Um acervo de moda em São Paulo: a experiência da Casa Juisi.

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2015

UM ACERVO DE MODA EM SÃO PAULO: A EXPERIÊNCIA DA CASA JUISI. A fashion costume collection in São Paulo: the experience of Casa Juisi.

Priscila Rezende Carvalho (USP)

Resumo: Os acervos de moda são importantes espaços de documentação, pesquisa e preservação da memória de criadores e dos costumes de uma cultura. Ainda que o tema esteja recebendo mais atenção, essas iniciativas ainda são raras em São Paulo. Este artigo discute a experiência de constituir e manter um acervo de moda pelo estudo de caso da Casa Juisi. São apontados carências e desafios do investimento nesse tipo de documentação de moda, visando futuras abordagens. Palavras-chave: acervo de moda, Casa Juisi, São Paulo. Abstract: Fashion costume collections are important spaces for documentation, research and preservation of the memory of creators and of the mores of a culture. Even though studies about the theme have gained more attention, these initiatives are still rare in São Paulo. This paper discusses the experience of constituting and keeping a fashion costume collection through the case study of Casa Juisi. Challenges and benefits of investing in this kind of fashion documentation are pointed for future approaches. Keywords: fashion collections, Casa Juisi, São Paulo.

Introdução “Fazendo perguntas aos documentos e prestando atenção às respostas, podese ter o privilégio de auscultar almas mortas e avaliar as sociedades por elas habitadas. Se rompermos todo contato com mundos perdidos estaremos condenados a um presente bidimensional e limitado pelo tempo; achataremos nosso próprio mundo” Robert Darnton

Ao considerar a moda, como fez Gilles Lipovetsky em “O império do efêmero” (2009), como um fenômeno das mudanças sociais, não relacionado a nenhum objeto específico, admitese que ela está expressa em uma vasta gama de artefatos, de objetos que materializam essas mudanças. Entre eles, revistas, fotografias, livros, pinturas e, principalmente, trajes e peças de vestuário e adorno que, responsáveis por estetizar a individualidade e coletividade dos sujeitos, são as formas mais fortes de expressão da moda. Não se atendo a objetos específicos e tendo a efemeridade em sua natureza de fenômeno social, o registro e documentação da moda torna-se um desafio. Principalmente no Brasil, cuja ISSN: 2358-5269 Ano II - Nº 1 - Maio de 2015

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herança de reprodutor de hábitos, costumes e gostos estrangeiros torna necessário confrontar a ideia de unicidade que temos da historiografia da moda (ANDRADE, 2006, P. 72) e buscar, na investigação, organização e comunicação das especificidades dos nossos eventos, formas de enriquecer a história e a cultura da moda nacional. No Brasil, os acervos de indumentária podem ser encontrados no Museu Histórico Nacional (MHN), no Museu Paulista (MP), no Museu Imperial de Petrópolis, no Museu Carmem Miranda e no Museu de Arte de São Paulo (MASP), além de dois museus já serem dedicados relevantemente ao tema da moda: o Museu do Traje e do Têxtil da Bahia e o Museu de Hábitos e Costumes da Fundação Cultural de Blumenau (BONADIO, 2014). Este artigo propõe, de forma preliminar, a investigação de acervos de trajes de moda em São Paulo, justificada pela importância socioeconômica da cidade no mercado de moda e a escassez de espaços voltados para esse tipo de atividade. É saliente a necessidade de mapear e refletir sobre outros espaços que possam acrescentar às pesquisas e ao desenvolvimento da história e da cultura de moda em seus diversos momentos. Os acervos de trajes no Brasil são poucos e reduzidos, e também sofrem de certo desprestígio diante das “fine arts” – o acervo do MASP, por exemplo, é um dos maiores e conta com cerca de 100 peças, apenas (BONADIO, 2014). O espaço adotado para essa análise foi a Casa Juisi, localizada no centro de São Paulo. O que, a princípio, era apenas um brechó e tinha o comércio de roupas como atividade principal, encontra-se em fase de transição, objetivando a conservação de peças valiosas adquiridas ao longo do tempo. A atual situação da Casa Juisi suscita questões pertinentes para reflexão sobre a problemática da constituição e manutenção de acervos de trajes em nosso contexto. A coleta de dados foi realizada por matérias na mídia, uma visita ao espaço, registros fotográficos e uma entrevista com um dos sócios e criadores da casa. O objetivo é contribuir com a discussão sobre a importância desses espaços para a herança cultural da moda, tanto para São Paulo quanto para o país, compreendendo a moda como materialidade mas também transcendendo esse aspecto, considerando-a elemento inseparável do universo sociocultural (ANDRADE et al., 2013). Moda e cultura material A durabilidade dos artefatos costuma ultrapassar a vida de seus produtores e usuários originais, característica que já os torna aptos a expressarem o passado de forma profunda e sensorialmente convincente (MENESES, 1998). Uma cultura largamente voltada para a produção ISSN: 2358-5269 Ano II - Nº 1 - Maio de 2015

