Turismo de base comunitária: estado da arte e experiências brasileiras
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MARCO TEÓRICO ISSN: 1887-2417 D.L.: C-3317-2006
Turismo de base comunitária: estado da arte e experiências brasileiras Community-based tourism: state of the art and Brazilian experiences Nathália Hallack1,3, Andrés Burgos1,3 e Daniela Maria Rocco Carneiro1,2,3. 1 Centro de Desenvolvimento Sustentável - Universidade de Brasília (CDS/UnB). 2 Centro de Excelência em Turismo (CET/UnB). 3 Laboratório de Estudos de Turismo e Sustentabilidade (LETS/UnB). (Brasil)
Resumo O objetivo deste artigo é apresentar uma breve contextualização sobre o estado da arte do turismo de base comunitária (TBC) no Brasil. O TBC é uma prática turística que busca conciliar o desenvolvimento local e a conservação da natureza. Neste trabalho, realizamos, em um primeiro momento, uma discussão sobre as bases, conceitos e princípios do TBC, bem como evidenciamos alguns de seus desafios, ameaças e fragilidades. Em seguida, apresentamos algumas iniciativas de TBC no contexto brasileiro: o Edital nº 01/2008 do Ministério do Turismo do Brasil, a Rede Brasileira de Turismo Comunitário “TURISOL” e a caso da “Prainha do Canto Verde - Turismo comunitário e sustentável”. Abtract This paper is aimed at presenting a brief overview on the state of the art of community-based tourism (CBT) in Brazil. CBT is a tourism practice that seeks to reconcile local development and nature conservation. At first, we carried out a discussion on the foundations, concepts and principles of CBT, as well as bringing light to some of its challenges, threats and weaknesses. Then, we present some initiatives in the Brazilian context of CBT: Call for Entries No. 01/2008 of the Ministry of Tourism of Brazil, the Brazilian Network of Community Tourism “TURISOL” and the case of the “Prainha do Canto Verde - Sustainable and Community Tourism”. Palabras chave Turismo de base comunitária (TBC), sustentabilidade, participação, desenvolvimento local Key-words Community-based tourism (TBC), sustainability, participation, local development.
ambientalMENTEsustentable, 2011, (I), 11-12
ambientalMENTEsustentable
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xaneiro-decembro 2011, ano VI, vol. I, núm. 11-12, páxinas 7-25
Nathália Hallack, Andrés Burgos
e
Daniela Maria Rocco Carneiro
Introdução
Assim, a natureza e seus recursos são
atrativos turísticos cada vez mais comuns em nossa sociedade. Ambientes naturais
O crescimento econômico, a valorização
e rurais constituem uma demanda cres-
do conhecimento científico e o advento de
cente (Abeta, 2010). Contudo, o rápido
tecnologias, principalmente a partir da Re-
crescimento do turismo em áreas naturais
volução Industrial iniciada na Inglaterra no
e rurais pode provocar graves impactos
século XVIII, ofereceram uma nova divisão
sobre o meio ambiente, além de altera-
do “tempo de vida”. Conseqüentemente,
ções sociais, culturais e econômicas nas
com o surgimento do tempo livre (con-
localidades receptoras, comprometendo
quistado por meio de lutas trabalhistas
os recursos naturais e culturais que cons-
que ocorreram na época) e a criação de
tituem em si mesmos o atrativo turístico.
máquinas de vapor, tais como locomotivas
Isto, sem dúvida, pode comprometer a so-
e navios, desencadeou-se um desenvolvi-
brevivência da própria atividade.
mento bastante significativo da atividade turística. Compreender o turismo a partir
Entendido simples e equivocadamente
de sua lógica econômica pressupõe, tam-
como uma indústria1 e oportunidade de
bém, valer-se do conhecimento do lazer,
negócio, o turismo se desenvolve coorde-
já que esta é uma atividade que envolve
nado e orientado pelo mercado e segundo
a experiência de práticas lúdicas, de des-
os interesses dos grandes capitais nacio-
canso, de ócio e de evasão. Desse modo,
nais e internacionais, sem considerar, de
viajar para algum lugar com a finalidade de
maneira apropriada, os demais atores en-
contemplá-lo e aí permanecer por motivos
volvidos no processo (Barreto, 2000). Não
que, basicamente, não estejam vinculados
respeitando a capacidade de suporte do
com o trabalho, constitui a característica
ambiente, a atividade turística se apropria
principal do turismo de massa nas socie-
do espaço público, transformando os des-
dades modernas (Urry, 2001).
tinos em “produtos étnicos”, frutos do modismo de consumo da natureza, mudando
Porém, esse modelo de produção de ser-
os usos do lugar e provocando trocas cul-
viços turísticos, que caminha de mãos
turais, assim como distribuição desigual
dadas com o progresso, vai os poucos se sufocando. Na atualidade, a demanda turística tornou-se mais exigente, variada e variável, tendendo a focar cada vez mais sobre a qualidade, e exprimindo as necessidades da cultura e do meio ambiente (Zaoual, 2009).
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1 Popularmente, fala-se em uma “indústria do turismo”, no entanto, a atividade turística pertence ao setor terciário, e não secundário, característico majoritariamente por uma produção industrial. Na literatura estrangeira, quando se usa a expressão industry of tourism, a melhor tradução para a Língua portuguesa seria “setor do turismo” ou “setor turístico”.
