Twelve years a slave: usos historiográficos e pedagógicos do filme

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Descrição do Produto

Cássio Brancaleone é doutor em sociologia pela UERJ e atua no curso de Licenciatura em Ciências Sociais da UFFS e no programa de pós-graduação interdisciplinar em ciências humanas (PPGICH). Fábio Feltrin de Souza é doutor em História Cultural pela UFSC e atua no curso de Licenciatura em História da UFFS e no programa de pós-graduação interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH).

O cinema é um recurso passível de oferecer fontes inesgotáveis para a reflexão social, histórica e filosófica sobre a cultura contemporânea. Seja como um dos produtos mais bem delimitado da mencionada indústria cultural, como expressão narrativa de valores dominantes ou dissidentes, como documento ou registro de época, como referência imagética de representações estéticas. Ainda mais: se o diagnóstico de Guy Debord sobre a espetacularização da sociedade está correto, o cinema e toda a sua cadeia produtiva praticamente tomou o lugar ocupado outrora pela indústria moderna no campo da produção (de sentido) das mercadorias. Este livro apresenta-se como um esforço interdisciplinar de reflexão sobre estas e outras questões trazidas pelo cinema, principalmente no que se refere às resistências e aos jogos de poder

ISBN 978-85-462-0143-3

Cássio Brancaleone Gerson Fraga Éverton kozenieski Daniel de Bem Daniel Sbravati Marcelo Teo Rafael Hansen Quinsani Atilio Butturi Jr. Fábio Feltrin de Souza José Alves de Freitas Neto

Cinema e Sociedade Resistências

e

jogos de poder

O rganizadores F ábio F eltrin de S ouza C ássio B rancaleone

Conselho Editorial Profa. Dra. Andrea Domingues Prof. Dr. Antônio Carlos Giuliani Prof. Dr. Antonio Cesar Galhardi Profa. Dra. Benedita Cássia Sant’anna Prof. Dr. Carlos Bauer Profa. Dra. Cristianne Famer Rocha Prof. Dr. Eraldo Leme Batista Prof. Dr. Fábio Régio Bento Prof. Dr. José Ricardo Caetano Costa

Prof. Dr. Luiz Fernando Gomes Profa. Dra. Magali Rosa de Sant’Anna Prof. Dr. Marco Morel Profa. Dra. Milena Fernandes Oliveira Prof. Dr. Ricardo André Ferreira Martins Prof. Dr. Romualdo Dias Prof. Dr. Sérgio Nunes de Jesus Profa. Dra. Thelma Lessa Prof. Dr. Victor Hugo Veppo Burgardt

©2016 Fábio Feltrin de Souza; Cássio Brancaleone (Orgs.) Direitos desta edição adquiridos pela Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a permissão da editora e/ou autor.

So895 Souza, Fábio Feltrin de; Brancaleone, Cássio Cinema e Sociedade: Resistência e jogos de poder/Fábio Feltrin de Souza; Cássio Brancaleone (Orgs.). Jundiaí, Paco Editorial: 2016. 236 p. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-462-0143-3 1. Cinema 2. Industria cultural 3. Sociedade 4. Educação I. Souza, Fábio Feltrin de II. Brancaleone, Cássio. CDD: 384 Índices para catálogo sistemático: Filmes

384.8

Equipamentos e materiais visuais

371.335

Representações públicas

791 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL Foi feito Depósito Legal

Av. Carlos Salles Block, 658 Ed. Altos do Anhangabaú, 2º Andar, Sala 21 Anhangabaú - Jundiaí-SP - 13208-100 11 4521-6315 | 2449-0740 [email protected]

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Capítulo 6. Twelve Years a Slave: usos historiográficos e pedagógicos do filme Marcelo Téo1

O que faz um historiador quando escreve sobre um filme contemporâneo baseado em fatos históricos? Granjeia autoridade de crítico de cinema ao propor uma leitura formal? Reserva-se à função de juiz do passado, identificando erros e acertos? Ou ainda, na condição de intelectual autorizado, comenta a dimensão política deste “evento” contemporâneo? Estas são questões que envolvem respostas complexas, situadas ora no polo positivo, ora no negativo, e que conectam alguns dos dilemas mais discutidos na metodologia histórica nas últimas décadas: narrativa e ficção, história do tempo presente, história pública, usos pedagógicos e possibilidades metodológicas de documentos audiovisuais, entre outros. Falarei de alguns destes temas ao analisar o filme Twelve years a slave — traduzido no Brasil como Doze anos de escravidão —, do diretor britânico Steve McQueen. Sua ampla exibição nos cinemas, seu elenco estelar e as indicações ao Oscar® 2014 têm sido úteis para trazer à tona um debate sobre as mazelas do sistema escravista nas Américas, bem como sobre as funções e limites do cinema de histó1. Doutor em história social pela Universidade de São Paulo e professor colaborador do Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina, onde leciona a disciplina de Prática Curricular em Imagem e Som I e II, destinada a discutir e produzir audiovisuais voltados ao campo da história e do ensino. Autor de A vitrola nostálgica: música e constituição cultural (Florianópolis, décadas de 1930 e 1940) {2007}, e De Arte: crítica e crônica musical n’A Gazeta (década de 1930) {2007}.

