/1964) tinha então 15 anos, se tornaria compositor e cantor – radicado em Santa Catarina desde o final da década de 1990, onde já lançou três discos. Rogério Piva (Porto Alegre, 2/4/1967) tinha 12, é virtuose do bandolim, cavaquinho, violão, violão de sete cordas… e guitarra de jazz. Pra fechar o time, o “neto adotivo” Giovane Gonçalves Bertini (Porto Alegre, 30/1/1967), que começou no surdo, também aos 12, passou para o pandeiro, mudou o nome para Giovanni Berti e hoje é um dos percussionistas mais requisitados do Rio Grande do Sul.

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Em ação no Gente da Noite, 1980: Rogerinho no cavaco, Giovanni no Tantã Rodrigo, o mais velho da turma, é quem melhor lembra: arrisco a dizer que essa foi a fase mais feliz da vida do Túlio. Cada noite uma composição nova. Ele ia no escritório, compunha, passava no camarim, ensaiava e no próximo bloco já tava mostrando a música nova. Cansei de ver ele fazendo isso. *

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Já que falamos nele… Lúcio do Cavaquinho. Nascido em Rio Pardo – 137 quilômetros a oeste de Porto Alegre –, no dia 18 de outubro de 1936, foi tentar a vida na capital em 1959, depois de anos de trabalho na profissão menos chorona possível: peão e capataz de estância. Mas, ainda que tenha chegado na capital já formado em teoria e solfejo pelo conservatório de Rio Pardo – tocava violino antes de passar pro cavaco –, levou, como Túlio, muito tempo pra virar músico profissional. O ano era 1975, ele tinha já 37 primaveras, e pedira demissão do cargo de chefe do Setor Central de Desenho do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS para se tornar um dos nomes mais importantes do choro em Porto Alegre, trabalhando na noite pelos 15 23

anos seguintes – como diretor artístico de casas como o Chão de Estrelas, Candelabro e o Clube da Saudade, além do já citado Gente da Noite. Começa liderando o citado Triunvirato do Samba.

Gente da Noite, o bar: Túlio acompanhado do Triunvirato do Samba. Lúcio decidiu que todos usariam óculos, pra dar unidade, mesmo quem não precisasse. A partir daí, grava muito e acompanha em discos e shows gente como Nelson Gonçalves, Altamiro Carrilho, Jamelão, Beth Carvalho, Ademilde Fonseca, Déo Rian, Carlos Poyares, Moreira da Silva e por aí vai. Monta a dupla Recital de Cordas com o grande violonista Jessé Silva, seu amigo inseparável. E, por longo tempo, lidera o regional Lamento. Primeiro convidado do projeto O Choro é Livre, do Theatro São Pedro – o Lamento tinha, além dele, Plauto Cruz na flauta,Mário Schimia no violão, Valtinho no pandeiro e Runi no surdo. Além disso, integrou por uma década o Conjunto Vibrações – cuja segunda formação teria Lúcio e Jessé, mais Giovanni Berti, Rodrigo e Rogério Piva.

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Túlio, um anônimo, Professor Darcy e Lúcio do Cavaquinho. Que trio!

Tulio e Jessé Silva, outra dupla inseparável. 25

Todo seu talento de compositor, instrumentista e bandleader está registrado num CD independente lançado em 1997, só com músicas suas, bancado pelo Fumproarte, da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Talvez um pouco tarde, já que não conseguiu reverter a sensação que lhe abateu no começo do novo milênio: uma certa revolta com o pouco reconhecimento de seus serviços prestados à música de Porto Alegre. Cansado, voltou para Rio Pardo e morreu pouco depois, dia 9 de fevereiro de 2004. *

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Em 1982 a febre sambista tinha amainado, mas o choro e os discos independentes seguiam muito bem. Cruzando as informações, Túlio lança de forma independente seu quarto e último disco: Sambas e Choros.

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O disco dividido com os netos

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Contracapa De um lado, sambas novos, cantados em parceria com Eneida e acompanhado pelo Conjunto Vibrações e Plauto Cruz. Do outro, só o Vibrações tocando chorinho. Quando, em 1985, o jornalista Kenny Braga publica uma biografia de Túlio, ele está no auge da sua condição de anfitrião de clássicos churrascos que atravessavam todo o final de semana (na sua casa ou na da filha), pelos quais passaram todos os músicos locais de choro e samba, mais Paulinho da Viola, Nelson Gonçalves, Beth Carvalho, Luiz Ayrão, Jorge Goulart, Francisco Petrônio, os Demônios da Garoa, Joel Nascimento, Baden Powell, Carlos Lyra, Jamelão e até Benito de Paula e Nelson Ned!