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Turismo de base comunitaria
da renda. A mercantilização dos destinos
ído para uma notável depredação dos re-
e bens de uso comum, assim como da
cursos naturais e culturais, surgindo então
identidade das comunidades locais, se
a necessidade de se estudar novas formas
traduz tanto em consequências negativas
de uso racional dos locais potencialmente
no meio ambiente como em graves altera-
turísticos, para, dessa maneira, ajudar a
ções sociais, culturais e econômicas, além
construir e consolidar novos paradigmas
do surgimento de conflitos e hostilidades
de desenvolvimento turístico.
entre os protagonistas e atores turísticos. Dentro de uma nova ordem mundial de dePara Irving (2002, p.19) a implantação
senvolvimento em busca da sustentabilida-
da atividade turística tem sido muito rá-
de econômica, ambiental e sociocultural,
pida, principalmente em regiões menos
é fundamental repensar como a atividade
favorecidas sob a ótica socioeconômica.
turística vem sendo gerida, incorporando
Por outro lado, tais regiões contam com
a democratização de oportunidades e be-
grande potencial enquanto seu patrimônio
nefícios por meio de um planejamento cui-
cultural e ambiental, destacando que “(...)
dadoso que estimule a participação efetiva
o avanço turístico, no entanto, nem sem-
dos atores sociais no seu desenvolvimen-
pre ocorre a favor das populações locais
to. Segundo a EMBRATUR/IEB (2001), es-
e, frequentemente, é responsável por fe-
tratégias de planejamento turístico e/ou de
nômenos significativos de exclusão social,
conservação ambiental que neguem direi-
descaracterização cultural e degradação
tos e possibilidades às comunidades são
ambiental”. Isto quer dizer que a tendên-
destrutivas e ilegais.
cia mundial de “turistificação” dos lugares com potencial e atrativo turístico não se
A minimização dos impactos negativos
traduz em oportunidades para as comu-
das práticas turísticas passa por novos
nidades receptoras, pois são poucos os
modelos de implementação de projetos,
benefícios realmente comprometidos com
centrados em parcerias onde se valorem a
o desenvolvimento local.
participação das comunidades, mediante novas formas de construção da realidade
Diante do exposto, pensar o fenômeno
baseadas no saber compartilhado, nas
turístico dentro do modelo de desenvol-
relações horizontais e na noção de em-
vimento vigente leva irremediavelmente
poderamento (Irving, 2002). Acreditamos
ao comprometimento de dois processos
que as práticas turísticas não devem estar
que são essenciais para a vida humana:
orientadas unicamente pelo espaço turís-
i) a proteção e manutenção dos recursos
tico, como também pelo ator social, que
naturais e ii) o desenvolvimento das comu-
pode ser co-responsável e participativo no
nidades locais. Esse modelo tem contribu-
processo de planejamento e gestão.
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e
Daniela Maria Rocco Carneiro
Neste sentido, diante do impacto do tu-
tar caminhos frutíferos para a melhoria da
rismo tradicional, da “coisificação” do lu-
qualidade de vida e do bem-estar da po-
gar, da desumanização do sujeito e das
pulação receptora.
políticas hegemônicas de produção do espaço turístico, o turismo de base co-
Consideramos que o TBC está adquirindo
munitária (TBC) vem se tornando prática
importância não apenas entre as comuni-
comum em toda América Latina. No Brasil
dades, organizações não governamentais
o TBC surge como uma modalidade turís-
e movimentos sociais, mas também no
tica ascendente, sobretudo em Unidades
âmbito científico, como objeto de estudo
de Uso Sustentável e áreas de relevância
relacionado à mobilização e participação
ambiental, que em sua maioria albergam
social. Igualmente, esta tendência está
comunidades com poucas perspectivas
acompanhada pelo interesse do governo
econômicas.
federal, que a partir das diretrizes do Pla-
2
no Nacional do Turismo (PNT 2007-2010) O TBC não é um segmento turístico, tal
afiançou seu compromisso com o desen-
como alguns autores consideram, e sim
volvimento local e a inclusão social como
uma prática turística que busca conciliar o
vetores do turismo, por meio da promoção
desenvolvimento local e a conservação da
e fomento de projetos, programas e expe-
natureza. Trata-se de uma resposta alter-
riências de turismo comunitário no Brasil.
3
nativa que mantém vínculos não só com a dimensão ambiental, como também com a dimensão sociocultural, através do estímulo de trocas culturais entre visitantes e moradores, podendo igualmente apon-
Turismo de base comunitária: bases, conceitos e princípios norteadores
2 As Unidades de Uso Sustentável, junto com as Unidades de Proteção Integral, compõem o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC e têm por objetivo básico compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável dos seus recursos naturais (Brasil, 2004). 3 Vide o livro do MTur publicado em 2009 e intitulado “Turismo de Base Comunitária diversidade de olhares e experiências brasileiras”, organizado por Roberto Bartholo, Davis Gruber Sansolo e Ivan Bursztyn. [Acesso em 26 jun. 2012: http://www.turismo.gov.br/export/ sites/default/turismo/o_ministerio/publicacoes/ downloads_publicacoes/TURISMO_DE_BASE_ COMUNITxRIA.pdf].
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Atualmente presenciamos um significativo avanço de atividades turísticas em comunidades de diferentes conformações. Embora estas iniciativas se apresentem de inúmeras formas, considerando a diversidade e a complexidade das realidades locais, percebemos, como um elemento comum, a interpretação da comunidade como sujeito de seu próprio avanço, participando da concepção, desenvolvimen-
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Turismo de base comunitaria
to e gestão do turismo. Tais experiências
tunidades e benefícios; iv) a centralidade
vêm sendo englobadas genericamente
da colaboração, parceria e participação;
sob o título de turismo de base comunitá-
v) a valorização da cultura local e, princi-
ria - TBC (LTDS, 2011).
palmente, vi) o protagonismo das comunidades locais na gestão da atividade e/
Embora não haja uma definição ampla-
ou na oferta de bens e serviços turísticos,
mente aceita do conceito de TBC, as pers-
visando a apropriação por parte destas
pectivas teóricas sobre o tema apresen-
comunidades dos benefícios advindos do
tam similaridade de princípios e abrangem
desenvolvimento da atividade turística.
dimensões antropológicas, sociológicas, econômicas, políticas, históricas, psico-
Na tentativa de ilustrar esta amplitude
lógicas e ambientais. Segundo o LTDS
conceitual, o Quadro 1, abaixo, reúne al-
(2011, p. 07), “a extensão geográfica e a
gumas terminologias e suas respectivas
diversidade de experiências encontradas
definições apresentadas por diferentes
no país também colaboram para a am-
segmentos, como projetos, experiências,
plitude conceitual do TBC, uma vez que
redes, governo e academia.
este é usado para tratar de contextos tão diversos e diferentes quanto comunidades
No entendimento de Hiwasaki (2006), o
urbanas e rurais, podendo estar referido às
turismo comunitário se traduz em quatro
populações tradicionais ou a amálgamas
objetivos:
sociais compostas pelos movimentos migratórios e processos de exclusão socieconômicos, entre outros”.