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ria2, tanto do ponto de vista historiográfico, suas normas e obrigações para com o passado, quanto cinematográfico, suas liberdades poéticas e formais, seu compromisso com o público. Partindo do pressuposto de que o leitor já conhece o filme, me abstenho da tarefa de resumi-lo. Assim, a primeira questão a tratar é a da recepção do filme, tendo em vista que a partir dela podemos seguir outras ramificações do debate suscitado pela obra. Obviamente não farei aqui uma busca completa e precisa da crítica ou das impressões do público nas saídas das salas de cinema do Brasil ou dos EUA, o que foge completamente às minhas possibilidades e necessidades. Comento a seguir algumas linhas gerais das discussões que se seguiram à sua indicação e posterior premiação no Oscar® 2014.

Embates entre o tema e a forma Twelve years a slave3 foi recebido de forma paradoxal entre críticos de profissão, amantes do cinema, acadêmicos e público em geral. Uma das questões foi o batido — mas não por isso resolvido — embate na história das linguagens artísticas sobre forma e conteúdo. Acusado de academicista, o filme foi contraposto ao seu principal rival na premiação do Oscar® 2014, Gravidade, de Al2. Cinema de história, filme histórico, “baseado em fatos reais”: são categorias semelhantes e de difícil definição. Creio que defini-las não seria de grande ajuda, tendo em vista que o objetivo aqui não é optar por um formato narrativo ou outro, tampouco optar pela ênfase no tema, no respaldo em fontes em detrimento da ficção sem compromisso restrito com uma história real. São inúmeras as possibilidades no diálogo com a história. Um filme como Django Livre, de Quentin Tarantino, por exemplo, que trata de um personagem ficcional, é tão rico para discutir o tema da escravidão quanto a obra aqui analisada. 3. Optei aqui por utilizar o título em inglês por perceber alguns problemas na tradução comercial para o português. A tradução — Doze anos de escravidão — apaga a ideia de singularidade de uma trajetória presente no título original. A instituição escravista durou séculos. Dentro dela, foram milhares de trajetórias singulares. E o filme fala destas singularidades.

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fonso Cuarón: Twelve years a slave representaria a vitória do tema, seu significado histórico e político; Gravidade, o cinema em si, a arte em seu esplendor formal.4 Circularam na imprensa e nas redes sociais críticas ao resultado da premiação pautadas por este embate. Os descontentes acusavam o júri de ter eleito o melhor filme a partir de critérios não condizentes com uma premiação que, pautada por categorias técnicas, deveria privilegiar aspectos do “fazer” cinematográfico em detrimento da temática. Twelve years a slave, portanto, apesar de tocar num ponto importante da história americana, com desdobramentos que ultrapassam suas fronteiras temporais e espaciais, tecnicamente não traria nada de excepcional. Esta não seria, contudo, a primeira vez que um filme “conteudista” vencera o Oscar®. Inúmeros outros filmes que trataram de tragédias como o holocausto ou de biografias de celebridades, foram agraciados com o prêmio de melhor filme sem necessariamente suprir a necessidade de gozo estético dos fãs do cinema autônomo (mais preocupado com a forma do que com a história em si). O efeito social da história contada no filme não deveria ser, enfim, o norte da eleição do melhor filme. Não farei aqui a defesa de uma escolha política, especialmente porque ela serviria para validar prêmios anteriores a filmes como Guerra ao terror (2010) ou Argo (2013).5 O que interessa aqui, no que diz respeito à cerimônia do Oscar® 2014, é o impacto desta escolha, que trouxe o tema da escravidão de volta à pauta de discussões sobre desigualdade social tanto nos EUA, quanto no Brasil.6 4. O crítico de cinema do Estadão, Luiz Carlos Merten, menciona brevemente esta questão ao comentar o resultado da premiação. Ver: . Acesso em: 27 jan. 2015. 5. Ambos os filmes apresentam uma crítica velada aos modos de procedimento do governo americano nas guerras empreendidas na história recente. São críticas, entretanto, que agem como mecanismos para estimular um julgamento interno, sem, com isso, promover uma avaliação das ações americanas num horizonte mais amplo. Ambos dizem que há algo errado na guerra, mas são erros que podem e devem ser corrigidos. Não há, por exemplo, uma reapresentação justa do dito inimigo. 6. Bom exemplo disso é o fato de o livro de Northup, pouco lido fora dos meios acadêmicos, até então, ter permanecido por mais de cinco meses no topo da lista de mais

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Neste cenário, a pouca ousadia formal, lida como opção conservadora do diretor, que teria feito um filme vocacionado para o Oscar®, talvez deva ser reavaliada, pois só uma análise restrita o enquadraria no formato das narrativas heroicas hollywoodianas, nas quais predominam histórias de superação articuladas a uma cadência vastamente repetida em filmes biográficos ou de super-heróis. Em primeiro lugar, não se trata de um homem negro que alcança fama e sucesso pela via da música ou do esporte, situações de exceção normalmente associadas às histórias de descendentes de africanos nas Américas. É justamente o oposto: um homem livre que é arrastado à miséria da servidão, apresentada por Solomon Northup a partir do olhar dos afro-americanos. Sua libertação não indica sua consagração segundo os padrões da sociedade norte-americana, mas o caráter de exceção de sua trajetória, tornando aquela realidade ainda mais trágica. Steve McQueen se apropria dessa história, atualizando-a. Recorre a uma abordagem mais radical da figura dos senhores de escravos do que aquela apresentada por Solomon no documento original. Ao ativismo de Northup, vinculado, em certa medida, ao abolicionismo nortista, McQueen acrescenta o distanciamento de um homem negro, inglês, que olha para a sociedade estadunidense atual e identifica, ainda, os abundantes resquícios e sequelas do escravagismo. Limita o heroísmo nortista e a eficácia das leis de proibição do tráfico e de manutenção da liberdade das populações afrodescendentes a partir de um choque de realidade, em que a violência daquele sistema é desnudada em suas inúmeras dimensões. Um bom exemplo das sensíveis soluções formais para questões de ordem política no filme é o contraste criado entre parte das cenas no Norte, em Nova Iorque e especialmente em Washington, e no Sul, nas plantations do estado de Louisiana, onde se passa a maior parte da narrativa. Ao tom escuro e artificial, vendidos no New York Times após a indicação do filme, vendendo mais neste curto período do que nos 160 anos precedentes, comparando-se à vastamente consumida literatura de guerra em que se encaixa, entre outras obras, o Diário de Anne Frank.

