Um almofariz itálico com \"marca de oleiro\" de M.Cimonius Saturninus, de Lisboa

July 23, 2017 | Autor: R. Banha da Silva | Categoria: Roman stamped pottery, Ceramica Romana, Roman Archaeology
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UM ALMOFARIZ ITÁLICO COM “MARCA DE OLEIRO” DE M.COMINIVS SATVRNINVS, DE LISBOA Rodrigo Banha da Silva

Estudos e relatórios de Arqueologia Tagana, 4

LISBOA 2015

UM ALMOFARIZ ITÁLICO COM “MARCA DE OLEIRO” DE M. COMINIVS SATVRNINVS, DE LISBOA

Rodrigo Banha da Silva (CAL-CML; CHAM-FCSH/UNL e UAç) [email protected]

1.

Introdução.

O presente estudo incide sobre um elemento singular, um fragmento de almofariz em fabrico do Centro da Península Itálica que conserva “marca de oleiro”, recolhido em Lisboa. Poderá questionar-se com justeza sobre o interesse e pertinência da publicação de um elemento desta natureza, isolado, oriundo de um ponto arqueológico da cidade para o qual as informações contextuais estratigráficas são escassas, e insuficientemente trabalhadas até ao momento, o jardim do Palácio dos Condes de Penafiel. Os fundamentos são múltiplos, e carecem de ser expostos de seguida, de maneira sintética. Em primeiro lugar, o estudo dos almofarizes vêm constituindo um domínio de especialidade no âmbito da ceramologia romana nas últimas décadas (vide, por exemplo, Tyers, 1996), e este interesse especial fundamenta-se não apenas por serem facilmente identificáveis, como na informação de cariz económico e cronológico associada que estes elementos proporcionam, mas também porque a investigação lhes reconhece alta valia para o estudo da dinâmica de aquisição de hábitos culturais itálicos, no caso gastronómicos, e sua difusão nos âmbitos geográficos provinciais. Em sentido diverso, o “sítio” do jardim do Palácio dos Condes de Penafiel, sobre o qual tão pouco se sabe, encerra problemáticas de interesse supletivo para a leitura do urbanismo de Felicitas Iulia Olisipo, a despeito de ter sido escavado sob a direcção de António Dias Diogo há longa data, entre Março de 1992 e Maio de 1993. Assim, e apesar de se tratar de um elemento individualizado, pretende-se acrescentar um pouco mais ao conhecimento sobre as realidades exumadas no local, chamando a atenção para a sua importância. Por fim, e apesar do manifesto interesse da investigação portuguesa sobre os almofarizes, onde se destacam José Carlos Quaresma (2009, entre outros), Inês Vaz Pinto (Pinto, 2006, entre outros) e Rui Morais (2004, entre outros), a incidência maior tem recaído nas produções sudhispânicas tardo-republicanas e posteriores, porque muito mais correntes nos registos arqueológicos ocidentais da Península Ibérica. O elemento presente, centro-itálico, vem desta forma ampliar o conhecimento do panorama da difusão dos almofarizes com esta origem para este contexto geográfico específico, na aparência mais pobre por comparação com outras áreas penisulares, casos do restante espaço tarraconense (Pérez González e Férnandez Ibáñez, 1989; Aguarod Otal, 1991) e também acrescentar uma “marca de oleiro” às três já antes repertoriadas em território português.