(i) qualificação e posse, refere-se à participação da comunidade no planejamento e gestão do turismo;
Esta falta de consenso em termos con-
(ii) conservação dos recursos, ou seja, o
ceituais do turismo comunitário, de acor-
turismo deve impactar positivamente
do com o Ministério do Turismo do Brasil
na conservação dos recursos naturais
(MTur, 2010), resulta da heterogeneidade
e/ou culturais;
das experiências, da origem do território e
(iii) desenvolvimento econômico e social,
da perspectiva política da organização não
relacionado com a geração de benefí-
governamental, responsável por organizar
cios econômicos e sociais para a co-
e viabilizar a experiência. Não obstante
munidade local e
cada conceito apresentar suas especifici-
(iv) qualidade na experiência do visitante,
dades, o MTur traça como princípios co-
focada no compromisso de assegurar
muns entre as diversas definições:
a ele uma experiência de qualidade e
i) a autogestão; ii) o associativismo e coo-
comprometida com a responsabilida-
perativismo; iii) a democratização de opor-
de social e ambiental.
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Nathália Hallack, Andrés Burgos
Segmento
e
Instituição/
Daniela Maria Rocco Carneiro
Terminologia
Definição
iniciativa/autor
Projeto
Turismo
Bagagem
Comunitário
Projetos Projeto Saúde e Alegria
Ecoturismo de Base Comunitária
Fazenda Mo-
Turismo Étnico
delo Quilombo
de Base
D’Oiti
Comunitária
Prainha do
Turismo
Canto Verde
Comunitário
Experiências
TUCUM Rede Cearense de Turismo Redes
Comunitário
Turismo de Base Comunitária
TURISOL Rede Brasileira
Turismo
de Turismo
Comunitário
Comunitário
Governo
Ministério do
Turismo de
Turismo (MTur-
Base
-Brasil)
Comunitária
Maldonado
Academia
Coriolano
Sampaio et al.
Turismo Comunitário
Turismo Comunitário
Turismo comunitário, solidário e sustentável
Atividade turística que apresenta gestão coletiva, transparência no uso e destinação dos recursos e na qual a principal atração turística é o modo de vida da população local. (http://www.projetobagagem.org) Baseada nos princípios da economia solidária, apresenta-se como oportunidade importante de atividade integrada à valorização de práticas sustentáveis de uso dos recursos naturais e da promoção da interculturalidade. (http://www.saudeealegria.org.br) Modelo de desenvolvimento alicerçado em princípios democráticos cuja participação de membros da comunidade predomina em todo processo decisório e garante que a atividade turística seja um fortalecedor de ancestralidade. (http://www.turismoafro.com.br) Oportunidade para aperfeiçoar a organização comunitária, o desenvolvimento local e a co-gestão para preservar o patrimônio natural, cultural e as formas de vida tradicionais das comunidades e do seu território. (http://prainhadocantoverde.org) Baseado na gestão comunitária ou familiar das infraestruturas e serviços turísticos, no respeito ao meio ambiente, na valorização da cultura local e da economia solidária e controlado de maneira efetiva pelas populações locais (apud Sansolo & Bursztyn, 2009, p. 147). Forma de organização empresarial sustentada na propriedade do território, na autogestão dos recursos comunitários e particulares com práticas democráticas e solidárias no trabalho e na distribuição dos benefícios gerados do encontro cultural com os visitantes (apud Sansolo & Bursztyn, 2009, p. 147). Modelo alternativo de desenvolvimento turístico baseado na autogestão, no associativismo/cooperativismo, na valorização da cultura local e, principalmente, no protagonismo das comunidades locais, visando a apropriação por parte destas comunidades dos benefícios advindos do desenvolvimento da atividade turística (2008, p. 01). Forma de organização empresarial sustentada na propriedade e na autogestão sustentável dos recursos patrimoniais comunitários e de acordo com as práticas de cooperação e equidade no trabalho e na distribuição dos benefícios gerados pela prestação dos serviços turísticos (2009,p.31). Aquele em que as comunidades de forma associativa organizam arranjos produtivos locais, possuindo o controle efetivo das terras e das atividades econômicas associadas à exploração do turismo (2009, p.282). Estratégia de sobrevivência e comunicação social de conservação de modos de vida e preservação da biodiversidade, organizado associativamente em territórios, como arranjos socioprodutivo e político de base comunitária, que se valem do consumo solidário de bens e serviços (2011, p.27)
Quadro1. Terminologias e respectivas definições do TBC. (FONTE: elaboração própria, 2012).
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Turismo de base comunitaria
Contrapondo o turismo massificado, o
− Participação e protagonismo social no
TBC busca uma vinculação situada nos
planejamento, implementação e avalia-
ambientes naturais e culturais de cada lu-
ção de projetos turísticos. Quanto maior
gar, além de requerer uma menor depen-
o envolvimento local e as estratégias de
dência e necessidade de infraestrutura e
participação social no planejamento e im-
serviços. Se comparado ao modelo he-
plementação dos projetos, mais eviden-
gemônico, este representa a promoção
tes são os níveis de protagonismo social
de atividades turísticas enraizadas em um
e a sustentabilidade das iniciativas.
modelo de desenvolvimento socialmente mais justo e ambientalmente responsável.
− Escala limitada e impactos sociais e
O potencial da atividade vai além dos be-
ambientais controlados. Parte-se da
nefícios econômicos, representando não
premissa que o turismo comunitário se
apenas mais um segmento de mercado, e
desenvolva em escala limitada, definida
sim a possibilidade de um novo paradigma
a partir dos recursos locais. O processo
para o turismo (Bursztyn et al., 2009; San-
de planejamento deve assegurar a “qua-
solo,
lidade” ambiental e social do destino.
Bursztyn, 2009).