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noturno, quase subterrâneo do subúrbio de Washington, opõe-se uma luminosidade natural, crepuscular da paisagem sulista. Nas tomadas em Washington, onde Northup é sequestrado e posto em cativeiro pela primeira vez, a trilha sonora é composta por ruídos tragicamente artificiais, como máquinas que burlam a natureza para ir contra ela. No Sul, os sons se harmonizam aos da paisagem natural. A história de Solomon, de sua trágica estadia em Washington, se passa por debaixo dos panos brancos da capital legislativa dos Estados Unidos, e seus gritos por socorro se tornam sussurros diante da distante e asséptica imagem do capitólio. A história de Platt (nome atribuído a Solomon após o sequestro), às margens do Rio Vermelho, é apenas uma entre outras, um caso naturalizado em meio à sociedade branca sulista. Da música composta por ruídos alienígenas, artificiais, passa-se para os sons e as imagens de uma natureza exuberante. À medida que nosso olhar se familiariza com ela, compreende também que a violência era o costume, justificada sob a ótica da propriedade. A trilha sonora artificial, maquínica, que caracteriza um local em que a escravidão é ilegal, mas não por isso menos real e cruel, retorna quando Chapin, o feitor da fazenda de William Ford, se escora na lei da propriedade para salvar Platt de ser enforcado por Tibeats, seu perseguidor mais voraz. A artificialidade da lei e a naturalidade de violência são narradas não apenas de forma textual, seguindo os passos do relato, mas também através de sons e imagens que ajudam o espectador a compreender a sinfonia de agressões que ressoavam no corpo e na vida de mulheres e de homens negros na sociedade escravista, fossem eles livres, libertos ou escravos. Tais indícios não preenchem — e não foram expostos com a intenção de fazê-lo — as expectativas de gozo estético daqueles que, descontentes com a premiação, saíram em defesa de Cuarón e sua obra, Gravidade. Nos ajudam, por outro lado, a pensar algumas ricas possibilidades no trato com o passado através do filme. A imersão sensorial do espectador contribui para que se envolva com o passado de forma profunda, a ponto de sentir na própria

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pele, senão a dor, ao menos a angústia e o desespero da violência ininterrupta narrada no filme, que tem início nos olhares depreciativos lançados à Northup [frame 1], e segue banhando a carne e a alma dos sujeitos negros que permeiam a narrativa do filme.

Frame 1 — Solomon recebe olhares de estranheza e desdém quando passeia pela cidade de Washington com seus futuros sequestradores. O filme dá pistas de como, mesmo no norte abolicionista (em Washington), um homem negro bem sucedido como Mr. Northup, dentro das possibilidades que lhe cabiam, era motivo de surpresa, quando não de repulsa e descontentamento entre os membros da elite e da burguesia brancas.

Identificação e negação Uma pré-estreia gratuita foi realizada numa pequena cidade do meio oeste norte-americano, atraindo uma parcela da população sem muitos recursos para ir ao cinema, a maioria afrodescendentes.7 As reações foram de euforia, entusiasmo, revolta. Grande foi a identificação com o herói Solomon Northup, manifestada em comentários, aplausos nas cenas de luta, suspiros e murmúrios. Na mesma cidade, duas semanas mais tarde, uma sessão paga num imponente teatro local e uma plateia de brancos. Não há mais reações audíveis e nas cenas de tortura muitos viraram a cara ou fecharam os olhos. Lágrimas caíram no momento do encontro com a família, cena que Solomon se 7. Conforme Sylvia Colombo, Folha de São Paulo, Ilustrada, 21/2/2014.

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recusa a narrar no livro. As expressões de choque e horror foram constantes ao longo da sessão. As percepções dissonantes são, em certa medida, esperadas, especialmente num país em que a segregação permanece viva, em formas bastante distintas, mas ainda efetivas em relegar às populações afrodescendentes posições desfavoráveis na hierarquia social. Mostram, de um lado, o quão viva é a memória da escravidão para a população negra. De outro, o choque entre a população branca indica a quebra de um silêncio. Diferente da produção sobre o holocausto (filmes, literatura, museus, memoriais, monumentos), cujos horrores somo constantemente convidados a lembrar, o tema da escravidão constitui uma quase completa ausência.8 No Brasil, a situação não é diferente. Talvez ainda mais precária, por não contarmos com a documentação disponível aos cineastas norte-americanos — mais de uma centena de relatos semelhantes aos de Solomon Northup, publicados entre 1760 e o fim da Guerra Civil.9 O cinema nacional pouco se ocupou do tema e quando o fez, raramente levou em conta a produção acadêmica sobre o assunto.10 8. No cinema, entre os mais conhecidos estão O Nascimento de uma Nação (1915), de D. W. Griffith, ainda impregnado de uma mentalidade escravocrata; o clássico ...E o Vento Levou (1939), que oferece uma visão romântica e caricata das relações entre negros e brancos; e, mais recentemente, Amistad (1997), de Spielberg, e Django Livre (2012), de Tarantino. Na literatura estadunidense a obra da escritora Toni Morrison é uma exceção que merece ser lembrada. 9. Tem-se notícia de um único relato do gênero no Brasil, de Mohammad Gardo Baquaqua, publicado originalmente em inglês no ano de 1854, em plena campanha abolicionista, na cidade de Detroit. A obra teve edições recentes em inglês — os historiadores Paul Lovejoy e Robin Law republicaram o livro nos anos 2000 — e só agora está em vias de ser publicada em português, talvez impulsionada pelo sucesso cinematográfico e editorial de Doze anos de escravidão. 10. Os filmes Xica da Silva (1976) e Quilombo (1984), do diretor brasileiro Cacá Diegues, são interessantes por oferecerem informações históricas relevantes sobre o contexto colonial brasileiro. Entretanto, reproduzem uma série de estereótipos, como o da sexualidade aflorada mulher negra em Xica da Silva.

