\"Two concepts of truth\": verdade e liberdade em \"Two concepts of liberty\"

July 27, 2017 | Autor: Tiago Macaia Martins | Categoria: Philosophy, Political Philosophy, Ethics
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Two concepts of truth1 Verdade e Liberdade em “Two concepts of liberty” Tiago Esteves Macaia Martins

Introdução - os dois conceitos de liberdade No seu ensaio “Two Concepts of Liberty”2, Isaiah Berlin propõe-se a examinar dois sentidos, a seu ver centrais, do termo liberdade: o negativo e o positivo. O sentido negativo responde à pergunta: “What is the area within which the subject – a person or group of persons – is or should be left to do or be what he is able to do or be, without interference by other persons?”3. O positivo, por sua vez, responde à pergunta: “What, or who, is the source of control or interference that can determine someone to do, or be, this rather than that?”4. O sentido negativo expressa-se na ideia de que a área de nãointerferência no meu espaço de actuação por outros indivíduos é directamente proporcional à área da minha liberdade. Assim, o sujeito em cheque neste sentido de liberdade não é o indivíduo que se pretende livre, mas antes o outro, ou os outros. O verbo, ou seja, o plano de acção ou de proibição de acção, é dirigido aos potenciais coactores. É neste sentido que se apelida de negativa: o foco não está no exercício da liberdade pelo sujeito, mas no espaço de actuação permitido pelo outro. Por outro lado, o sentido positivo parte precisamente do indivíduo enquanto ser que se auto-determina. Há de certo modo uma ideia de emancipação, uma ideia de capacidade, expressão da racionalidade humana, dirigida para ser algo. No presente estudo, em primeiro lugar, pretendemos identificar as raízes de distinção entre os dois sentidos de liberdade que Berlin propõe. Em Two Concepts of Liberty, o autor como que desenterra as raízes de um dos sentidos de liberdade, trazendo assim à luz o que alimenta esse sentido. Por isso, em 1 2 3 4

Estudo publicado em Direito & política / Law & politics, Loures, n.º 6 (Fev.-Abr.2014), p.96102. BERLIN, Isaiah, “Two Concepts of Liberty” in Liberty – Incorporating Four Essays on Liberty, Oxford University Press, Oxford, 2002 Idem, p. 169. Ibidem.

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segundo lugar, tentaremos semelhantemente trazer à superfície as raízes do outro sentido de liberdade, a “sarça ardente” intocada pelo autor nesse ensaio.

Os dois saltos À primeira vista, poder-se-ia pensar que a distinção entre os dois sentidos reside numa mera questão de perspectiva, como se estivéssemos a tratar de duas faces complementares da noção de liberdade. Berlin refere que, apesar desta primeira impressão, a distância entre os sentidos negativo e positivo se revela no seu desenvolvimento histórico como um abismo5. Assim, o autor apresenta dois saltos que o conceito positivo tomou no caminho de se colocar no pólo oposto do negativo. Vejamos, pois, se é nesses saltos que se encontra a distinção entre os dois sentidos de liberdade. Ambos os saltos se apresentam enquanto manipulação do conceito de indivíduo (self), manipulação a que Berlin chama de magical transformation6. O primeiro salto corresponde a uma cisão no conceito de self. O segundo corresponde a um alargamento desse conceito. Assim, em primeiro lugar, a noção de indivíduo, face à liberdade em sentido positivo, implica uma certa ideia de afirmação face ao meio envolvente: o indivíduo recusa-se à escravidão. Mas nesta afirmação está implicada, para além de uma espécie de carta de alforria (escrita pelo próprio punho do seu titular) dirigida aos outros e ao mundo envolvente, a ideia de emancipação sobre as paixões inferiores. E, na medida em que a questão da liberdade deixa de ser posta num plano político, para passar a ser posta num plano interior, ocorre aquilo a que Berlin chama de cisão do self. Pela cisão do self surge, por um lado, um self superior. Este representa aquilo que o indivíduo realmente quer, a sua vontade última. Por outro, um self inferior, com vontades casuais, inferiores, que em última análise prendem o self superior. Nesta lógica, o primeiro é concebido como o efectivo, o que deve ser tido em conta e protegido (real self). Por sua vez, o segundo, que tenta aprisionar o primeiro, deve ser eliminado e detido (empirical self). O self superior, o verdadeiro, deve subjugar e tentar eliminar o self inferior, 5 6

Cf. Op. Cit., pp. 178-179. Cf. Op. Cit. p. 181.