Neste sentido, os protagonistas dos desti-
− Geração de benefícios diretos à popu-
nos são sujeitos e não objetos do proces-
lação local. Tais iniciativas devem as-
so. Irving (2009), na tentativa de se delinear
segurar que os recursos advindos do
uma conceituação para o turismo comuni-
turismo sejam reaplicados em projetos
tário, apresenta algumas premissas que
de melhoria de qualidade de vida da
emergem como elementos centrais desta
própria população.
atividade: − Afirmação cultural e interculturalidade. − Base endógena da iniciativa e desen-
A valorização da cultura assume impor-
volvimento local. A atividade resulta
tância não como à configuração de um
de uma demanda direta dos grupos
“produto”, mas com o objetivo de afir-
sociais que residem no lugar turístico
mação de identidade e pertencimento.
e que estabelecem com este território
O intercâmbio de “quem está” e “quem
uma relação cotidiana de dependência
vem” propicia a relação local-global e a
material e simbólica. O protagonismo
prática da interculturalidade.
social - resultante do sentimento de pertencimento e do poder de influência
− O “encontro” como condição essencial.
sobre o processo de decisão - assume
O “encontro” entre identidades assu-
uma condição essencial para este tipo
me o sentido de compartilhamento e
de turismo.
aprendizagem mútua. Atores locais e
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e
Daniela Maria Rocco Carneiro
turistas são, simultaneamente, agentes,
ausência dificulta o estabelecimento de
sujeitos e objetos do processo, estabe-
relações de cooperação. A segunda razão
lecendo uma relação de troca, intera-
é de ordem metodológica, e refere-se à
ção, descoberta e retroalimentação.
falta de conhecimento do processo como um todo, principalmente com relação à
O TBC integra atividades econômicas de
dinâmica do mercado turístico nacional e
serviços de hospedagem, alimentação e
internacional.
lazer que, a priori, não o diferencia dos demais segmentos turísticos. Seu diferen-
A partir de sua experiência com comu-
cial recai justamente no entendimento da
nidades localizadas em regiões de forte
atividade turística como um subsistema
presença e/ou potencial turístico, mas que
interconectado com outros subsistemas,
se encontram desorganizadas e desestru-
como educação, saúde e meio ambiente.
turadas, Mielke (2009) aponta uma série
Neste sentido, o turismo comunitário não
de necessidades e desafios inerentes ao
está centrado somente na atividade turísti-
processo do desenvolvimento turístico de
ca, uma vez que representa uma proposta
base comunitária, dos quais destacamos:
de desenvolvimento territorial sustentável que abrange diversas dimensões - políti-
− A complexidade. Trata-se de um com-
ca, cultural, econômica, humana - da vida
ponente inerente à atividade turística
em sociedade (Sampaio e Coriolano, 2009).
e que envolve uma série de iniciativas locais, instituições públicas e não governamentais, entre outras. Como
Desafios, ameaças e fragilidades
Refletindo sobre os processos de desenvolvimento turístico que ocorrem no entorno de áreas naturais protegidas ou em áreas de grande potencial cênico, Mielke (2009) afirma que muitos deles não avançam por duas razões. A primeira é de ordem socioambiental. O processo de desenvolvimento está condicionado à existência de um ambiente politico-institucional favorável na comunidade e sua
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consequência, a organização de uma comunidade para o turismo requer o estabelecimento de uma aliança entre interesses econômicos locais e não locais. Neste sentido, o processo de alinhar pensamentos para que todos tenham o mesmo foco é árduo e exige experiência e profissionalismo por parte dos envolvidos. − O fator tempo. Muitos projetos têm um tempo curto de execução e, por isto, acabam não respeitando o amadurecimento das relações necessárias para alinhar assuntos complexos e de
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Turismo de base comunitaria
interesse coletivo. Os editais e termos
em economias comunitárias, que se apre-
de referência para o financiamento de
sentam ambientalmente mais sustentáveis
projetos precisam ser estruturados e
que, por sua vez, dialogam com a eco-
concebidos sem impor uma série de to-
nomia de mercado, no entanto, que ain-
madas de decisões em curtos períodos
da conservam suas dinâmicas próprias?”
de tempo.
(Sampaio et al., 2011, p. 27).
− O apoio externo. Aparece como ele-
Estas iniciativas enfrentam o desafio de se
mento fundamental no desenvolvimento
inserirem no mercado e, ao mesmo tem-
turístico de base local. Mesmo em co-
po, conservarem suas dinâmicas próprias.
munidades organizadas, estes proces-
Ou seja, é preciso estabelecer uma rela-
sos dependem da orientação efetiva de
ção entre o local e o global, se integrando
entidades especializadas, como univer-
na economia hegemônica e mantendo o
sidades e ONGs. Com relação à compo-
modo de vida tradicional, pois este se tor-
sição da equipe externa, o autor afirma
na o principal atrativo e diferencial.
que este é um trabalho multidisciplinar e deve integrar profissionais com conhe-
Os estudos de Maldonado (2009), com
cimentos em três eixos temáticos prin-
cerca de trinta projetos de TBC na Amé-
cipais:
rica Latina, evidenciaram graves restri-
desenvolvimento
econômico,
turismo e trabalho comunitário.
ções enfrentadas por estas comunidades, conduzindo-as a uma grande instabilidade
No entendimento de Sampaio
et al.
(2011),
e fraca competitividade no mercado. As
o turismo comunitário representa uma
deficiências mais notáveis foram sinteti-
estratégia que permite as comunidades
zadas no Quadro 2 e resultam, em parte,
viabilizarem o seu modo de vida tradicio-
“da incursão das comunidades no turis-
nal, oportunizando o contato e a troca de
mo em situações de improviso, ausência
experiência entre membros comunitários
de profissionalismo, desconhecimento do
e visitantes conscientes. Nesta perspec-
mercado e dos instrumentos de gestão de
tiva, os autores interpretam o TBC como
negócios” (Maldonado, 2010, p. 32).