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de objetos – produção e substituição acelerada dos mesmos – acumula amplamente resquícios desse tipo, que portam os sentidos das necessidades que uma vez supriram, dos usos aos quais foram submetidos, conectando o visível ao invisível entre espaços, tempos e realidades distintas. Os artefatos em si são as propriedades físico-químicas, ou seja, formas geométricas, peso, cor, textura, entre outros atributos. No entanto, ao deslocarem-se para as relações sociais, são atribuídos de sentidos relacionados à seleção, à produção, à circulação e ao consumo desses sentidos, de acordo com dado momento histórico (MENESES, 1998). Nos estudos da cultura material, o foco sobre o papel social das coisas leva à análise dos materiais, das tecnologias e das circunstâncias da feitura de um objeto (produção), seu uso (normalmente chamado de ‘consumo’ na antropologia e nos estudos da cultura material), e seu descarte. As medidas tomadas para assegurar a preservação de um objeto podem ser vistas como um estágio do consumo, ou como uma forma de descarte, dependendo se o analista vê o museu como lugar de descarte ou de novo consumo (EASTOP, 2006, p. 121).

Os objetos materiais tem uma história, uma biografia que, deslocada para os espaços de conservação, não a eliminam, pelo contrário, o objeto continua imbuído da alma que apreendeu socialmente, carregando discursos diversos. Um objeto cujo discurso atesta importância histórica é caracterizado de duas formas: pela categoria sociológica de objeto histórico e a categoria cognitiva de objeto histórico, suporte físico da informação (MENESES, 1998). No caso dos trajes, o significado social se expressa tanto pela estética quanto pela ligação intelectual e afetiva com o usuário, não reduzido ao estático da plasticidade e envolvendo o movimento do corpo (VOLPI, 2013). É essencial então que os estudos da cultura material ultrapassem os próprios materiais, em busca de fontes escritas, orais, hábitos etc., que complementem a biografia dos objetos, e forneçam informações para as questões do observador, sejam elas de ordem material ou não da produção e reprodução social de culturas (MENESES, 2003). Enquanto memória, a roupa resgata lembranças do tempo e a construção social da qual fez parte, seguindo outras modalidades que não a dos apelos mercadológicos e ganhando sobrevidas (VOLPI, 2013). Objetos fabricados nascem de necessidades humanas e são meios de entender essas necessidades, sobre a passagem do tempo, a tecnologia, as estratégias de uso, de poder, de luta e de prazer no cotidiano (PORTELA, 2014). Ao convergir o pensamento sobre a cultura material e sobre a moda, Rita Andrade (2006), levantou questões essenciais sobre as formas de documentação e de narrativas dos eventos da moda, da sua constituição material e da necessidade de investigação para atribuí-la de significados simbólicos condizentes. ISSN: 2358-5269 Ano II - Nº 1 - Maio de 2015

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Analisar um vestido não é o mesmo que analisar sua fotografia ou sua descrição – enquanto objeto material, o vestuário tem características próprias, é um artefato singular. O que de certa forma entra em conflito com a noção serializada da moda, que em dados momentos, mulheres de diferentes lugares do mundo, em uma mesma época, adotaram o mesmo traje. A história têxtil, da moda e dos trajes não pode ser reducionista a ponto de apreender que a silhueta feminina evoluiu da forma de S para a forma H e que tecidos devam ser percebidos e estudados como papeis de parede (ANDRADE, 2006, p. 73).