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O problema racial no Brasil parece, para muitos, coisa do passado. Segundo as historiadoras Lilia Moritz Schwarcz e Maria Helena P. T. Machado, em breve artigo sobre o filme aqui discutido, mencionam os comentários na saída do cinema sobre a crueldade da escravidão nos Estados Unidos, seguidos da questão/afirmação: — No Brasil não foi assim!? Tal suposição, muitas vezes, ancorada a uma resistência convicta a medidas compensatórias, está distante da realidade. Conforme Schwarcz e Machado, o que hoje se sabe é que a escravidão no Brasil não foi essencialmente diferente da retratada em Doze anos de escravidão. Ao contrário, foi maior em número de africanos entrados no país, assim como tomou todo o território e por um período de tempo ainda mais extenso.11

Entre as semelhanças, talvez a principal seja justo o tema do filme: a porosidade das fronteiras entre cativeiro e liberdade. Sidney Chalhoub, entre outros, demonstrou, em pelo menos duas de suas obras (1990; 2012), como era frágil, vigiada e ameaçada constantemente a liberdade de mulheres e homens negros livres ou libertos em meados do século XIX. Os libertos ou negros livres precisavam provar a sua liberdade através de documentos. Porém, até a matrícula de 1871 ser criada, os senhores não precisavam provar sua propriedade. Em Visões da liberdade (1990), Chalhoub nos mostra como a vida na cidade transforma as relações entre negros e brancos, para o bem e para o mal. A instituição da escravidão deixa de ser quando se torna impossível identificar prontamente, e sem duplicidades, as fidelidades e as relações pessoais dos trabalhadores, e os escravos se mostraram incansáveis em transformar a cidade num esconderijo. A cidade que esconde é, ao mesmo tempo, a cidade que liberta. É também a cidade que engendra um novo tipo de sujeição, fundada na suspeição generalizada. (p. 219) 11. Folha de São Paulo, Ilustríssima, 2/3/2014.

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O constante olhar de desconfiança lançado à população afrodescendente constituía uma nova forma de controle, tendo em vista o amplo crescimento do número de libertos ao longo do século XIX. Casos como o de Adolfo Mulatinho, cujo plano para conquistar a liberdade consistiu em fazer-se prender, preferindo o cárcere à servidão, entre inúmeros outros dão mostras da proposital precariedade da situação jurídica dos homens e mulheres “de cor” nas últimas décadas do Império.12 A ausência de uma divisão clara, como ocorria nos Estados Unidos entre o Sul escravista e o Norte abolicionista, entretanto, concedeu ao cenário tupiniquim uma feição bastante distinta. Nos EUA, como lembrou Paul Gilroy (2001), as narrativas escravas acabam por formar um gênero literário capaz de transformar a divisão do trabalho intelectual abolicionista, fazendo emergir a figura do ex-escravo como autor, lido e publicado. No Brasil, à exceção de Baquaqua — que só conseguiu contar sua história nos Estados Unidos —, não temos notícia da participação literária da população negra no processo de abolição. Seu papel nesse processo não foi, entretanto, secundário. Se deu, como mostrou Chalhoub, nas negociações e lutas do cotidiano, em que escravos inculcavam-se livres, e eram acolhidos por livres e libertos que lutavam para manter sua condição num sistema que colocava em xeque diariamente seu direito à liberdade. Indício de tal fragilidade foi a reação ao Regulamento no. 798 de 18 de junho de 1851, que deveria entrar em vigor no dia 1o. de janeiro do ano seguinte. Com tal decreto, o governo imperial instituía em todo o país o registro obrigatório de nascimentos e óbitos. Num decreto complementar, determinava-se a realização de um recenseamento geral. Ambos com a finalidade de obter dados detalhados sobre a população do país. O que se viu nos dias seguintes à sua implementação foi um verdadeiro pandemônio, com levantes espalhados em boa parte do Império, fazendo o governo recuar e suspender a execução dos decretos. Muito se 12. Sobre a precariedade da liberdade de trabalho no século XIX, ver: Lima (2005).

