Turismo, aspectos da formação de um país

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Louise Alfonso Prado, Embratur, formadora de imagens da nação brasileira. São Paulo, Annablume, 2015, 978-85-391-0669-1.

Turismo: aspectos da formação de um país

O deslocamento humano é antigo e as viagens estão no imaginário humano desde tempos imemoriais. Alguns estudiosos modernos dirão que o ser humano é definido como o animal em locomoção, como caçador e coletor, nômade desde sempre1, antes de se acostumar ao sedentarismo, filho das primeiras cidades, há alguns milhares de anos apenas. Mesmo aí, as viagens continuaram no imaginário de povos e culturas 2. Basta lembrar que toda a civilização ocidental, desde Homero e a Odisseia, que descreve as aventuras de Ulisses, tem sido eivada da recorrência do tema, seja em Camões nos Lusíadas, no Ulisses, de James Joyce ou mesmo as Jornadas nas Estrelas de Spock e companhia. Parece mesmo que esse espírito viajante está no cerne do humano, como teria dito o general romano Pompeu 3, Πλεῖν ἀνάγκη, ζῆν οὐκ ἀνάγκη, bem traduzido para o nosso idioma pelo poeta Fernando Pessoa: Navegar é preciso; viver não é preciso (e retomado na luta contra a ditadura por outro Ulysses, o Guimarães, em 19734).

1

Cf. Clive Gamble, Timewalkers. Cambridge, Cambridge University Press, 1994.

2

Cf. Chris Gosden, Archaeology and Colonialism. Cultural contact from 5000 BC to the Present. Cambridge, Cambridge University Press, 2004. 3

Plutarco, Vida de Pompeu, 50, 1.

4

Cf. Ulysses Guimarães, discurso em 22 de setembro de 1973, em suas palavras conclusivas: “Mas no episódio, nossa carta de marear não é de Camões e sim de Fernando Pessoa ao recordar o brado: “Navegar é preciso. Viver não é preciso”. Posto hoje no alto da gávea, espero em Deus que em breve possa gritar ao povo brasileiro: Alvíssaras, meu Capitão. Terra à vista! Sem sombra, medo e pesadelo, à vista a terra limpa e abençoada da liberdade.” Disponível em http://blogdocitadini.com.br/?p=31, 24/04/2013.

Mas, afinal, porque viajam os humanos? Talvez o mais antigo guia de viagem que tenha chegado até nós, A Descrição da Grécia, de Pausânias (século II d.C.), nos possa dar uma dica: o grego que vivia sob domínio romano apresenta cada rincão helênico, suas cidades, monumentos, templos e paisagens, sem quase nunca referir-se a nada que lembrasse a presença romana, ainda que ela fosse muito presente e impossível de não ser notada (basta lembrar que o culto imperial era bem difundido naquelas paragens). As viagens de Pausânias serviam a lembrar de certas coisas e a esquecer de outras, assim como para diferenciar uns (gregos) de outros (romanos) 5. Portanto, as identidades já estavam no centro das preocupações dos viajantes e isso seria retomado, em novas formas, com o turismo moderno. Este surgiu no contexto da formação dos estados nacionais e dos imperialismos nascentes, à época do Grand Tour6 dos séculos XVII, XVIII e princípios do XIX, quando os nobres viajam para experimentar o estrangeiro e reforçar sentimentos de pertença e diferença.

Toda viagem oscila entre esses dois polos. Por um lado, busca-se conhecer o diferente, as maneiras como o povo de um lugar come, bebe, dança, quais seus monumentos e valores, de modo a que a se possa usufruir do diverso 7. Por outro, esse contato lembra-nos, a cada instante que somos diferentes e, desta forma, reforçam-se os laços de pertença a uma mítica pátria, a um lar onde somos todos membros de uma única família. Este sentido íntimo está presente nas viagens daqueles séculos e que se referem a seu lar/pátria (Heimat, em alemão, homeland, em inglês, sempre com referência à casa). Os nativos do Mediterrâneo, com seus costumes exóticos, impeliam os visitantes a deles se distanciarem, mas a se apropriarem dos vestígios de antigas civilizações, cujos templos pareciam serem feitos pelos antepassados dos viajantes, não dos locais. Os templos gregos e romanos não eram, pois, associados aos habitantes daquelas paragens, mas aos nascentes (ou aspirados) estados nacionais 8.