A moda, quando de pretensões generalizantes que igualam pessoas e cenários de diferentes contextos socioculturais, como se sua adoção fosse inegável e uniforme por todos em todos os lugares, é apenas uma das narrativas possíveis sobre a história e a cultura, mas não a sua totalidade. Nas particularidades de cada artefato, em cada documento, é possível desvendar algo sobre a trajetória das coisas e seus impactos nos contextos aos quais pertenceram. Olhar o objeto fora do seu contexto dominante permite o estudo de diferentes camadas sociais e sociedades em que a lógica é diversa daquela do Ocidente, e oferece ao pesquisador maiores opções metodológicas (VOLPI, 2013). Isso pode ser percebido no trabalho de Maria Claudia Bonadio (2014) que, ao analisar a coleção produzida por artistas brasileiros para a Rhodia nos anos 50, que se encontra armazenada no MASP, pode inferir que: O que o interesse por tal coleção revela é que, ao reconhecermos que, no passado, produzimos uma moda que, ao invés de calcar-se exclusivamente na cópia e adaptação de elementos estrangeiros, explorou, ao menos em suas estampas, elementos associados à nossa "comunidade imaginada", talvez possamos dizer que nossa moda, ainda que recente, tem uma história, ou uma "representação do passado", preservada pelo museu (BONADIO, 2014, p. 64).

Implicações da constituição e conservação de acervos de trajes Dinah Eastop (2006) define a conservação de têxteis como medidas que visam a preservação material e mudanças posteriores que possam ser consideradas significativas, intervindo o mínimo possível e mantendo ao máximo a natureza original do objeto. Por verdadeira natureza entende-se que a origem, a construção original e os materiais que compõe o artefato e a tecnologia usada na manufatura são evidentes na observação do objeto, assim como acidentes e alterações que são parte de sua biografia, o que a diferencia da restauração, que trata do retorno do objeto à aparência e função originais, sobrepondo-se a esses possíveis acidentes. A conservação pressupõe capital cultural dos objetos – pressupõe valor simbólico. Para a autora, a conservação é uma prática que inclui a investigação, a preservação e a apresentação. ISSN: 2358-5269 Ano II - Nº 1 - Maio de 2015

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A investigação envolve o registro detalhado do objeto, examinando-o completamente e coletando amostras para análises químicas e instrumentais. Além disso, é necessária uma pesquisa contextual, coletando dados para a documentação do objeto ou da coleção que fundamente seu capital simbólico e existência social. Os artefatos têxteis, ainda de acordo com Dinah Eastop, são multimídia, de composições complexas: fibras diferentes compondo o mesmo fio, com passamanarias de outros materiais, acabamentos químicos e de cor. Cada uma dessas características faz parte da identidade do artefato e podem ser inspecionadas por análises de diferentes naturezas, quando o conhecimento contextual apenas não basta para descrever suficientemente o objeto. A preservação se refere a práticas de prevenção de danos, ou seja: reduzir a poeira sobre os objetos com a utilização de capas, evitar a contaminação por pragas, reduzir a incidência de luz etc., são consideradas práticas de preservação, assim como adaptações às condições ambientais específicas (EASTOP, 2006, p.54). Os processos de deterioração são diferentes em cada material e o conhecimento sobre esses processos permite que práticas adequadas sejam tomadas de acordo com a identidade do artefato. Com essas medidas, enfim, o objeto têxtil tem condições de ser exibido. Materiais como suportes e até os papeis envolvidos na armazenagem das peças podem causar interferências. “Alguns materiais podem afetar de maneira negativa a preservação dos têxteis, como por exemplo, o papel ácido que pode acelerar a corrosão de componentes metálicos” (EASTOP, 2006, p.56). A exibição ideal é em vitrinas (PERALES, 2006), ou de alguma forma longe do alcance do público protegendo-os da atratividade do toque, além de protegê-los da luz, da poeira e da poluição. A armazenagem de objetos têxteis é a etapa mais delicada, considerando que esses artefatos passam mais tempo armazenados do que em exposição (TRUPIN, 2006, p. 106). A armazenagem adequada, segundo a autora, protege os têxteis da luz, dos poluentes carregados pelo ar, dos insetos e das mudanças na umidade e na temperatura, buscando minimizar o manuseio e facilitar o acesso. Isso prevê um ambiente controlado e planejamento nos aspectos institucionais, no mobiliário, nas estruturas e nos métodos. É necessário saber qual o papel da coleção e com que frequência será exposta, considerando a disposição para empréstimos, para pesquisas, o tamanho e abrangência da coleção, a possibilidade de crescimento e em que ritmo, sendo imprescindíveis a catalogação ou um inventário. Quando não em exposição ou circulação, as peças ficam em reserva técnica, ou seja, padrões para armazenamento e localização também se fazem necessários para que, qualquer um, quando necessário, possa identificar e manejar os objetos.