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meramente empírico, que o quer prender, e a prisão do inferior é a libertação superior. Em segundo lugar, a noção de indivíduo cindido sofre outra alteração: o alargamento. Agora o indivíduo é equiparado com determinados grupos de pessoas. Assim, a liberdade pode em última análise ser concebida no sentido de um grupo real subjugar um grupo empírico. No entanto, apesar de estes saltos serem apresentados enquanto característicos da noção positiva de liberdade, o próprio Autor nega que tenham um carácter inerente a esta, e acrescenta a possibilidade de se verificarem igualmente no sentido negativo de liberdade. Berlin aponta-os exclusivamente enquanto vicissitudes tendenciais decorrentes do sentido positivo de liberdade7. Temos, portanto, como excluída a hipótese de serem estes a raiz de distinção entre as duas acepções de liberdade.

A questão da verdade Qual o critério em função do qual se afirma que o sentido negativo e o positivo se encontram em pólos opostos, com um abismo entre eles? Já colocámos de parte que os saltos da cisão do self e do alargamento do mesmo fossem a base de distinção, porque são, ou podem ser, em última análise, comuns aos dois sentidos de liberdade. A tendência que o sentido positivo de liberdade assume para a cisão do self é, no entanto, um importante indicador do que julgamos estar em jogo, e é explicada por uma crença que se parece agregar de forma crónica à noção positiva de liberdade. Berlin inicia o capítulo VIII de “Two Concepts of Liberty” com a seguinte afirmação: “One belief, more than any other, is responsible for the slaughter of individuals on the altars of the great historical ideals […] This is the belief that somewhere, in the past or in the future, in divine revelation or in the mind of an individual thinker, in the pronouncements of history or science, or in the simple heart of an uncorrupted good man, there is a final solution.”8

7 8

Idem. Cf. Op. Cit. p. 212.

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Concentrando a sua crítica no sentido positivo de liberdade, Berlin aponta como magna doença civilizacional a crença numa “solução final”. Segundo o autor, esta crença é a principal responsável pelo extermínio de indivíduos “nos altares dos grandes ideais históricos”9. Analisemos o que Berlin pretende transmitir com a expressão “solução final”. O autor afirma esta crença baseada numa outra, a saber, a de que todos os valores positivos em que os homens acreditaram são necessariamente compatíveis10. Berlin dá-nos uma formulação mais exacta da ideia de “solução final” como “an apriori guarantee of the proposition that a total harmony of true values is somewhere to be found”11. Neste sentido, está em causa a crença numa unicidade da verdade dos valores, num cosmos ético que resultaria em harmonia na conformação da humanidade com aquela unicidade. Assim, na apresentação dos dois saltos e das restantes vicissitudes ligadas à liberdade no sentido positivo, tem-se por subjacente a crença numa harmonia final, ou pelo menos na sua possibilidade. E parece ser esta crença a alimentar essas mesmas vicissitudes, até ao ponto daquilo a que Berlin chama de “manipulação da definição de homem”12. Em suma, Berlin sustenta que a crença numa “solução final” gera a propensão para subverter a noção de homem. Por um lado, dividindo-o entre a parte de si “verdadeira”, que se enquadra naquela “solução”, e a parte de si “empírica”, que não. Por outro, alargando a noção anterior de self a um grupo de pessoas, para deste modo dividir entre os enquadrados e os recalcitrantes. É de grande relevância a afirmação de Berlin a este propósito: “conceptions of freedom directly derive from views of what constitutes a self”. E acrescenta: “Enough manipulation of the definition of man, and freedom can be made to mean whatever the manipulator wishes”. Por um lado, parece-nos claro que, alterando a definição de homem, manipulamos o conceito de liberdade. Mas, por outro, percebemos que Berlin aponta como causa mais profunda destas subversões do conceito de homem a crença numa “solução final”. As subversões parecem então mover-se partindo 9 10 11 12

Idem. Ibidem. Cf. Op. Cit., p. 213. Cf. Op. Cit., p 181.