uma proposta institucional que conserva os modos de vida tradicionais e preserva a
Para Benevides (2002), a proposta de um
biodiversidade local. Ressaltam, entretan-
desenvolvimento local “alavancável” por
to, que: “o grande desafio do Turismo co-
meio do turismo enseja a equalização de
munitário, solidário e sustentável é como
cinco objetivos, cuja compatibilização é
promover modos de vida tradicionais
muito problemática: i) preservação/con-
(tidos, sob a lógica desenvolvimentista,
servação ambiental; ii) identidade cultural;
como modos de vida absoletos), inseridos
iii) geração de ocupações produtivas e de
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e
Daniela Maria Rocco Carneiro
Deficiências da oferta de turismo comunitário
1. Oferta dispersa e fragmentada, carente de estruturas e mecanismos regulares de cooperação interna para organizá-la e externa para potencializá-la. Apesar das vantagens das parcerias serem percebidas, os esforços empreendidos ainda são incipientes e pouco sistemáticos. 2. Escassa diversificação dos produtos turísticos cujos componentes são baseados exclusivamente em fatores naturais e herdados. Existe potencial e vontade para empreender inovações que superem o mimetismo predominante. 3. Gestão profissional limitada, tanto operacional como gerencial dos negócios; as tendências e o funcionamento da indústria do turismo são desconhecidos. As aspirações das comunidades de acesso a serviços de informação e capacitação permanecem amplamente insatisfatórias. 4. Qualidade heterogênea dos serviços, com predominância de qualidade média e baixa. A competência aguda com outras empresas tende a resolver-se somente em curto prazo e através da baixa de preços. 5. Posicionamento incerto e imagem pouco divulgada do turismo comunitário em mercados e segmentos dinâmicos: a promoção e comercialização são realizadas geralmente, por meios rudimentares, individuais e diretos. 6. Deficiência dos mecanismos de informação, comunicação e organização comercial: a fraca representação e capacidade para negociação com outros agentes da cadeia turística não permite a tomada de decisões estratégicas, além do horizonte diário. 7. Participação marginal ou subordinada de mulheres e suas associações na concepção e condução de projetos turísticos e, consequentemente, na captação de benefícios. 8. Déficit notável de serviços públicos: rodovias, eletricidade, água potável, saneamento ambiental e esgoto, comunicações e sinalização turística. As comunidades não são capazes de cobrir estes custos; isto é responsabilidade dos governos locais ou nacionais. Quadro 2 – Deficiências da oferta de turismo comunitário. (FONTE: Maldonado, 2009, p. 32-33)
renda; iv) desenvolvimento participativo e
tituição das relações sociais de domina-
v) qualidade de vida. Quanto à ideologia
ção (Weber, 1964, apud Benevides, 2002).
do turismo de base local, o autor aponta
Desta desconsideração resulta o segundo
alguns equívocos, dos quais destacare-
equívoco: em lugares onde persistem co-
mos dois. O primeiro refere-se à asso-
munidades tradicionais, a identidade local,
ciação da redução da escala como pos-
muitas vezes, é interpretada como foco de
sibilidade de ampliação dos espaços de
resistência aos projetos modernizadores
participação democrática. Para o autor
da expansão capitalista. Segundo Lipietz
(2002, p. 29), “o conteúdo demarcatório
(1987, p. 180, apud Benevides, 2002), “ao
do que seja democrático reporta-se fun-
lutarem para “reiterar o unanismo do an-
damentalmente à dimensão do político
tigo espaço”, movimentos dessa natureza
e não da espacialidade”. Relacionar “di-
esquecem de considerar que as relações
minuição da escala espacial” com “au-
sociais nestes lugares, por estarem sob a
mento de participação” desconsidera a
“hegemonia de um bloco tradicional” não
significação dos micropoderes na cons-
são efetivamente “relações comunais””.
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Turismo de base comunitaria
Bursztyn
et al.
(2009), por sua vez, argu-
dências de políticas públicas nacionais
mentam que o reconhecimento no valor
e internacionais. Neste período, poucos
das experiências do turismo comunitário
profissionais mergulharam no campo de
não deve ser confundido como uma sim-
investigação do TBC. Tal realidade per-
ples apologia aos empreendimentos de
meou até meados da década de 1990,
pequena escala. Na tentativa de não cair
quando um movimento de pesquisadores
na vala comum do reducionismo e super-
de diferentes inserções do país levou essa
ficialidade analítica, os autores tecem al-
discussão para o Encontro Nacional de
gumas considerações: (i) As experiências
Turismo de Base Local (ENTBL). Este en-
de TBC bem sucedidas não podem ser
contro demonstrou a demanda por fóruns
interpretadas como passíveis de reaplica-
dessa natureza e viabilizou a consolidação
ção em outras localidades e contextos. Tal
de redes não formais de pesquisas. O en-
atitude faria do desenvolvimento situado
gajamento de pesquisadores em torno do
um objeto de reprodução seriada, ou seja,
TBC possibilitou o desenvolvimento de
uma contradição nos próprios termos da
pesquisas, projetos e publicações sobre a
questão; (ii) O TBC deve ser encarado em
temática. No entanto, esta produção aca-
uma perspectiva possibilista e não deter-
dêmica permaneceu nos “bastidores” até
minista e prescritiva para o desenvolvi-
recentemente (Irving, 2009).
mento situado e o turismo. Não podemos interpretá-lo como um modelo estanque,
Para Irving (2009), um novo olhar sob o TBC
com uma configuração fixa e capaz de
ocorre a partir da convergência de uma sé-
atender toda e qualquer realidade e (iii)
rie de fatores surgidos em âmbito nacional
Deve-se, ainda, reconhecer que iniciativas
e internacional, a saber: (i) a interpretação
de TBC não estão isentas de influências
política do turismo como uma alternativa
externas, divergências internas e conflitos
para a inclusão social; (ii) o fortalecimen-
de interesse.
to de temas como a participação social e a governança democrática; (iii) a existência do capital social e o compromisso de
Turismo de Base Comunitária no contexto brasileiro
A reflexão sobre o turismo de base comunitária no Brasil, durante muitos anos, trouxe consigo um sentido marginal, periférico, distante da realidade e das ten-
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stakeholder engagement como elementos fundamentais nas ações empreendidas por projetos internacionais; (iv) a inclusão do turismo nas pautas de ONGs de alcance internacional, associada a temáticas sociais e ambientais; (v) a mudança sutil no perfil dos turistas, agora mais comprometidos com a responsabilidade social e ambiental; (vi) a exigência de novas demandas na se-
17
Nathália Hallack, Andrés Burgos
e
Daniela Maria Rocco Carneiro
ara do planejamento, fruto da constatação
− O TBC ocorre em pequenas comunida-
de que o desenvolvimento do turismo, por
des assentadas em povoados, aldeias
vezes, não favorece as populações locais,
e vilas. Não há referência, nos casos
contribuindo para a exclusão social e (vii) a
analisados, de experiências envolven-
emergência dos debates sobre o “turismo
do um município como um todo.
e sustentabilidade”.