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2. Descrição e “enquadramento contextual” possível. A intervenção arqueológica conduzida sob a direcção de António Dias Diogo no jardim do Palácio dos Condes de Penafiel foi despoletada pela intenção de construção e intalação no subsolo do local de um parqueamento automóvel subterrâneo de apoio ao edifício. Num período peculiar da história da prática arqueológica na cidade de Lisboa, o trabalho foi cometido à equipa camarária do extinto Gabinete Técnico do Teatro Romano, organismo dependente do Departamento de Património Cultural do Pelouro da Cultura da edilidade lisboeta. As razões desta escolha por parte do dono de obra, a Secretaria Geral do Ministério das Obras Públicas e a sua Direcção Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais, prenderam-se tão somente com a relação estabelecida um ano antes entre o organismo municipal e estes outros da administração central do Estado a propósito da remodelação e adaptação de um conjunto três prédios vizinhos ao Palácio Penafiel, destinados a albergar serviços daquele ministério. Como apontamento refira-se que foi no interior destes prédios que se identificaram, em 1991, restos monumentais dos grandes banhos públicos da cidade romana, as Thermae Cassiorum, continuamente escavados entre aquele ano e 1998, de igual modo sob a direcção de António Dias Diogo. Acrescente-se que, inacreditavelmente, os vestígios monumentais se encontram ainda hoje ao abandono no interior dos edifícios, de 1998 ao presente, a despeito do peso das entidades envolvidas (ou talvez por isso ...). Retomando o qualificativo anterior de “período peculiar” da arqueologia da cidade, e recordando as palavras de Carlos Fabião (1994), à época somente duas equipas operavam em Lisboa, uma camarária e outra ligada ao aparelho central do Estado. Nesta época os trabalhos decorriam mediante uma total aleatoriedade de competências, intervindo a equipa da edilidade em espaços tutelados pela administração central e sector empresarial do estado, como era o caso, como a equipa do ex-IPPC-IPPAR intervinha em obras da câmara de Lisboa; uns e outros acorriam a particulares (Idem). Esclarecendo um pouco acerca destes traços que um dia farão a história da arqueologia da capital neste período, todos os trabalhos arqueológicos foram dirigidos pelos investigadores que encabeçavam as equipas: Clementino Amaro, por vezes em co-direcção com elementos da equipa que dirigia, e Dias Diogo, sempre individualmente. Dentro deste panorama, e por razões complexas que não descortinamos totalmente, dos trabalhos arqueológicos executados no Palácio dos Condes de Penafiel não consta ou se conservam os registos gráficos ou descritivos nos actuais organismos da administração central ou autárquica, restando somente alguns (poucos) elementos e as indicações que acompanham as recolhas, em depósito no Centro de Arqueologia de Lisboa (CAL). Deles nos socorremos para o objecto em estudo, como da memória, dada a circunstância de termos dirigido no terreno os trabalhos e executado o respectivo registo estratigráfico dos mesmos entre Maio de 1992 e Maio de 1993, como fizemos antes para as “marcas de oleiro” na terra sigillata já antes estudada

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No caso presente, a escavação resultou na abertura em profundidade de uma quadrícula de 2m de lado, abarcando parte do quadrante NO (C) da quadrícula 5, e do quadrante SW (A) da quadrícula 9. O trabalho, executado em Dezembro de 1992, equivaleu a uma segunda fase dos trabalhos arqeológicos no jardim do Palácio dos Condes de Penafiel: após se exumarem todos as entidades presentes até à cota de afectação provocada pela construção do piso do parqueamento, a 1ª fase da intervenção no local, executou-se a escavação em profundidade das áreas ainda não trabalhadas de modo a permitir a instalação dos pilares da infa-estrutura, razão que justifica a referência contextual que acompanha o objecto em estudo. No caso, a tarefa incidiu sobre a estratigrafia que encostava pelo lado oeste à única construção romana identificado no local, um muro de contenção de terras que se encontra preservado, visível e integrado na garagem actual, numa “camada” que revelou, entre outros materiais, “cerâmica cinzenta fina” (1 ex.), alto-imperial, sigillata sud-gálica e africana clara A. Cruzando estes elementos com outros da mesma sequência que entretanto se abordaram em colaboração com Adriaan de Man (De Man e Silva, no prelo), o facto de aqueles em apreciação serem aparentemente anteriores aos que encerram cronologias do séc. VI d.C. explica, deste modo ainda que grosseiro, que a formação estratigáfica na qual se incluía o almofariz com “marca” de Saturninus encerra uma data forçosamente anterior, por hipótese contemporânea ou posterior a inícios-meados do séc. II d.C. por força da presença das elaborações africanas detectadas na unidade estratigráfica.No caso presente, a escavação resultou na abertura em profundidade de uma quadrícula de 2m de lado, abarcando parte do quadrante NO (C) da quadrícula 5, e do quadrante SW (A) da quadrícula 9. O trabalho, executado em Dezembro de 1992, equivaleu a uma segunda fase dos trabalhos arqeológicos no jardim do Palácio dos Condes de Penafiel: após se exumarem todos as entidades presentes até à cota de afectação provocada pela construção do piso do parqueamento, a 1ª fase da intervenção no local, executou-se a escavação em profundidade das áreas ainda não trabalhadas de modo a permitir a instalação dos pilares da infa-estrutura, razão que justifica a referência contextual que acompanha o objecto em estudo. Noutro sentido, de leitura mais ampla, i.e., da urbanística da cidade romana, ao contrário do que entretanto pode transparecer da leitura do trabalho de Lídia Fernandes a propósito de um capitel jónico aqui recolhido (Fernandes, 2009), a escavação arqueológica do jardim do Palácio dos Condes de Penafiel demonstrou que o espaço em causa não integrava as Thermae Cassiorum, como já haviamos referido (Silva, 2012). Deve esclarecer-se, aliás, que o elemento arquitectónico mencionado foi colectado no interior de um silo de cronologia medieval islâmica, em associação com materiais cerâmicos datáveis do séc. XII. Estas indicações contextuais, por nós transmitidas à investigadora que optou por os ignorar, fragilizam ainda mais a conexão que estabeleceu entre a peça e a renovação do balneário de 336 d.C., ligação afinal meramente eventual como a própria acaba com rigor por reconhecer, a despeito do título que decidiu conferir ao seu estudo (Fernandes, 2009: em especial, p. 200).