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daquela mesma crença, o que indicia uma ligação profunda entre a crença numa solução final13 e o sentido positivo de liberdade, sendo a primeira a alimentar o segundo. Não nos parece portanto que a análise do Autor tenha como primeiro fundo a questão da perspectiva face à liberdade. Essa questão é decorrente de uma outra tensão, que diz respeito a dois sentidos de verdade. Os pólos estabelecem-se em primeiro lugar em função da questão da verdade, mais especificamente, da verdade moral, e apenas secundariamente em função da liberdade. Como vemos, a questão da ligação profunda entre a “solução final” e o sentido positivo de liberdade é levada a ponto de Berlin demonstrar que este conceito se sustenta tendo como base aquela crença. Ou seja, e em resumo, a crença numa “solução final” tende a distorcer o conceito de indivíduo no sentido do seu direccionamento face a essa “solução”. Essa crença, por sua vez, gera e dá significado à noção positiva de liberdade. O que se afigura curioso em “Two Concepts of Liberty” é o silêncio quase absoluto de Berlin face à possível ligação entre o sentido negativo de liberdade e um outro sistema de verdade. Se Berlin expõe as raízes do conceito positivo de liberdade, para revelar as vicissitudes da manipulação do conceito de homem nesse âmbito, não poderão igualmente surgir outras vicissitudes ligadas à liberdade no sentido negativo, se a analisarmos pela raiz? Na crítica à ideia de “solução final”, o Autor sugere-nos um outro sistema de verdade, a saber, o pluralismo: “Pluralism, with the measure of 'negative' liberty that it entails, seems to me a truer and more humane ideal than the goals of those who seek in the great disciplined authoritarian structures the ideal of 'positive' self-mastery by classes, or peoples, or the whole of mankind.”14

No entanto, como vemos, este sistema de verdade, que se constitui na crença de que não há “solução final”, não se apresenta simplesmente enquanto crítica à crença anterior. Antes, é sugerido como ligado inevitavelmente ao

13 Que Berlin afirma ser demonstravelmente falsa. Cf. Op. Cit., p.214. 14 Cf. Op. Cit., p.216.

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sentido negativo de liberdade, ao mesmo tempo que Berlin o classifica como “truer” e “more humane”. Percebemos então que, subjacente à polarização entre os sentidos positivo e negativo de liberdade, nos é apresentada uma outra, correspondente também aos pólos de um sentido positivo e negativo de verdade moral. Enquanto que um se aproxima de uma ideia monista dos valores morais, no sentido da unificação daquilo que importa na vida, o outro tenta afastar-se de qualquer comprometimento com um determinado sistema, acabando no entanto por, nessa medida, se constituir como um sistema em si, a saber, o pluralismo, a crença de que não existe uma ideia única do que importa. Berlin alertara-nos para o perigo de uma sistema de verdade na definição de homem e na definição de liberdade. Deste modo, questionamonos por que razão defende um sistema de verdade sem analisar as possíveis vicissitudes do mesmo no conceito de homem e, consequentemente, no conceito de liberdade, como fez quanto ao outro sistema de verdade. No pluralismo de Berlin vislumbramos a tal sarça ardente a que nos referimos na introdução, venerada de pés descalços e da qual o autor não ousa descobrir as raízes. Propomo-nos em seguida a indagar, de modo mais exploratório do que sistemático, de que forma se poderá conceber o indivíduo na base deste sistema pluralista, e, ao mesmo tempo, ponderar se este sistema será ou não de certo modo propenso a subversões do conceito de liberdade e de homem. A negação do conceito de “ultimate value” Partamos da base kantiana do pluralismo de Berlin: “In the name of what can I ever be justified in forcing men to do what they have not willed or consented to? Only in the name of some value higher than themselves. But if, as Kant held, all values are made so by the free acts of men, and called values only so far as they are this, there is no value higher than the individual.”15

Berlin funda o seu pluralismo na ideia de que os valores são criados pelo 15 Cf. Op. Cit., p. 184. Não cabe neste estudo uma discussão sobre os méritos da interpretação que Berlin faz de Kant. Cumpre-nos antes avaliar a argumentação de Berlin nos seus próprios méritos.