− 80% das iniciativas ocorrem nas proximidades, no interior ou contêm áreas
Percebemos que os fatores destacados por
protegidas, seja em Unidades de Con-
Irving (inclusão social, participação, gover-
servação de Proteção Integral ou de
nança, capital social, stakeholder engage-
Uso Sustentável e Áreas de Preserva-
ment, compromissos ambiental e social, sus-
ção Permanente (APP).
tentabilidade, entre outros) constituem-se em
− As experiências apresentam uma di-
elementos sine qua non para o desenvolvi-
versidade de atrativos naturais, cultu-
mento do TBC. Neste sentido, o turismo co-
rais e convivenciais. A água destaca-se
munitário, orbitando em torno de tais princí-
como um grande atrativo, muito em-
pios e compromissos, migra da periferia para
bora a balneabilidade de rios e praias
o centro das discussões, rompendo as bar-
possa ser comprometida. Dados apon-
reiras acadêmicas e penetrando o universo
tam que, em 2003, apenas 62,9% da
político e publicitário. O lançamento do Edital
população nordestina foi atendida por
01/2008 pelo MTur, voltado para o financia-
abastecimento de água tratada, e so-
mento específico do turismo comunitário,
mente 34,6% do esgoto gerado na re-
reflete as ações do poder público federal no
gião é tratado. Tal realidade demonstra
apoio de um outro modelo de turismo.
que a necessidade de investimento em infraestrutura básica é urgente.
Uma pesquisa coordenada por Sansolo
e
− Ao contrário do turismo convencional,
Bursztyn (2009) com 25 representantes de
e sua produção de espaços segrega-
iniciativas de turismo de base comunitária
dos para o turista e para os morado-
brasileiras, realizada em maio de 2008, du-
res, a essência do TBC se expressa no
rante o II Seminário Internacional de Turis-
território. No turismo comunitário não
mo Sustentável, possibilitou o levantamento
há sobreposição de territorialidades:
e sistematização de algumas informações
turista e comunidade dividem o mes-
acerca do desenvolvimento do TBC no Bra-
mo lugar, e este representa um espaço
sil. A maior parte das experiências localiza-
de encontro e convivencialidade.
-se na região nordeste do Brasil, nos esta-
− Em grande parte das iniciativas, as
dos do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba
comunidades contaram com apoio
e Pernambuco. Destacamos, a seguir, al-
externo, normalmente de ONGs e uni-
guns resultados do universo pesquisado:
versidades, para a realização do plane-
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ambientalMENTEsustentable, 2011, (I), 11-12
Turismo de base comunitaria
jamento, estruturação e operação do
pertencimento e, por outro, o movimento
turismo. Por meio de suporte técnico
de ativa resistência contra as mais usuais
e apoio financeiro, ONGs nacionais e
formas de desenvolvimento do turismo
internacionais assumiram um papel
(Bursztyn
fundamental na inserção das comuni-
marcante refere-se ao caráter da solidarie-
dades na prática do turismo.
dade. A solidariedade está expressa não
et al.,
2009). Outro elemento
− As formas de propriedade e modo de
apenas dentro da comunidade, por meio
gestão dos empreendimentos são va-
da organização de empreendimentos co-
riadas. Incluem-se os empreendimen-
letivos, mas também entre diferentes ini-
tos comunitários geridos por coopera-
ciativas, que se organizam em redes para
tiva e a organização familiar.
se ajudarem mutuamente (LTDS, 2011).
− Todas as iniciativas apresentaram “atividades de planejamento” do turismo
O comprometimento ativo de atores locais
de base comunitária. A frequência das
também representa uma característica co-
reuniões, entretanto, varia de encontros
mum nas iniciativas de base comunitária.
semanais até anuais. O formato dos
Em muitos casos, o TBC surge em um
encontros é diverso: em alguns casos
contexto onde as comunidades já estão
envolvem apenas as lideranças formais,
mobilizadas em outras frentes de resistên-
em outros, o processo é mais aberto,
cia, como na luta pela posse da terra e pelo
contando com a participação de lideran-
direito ao uso sustentável dos recursos
ças informais, membros da comunidade
naturais. No litoral cearense, por exemplo,
e até pessoas externas à localidade.
a problemática do uso da terra é funda-
− Em nenhum dos casos o turismo é a
mental para se compreender o processo
única atividade e, muitas vezes, nem
de formação do TBC. A luta pelo território
a mais importante enquanto ativida-
é o ponto de partida para a organização
de econômica. No entanto, o turismo
comunitária. Neste contexto, o turismo
tem representado um apoio ao fortale-
comunitário acaba por representar “um
cimento da autoestima dessas comu-
meio a mais”, dando voz, força e capaci-
nidades e um meio de apoio às suas
dade articuladora, inclusive com agentes
lutas.
externos, para estas lutas. É como ressalta Bartholo (2009, p.51), “o turismo não
No contexto das experiências brasileiras,
é afirmado como elemento identitário no
dois elementos comuns têm se destacado
movimento de resistência das comunida-
como base nas iniciativas de relativo su-
des, e sim um meio para dar visibilidade
cesso. Por um lado, o forte componente
aos conflitos dos modos de vida tradicio-
de uma afirmação identidária de comuni-
nais com a chegada da modernidade”.
dades enraizadas em sítios simbólicos de
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Nathália Hallack, Andrés Burgos
e
Daniela Maria Rocco Carneiro
A mobilização das comunidades, em torno
cada de 1990, e foram organizadas inde-
de um interesse comum, fornece a base
pendentes das ações do poder público.
para uma coesão fortalecedora do sentido
Em 2003, com a criação do Ministério do
de comunidade. Segundo Jeffrey Weeks
Turismo (MTur), tais iniciativas foram reco-
(apud Bauman, 2003, p.91), “o mais forte
nhecidas por esse órgão como um fenô-
sentido de comunidade costuma vir dos
meno social e econômico. No início de sua
grupos que percebem as premissas de sua
atuação, o MTur atendeu demandas iso-
existência coletiva ameaçadas e por isso
ladas de experiências de TBC. Em 2006 e
constroem uma comunidade de identida-
2007, pesquisadores do tema e represen-
de que lhes dá uma sensação de resistên-
tantes de iniciativas pleitearam uma ação
cia e poder (...)”.
mais articulada do poder público, que resultou no Edital de Chamada Pública de
Essa face ideológica e militante do TBC é confirmada por Sansolo
e
Projetos nº 01/2008.