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SANTANA

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NORTE Via Norte

ROSSIO Necropolis

CASTELO DE S.JORGE Circus

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BAIXA

PPJ Thermae Cassiorum

ALFAMA

Theatrum S.Martinho

Forum Municipalis

S.Jorge

S.António SÉ

Via Oeste

Decumanus Maximus ? Criptoporticus

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Figura 1- Localização do PPJ-jardim do Palácio dos Condes de Penafiel (a azul) na leitura hipotética do urbanismo romano alto-imperial de Olisipo (seg. Silva, 2012).

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Figura 2- Esquema da quadriculagem da escavação de 1992-1993 do PPJ, com respectiva numeração. A vermelho a quadrícula 5C e, a azul, o muro de contenção romano altoimperial ali identificado durante os trabalhos.

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O que resulta do cruzamento dos escassos registos acessíveis (os subsistentes ?), e da consulta dos materiais romanos colectados no Palácio e respectivas indicações manuscritas que os acompanham, é que uma boa parte do espaço equivaleu a uma zona de sucessivas acumulações detriticas particadas numa zona que mostrava uma pendente de encosta acentuada, formações originadas a partir de um momento ainda dificil de precisar do séc. I d.C., quando as sigillatae rutenas dominam os mercados olisiponenses, como já antes referiramos (Silva, 2012). Isto implica que estes depósitos sucessivos, abrangendo uma área ampla isenta de construções privadas ou públicas, não só sejam necessariamente anteriores à edificação das Thermae Cassiorum, que em função dos (escassos) dados disponíveis no momento não poderá ser anterior ao lapso Flávios-Trajano (Idem), como terão continuado a acumular-se ao longo de mais de três centúrias a norte dos muros das traseiras do grande complexo balnear, a norte, imponentes e monumentais estruturas encontradas mais para sul no interior do actual Palácio em 1773, e depois nos edifícios a ponte da Rua das Pedras Negras n.ºs 22-28, onde ainda se conservam como se aludiu. Trazendo à colação os dados da intervenção vizinha da Calçada do Correio Velho, também executada em 1993 sob a direcção de Dias Diogo (1998), os perfis estratigráficos executados revelaram um panorama similar, o que sugere existir nesta zona da cidade um espaço alargado de “vertedouro” de detritos urbanos. Os resultados de outras intervenções executadas em datas mais recentes nas proximidades, norteados por outros princípios metodológicos de escavação arqueológica, irão, por certo, confirmar ou desmentir esta leitura. PPJ/93/50010 e 50011- Fragmentos (2) de almofariz de produção centro-itálica do tipo Dramont D1, conservando porção do bordo, parede e parte esquerda do bico vertedor, onde foi impressa “marca do oleiro” Saturninus. A pasta é de coloração bege ou rosada clara, compacta e homogénea, com inclusões de hematite, quartzo e algumas partículas negras (piroxenas), sendo perceptível o esmagamento do bordo de encontro à parede provocado pela modelação do vaso. O bordo é exvertido, horizontal e espessado, de secção amendoada, com rebordo vertical na parte superior de secção subrectangular (com paralelo na variante 22 de Segobriga- conf. Cebrián Fernández e Hortelano Uceda, 2011: p.130, fig.2). A parede, espessa, é de desenvolvimento de tendência hemisférica, com abundantes particulas de médio porte na face interna (elementos quartzosos, particulas brancas e avermelhadas, micas douradas, hematites, piroxenas e alguns nódulos de cerâmica moída), colocadas ali com intenção abrasiva. Na face superior da aba esquerda foi impressa “marca de oleiro” com o texto S AT VR N I N I no interior de cartela rectangular de cantos angulosos. A impressão do punção foi feita de forma deficiente, não se descortinando a extremidade direita da cartela, que aí se desvanece, estando o fragmento cerâmico depois truncado no mesmo local. Dimensões: diâmetro interno do bordo = 35,3 cm; largura do bordo = 4,8 cm. Dimensões da cartela: altura máxima = 1,35 cm; largura máxima = > 5,5 cm. Proveniência: PPJ-Palácio dos Condes de Penafiel-Jardim; Quadrícula 5C/9A; Camada 17B (da Quadrícula 5C= Camada 10 da Quadrícula 9). Data de recolha: 14-12-1992.