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indivíduo enquanto ser livre, partindo desse ponto para justificar o indivíduo enquanto valor supremo, ou último (“there is no value higher than the individual”), sendo ele o criador desses mesmos valores. Se os valores são criados por actos livres dos homens, ou seja, através da liberdade do indivíduo, de que forma o indivíduo ou a liberdade em si poderão ser tomados como um valor último? O valor é criado pela liberdade do indivíduo, ou seja, pelo indivíduo na sua liberdade16; o indivíduo e a sua liberdade são, neste sentido, entendidos como a fábrica valorativa, a origem e causa do deôntico. Assim, se no plano da razão o indivíduo e a liberdade precedem a criação de valores, então não podem ser o valor último (ultimate value), são pré-valorativos. O valor que eventualmente assumirão será sempre derivado da sua própria actuação, isto é, constituído a posteriori. Esta construção nega assim o próprio conceito de um valor último, num apriorístico ou autónomo da vontade humana. Nesta perspectiva, é precisamente o indivíduo que, na sua liberdade, define qual o valor último17. É incidental, não necessário, a liberdade ou o indivíduo tomarem o lugar de valor último numa determinada escala valorativa individual18. Voltemos à premissa: só se pode forçar os homens a algo que não quiseram ou consentiram em nome de um valor mais alto do que eles mesmos. Como vimos, Berlin utiliza o argumento de os valores serem criados pela liberdade do homem para afirmar que não há valor mais elevado do que o indivíduo. Daí concluiríamos que não se pode forçar os homens a nada, porque para isso teria de haver algum valor mais alto do que eles próprios – se todos são iguais a coerção não é possível. No entanto, demonstrámos que, sendo os valores criados na íntegra pelo indivíduo na sua liberdade, nem o indivíduo nem a sua liberdade são valores a priori (ou de natureza última propriamente dita). A afirmação do autor sobre a moralidade, de que “all values are made so 16 O facto de afirmarmos simultaneamente que os valores são criados pelo homem na sua liberdade e pela liberdade do homem não deseja expressar que os julguemos como sinónimos, mas tão somente expressar a ideia da produção valorativa enquanto resultante daqueles dois elementos. 17 Note-se que aqui o sentido de “valor último” já significa um valor derivado da liberdade e do indivíduo. Será um valor a posteriori face aos actos de liberdade, uma vez que a própria noção de valor proposta em Berlin implica essa posterioridade. 18 E, ainda que assim fosse, saber qual destes valores ocuparia a posição de ultimate value, (se a liberdade, se o indivíduo) traria consequências bastante distintas.

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by the free acts of men”, revela-se como a premissa fundamental do pluralismo moral proposto. Ao colocar a liberdade num plano racionalmente anterior à moralidade, e num plano criador dessa mesma moralidade, o autor afirma um determinado estatuto moral à liberdade. Perceba-se

então

que,

nesta

afirmação

de

Berlin,

não

está

simplesmente em causa uma determinada perspectiva sobre a verdade moral, mas antes uma concepção basilar de liberdade, que se introduz na política de forma tão avassaladora como a noção de liberdade enquanto “obediência a uma lei”. Se uma concebe a liberdade enquanto sujeição a um determinado padrão, a outra concebe a liberdade na negação de um padrão. Como veremos, esta noção não é neutra de perigos, nem para a Ética nem para a Política.

A moeda não cambiável Suspendamos provisoriamente a crítica à validade do raciocínio subjacente e consideremos que o indivíduo, na sua liberdade, é o “ultimate value” em função da sua posição face à génese dos valores. Nesta perspectiva, há que proceder a uma distinção: quando se afirma que o indivíduo é o valor último, podemos estar a referir-nos a pelo menos duas possibilidades diametralmente opostas. Uma delas corresponde à situação de o valor do indivíduo ser apenas um, e transversal a todos os indivíduos, no sentido de representar um único sistema ético comum a todos. Assim, cada indivíduo tem de reconhecer no outro esse mesmo valor. A outra possibilidade corresponde a cada indivíduo ser o valor último do seu próprio sistema ético. Ou seja, se cada indivíduo é o único produtor de valores e os próprios valores apenas são tomados como tais enquanto produção do indivíduo na sua liberdade, em cada indivíduo há um sistema ético. Neste sentido, enquanto criador, o indivíduo19 seria a referência última e, assim, o seu valor não seria, digamos, exportável para outros sistemas, uma vez que o indivíduo não só produz a “moeda” como tem um “sistema cambial” próprio. É uma constituição, do ponto de vista ético, totalmente fechada. 19 Note-se que não nos referimos a indivíduo enquanto noção geral, mas sim enquanto noção particular. Cada indivíduo seria em si próprio um ultimate value.

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É no entanto curioso que Berlin sugira a segunda possibilidade, a de cada indivíduo ser o valor último, mas infira a consequência da primeira, a de cada indivíduo ter de reconhecer no outro o seu valor. Se os valores advêm da liberdade (actos livres) de cada indivíduo, daqui decorre que a legitimidade do valor de cada um é posta em causa no outro quando não coincida com a escala valorativa deste segundo, uma vez que também este tem um sistema ético legitimado pela sua própria liberdade. Ou seja, sendo cada indivíduo o único criador de valores, é absolutamente incidental que no valor fundamental dos criados pela sua liberdade se encontre o dever de respeitar a liberdade alheia. Tomar isso como necessário seria admitir uma criação de valores independente do indivíduo.