Bursztyn (2009)
em suas averiguações empíricas. Segun-
Ressalta-se que o apoio do Ministério do
do os autores, as iniciativas de turismo
Turismo às iniciativas de TBC ocorre no
comunitário, na realidade brasileira, têm
âmbito do Departamento de Qualificação,
em comum as lutas sociais, como a con-
de Certificação e de Produção Associada
servação dos recursos naturais - base da
ao Turismo (DCPAT), da Secretaria Nacio-
subsistência de diversas comunidades, a
nal de Programas de Desenvolvimento do
luta pela terra, pelo direito à memória cul-
Turismo (SNPDTur). O apoio está alicerça-
tural e por uma educação digna.
do no Plano Nacional de Turismo 20072010: uma viagem de inclusão, baseado
Os destinos de turismo de base comunitá-
na estratégia de associar crescimento de
ria “ainda não são considerados sucessos
mercado à distribuição de renda e redução
de venda e consumo por turistas nacionais
de desigualdades regionais e sociais.
e internacionais” (Mendoça e Irving, 2004, p. 20), no entanto, sua prática é válida e,
O apoio financeiro do Edital nº 01/2008
nas seções a seguir, destacaremos algu-
ficou entre R$ 100 mil e R$ 150 mil por ini-
mas iniciativas no âmbito brasileiro.
ciativa, com prazo de execução de até 18 meses. O edital atraiu a inscrição de mais de 500 propostas de todo Brasil, das quais
Edital nº 01/2008
50 foram selecionadas (vide Figura 1). A maior parte das entidades proponentes pertencia ao terceiro setor, abrangendo
Os primeiros registros de experiências de
associações locais, cooperativas, funda-
TBC no Brasil datam de meados da dé-
ções universitárias e ONGs. Os conteúdos
20
ambientalMENTEsustentable, 2011, (I), 11-12
Turismo de base comunitaria
Figura 1. Projetos selecionados no âmbito do edital de chamada pública MTur/n. 001/2008. FONTE: Bartholo, Sansolo e Bursztyn, 2009.
das propostas baseavam-se nas seguintes ações:
(iv) Apoio à comercialização: participação em eventos de caráter nacional e em eventos de cunho local. Além de ações
(i) Planejamento da atividade turística:
de interação entre os destinos, produ-
ações de mobilização e sensibilização
tos e serviços ofertados pela comuni-
da comunidade e planejamento parti-
dade e os seus consumidores.
cipativo.
(v) Promoção: participação em eventos,
(ii) Qualificação da gestão dos produtos e
produção de panfletos, banners, víde-
dos serviços turísticos: cursos, semi-
os, entre outros materiais promocio-
nários, intercâmbios, consultoria para
nais para divulgação nos eventos.
assistência técnica especializada, visitas in loco para troca de experiências.
Segundo o MTur (2010), a decisão de
(iii) Formação de redes: fortalecimento de
apoiar o TBC considerou, pelo lado da
redes de TBC já constituídas, além da
oferta, a expansão da gestão da atividade
formação de redes locais, principal-
turística sob responsabilidade das comu-
mente de comercialização.
nidades locais, aliado a indicadores que
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Nathália Hallack, Andrés Burgos
e
Daniela Maria Rocco Carneiro
apontam o sucesso de algumas destas ex-
tentes e despertar outras comunidades
periências. Do ponto de vista da demanda,
para a construção de um turismo diferente.
pesquisas nacionais e internacionais demonstram o interesse crescente dos turis-
Os princípios da TURISOL foram reunidos
tas pela vivência de experiências com cul-
em 11 temáticas principais, a saber: o pro-
turas diferentes e ambientes preservados,
duto turístico ou atração turística é o modo
revelando a potencialidade das iniciativas
de vida; o turismo é instrumento para o
de turismo comunitário no Brasil.
fortalecimento comunitário e associativo; a comunidade é proprietária, gestora e empreendedora dos empreendimentos
TURISOL - Rede Brasileira de Turismo Comunitário
Em fevereiro de 2003, a Embaixada da França no Brasil, por meio de um programa de cooperação no setor de economia solidária, reuniu diferentes atores com o intuito de fomentar a discussão sobre o turismo solidário no país. No decorrer deste ano, ocorreram outros encontros em que se evidenciou o interesse do grupo em permanecer em contato, estabelecendo trocas de experiências e promovendo o debate do turismo solidário em âmbito nacional. Neste contexto, nasce informalmente a Rede TURISOL. Com a visão de “tornar o Brasil um país referência no Turismo Comunitário” e a missão de “construir, fortalecer e disseminar modelos economicamente viáveis, ambientalmente responsáveis e socialmente justos por meio do turismo junto a comunidades rurais, tradicionais e urbanas”, a Rede tem por objetivo fortalecer as iniciativas já exis-
22
turísticos; o turismo é uma atividade complementar a outras atividades econômicas já praticadas; compromisso na distribuição justa do dinheiro e na transparência no uso dos recursos; valorização cultural e afirmação da identidade; relação de parceria e troca entre o turista e a comunidade; o turismo auxilia na luta pela posse da terra pela comunidade; compromisso com a conservação e sustentabilidade ambiental; estabelecimento de uma cadeia de valor focada no desenvolvimento da comunidade e desenvolvimento de princípios e critérios para organizar, normatizar e regular os empreendimentos e processos turísticos. Em 2009, o Edital MTur 2008 aprovou as propostas dos 06 membros da rede: Acolhida na Colônia, Fundação Casa Grande, Projeto Saúde e Alegria, Projeto Bagagem, Instituto Mamirauá e Rede Tucum. Já em 2010, uma seleção para novos membros ampliou de 06 para 22 destinos de TBC no Brasil, representados pelas organizações a seguir: Projeto Saúde e Alegria (PA), Acolhida na Colônia (SC), Rede Tucum (CE),
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Turismo de base comunitaria
Fundação Casa Grande (CE), Pousada
comunidade pesqueira, situada no muni-
Uacari – Reserva Mamirauá (AM), Pousa-
cípio de Beberibe, a 126 km da capital do
da Aldeia dos Lagos (AM), Associação de
estado do Ceará, Fortaleza. A Prainha do
Artesãs de Coqueiro do Campo (MG), Ins-
Canto Verde localiza-se em uma Reserva
tituto Inhotim (MG), Associação Etnoam-
Extrativista (Unidade de Uso Sustentável)
biental Beija Flor (AM), Associação Socio-
cuja presença registrada é de aproximada-
cultural Yawanawa (AC), Associação dos
mente 200 famílias (Prahinhado Canto Verde,
Produtores Rurais do Assentamento Bela
2011). A escolha da Prainha do Canto Verde
Vista (BA), Associação Rede Cananéia
se deve pelo fato de ser a experiência de
(SP), Instituto Floresta Viva (BA), Associa-
TBC brasileira de maior sucesso, reconheci-
ção de Jovens da Juréia (SP), Associação
da tanto nacional como internacionalmente.