5

Cf. Christopher Kelly, The Roman Empire, Oxford, Oxford University Press, 2006, pp. 66-69.

6

Cf. Edward Brodsky-Porges, The grand tour travel as na educational device, Annals of Tourism Research, 8, 2, 1981, 171-186. 7

Cf. Pedro Paulo A. Funari e Jaime Pinsky, Introdução, Turismo e Patrimônio Cultural, São Paulo, Contexto, 2010, segunda edição revista e ampliada, pp. 7-11. 8

Cf. Paolo Varvaro, European travellers in Italy, European Review of History, 4, 2, 1997, pp. 165- 172.

O turismo de massa, a partir da introdução da estrada de ferro, primeiro, e depois, das rodovias e transporte aéreo, multiplicou a experiência turística, mas nela permaneceu o espírito de busca do estranho que reforça uma narrativa sobre a nação e sua eventual pretensão universal. Hoje, o maior número de visitantes no mundo advém de países ricos e essa movimentação liga-se a esse processo de criação de laços de solidariedade. Quando os norte-americanos viajam ao México, buscam as águas cálidas e o ambiente que lembra serem os ianques diferentes dos mexicanos e os monumentos maias são considerados como parte da herança americana, mais do que dos descendentes dos construtores das pirâmides. Não por acaso, os maianistas americanos são não só numerosos, como publicam sobre o tema, em inglês, nas principais revistas do mundo. Quando viajam para a França, o fois gras lembra que as French fries são americanas, que o campeonato mundial (world series) não passa na TV francesa, e o Louvre mostra que antes dos americanos os franceses dominaram o Oriente Médio. Os herdeiros da antiga Mesopotâmia são, agora, os americanos 9.

As experiências brasileiras com o turismo não deixam de fazer parte deste contexto, como lembra o estudo de Louise Prado Alfonso, voltado para as imagens da nação brasileira à luz da experiência da Embratur. No Brasil, as viagens também se ligam, ab initio, às aspirações nacionais10, como no caso das famosas andanças do Imperador D. Pedro II, tanto no sertão do Brasil, como no velho mundo. Sua visita à Terra Santa mostra bem essa pretensão de forjar um Brasil nobiliárquico e herdeiro da tradição cristã ocidental11. Já no contexto nacionalista do início do século XX, as viagens como a de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Blaise Cendrars a Ouro Preto, em 1924, foram importantes para consolidar uma imagem da

9

Cf. Zainab Bahrani, Conjuring Mesopotamia: Imaginative Geography and a World Past, in Archaeology Under Fire, L. Meskell ed., London: Routledge, 1998: pp. 159-174. 10

Cf. Haroldo Leitão Camargo, Uma Pré-História do Turismo no Brasil: recreações aristocráticas e lazeres burgueses (1808-1850). São Paulo, Aleph, 2007. 11

Reuven Faingold, D. Pedro II na Terra Santa. São Paulo, Sêfer, 1999.

nação12, para usar a expressão de Alfonso, fundada em suas particularidades, mas sem deixar de fagocitar a herança ocidental, algo tão bem captado, logo em seguida, pela dúvida hamletiana e tupiniquim: tupi or not tupi?