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especulou sobre o motivo das revoltas. O ministro da Justiça Eusébio de Queiroz mencionou as lutas partidárias entre conservadores e liberais e a ilusão desatinada da “gente menos ilustrada”. O ministro dos Negócios do Império, visconde de Mont’Alegre, à frente da repartição responsável pela execução do regulamento, elencou algumas dificuldades práticas: a extensão do território, a falta de meios de comunicação, o isolamento de grande parte da população, portadores de “hábitos e vida excêntrica nos lugares mais desertos do interior”. Depois de muita indagação, descobriu-se que o motivo dos motins residia na circulação de um “boato arteiramente espalhado, e loucamente acreditado pelo povo rude, de que o registro só tinha por fim escravizar a gente de cor” (Chalhoub, 2012, p. 17-8). Neste curioso causo analisado pelo historiador Sidney Chalhoub, fica claro como a tormenta do sistema escravista tornou frágil e precária a experiência da liberdade de negros livres e pobres no Brasil oitocentista.13 Situação semelhante, num olhar aéreo, à da população afrodescendente estadunidense no mesmo momento — lembremos que Solomon foi libertado em 1853, um ano após o Regulamento no. 798. E a lei que o libertou, mencionada apenas no livro, dizia respeito a casos de sequestro de homens e mulheres negros, livres ou libertos, para trabalhar como escravos ilegalmente em fazendas do Sul, tamanha era a frequência com que aconteciam.14 Sempre havia brechas. Foram, sem dúvida, centenas 13. Duas décadas mais tarde, a matrícula de escravos de 1871, que tinha por objetivo regularizar a situação da escravidão através do registro, exigindo que também os senhores comprovassem a sua posse, também foi usada como forma de reescravização ilegal. 14. Conforme Northup, a lei foi a aprovada em 14 de maio de 1840, intitulada “Uma lei para proteger mais efetivamente os cidadãos livres deste estado de serem sequestrados ou submetidos à escravidão”. Determinava, assim, o dever do governador, recebendo informações suficientes de que um cidadão livre do estado de Nova Iorque estivesse sendo mantido como escravo injustamente em outro estado, mediante “alegação ou mentira de que tal pessoa seja um escravo, ou que pelo costume da cor ou pela regra da lei seja considerado ou tomado por um escravo”,

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ou milhares de Solomons no Brasil e nos EUA, homens e mulheres que sofreram pela prática bastarda da escravidão, por punições carnais tão violentas ou mais quanto as que vimos no filme, pela contínua — e ainda ativa — sensação de suspeição associada à cor da pele, mas que também buscaram brechas e desenvolveram estratégias para romperem com o sistema que os oprimia. Se os cenários são diferentes, bem como os caminhos para o fim da escravidão, muito semelhantes foram o sofrimento e os limites ao acesso dos direitos cidadãos dessas populações nos dois países. As sequelas da escancarada ilegitimidade desse sistema, amparado lá e cá mais no costume do que nas leis, estão vivas ainda hoje. E manifestaram-se de forma viva nas salas de cinema que exibiram Twelve years a slave, com plateias divididas entre a identificação com um herói que lutava por justiça e a negação de um passado que, atualmente, encontra-se em situação de constrangedora bastardia, a qual o filme ajuda a denunciar. Não assumi-lo faz parte de um teatro do esquecimento bastante “oportuno”, tendo em vista a necessidade providencial de medidas compensatórias para desfazer os nós sociais atados naquele momento histórico.

O cinema, a história e o passado Falou-se até aqui do filme a partir de sua recepção, primeiro em termos do que chamamos genericamente de forma, em suas relações com o tema; em segundo, das reações provocadas no público, procurando lê-las de forma crítica, respeitando as limitações da restrita pesquisa realizada para fins exclusivos deste artigo. Falamos também de algumas estratégias de linguagem utilizadas no filme para contar a história de Solomon. E das similaridades históricas com o caso brasileiro. Gostaria, agora, de traçar alguns comentários sobre a possibilidade de associar ou tomar medidas que garantissem a restauração de tal pessoa à liberdade (Northup, 2014, p. 233-234).

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mesmo incluir a produção de Steve McQueen no corpus historiográfico sobre a escravidão, explorando os limites e possibilidades da equivalência entre os dois. Em linhas gerais, o filme foi muito bem recebido por especialistas no tema, tanto dos Estados Unidos, quanto no Brasil. A tônica foi o impacto esclarecedor que o filme de Steve McQueen tivera sobre o público, ascendendo as chamas de um debate há muito necessário. Não é incomum entre nós historiadores — especialmente no Brasil — a crítica sobre a falta de acuidade histórica em filmes que tratam direta ou indiretamente de nossos objetos de pesquisa. As respostas, quando existem, celebram a licença poética e as necessidades da linguagem como soberanas numa obra audiovisual, acima, portanto, das exigências pouco conhecidas pelos cineastas da escrita da história. Talvez a participação mais efetiva de assessores históricos — sendo estes, historiadores de formação — pudesse ajudar a consolidar um pacto cuja finalidade mais importante seria erigir um debate sobre as fronteiras móveis entre ficção e realidade na explicação do passado. De forma ainda tímida, isso vem acontecendo em alguns países, especialmente nos Estados Unidos, onde experiências de consultoria histórica para grandes produções, tem impulsionado a discussão sobre cinema e história. Mas ainda não no Brasil. Enquanto esse dia não chega, podemos nos ocupar com exemplos estrangeiros, como o do filme em questão, cuja temática nos é relevante. Um ponto de partida para pensar as relações entre o filme e a escrita da história é a sua repercussão social. Temos, de um lado, os livros de história, comumente escritos num quase dialeto, pouco acessíveis a uma população cujo hábito de leitura é precário. De outro, narrativas audiovisuais, muitas vezes, apreendidas como transparentes em sua representação. Há um século atrás, o diretor D. W. Griffith previa que o filme substituiria os livros de história no futuro:

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Instead of consulting all the authorities... and ending bewildered... you will actually see what happened. There will be no opinions expressed. You will merely be present at the making of history.15

Esta profecia não se cumpriu, porém, é preciso admitir que, muitas vezes, o espectador comum aceita o filme como uma reprodução fiel do passado, a qual lhe servirá como base de informação e como referência visual na constituição do imaginário sobre um tempo não vivido. O alcance do filme, especialmente quando falamos de um vencedor do Oscar®, é infinitamente superior ao dos livros de história mais bem-sucedidos. Chegará, portanto, a rincões onde nossos trabalhos dificilmente chegariam. E, caso chegassem, talvez não encontrassem tanta ressonância. O fato é que são raros os casos como o de Twelve years a slave, em que o diretor mostra-se completamente a par dos debates historiográficos sobre o tema tratado no filme, além de contar com qualificada assessoria histórica.16 Tal aproximação, cheia de limites e “poréns”, entre a produção acadêmica e o cinema é riquíssima e pode render frutos generosos, amplificando o clamor por um debate público sobre o tema que transcenda, na sua recepção, os corriqueiros julgamentos em torno do “bom” ou do “mal” filme, geralmente pautados por padrões de consumo audiovisual referentes à fluência de sua narrativa. 15. “Em vez de consultar todas as autoridades…e acabar aturdido… você vai, na verdade, ver o que aconteceu. Não haverá opiniões expressas. Você simplesmente estará presente no fazer-se da história” (Pierre, 2008, p. 1, tradução do autor). 16. O escritor e editor estadunidense Henri Louis Gates Jr. é o responsável pela assessoria histórica do filme. Diretor do Hutchins Center for African and African American Research da Harvard University, foi responsável pela organização e direção de inúmeras publicações e documentários para a TV sobre a presença africana nas Américas, consagrando-se notório especialista na questão dos direitos e da cultura afro-americana. A edição do livro pelas editoras Penguin/Companhia das Letras conta com um posfácio de Gates Jr.

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Talvez uma breve comparação entre as possibilidades de análise do documento que deu origem ao filme — a narrativa de Solomon Northup — para o historiador e para o cineasta seja apropriada para melhor explorarmos os cruzamentos entre os dois campos. Imaginemos que nossa fonte seja a mesma que serviu a Steve McQueen, o relato do sequestro de Northup. Certamente não aceitaríamos usar a tal “licença poética” para alterar os ditos de Solomon, como fez McQueen em não raros momentos. A cena em que Platt, nome dado a Solomon em sua condição de escravo, tenta contar sua história ao generoso senhor William Ford, jamais foi relatada no livro. No filme, Ford se recusa a ouvir algo que provavelmente já sabia: que Platt, seu escravo, pelos conhecimentos e pela experiência que carregava, fora um homem livre e encontrava-se escravo por caminhos ilegais. Se Ford é descrito de forma generosa por Solomon, McQueen opta por enfatizar a violência das relações, assumindo uma abordagem estereotipada dos personagens senhoriais. As pregações de Ford, descritas com admiração por Solomon no livro — em contraponto às absurdas justificativas bíblicas para o castigo expostas por Epps, cruel senhor com quem Solomon ficou por cerca de dez anos —, aparecem no filme numa sequência de imagens em meio a qual adquirem novo sentido: o tirano Tibeats cantando a cruel canção Run Nigger Run, cenas de trabalho forçado e vigiado, o encontro com indígenas cuja vida livre na mata e as práticas rituais contrastavam com a dos negros escravos. A sequência acaba com Solomon defecando no mato, depois de ingerir a carne de javali junto dos índios e alguns companheiros de servidão. No livro, fica clara a proximidade de Northup com a doutrina cristã, especialmente nos comentários sobre as pregações de Ford. No filme, ela aparece como parte de um sistema hipócrita e contraditório, à exceção dos usos que fazem dela a própria população negra — a exemplo da comovente cena do enterro de Uncle Abram, quando Solomon, num momento de identificação com a cultura negra da senzala, canta o spiritual Roll Jordan Roll.

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A postura do historiador diante das fontes é distinta, embora tal distinção possa ser problematizada. Não podemos criar novas cenas para o passado ao qual tentamos remontar. O cinema, sim. Mas podemos de fato supor, sempre a partir do maior número de evidências possíveis. Além de propor explicações possíveis, que variam de autor para autor, também omitimos certas informações, afinal não se pode falar de tudo. E colocamos outras em negrito, mudando a proporção de sua importância em acordo com o objeto de nossa pesquisa. Nosso trabalho com as fontes é plural, quase aleatório. Formamos, assim, uma espécie de quebra-cabeças de combinações instáveis, juntando peças e criando sentidos. Aceitamos com frequência outros tipos de “licença”, que não a poética, quando, por exemplo, nos aventuramos com fontes visuais ou literárias, transferindo indícios do passado, via ficção, para escrever a história. Há, portanto, e nisso não há novidade, um alto grau de invenção na escrita da história. E dentro dos pactos acadêmicos do campo histórico, somos escritores. Precisamos criar para fazer história. O cineasta que se ocupa de filmes históricos tem variáveis distintas. A começar pelas exigências da linguagem audiovisual, incapaz de explicar de forma objetiva ou de comprovar com notas de rodapé a veracidade das informações. O alto custo de uma obra cinematográfica implica em compromissos mercadológicos pouco comuns entre nós historiadores. Há ainda a expectativa do público e da crítica com relação à dinâmica da narrativa. E a duração limitada: seria impossível narrar num único filme todas as cenas descritas e comentadas por Solomon. Outra questão fundamental é que de um filme espera-se uma narrativa fechada, que conte uma história cujo sentido é literário. Nós, historiadores, somos movidos por problemas. Nossas obras podem encontrar sua completude sem agarrar-se a histórias singulares com começo, meio e fim. Por isso, num filme faz-se necessário preencher lacunas e, dependendo do intuito do diretor, alterar sentidos através da montagem, tanto visual, quanto sonora. O