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Esc. 1:3

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Esc. 1:1 Figura 3- Representação gráfica do almofariz e respectiva “marca de oleiro” de Saturninus. 3. Algumas considerações a propósito do almofariz centro-itálico do jardim do Palácio dos Condes de Penafiel. A classificação tipológica dos almofarizes centro-itálicos foi primeiramente avançada por Jean-Pierre Joncheray (1972), a propósito do estudo do naufrágio provençal denominado Dramont D. No navio estavam presentes duas morfologias distintas, que o investigador discerniu como 1 e 2, apresentando-se o primeiro com o bordo exvertido horizontal, engrossado na parte externa do lábio, frequentemente distinto na sua ligação com a parede por um ressalto (Idemequivalente ao “tipo 7, variante C” de Mercedes Vegas,1973: p. 32-33, e “tipo 1” de Hartley,1973: p. 49-57, cujo fabrico se inicía na tardo-república e decai a partir de meados do séc. I d.C. -Idem e

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Aguardod Otal, 1991), e o tipo 2, a partir daí mais corrente, de bordo mais saliente e desenvolvido, registando-se marcadas diferenças na epigrafia de ambos. Mais recentemente, foi introduzido um refinamento às classificações morfológicas por Sílvia Palecchi (2002), que estabeleceu diversas variantes ou sub-tipos no interior das propostas anteriores, tendo efectuado o corpus da rica epigrafia que estes elementos vasculares muitas vezes comportam. O tipo Dramont D1 encontra-se bem representado nas partes setentrional e meridional do mediterrâneo ocidental, nos limes germânicos e Britannia (Aguarod Otal, 1991), mostrando que a sua difusão marítima se fez utilizando as várias rotas disponíveis, e decerto integrando as cargas de navios como “mercadoria complementar”. No âmbito especificamente hispano, o primeiro ensaio de síntese, recorrendo às “marcas de oleiro”, deve-se a Cesáreo Pérez Gonzalez e Fernánzez Ibáñez (1989), depois ampliado no âmbito gegráfico específico tarraconense do Vale do Ebro, por Carmén Aguarod Otal (1991). Para o caso português é bem patente a fraca atestação dos dois grandes “tipos” em Conímbriga, ocorrendo em contextos revolvidos, num outro de data flávia e ainda numa unidade contemporânea das Termas de Trajano (Étiènne e Alarcão, 1976), Braga (2 exs..- Morais, 2004) e Santarém, onde um dos dois exemplares publicados foi colectado num contexto datado do lapso Tibério-Vespasiano (Arruda e Viegas, 2004: p. 342). Surge de igual modo mediante exemplares únicos em Lisboa, com o tipo Dram. D1 a ocorrer num contexto datado de Cláudio mas que integra elementos vasculares que remontam a cronologias tardo-augústeas (Silva, no prelo), Beja, do mesmo tipo (Grilo e Martins, 2013: p.1485), na “citânia” de Monte Mózinho, também Dram.D1 (Soeiro, 2000-2001: p. 111) e Bragança, também na forma Dram. D1 mas com “marca de oleiro” de C.VAL.VERD[…] (Larrazabal, 2004: p. 132-133). O conjunto mais vasto conhecido até ao momento foi colectado na capital portuguesa, nos trabalhos da sede do Banco de Portugal, onde a par do exemplar único Dram.D1 surgiram oito do tipo Dram.D2, um dos quais com impressão bilínear, lida pelos investigadores DIONYS(I?) DOM LVCIL(I?) (Rocha et.al., 2013: p. 1012). No seu conjunto, a tentativa de compilação dos dados publicados é bem ilustrativa a ampla dispersão em contraponto com a raridade da ocorrência deste tipo de elementos nas latitudes ocidentais da Península, a que terá que ser atribuído significado mesmo que se admita restarem numerosos conjuntos de materiais que requerem um outro olhar. Hartley, autor da primeira grande análise compreensiva a este tipo de elementos vasculares, postulou uma maior exportação dos almofarizes do “tipo Dramont”, em particular D1, a partir de meados do séc. I d.C. até meados do séc. II