das Mulheres do Pesqueiro (PA), Instituto Tapiaim (PA), Cooperativa de Produção
Segundo estudos de Men
Agropecuária Canudos (MT), Centro Eco-
(2004), a origem da comunidade data de
lógico Aroeira (CE), Centro de Pesquisa e
1860, porém foi em 1979 que movimentos
Promoção Cultural (MG), Instituto Forma-
de luta e resistência dos pescadores foram
ção (MA), Casa do Boneco de Itacaré (BA)
desencadeados com o intuito de garantir o
e Instituto Socioambiental com o projeto
direito e usufruto da terra.
doça e
Irving
Circuito Quilombola (SP). O litoral cearense é marcado por diversos Com o comprometimento de seus mem-
atrativos turísticos e singular beleza cêni-
bros, parceiros e financiadores, a Rede
ca, mas, embora o turismo na região não
TURISOL tem atuado na promoção e es-
seja a principal fonte de renda, a atividade
truturação do TBC no Brasil. A Série Turi-
é planejada e gerida pela comunidade a
sol de metodologia do turismo comunitá-
partir de processos contínuos de partici-
rio, lançada em 2010 e composta por 07
pação. Apesar das dificuldades, a comu-
volumes, registra as histórias e experiên-
nidade da Prainha do Canto Verde, que
cias dos membros que mais têm se desta-
sobrevive da pesca artesanal da lagosta
cado nos últimos dez anos.
e do turismo comunitário, se esforça para manter a preservação da identidade cultural de seus moradores, gerar benefícios
Prainha do Canto Verde
para a própria comunidade (não permitindo especulação imobiliária, por exemplo) e incentivar engajamento e autonomia dos
Da Rede TURISOL, optamos por evidenciar
moradores. No site da Prainha
a experiência da “Prainha do Canto Verde
Verde (2011), criado por nove jovens da
– Turismo comunitário e sustentável”, uma
Associação de moradores da comunida-
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do
Canto
23
Nathália Hallack, Andrés Burgos
e
Daniela Maria Rocco Carneiro
de, é possível verificar que o turismo co-
viabilidade econômica de tais iniciativas -
munitário é entendido como: “uma opor-
tema ainda pouco debatido no Brasil.
tunidade para aperfeiçoar a organização comunitária, o desenvolvimento local e a
Reconhecemos que o TBC coaduna com
co-gestão para preservar o patrimônio na-
as perspectivas do turismo sustentável,
tural, cultural e as formas de vida tradicio-
sendo sua construção baseada em prin-
nais das comunidades e do seu território”.
cípios e valores éticos, aliado a uma crítica ao modelo do turismo convencional. No entanto, embora o turismo comunitá-
Conclusões
rio nasça de um ideário diferenciado de desenvolvimento turístico, parte-se do pressuposto que isto per si não o torna
No turismo comunitário, as relações eco-
sustentável. Comumente nos apropriamos
nômicas são enriquecidas por outras rela-
do discurso da sustentabilidade com base
ções que transcendem a racionalidade do
em julgamentos subjetivos, sem referência
lucro imediato. Não se trata de uma ativi-
a padrões ou critérios específicos.
dade constituída em sua essência de atores econômicos, e sim de uma múltipla e
Clarke (1997) ressalta que o turismo sus-
complexa rede socioeconômica articulada
tentável não é uma característica inerente
entre si e com ações transversais focadas
a qualquer forma ou situação já existente,
em temas como a saúde, a educação, a
e sim um objetivo que todas as iniciativas
cultura e o meio ambiente.
devem se esforçar para alcançar. O autor combate o excesso de rótulos que, por
Na literatura científica, debates políticos,
sua vez, estabelecem uma relação simbi-
arcabouços institucionais e programas ofi-
ótica entre a sustentabilidade e algumas
ciais de fomento, o TBC tem se projetado
práticas de turismo, associadas, muitas
como uma proposta fortemente associada
vezes, a pequena escala - “small was sy-
ao turismo sustentável e ao desenvolvi-
nonymous with sustainable” (p.226). Neste
mento local. Considera-se, entretanto, que
sentido, defendemos que o turismo sus-
tamanha visibilidade requer um pouco mais
tentável deve ser interpretado como uma
de cautela. É preciso instituir parâmetros,
meta para realização e não uma caracte-
sistematizar experiências e reconhecer os
rística inerente a uma determinada prática.
limites desta proposta. A discussão do TBC precisa romper o campo etéreo - apoiado em bases ideológicas - e aterrissar em questões mais concretas, como, por exemplo, a promoção de estudo em torno da
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25
Escola primaria Kikombo (Kuanza Sul-Angola)
26
© Xosé Manuel Malheiro
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