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historiador, por sua vez, precisa cruzar fontes, agregando sentidos ao documento ou personagem analisado. Ao fim, ambos complementam os resquícios do passado, mas de formas distintas. No filme, busca-se fórmulas narrativas que alegorizem determinadas mensagens sobre o evento ou trajetória enfocado; na escrita da história, cruza-se indícios diversos para provar ou rebater determinadas hipóteses sobre o passado. Steve McQueen escolheu a violência como problema histórico a ser debatido em seu filme. Seus desvios com relação ao livro são estratégias para melhor sintetizar o espírito da sociedade escravista em sua complexidade. O relato de Solomon Northup não é, nem para o cineasta, nem para o historiador, um documento absoluto. É preciso levar em conta que tenha sido escrito pelo editor branco e abolicionista David Wilson; que tenha sido publicado junto a uma série de relatos de ex-escravos que ganhavam força no mercado editorial e que, por isso, deveriam atender a certas expectativas literárias (de um público também branco e simpatizante do abolicionismo). O norte dos Estados Unidos descrito no livro é muito mais puro e heroico do que na versão do filme, esta última mais crua e complexa. Trabalha-se, na escrita da história e na cinematografia, com formas distintas de síntese: a ficção e a alegoria no filme; recorte e encadeamento na história. A ficção entendida como permissão para imaginar em fatos as consequências de uma atmosfera de época; na alegoria, bastante utilizada por McQueen, faz-se uso de determinadas cenas/ações/personagens para intuir um espírito mais geral: diz-se algo que, em verdade, quer referir a outra coisa. O recorte é a habilidade do cientista social de perceber em fragmentos da realidade a potência para explicar determinados problemas mais gerais, verdadeiro contraponto à ficção; e, conhecendo um cenário mais amplo, sai em busca de informações que possam encadear à hipótese/recorte inicial, traçando mapas da vida social. São procedimentos distintos, é verdade. Mas não por isso opostos ou incompatíveis.

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Cheguei a sugerir, no início deste subitem, que um maior envolvimento de historiadores em produções cinematográficas poderia ser uma solução para aumentar o debate em torno dos filmes históricos. Gostaria agora de inverter esta proposição.

Ver e ouvir a voz da história Muito se fala sobre os usos do filme em sala de aula. Discute-se também como o filme histórico pode ser associado à historiografia. Mas são raras as experiências em expandir a escrita da história para além do texto, utilizando imagens e sons. O fato é que o historiador contemporâneo vive um dilema. O passado tornou-se valiosa mercadoria, que tem sido vendida por profissionais, muitas vezes, desprovidos de formação e interesse em se familiarizar com as tradições historiográficas correspondentes aos temas sobre os quais escrevem. O resultado é um distanciamento entre a pesquisa acadêmica e a história consumida pela maioria da população. Nesse cenário, o historiador interessado em tornar públicas suas descobertas pode encontrar em outras linguagens — para além do texto — poderosos aliados na luta por público que se trava na atualidade. Para tal tarefa, o auxílio de cineastas, jornalistas, editores, fotógrafos, designers, montadores, entre outros é primordial, tendo em vista que tais produtos envolvem habilidades que fogem à nossa formação tradicional. No Brasil, alguns poucos cursos de história têm realizado investimentos nessa direção. Minha experiência junto ao Laboratório de Imagem e Som (LIS) no Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) como professor colaborador durante 4 anos (2012-2015) foi enriquecedora, mas também frustrante. Orientando alunos no trabalho de discussão teórica, pesquisa, produção e finalização de documentários de história voltados ao consumo em escolas públicas, foi possível vislumbrar um futuro promissor para a disciplina.17 Vídeos 17. Ver Hagemeyer; Téo (2013).

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produzidos no curso alcançaram milhares de visualizações, o que significa mais “leitores” do que obtiveram algumas das obras de maior sucesso editorial em nossa área. Entretanto, a completa falta de investimento material (equipamentos) e pessoal (profissionais especializados no trabalho de produção e finalização audiovisual) tornou o processo excessivamente lento e dificultoso, fazendo desmoronar, muitas vezes, o interesse fulminante dos alunos. A precária formação da maioria dos cursos de história para lidar com — e, mais do que isso, produzir — vídeos dificulta o processo de aproximação e aceitação do trabalho do cineasta como história ou sua auxiliar na publicização de pesquisas para além da academia. Tomemos o filme que ora discutimos como exemplo de colaboração entre os dois campos. Como vimos, Twelve years a slave conta com densa assessoria histórica (embora não de um historiador, de um especialista e ativista na área, Henri Louis Gates Jr.). O filme, que chegou a ser chamado pejorativamente de academicista, leva em conta a produção acadêmica sobre escravidão, apropriando-se dela de forma bastante adequada. Em consequência disso, o National School Boards Association decidiu distribuir o filme, o livro no qual é baseado e um guia de estudos sobre ambos na rede de escolas públicas norte-americanas como parte do currículo sobre escravidão. Não há dúvida que esta é uma medida acertada e de grande importância, colocando este tema marginal como parte destacada da história americana. Mas pensando no contexto brasileiro — que talvez não seja muito diferente do estadunidense neste sentido —, estariam os professores preparados para lidar com este material de forma apropriada, evitando seu subaproveitamento? Uma das preocupações reside na possibilidade de fortalecer (e não desfazer, como seria ideal) a transparência da obra cinematográfica, aceitando-a como palavra final. Este é um perigo inerente à imagem, e especialmente ao cinema de história. A familiarização com a linguagem e, sobretudo, com a produção audiovisual na graduação e, consequentemente, nas escolas seria