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O mobiliário deve considerar as tipologias dos artefatos, seus tamanhos e materiais. Os custos do ambiente ideal para um acervo desse tipo são considerados, por vezes, proibitivos, por exemplo: o material ideal para o mobiliário é o metal recoberto de epóxi-pó, o que comumente é substituído por materiais alternativos, tais quais o aço galvanizado ou temperado, o alumínio, o acrílico, o vidro ou a madeira e derivados, mesmo que a madeira tenha propriedades negativas para os têxteis, como a liberação de ácidos (TRUPIN, 2006, p. 108). As condições ideais de armazenagem demandam espaço e materiais que exigem recursos, além de profissionais conhecedores da constituição física e química dos artefatos materiais e dos contextos que fazem de cada um deles peças com importância simbólica, que possam relatar suas biografias. A experiência da Casa Juisi em São Paulo A Casa Juisi está localizada em um casarão no centro da cidade, na Rua Roberto Simonsen, 108, próximo à Praça da Sé e à Rua 25 de março, regiões de comércio popular com incidências de descaso e abandono de imóveis e espaços públicos. Está identificada pela inscrição do nome dos três espaços que ali convivem: a Phosphorus (espaço de experimentação artística), a Sé (galeria de arte) e a Casa Juisi. A Casa Juisi originou-se de um brechó criado em 2003 pelos amigos e sócios Junior Guarnieri e Simone Pokropp. A empresa em que trabalhavam passava por dificuldades financeiras e os dois, informalmente, começaram a vender peças para os amigos e o “pessoal da moda”, na casa em que moravam. Depois de oito meses, abriram uma loja na Alameda Tietê, São Paulo, onde ficaram sete anos dedicando-se ao comércio das peças.

Imagem 1: Fachada do prédio, tombado pelo patrimônio histórico, com a identificação dos três espaços. Fonte: Priscila Rezende Carvalho, 2015.

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Com o acervo crescendo e o espaço insuficiente na loja, escolheram transferir-se para um prédio no centro de São Paulo, pois, além de mais barato e de fácil acesso, existia o fascínio de alugar um espaço abandonado para conservá-lo. O prédio em questão, que já foi o primeiro cartório da cidade, tem 1.000m² e data de 1890. São dois andares, ligados por uma escadaria de madeira: Maria Monteiro, responsável pela Phósphorus e pela Sé, ocupa o primeiro, e o acervo de trajes se encontra no segundo andar. A associação a projetos de arte não se limita a dividir e baratear o espaço, mas faz parte dos objetivos da casa de criar uma conexão sólida entre moda e arte. A relação entre moda e arte permitiu a aprovação no primeiro edital Rumos Moda e Design, em 2014, com a qual foi possível fazer a residência artística de dois profissionais, um sugerido pela Casa, e outro avaliado e escolhido por uma comissão, o que se repetirá também em 2015. Também no primeiro andar, um armário de madeira ocupa toda uma parede e pertence à construção original da casa. Hoje, é adornado com máquinas de escrever, saias vintages penduradas em cabides, relógios antigos, livros diversos e telefones de disco – um sortimento de objetos que remetem à passagem do tempo. No entanto, as paredes revestidas de arabescos em jacquard azul claro e pontos de luz evidenciam o cuidado em manter o lugar sem retirar-lhe a atmosfera de outra época. Fora do contexto de suas funções, os sapatos viram decoração para a parede, e os manequins exibem peças que não estão à venda.