Tudo isso viria a ser transformado pelos ventos da modernização do pós-guerra, quando a democracia liberal (1946-1964) iria multiplicar estradas, levar o turismo, de alguma forma, às emergentes classes médias, enriquecidas pela entrada das mulheres no mercado de trabalho, na vida social e no turismo. O golpe militar de primeiro de abril de 1964 seria a resposta às contradições de uma sociedade patriarcal, hierarquizada 13, mas em fermentação crescente resultante da modernidade capitalista. O regime logo tratou não apenas de cassar seus opositores, levar muitos ao exílio e outros aos calabouços como a se apropriar dos órgãos de estado e a criar novos instrumentos de controle e direcionamento conservador. Este foi o caso da Empresa Brasileira de Turismo (Embratur, 1966), criada como outras estatais à época, para fomentar a nacionalidade e afastar as nuvens escuras da subversão, como logo viria a ser a Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme, 1969), também ela ligada à difusão de uma imagem do Brasil para nacionais e estrangeiros. Tais órgãos de estado, na forma de empresas, eram o que se chamava à época de aparelhos ideológicos ou aparato de propaganda, e que atuavam como parte do que se convencionou depois nomear como soft power, meios de dissuasão e difusão de valores.

A maioria desses órgãos transmutou-se com o fim do regime militar e muitos deles, como a Embratur, persistiram, muitas vezes com a devida camuflagem e mudança de nome. O Instituto Brasileiro de Turismo, desta forma, adaptou-se primeiro à Nova República, depois sobreviveu ao governo Collor e adequou-se às reformas liberalizantes de Fernando Henrique Cardoso e às medidas de inclusão social, a partir de Lula. Representa bem a trajetória do país, em sua convivência nem sempre muito aberta com o passado recente. A continuidade no poder dos próceres da ditadura, nos mais altos 12

Cf. Luciano Cortez, Por ocasião da descoberta do Brasil: três modernistas paulistas e um poeta francês no país do ouro, O eixo e a roda, UFMG, 19, 1, 2010, pp. 15-37. 13

Cf. Roberto DaMatta, Carnavais, malandros e heróis, Rio de Janeiro, Rocco, 1997.

cargos públicos e na vida privada, inibiu e continua a fustigar toda investigação sobre aqueles anos de chumbo e suas implicações para o presente, como atestam as dificuldades das Comissões da Verdade14. No caso do turismo, tantos foram os usos e abusos. Quem não se lembra do ufanismo da abertura da Estrada Rio/Santos e dos imensos impactos sociais e ambientais? Como isso aparecia nos registros turísticos da época, senão como progresso e avanço da civilização? Essa e outras tantas aventuras turísticas da ditadura continuam, em grande parte, sepultas.

Já em ambiente democrático, como bem analisa Alfonso, as desigualdades sociais não deixam de afetar as imagens turísticas do Brasil, como no caso bem documentado e analisado no livro do consumo de corpos nativos por turistas. O turismo sexual aparece neste volume em seus aspectos mais sutis e narrativos, na forma de imagens que dizem mais que mil palavras, como na foto da Praia de Copacabana que encerra o capítulo terceiro, datada de 2006. O estudo minucioso do uso de cartazes, folhetos e demais produções da Embratur centra-se nas representações imagéticas, cuja eficácia e abrangência é muito mais ampla do que a narrativa textual. Estes e muitos outros aspectos apresentam-se na obra de Louise Prado Alfonso, de forma criativa, agradável e inspiradora, pois leva o leitor a revisitar um tema que pode parecer tão inofensivo – o turismo –, mas que está prenhe de significados. Impele-nos não apenas a analisar, mas a mudar o mundo e isso não é pouco. Sua leitura deixará o seu apreciador mais alerta e atento, pronto a ver a próxima viagem com outros olhos.

Pedro Paulo A. Funari, Professor titular do Departamento de História e Coordenador do Centro de Estudos Avançados da Unicamp

14

Cf. Inês Soares e Renan Quinalha, Lugares de memória no cenário brasileiro da justiça de transição, Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 10, pp.. 75-86, junho/2011.

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