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A biografia escrita pelo amigo Kenny Braga Seu último grande show acontece em 1991. Ensaiado por meses e com direção geral de Luciano Alabarse, o espetáculo trazia Túlio acompanhado por um grupo formado pelos oito jovens músicos doBando Barato pra Cachorro, mais o reforço dos netos e Giovanni Berti. Com esse bandão de 11 pessoas, arrasou. Estava feliz como um guri, mais jovem do que todos à sua volta. O que só ele e o genro Jayme sabiam é que ele estava com câncer, e aquele provavelmente seria seu último espetáculo – como efetivamente foi. (O autor destas mal-traçadas era sócio-fundador do Bando, e teve a alegria de participar de tudo. O grupo fazia recriações, por vezes radicais, de música popular brasileira de décadas passadas. Portanto, cada vez que se aprontava uma versão, era aquele medo: será que o Túlio vai gostar? E ele vibrava com tudo, o mais entusiasmado naquele inferno de fios, afinações e temperamentos exaltados de uma dúzia de jovens enfiados num porão. Entre o convite para o show e a estreia, compôs mais dez músicas: “Chega, Túlio! Pelo amor de Deus! Tem repertório pra mais três shows!”. E seguia o medo infundado dele estrilar com os arranjos: Estrela Perdida, uma velha marcha-rancho, com bateria eletrônica, flautim e guitarra baiana com distorção? Adorou. Sputnik Nacional – um sambaço de 1957 no qual ele falava do satélite russo, transformado num mambo cheio de compassos alterados e dissonâncias? Dessa vez ele chegou no ensaio e ficou quieto enquanto o grupo ensaiava, naipe a naipe, o arranjo cheio de encrencas. Na primeira passada completa, seus olhos se enchem d’água. Só diz uma frase: “– Essa eu canto”. Elis Regina tinha entendido tudo ainda adolescente, quando gravou a sua Silêncio: Silêncio, atenção! O samba já tem outra marcação. O pandeiro já não faz o que fazia, 29

Violão só é na base da harmonia. Silêncio, atenção! Por que o samba já tem outra marcação. A roda do mundo sempre vai girando, vai girando sem parar. Tudo nessa vida se renova, A bossa velha deu lugar a Bossa Nova ) *

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Túlio deixou como legado sua batida única de violão – que ainda está por ser mais aproveitada – e pelo menos três dos maiores clássicos do samba gaúcho: Tem Que Ter Mulata, Gente da Noite e Pandeiro de Prata. Morreu em 11 de fevereiro de 1993, depois de dois anos de batalha contra o câncer e, ironicamente, semanas depois era enredo de duas escolas de samba gaúchas: a Acadêmicos da Orgia, da sua Santiago do Boqueirão, e a Praiana, do Grupo A de Porto Alegre, cujo tema era Lua e Sol – Cenário Inspirador de um Poeta: Túlio Piva. Rogério, Rodrigo e Giovanni estavam lá, tocando e cantando junto ao carro de som. Deixou também um baú com centenas de músicas inéditas, caprichosamente gravadas em fitas cassete. A última, escrita dias antes da sua morte, se chama Ladeira da Vida. Túlio, já bem doente, chamou a velha amiga e intérprete Anamaria Bolzoni, mostrou o samba e concluiu: Está pelada a coruja, Anamaria. *

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O CD póstumo, cheio de inéditas

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Parte delas foi arranjada e gravada no CD póstumoTúlio Piva – Composições Inéditas, lançado em 1995 também pelo Fumproarte, produzido pelos netos e reunindo dezenas de músicos, cantores e cantoras das mais diversas gerações, todos seus admiradores. Em 1999, o Teatro de Câmara da prefeitura municipal de Porto Alegre é reformado e batizado como Teatro de Câmara Túlio Piva. Pra fechar, em 2005, o Programa Petrobrás Cultural financia o CD Book Túlio Piva – Pra Ser Samba Brasileiro, uma caixa produzida por Rodrigo e Márcio Gobatto, reunindo um CD duplo com o melhor de seus LPs e um livro de textos variados e poemas escritos desde 1933 (boa parte deles, sonetos, nas regras da arte, além de um capítulo inteiro de insuspeitos versos regionalistas).

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Pelo que compunha, Túlio poderia ter tentado a vida no Rio – ou, mais facilmente, São Paulo. Há até uma foto histórica de um jantar no Clube dos Cozinheiros, onde ele toca violão numa mesa que reúne 32

Dorival Caymmi, Vinícius de Moraes, Lupicínio Rodrigues e Alcides Gonçalves, no maior clima de intimidade.

“A” foto Mas, se quando saiu de Santiago para Porto Alegre já não era nenhuma criança, mais tarde ainda é que não teria vontade, coragem ou necessidade pra arriscar a vida familiar com mais uma mudança – e possivelmente seria mais difícil gerenciar uma farmácia ou um bar num lugar onde não tivesse tantos conhecidos. Foi ficando, ficando e pagou um preço – ao que parece, sem maiores mágoas. Ou melhor: quase sem. Uma ele tinha, a partir do final da década de 1970: não tocar no rádio, nem aparecer na TV com frequência. Entre os de sua geração, isso não era privilégio seu. Mas, como bem definiu o neto Rodrigo, isso doía mesmo: um compositor popular… sem povo.

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Uma das suas últimas fotos ´posadas´ Só que quem conheceu Túlio sabe que nenhuma alegria lhe parecia maior do que mostrar seus sambas novos, cercado dos netos músicos, dos amigos músicos e dos amigos músicos dos netos músicos. Muitas e muitas vezes, no velho sobrado da Duque de Caxias, coração da parte mais aprazível do centro de Porto Alegre, onde morou até morrer, sempre ao lado da sua maior tiete e crítica: a parceira de um casamento de mais de meio século, Eloíza. O boêmio mais família de Porto Alegre.

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