d.C. (Hartley, 1973: p. 54 e 57), leitura que surge depois reproduzida em literatura ibérica (Morais, 2004: p. 567 e Pinto, 2006: p. 173-174). Os dados arqueológicos disponíveis não confirmam esta interpretação, antes a contrariando, e terão sido motivados pela ulterior replicação feita a partir da obra fundamental do investigador inglês, onde pesam os circunstancialismos próprios da história da Britannia, nomeadamente o facto de a conquista romana se ter processado a partir de 43 d.C. De facto, a questão da cronologia dos almofarizes da forma Dramont D1 assume os contornos expostos no parágrafo inicial deste capítulo, sendo sobretudo tardo-republicanos e julio-cláudios, e encontra até bom suporte nas estratigrafias hispanas: para além do caso já Página 7

julio-cláudios, o que encontra até bom suporte nas estratigrafias hispanas: para além do caso já citado de Lisboa (Silva, no prelo), poderão invocar-se os dados de Ampúrias, onde está atestado sob a “muralha Robert”, o que remete o tipo para um momento anterior a 37 d.C. (Pérez González e Fernández Ibañez, 1989), em Bilibilis, onde surge em contextos encontrados sob o pavimento do fórum colocado na primeira metade do séc. I d.C. (Aguarod Otal, 1991: p. 138), como se assinalou de novo em Ampúrias em estratigrafias augústeas, datadas de 10-1 a.C. (Aquilé et.al., 2010: p. 44, fig.17,2). Noutros espaços deverá nomear-se a sua ocorrência em Vienne, em contextos de Tibério, nos bem conhecidos acampamentos augústeos de Haltern e de Magdalensberg, no “estrato V” de Albintimilium, datado de 40 a 20 a.C., para além dos naufrágios como o epónimo, Grand Rouveau, Diano Marina (Aguarod Otal, 1991: 137) e Fos I (GiacobbiLequément, 1987: p. 169-172). Refira-se, a titulo de curiosidade, que este este último sítio subaquático francês não muito esclarecedor e pouco claro, por não ser totalmente seguro que se trate de um naufrágio, poderá tratar-se de um navio em que a carga seria composta no essencial por ânforas Dressel 14 lusitanas (Idem: p.169), tendo surgido neste quadro um almofariz com a impressão SATVRN[…], junto com duas taças em sigillata itálica Goud.42A (e portanto posteriores a 20-25 d.C), fragmentos sud-gálicos rutenos de Ritt.8 e Drag.30, diversos elementos do tipo Lamb.10 em «cerâmica africana de cozinha» e um inclassificável em sigillata africana clara A (Idem: especialmente p. 172). Apesar do quadro desenhado pela distribuição hispana ocidental antes esboçada, como pelos trabalhos anteriores de, entre outros, Aguarod Otal (1991), a capacidade de penetração dos almofarizes centro-itálicos nos mercados da Hispania enfrentou no ocidente uma clara hegemonia dos congéneres béticos, e parece sugestivo que os fabricos itálicos estejam para já ausentes de esclarecedores contextos militares tardo-republicanos e/ou augústeos onde os almofarizes da Vlterior bem se manifestam, como os da Lomba do Canho (Fabião e Guerra, 1987), Castelo da Lousa (Pinto e Schmitt, 2010), e, particularmente no Vale do Tejo, em Monte dos Castelinhos (Pimenta, 2013) e Alto dos Cacos (Pimenta, Henriques e Mendes, 2012). Tal pode significar que a sua aquisição na fachada atlântica ibérica se fez no essencial em período imperial, o que se confirma estratigraficamente para Conimbriga, necessariamente para Braga, e nos vários casos de Lisboa. A epigrafia mais complexa e rica associada ao tipo Dramont D2, caracteristicamente bílinear, permite melhor entrever as ligações sociais e jurídicas entre o artesão e a officina onde laborou. Com efeito, em muitos casos transparece não só esta conexão como, por exemplo nos referentes a indivíduos da gens Domitia, se conseguem supor os espaços fundiários no qual laborou o officinator (Palecchi, 2002; Rocha et al., 2013). De todos os oleiros produtores de mortaria, Saturninus é, porventura, um dos mais ricos e interessantes.