Imagem 2: Escritório da Casa Juisi, onde foi realizada a entrevista com um de seus sócios. Fonte: Priscila Rezende Carvalho, 2015.

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A transferência da loja para um casarão no centro também está relacionada à busca por algo mais além do comércio de roupas: “A gente apostava muito nessa coisa de venda, venda... A gente queria algo mais, além de um brechó só de venda. Então, a gente começou a guardar muitas coisas importantes, de acervo. E o acervo lá era muito pequeno, era a sobreloja da nossa loja... Então a gente pensou ‘temos que ampliar isso urgente’” Junior Guarnieri, 20151.

Para Simone, a motivação está também na recuperação de cada época e o seu glamour, recuperar os fios, a costura, o trabalho manual, que é o que precisa ser valorizado no Brasil porque está disperso em épocas de fast-fashion (PHOSPHORUS..., 2014). A Casa atua em três frentes: recentemente, voltou a comercializar peças em um brechó no Jardins, mas, para tal, são selecionadas peças específicas. No acervo para locação e no acervo histórico, ainda em desenvolvimento, as peças ganham outras trajetórias.

Imagem 3: Uma das salas da Casa Juisi, onde são armazenados sapatos, malas, bolsas e peças de roupa em araras e armários. Fonte: Priscila Rezende Carvalho, 2015.

A atividade de locação das peças do acervo é o que traz rendimentos para a Casa: alugam para publicidade, cinema, moda, eventos, mas, nunca para festas: “Eu jamais locaria para uma festa, um vestido dos anos 20. Sabe, chega uma pessoa que vai numa festa... Claro que tem exceções, sabe, uma senhora, você sabe que ela é uma pessoa que não vai chegar lá e ficar dançando... Mas, normalmente... A pessoa vai transpirar, então, nossa, é muito difícil” J.G., 2015.

Em um acervo separado, mantido na casa de Junior, estão peças que não são locadas, pois tem valor histórico, de acordo com sua avaliação. O objetivo é adquirir e guardar, para

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Junior Guarnieri. Entrevista concedida. São Paulo, Brasil, março de 2015.

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documentação, peças de estilistas brasileiros que de alguma forma são interessantes para a história da moda brasileira, além de marcas como Burda e Fiorucci, de forma que se possa documentá-las. A expectativa é que ainda no ano de 2015 esse projeto comece a dar resultados, e seja voltado para a conservação e exposição de peças dessa divisão do acervo. “Um instituto que a gente está começando a criar... A gente ainda não sabe se é instituto ou associação, a gente está estudando os termos ainda. Estilistas brasileiros, principalmente os brasileiros, tipo Dener, Clodovil... e também marcas brasileiras, que tiveram um significado, para resgate histórico” J. G., 2015.

Sem apoio institucional, é o “amor” dos envolvidos pelo trabalho empreendido que tem mantido o acervo da mesma forma como começou. Quando começaram a vender as peças, um amigo que morava no Japão mandava peças japonesas para a mãe no Brasil, que trabalhava em um asilo no Sul. As peças eram compradas para serem revendidas, revertendo a verba para o asilo. Porém algumas eram consideradas muito boas para serem comercializadas, e eram guardadas para que decidissem, no futuro, o que fazer.

Imagem 4: Parte do acervo. Fonte: Priscila Rezende Carvalho, 2015.