Todos iguais, todos diferentes Dir-se-á que decorre da racionalidade humana o reconhecimento do outro enquanto semelhante, e que neste reconhecimento está implicado o dever de respeitar o outro enquanto ser livre. Analisemos esta argumentação. O primeiro factor que devemos ter em conta é que admitir ou reconhecer o outro enquanto semelhante, através de um ou vários processos mentais de identificação e reconhecimento, depende do critério adoptado. Por exemplo, se o critério de semelhança é estar vivo, eu sou, segundo creio, e enquanto escrevo, semelhante a qualquer outra planta viva, cão vivo, ou professor universitário vivo. Já quanto a identificar e reconhecer o outro como livre (pelo menos no sentido de criador de valores), a situação problematiza-se (como observar a liberdade?). Mas partamos do princípio de que cada indivíduo, na sua racionalidade, identifica o outro enquanto ser livre e que, nesta medida, o reconhece como semelhante a si. A este

propósito,

chamamos

a

atenção

para

o

facto

de

o

reconhecimento de uma semelhança (identificação) não implicar um dever de respeito, por não haver nenhuma intersecção necessária dos dois planos, ainda que o elemento de semelhança possa ter valor para mim. Se assim fosse, e utilizando o exemplo anterior, se eu estou vivo, e se dou valor a esse facto, decorrerá do processo de identificação sob o critério de semelhança “estar vivo” o dever de não matar qualquer outro semelhante? A semelhança é 9

encontrada no plano da interpretação factual, o dever encontra-se no plano do deontológico. De que forma poderia afirmar um em função da mera verificação do outro? Neste momento, dá-se por terminada a suspensão provisória da nossa crítica inicial ao indivíduo livre como “ultimate value”, uma vez que até por linhas de argumentação alternativas a questão revela-se inconsequente. Se é a liberdade de cada um, e somente ela, o instrumento de criação de valores éticos, esta é, mais uma vez afirmamos, prévia à ética e à moral. Neste sentido, reconhecer o outro, na sua liberdade, como semelhante só terá implicações éticas no caso de o indivíduo em causa ter criado para si mesmo um valor relativo à liberdade alheia que se sobreponha às outras determinações da sua liberdade. Não há, neste sentido, qualquer implicação ética necessária naquele reconhecimento, porque isso equivaleria a admitir um valor não gerado pela liberdade individual, a saber, uma coerção interna, uma quebra na, digamos assim, liberdade negativa interna20. E, como vimos, o plano de acção em causa é o da criação de valores, em que se admitiu (de acordo com a perspectiva do autor) não ser possível a coerção, uma vez que, por definição, um valor só existe em função de uma acto de liberdade21. Segundo este raciocínio, não é possível falar-se em dever natural, ou naturalmente imposto. Assim, afirmar que um dever possa decorrer da racionalidade humana, é, do mesmo modo, admitir uma determinação externa do plano valorativo, e negar assim o carácter a posteriori e intrínseco dos valores morais face à liberdade.

Conclusão Berlin, no seu “Two Concepts of Liberty”, demonstra o abismo entre os dois conceitos de liberdade recorrendo à ligação profunda entre a crença numa “solução final” e o conceito de liberdade no sentido positivo, alertando, ao mesmo tempo, para as vicissitudes de tal crença no conceito de homem na própria liberdade. Por outro lado, chamámos a atenção para o facto de o autor

20 Ou seja, uma diminuição da área de autodeterminação individual no que diz respeito à criação de valores, provocada por um elemento coercitivo. 21 Ou enquanto ato de liberdade.

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propor um modelo alternativo, o pluralismo, associando-o ao conceito negativo de liberdade. A discussão das possíveis vicissitudes do pluralismo, que funda e alimenta, por sua vez, o sentido negativo de liberdade, parece-nos inaceitavelmente ignorada por Berlin, e a sua “sarça ardente”, ao contrário da que Moisés presenciou, parece de facto consumir-se desde a raiz. Se a “solução final” transforma a liberdade num aprisionamento, o pluralismo de “Berlin” impede a liberdade política enquanto categoria ética22. Ao dar tanto à liberdade, tira-lhe tudo. Pois o que sobrará da minha liberdade se, enquanto valor, estiver à mercê da vontade de todos os outros? E, a propósito, se o valor da liberdade de cada um23 não for “cambiável”, não se traduzirá isto numa inconsequência da discussão da própria liberdade enquanto fim24 humano? Sendo assim, não excluiremos a liberdade do campo da Política, que, como Berlin nos recorda25, trata dos fins humanos? E, quem sabe, pela consequência deste raciocínio para todos os outros valores, não

22 23 24 25

No sentido de ter algum estatuto moral necessário e aplicável inter-individualmente. E talvez, por extensão do princípio, todos os outros valores individuais. Fim, ou seja, aquilo que vale perseguir. Cf. Op. Cit., p.166.

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