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de grande ajuda não apenas na ampliação do debate em torno do filme — forma, conteúdo, linguagem, pesquisa histórica, etc. —, mas na proliferação do debate e na produção de narrativas semelhantes pelos próprios alunos e professores, fazendo uso do audiovisual, das redes sociais e de sites de compartilhamento. A imagem que tem sido esboçada nos debates sobre história pública de um historiador para além da academia, que enfrente a popularização inapropriada de temas históricos — por livros jornalísticos de história, sites de pesquisa universal, canais e programas de rádio e TV — ao incluir em seu trabalho a preparação para uma apresentação popular, precisa ser pensada já no processo de formação do profissional. E se, como argumentou Jill Liddington, “o estudo da história pública está ligado a como adquirimos nosso senso do passado” (2011, p. 34), por meio da memória e da paisagem, dos arquivos e da arqueologia, e, em especial, do modo como o apresentamos publicamente, então, está claro que o vídeo, o filme e a imagem de forma geral devem ser priorizados enquanto linguagem, fonte e produto final (monografias de conclusão de curso) na graduação. As consequências disso podem ser radicais no que diz respeito ao lugar da história e do historiador na sociedade. Dentre elas, a progressiva migração de produções autorais e individuais para trabalhos coletivos e parcerias interdisciplinares, expandindo a consciência político-acadêmica das ciências humanas para outras áreas e acoplando novas habilidades e técnicas na formação do historiador (Liddington, 2011, p. 47). Aceitar o cinema como história, como já propôs Robert Rosenstone (1998; 2010), ou como parte de iniciativas para a sua divulgação, não é uma simples formalidade. Traz implicações radicais que vão de reformas curriculares nos cursos de graduação e pós-graduação a possíveis revoluções nas formas de produção e consumo do conhecimento histórico. O impacto de obras como Twelve years a slave já pode ser percebido e serve como aperitivo no banquete que celebra o futuro promissor da ciência histórica.

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Considerações Como o leitor já deve ter percebido, utilizei o filme em questão como motivo para um arranjo bastante ousado e espinhoso. Procurei encadear as implicações do debate sobre o tema — a escravidão — a análises da obra em si e a discussões sobre novas possibilidades de narrativa histórica, envolvendo diferentes formas de diálogo com o cinema. Foram exploradas algumas das relações possíveis entre o passado, o historiador, a linguagem cinematográfica e o público, tomando a obra de Steve McQueen como fio condutor e, mais do que isso, como um exemplo extremamente bem sucedido de acordo entre estas quatro dimensões. A proposta de uma narrativa histórica em imagens e sons tem sido debatida de forma bastante tímida, talvez pelas barreiras “naturais” que se colocam à nossa frente: necessidade de investimentos pesados em equipamento e pessoal, disponibilidade de tempo sem necessariamente receber as recompensas em termos de currículo, deslocamento contínuo da zona de conforto, necessidade de complementação da formação mesmo após a conquista do título de doutor. Alguns autores, ainda assim, têm se manifestado sobre o assunto ou, pelo menos, advogado em prol de uma história pautada por imagens. Talvez o primeiro deles tenho sido Aby Warburg, quando, em seu Atlas Mnemosine, sugeriu uma narrativa histórica essencialmente visual. Mais recentes, os trabalhos de Hyden White (1998) e Robert Rosenstone (2010), bem como as discussões sobre eles feitas em sala de aula e com colegas de profissão, serviram de base para este artigo. Procurei evitar algumas questões postas por ambos, especialmente o debate sobre qual escola cinematográfica seria ideal para assentar as premissas da escrita da história, pois entendo que seja uma discussão posterior e com respostas variáveis a cada caso específico. A questão, ao final, não é fundir historiografia e cinema, mas aprofundar seus enlaces, intensificar a porosidade entre os dois campos, a fim de que o saber histórico acadêmico encontre

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ressonância e popularidade, cumprindo parte das ambições de transformação social inerentes à disciplina. Tratar do passado, transformar o presente. Acredito que os cineastas interessados em temas históricos têm muito a aprender com os historiadores. Mas é preciso entender que temos (nós, profissionais da história) muito que aprender com eles, especialmente sobre a forma de lidar com o passado a partir do presente, e das necessidades por ele impostas. Na era das imagens, as expectativas são visuais. A compreensão, mediada por imagens. E a formação cidadã passa pela crítica das fontes visuais, dando origem a novos leitores, eles também, críticos e ativos. Ficha técnica do filme Título original: Twelve years a slave Direção: Steve McQueen País: EUA Ano: 2013 Data de estreia: 30/08/2013 nos EUA e 21/2/2014 no Brasil Duración: 134 min. Elenco: Brad Pitt, Michael Fassbender, Chiwetel Ejiofor, Benedict Cumberbatch, Garret Dillahunt, Michael Kenneth Williams, Paul Dano, Paul Giamatti, Ruth Negga, Sarah Paulson, Scoot McNairy Distribuidora: Walt Disney Brasil

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