Assim, foi surgindo o acervo que, hoje, após dez anos, conta com cerca de 35 mil peças. Eram também adquiridas peças em bazares no Sul, no Rio de Janeiro e em viagens ao exterior. Um trabalho de pesquisa e garimpo que levou a aquisições relevantes. Entre as quais, Junior cita o acervo da “Casa de Costumes”: “É um acervo de umas figurinistas de cinema. Uma está trabalhando com teatro, hoje em dia, a outra não está trabalhando nessa área mesmo... Deu uma cansada porque, realmente, é cansativo. A gente adquiriu delas umas 17 mil peças, por aí” J.G., 2015.

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O estilista Marcelo Sommer também doou um acervo de peças pois “não tinha onde guardar”. A falta de espaço e, talvez, recursos para cuidar das peças é um argumento frequente para a doação. Da mesma forma, foi adquirido um acervo de Mariajosé de Carvalho, atriz e professora de canto de notória carreira na capital paulista. Entre as peças do acervo histórico, estão itens de Dener, Clodovil, Markito, Ney Galvão, Madame Rosita e Guilherme Guimarães. Por enquanto, peças avaliadas com maior valor histórico estão indisponíveis para qualquer tipo de negócio. A Casa já negou emprestar peças para fotos com a artista Marina Abramovic e para uma capa da Vogue, que celebraria os 40 anos da revista no Brasil e os 20 anos de carreira de Gisele Bündchen. “Queriam uma capa minha de um show da Rita Lee para vestir a Gisele

Bündchen em uma revista de 40 anos da Vogue, e 20 anos de carreira da Gisele. Eu não emprestei. Essa capa iria para Nova Iorque para uma foto lá. Eu não confio, extravia. [...] Eu prefiro deixar essa capa aqui e um dia expor ela em uma exposição do que liberar para uma foto. Tudo bem, é uma foto importante, mas, eu acho que seria mais importante guardar ela pra uma exposição” J. G., 2015.

Os critérios para aquisição dependem do destino que darão à peça: comércio, acervo para locação ou acervo histórico, mas, de forma geral, as peças devem ser vintages, realmente antigas, e não roupas do dia-a-dia: “As pessoas me ligam ‘ah, estou com um monte de coisas aqui, quer comprar?’. Tá, mas o que é que você tem pra vender? Às vezes a pessoa liga lá do Morumbi pra mim: ‘tenho um monte de coisa incrível, coisa nova, nunca usei’. Se você me falar ‘nunca usei’, então, para mim não interessa” J.G., 2015.

O responsável afirma saber, de cabeça, cerca de mil itens que são necessários com certeza, então, quando aparecem, ele sempre aceita. O acervo para locação é composto de réplicas dos séculos XVI, XVII, XVIII e algumas originais do século XIX, como camisolas. Porém, se concentra, principalmente, em réplicas e originais entre 1920 e 1990. Cada caso de locação é tratado de forma particular: “Eu tinha um outro corset que era mais legal que esse, mais trabalhado, mais cheio de detalhes. Eu aluguei para um cara, que nunca tinha vindo aqui, mas que era de confiança, um figurinista que me indicou, que falou ‘olha, ele vai pra Manaus, mas vai voltar, pode confiar. O cara locou, levou, e a mala extraviou. O que acontece? Ele não tem culpa... Mas e eu, como fico nessa? Perdi uma peça que era do século XIX. Eu não vou ter a reposição dela, ele não vai conseguir encontrar outra pra mim” J.G., 2015.

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Esse outro corset do século XIX fica pendurado na antessala logo após a escadaria, ao lado de trajes infantis de marinheiro, sapatilhas de bailarina e fotos em preto e branco, em paredes adornadas de folhas, flores e galhos secos.

Imagem 5: Parede da antessala da Casa Juisi, decorada com um corset do século XIX e outras peças consideradas de valor histórico. Fonte: Priscila Rezende Carvalho, 2015.