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Numa ocorrência peculiar de Celsa, porque única em toda a morfologia Dram.D1, estudada por Aguarod Otal (1991), surge a única impressão bilínear conhecida sobre o tipo: MCOMIN/SAT[...] (Idem: p. 137). Esta circunstância levou a investigadora a associar as impressões isoladas com o texto M.COMINI com aquelas onde consta somente o texto SATVRNINI, e assim completar a onomástica do officinator como Marcus Cominius Saturninus (Idem: p.135), no que tem vindo a ser seguida pelos estudos posteriores (Palecchi, 2002). A leitura surge reforçada pela ocorrência de impressões com os dois textos de maneira isolada em ambos os lados do bico vertedor do mesmo almofariz, como ocorreu em Lugo (Alcorta Irastorza,1995, 202-203, fig. 1, nº 1 apud Morais, 2004: p. 167). Noutro sentido, a impressão de Celsa demonstra que a produção deste officinator se situa num momento de convivência e substituição do modelo Dram. D1 pelo Dram. D2, ou seja em meados do séc. I d.C. (Aguarod Otal, 1991: p. 135), evidenciando o exemplar tarraconense sofrer já, e fortemente, da influência do hábito epigráfico praticado no tipo mais tardio, bilínear, leitura de igual modo genericamente aceite pela restante investigação (Palecchi, 2002: p. 118). A este propósito recorde-se que a datação do naufrágio epónimo é, a este título, ilustrativa da fase de convivência, postulando-se uma data em torno de 40-50 d.C. para o seu afundamento, o que é plenamente suportado pelos tipos de sigillata itálica encontrados a bordo (Joncheray, 1973). Embora as características da pasta e dos elementos colocados com fim abrasivo remetam para uma localização da figlina seguramente campana, sendo a “assinatura” exclusiva de almofarizes e assim denotando marcada especialização da actividade oleira de Saturninus, o local preciso está todavia ainda por determinar (Aguarod Otal, 1991; Palecchi, 2002). A onomástica veio, a este propósito, prestar um contributo que importa sublinhar. Por um lado, o uso de tria nomina pode significar que o uso da estampilha isolada apenas com o cognomen equivaleria a um período de activididade servil de Saturninus, conforme sugere Aguarod Otal, explicando-se o uso mais tardio do uso de praenomen e nomen por ter entretanto obtido a manumissão (Aguarod Otal, 1991: p.135). Noutro sentido, o recurso aos elementos prosopográficos assume alguma relevância. A gens Cominia, apesar de um elemento seu ter atingido a dignidade senatorial nos inícios da República, é plebeia (Smith, 1849: p.815). Só mais tarde, com outro exercício de cargo consular Cominii integraram a nobilitas, parecendo que após esta data ou o ramo da alta aristocracia familiar se terá extinto ou, em alternativa, terão passado a classe inferior durante a tardorepública. No período que nos interessa, julio-cláudio, há referência a um dos seus elementos, um certo Lucius Cominius Pedarius, ter sido nomeado para a procuratela dos aquedutos por Augusto (Frontino, De Aquaeductu, 99), e do equestre Gaius Cominius ter sido preso por ter escrito um libelo acerca do Imperador Tibério, sendo depois em 24 d.C. perdoado e libertado a instâncias de um seu irmão, senador (Tácito, Annales, iv, 31) (Smith, 1849: p.816). Como seria de esperar, o gentilício Cominius está bem presente epigraficamente na Itália Central (Giordano, 1961; Leveau, 2013: p. 277), com destaque para a Campânia,