O local não conta com um profissional em têxteis e conservação. No entanto, atêm-se a algumas dicas que pessoas conhecedoras de técnicas passaram ao longo desses anos. As araras são cobertas com um tecido para proteger as peças da luz e da poeira. Entre as práticas, está a higienização. As peças mais delicadas são lavadas pelo próprio colecionador, à mão. Peças que devem ser lavadas a seco são mandadas para uma lavanderia. O acervo histórico, mantido na casa do colecionador, também não está dentro dos ideais de conservação – estão protegidas por capas, o que não considera a respiração necessária para alguns materiais, a temperatura e outras variáveis, condição da qual Junior tem consciência. A tentativa de organizar-se está também em tentar buscar verbas ou apoio institucional para melhorarem as condições de manutenção do acervo. No momento, ocupam-se dessa manutenção, principalmente, Junior, um assistente e, às vezes, alguns estagiários de moda. O que faz com que a memória dos dois atuantes seja indispensável para o manejo do acervo, visto que não conta com catalogação, apenas uma organização por tipologia das peças. Mesmo a sócia Simone, responsável pela parte mais burocrática do trabalho na Casa, apesar de conhecer as peças, não saberia a localização de todas. Considerações Finais Dentro do acervo da Casa Juisi, uma quantidade impressionante de peças, organizadas por tipologias e proximidade, se empilham, se enfileiram, se combinam e descombinam em caixas, ISSN: 2358-5269 Ano II - Nº 1 - Maio de 2015

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malas, gavetas. A experiência da casa revela a dificuldade de atuação com acervos, dentro dos ideais propostos por pesquisadores da área de conservação, sem respaldo institucional. É uma iniciativa ainda centrada nas figuras dos proprietários da casa que, em busca de propor experiências estéticas além do comércio, e guiados pelo fascínio pelas peças, acabaram por constituir um acervo. Esse momento de transição levanta discussões que convergem com o processo composto por investigação, preservação e exposição de peças propriamente exposto nesse artigo, em que peças são deslocadas da sua função comercial – seja na venda ou na locação – para a sua função aurática, passando pelo processo descrito. Um dos fatos lamentados pelo colecionador é a falta de cultura de acervos e documentação de moda, revelada na narrativa da constituição do acervo, em que algumas doações foram feitas porque seus proprietários não tinham espaço e, portanto, precisavam de um lugar. As histórias dos artefatos ali presentes vão além dos nomes dos costureiros ou do período histórico ao qual pertencem. Nesse quesito, esse estudo pode e deve ser continuado: mapear peças cuja biografia possa ser reveladora de particularidades da história da moda em São Paulo, da história de seus criadores e seus usuários, dos espaços em que foram comercializados e da continuidade de sua existência agora como objeto histórico – um enredamento de sentidos é possível a partir dos itens em acervos desse tipo. Sugere-se que novos estudos sejam feitos no próprio acervo da Casa Juisi, buscando a biografia de suas peças históricas, atividade de investigação ainda não realizada. Também é proposto que outros espaços do tipo sejam mapeados e investigados para desenhar um panorama das possibilidades de acervos de têxteis, trajes e outras formas de documentação da moda em São Paulo, em busca de uma moda menos reducionista em seus aspectos históricos e mais reveladora das heranças culturais que carrega. Referências ANDRADE, R. Por debaixo dos panos: cultura e materialidade de nossas roupas e tecidos. In: PAULA, Teresa Cristina Toledo de (Org.). Tecido e sua conservação no Brasil: museus e coleções. São Paulo, Museu Paulista - USP, Universidade de São Paulo, 2006. ______ CUNHA, A. K., NOVAES, M., PENNA, G. O., Fashion and Cultural Heritage in Perspective: Ist Seminar on History and Historiography of Fashion and Dress. AlmaTourism. N. 7, 2013, p. 157 – 161. BONADIO, Maria Claudia. A moda no MASP de Pietro Maria Bardi (1947-1987). An. mus. paul., São Paulo, v. 22, n. 2, Dec. 2014 . Disponível em: ISSN: 2358-5269 Ano II - Nº 1 - Maio de 2015

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ISSN: 2358-5269 Ano II - Nº 1 - Maio de 2015

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