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designadamente Nápoles, Pompeia e Nola (Giordano, 1961 e 1979). A gens tem também algumas ocorrências epigráficas narbonenses, merecendo nestas menção o achado de uma dedicatória a uma divindade indígena desconhecida, Lucuttetus, por um Cominius Saturninus (I.L.N., III, 203- Leveau, 2013: p.275). Encontrada junto de um importante mausoléu na uilla de Viély (Aix-en-Provence) (Idem), não se pode descartar a eventualidade de uma qualquer conexão entre o officinator e o autor desta dedicatória na Gália. Será contudo no ager nolanus que os Cominii assumiram proeminência, derivando dos olivais integrantes dos vastos espaços dominais detidos pela família a designação de um tipo específico de azeitona nomeado em latim “cominia” (da zona da actual Comiziano- conf. Giordano, 1961 e 1979). A zona de Nola, para o interior SE da região de Nápoles, onde a gens Cominia deteve vasto património fundiário, assume-se, por consequência, como forte candidata à localização da officina. Activo na primeira metade do séc. I d.C., a epigrafia sigilar de M.Cominius Saturninus é muito característica: no cognome são quase constantes os nexos VR, sendo frequentes os nexos AT, e a grafia assume sempre a mesma aparência, demostrando um abridor de punções comum. Conhecido através de trinta e cinco impressões repertoriadas por Palecchi para vinte e nove distintos almofarizes (Palecchi, 2002: p. 113-118), os produtos assim assinalados distribuem-se fora da Itália por Sala, Berenice, Europa Central (com atestações em Bregenz, Zollfeld e Meelsen- Idem e Pérez González e Fernández Ibañez, 1989: p.78), com significativa distribuição no Mediterrâneo Ocidental, em Bavay e Fos I (Ibidem), de que faz parte a mais importante presença, a da Península Ibérica, em Barcelona, Ampúrias, San Tomé, Herrera de Pisuerga, Uxama, Paredes de Nava (idem), Celsa (Aguarod Otal, 1991; Palecchi, 2002), Lugo (Alcorta Irastorza, 1995: 202-203, fig. 1, nº 1 apud Morais, 2004: p. 167; Palecchi, 2002) e, agora, Lisboa. Bibliografia. AGUAROD OTAL, C. (1991)- Cerámica común romana de cocina en la Tarraconense. Saragoça: Institución “Fernando el Católico”. ALCORTA IRASTORZA, E. (1995)- “Sobre un mortarium sellado hallado en Lucus Augusti”, in Actas del XXII Congreso Nacional de Arqueología (Vigo, 1993), vol. 2. Vigo: Xunta de Galícia, p. 289-296. AQUILÉ, X.; SANTOS; M.; TREMOLEDA, J. CASTANYER, P. (2010)- “Contextos d´Época d´August procedentes del Fórum de la cuitat romana d´Empúries”, in Contextos ceràmics i cultura material d´època augustal a l´occident romá, Actes de la reunió celebrada a la Universitat de Barcelona els dies 15 i 16 d´abril de 2007 (V.Revilla; M.Roca, Eds.). Barcelona: Universitat de Barcelona, Institut Catalá d´Arqueologia Clàssica, Museu d´Arqueologia de Catalunya, p. 36-91. ARRUDA, A.M.; VIEGAS, C. (2004)- “Les mortiers de l´Alcáçova de Santarém (Portugal ) “, in Société Française d'É-tude de la Céramique Antique en Gaule, Actes du Congrès de Vallauris, 20 -23 mai 2004. Marselha: S.F.E.C.A.G., p. 341-349. CEBRIAN FERNÁNDEZ, R. ; HORTELANO UCEDA, I. (2011)- “Los morteros centroitálicos de

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