Um amor feliz que nasce no género feminino

July 15, 2017 | Autor: A. Correia Martins | Categoria: Portuguese Literature, Classical Reception Studies, The Reception of Classical Antiquity
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REVISTA SEMESTRAL DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

N. 21 N. 22

2012/1 2012/2

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO Reitor: Reinaldo Centoducatte Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação Pró-reitor: Neyval Costa Reis Junior Centro de Ciências Humanas e Naturais Diretor: Renato Rodrigues Neto Programa de Pós-Graduação em Letras Coordenadora: Leni Ribeiro Leite

Conselho Editorial Eneida Maria de Souza (UFMG) Flávio Carneiro (Uerj) Evando Nascimento (UFJF) Italo Moriconi (Uerj) Jaime Ginzburg (USP) José Américo de Miranda Barros (UFMG) Lênia Márcia de Medeiros Mongelli (USP) Márgara Averbach (Univ. Buenos Aires) Maria José Angeli de Paula (Ufes) Maria Lúcia de Barros Camargo (UFSC) Maria Mirtis Caser (Ufes) Marília Rothier Cardoso (PUC-RJ) Raimundo Carvalho (Ufes) Roberto Ferreira Júnior (Ufes) Ronaldo Lima Lins (UFRJ) Sérgio Luiz Prado Bellei (UFSC) Wilberth Salgueiro (Ufes)

REVISTA SEMESTRAL DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

N. 21, 2012/1 - ISSN 1519-0544

DOSSIÊ: O NOME NA LITERATURA (DA ANTIGUIDADE AO SÉCULO XVIII)

Vitória 2012

Editores do Número 21 e 22 Leni Ribeiro Leite Paulo Roberto Sodré Editoração: Edson Maltez Heringer – 8113-1826 Catalogação: Saulo de Jesus Peres – CRB 12/676 Revisão: Os autores Contexto Revista Semestral do Programa de Pós-Graduação em Letras Centro de Ciências Humanas e Naturais Universidade Federal do Espírito Santo Telefone: (27) 3335-2515 Site: E-mail: [email protected]

Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

Contexto / Universidade Federal do Espírito Santo, Programa de Pós-Graduação em Letras: Mestrado e Doutorado em Letras – N. 21 / N. 22 (2012) – Vitória: Ufes, PPGL, 1987-

416 p.; 21 cm. Semestral. ISSN 1519-0544 1. Literatura – Crítica – Periódicos. 2. Crítica literária – Periódicos. I. Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais, Programa de Pós-Graduação em Letras, Mestrado e Doutorado em Letras.

SUMÁRIO

7 Editorial

9 Dossiê O nome na literatura (da Antiguidade ao século XVIII) Celso Vieira Miriam Campolina Diniz Peixoto 11 HELENA: UM ESTUDO DE CASO ACERCA DA PROPRIEDADE E APROPRIAÇÃO NO USO DOS NOMES PRÓPRIOS NA GRÉCIA ANTIGA. Luciene Lages Silva 39 EPÍTETOS: ENTRE HOMERO E A APROPRIAÇÃO DA TRAGÉDIA E COMÉDIA Márcia Zamariano 61 NOME: PERCURSO HISTÓRICO E CONSTRUÇÃO DO CONCEITO

103 Clipe Augusto Rodrigues da Silva Júnior 105 ENSAIO SOBRE O PRÓLOGO: LIMINARIDADE, DIALOGISMO E AUTOCONSCIÊNCIA NO ROMANCE Caroline Caputo Pires Maria Cristina Pimentel Campos 145 REFLEXÃO SOBRE A FÉ E O SIMBÓLICO EM “THE RIVER”, DE FLANNERY O’CONNOR. Simone Cristina Mendonça 171 MULHERES PROTAGONISTAS NA LITERATURA SETECENTISTA: REFLEXOS NAS TRADUÇÕES QUE CHEGARAM AO BRASIL

EDITORIAL

Uma das categorias mais comuns, e nem por isso menos instigantes, da produção literária de qualquer momento cultural, sobretudo na tradição, o nome é capaz de compor e sugerir sentidos fundamentais na compreensão dos textos nas modalidades dramática, lírica e narrativa, seja na designação de pessoas, lugares, seja na de animais e de objetos que configuram o texto verbal artístico. Isidoro de Sevilha, nas Etimologias (I, 7), imaginava que “se ignorássemos o nome, o conhecimento das coisas desapareceria”. Roland Barthes, na ponta diferente temporal e conceitualmente de tal posição, indica que “a ausência de nome, perigosamente mantida, provoca uma deflação capital da ilusão realista”. No meio dos dois, uma pergunta de William Shakespeare acirra mais a diversidade dos pontos de vista sobre o tema: “Mas, que é um nome? / Se outro nome tivesse a rosa, em vez de rosa, / Deixaria de ser por isso perfumosa?”.

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Alvo da interpretatio nominis, o nome (ou sua falta) pode ser um instrumento fecundo de investigação, de análise e de leitura do texto literário. Com este propósito é que apresentamos a chamada de publicação para o dossiê O nome na literatura (da Antiguidade ao século XVIII), da revista Contexto n. 21, que conta ainda com seção de temas variados (Clipe).

Leni Ribeiro Leite Paulo Roberto Sodré

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Dossiê: O nome na literatura (da Antiguidade ao século XVIII)

Helena: um estudo de caso acerca da propriedade e apropriação no uso dos nomes próprios na Grécia antiga Celso Vieira Miriam Campolina Diniz Peixoto UFMG

RESUMO: A partir da ampliação da aplicação dos conceitos atuais de intensão e extensão dos termos linguísticos, o artigo tenta compreender algumas estratégias dos gregos antigos na utilização dos nomes próprios. O paradigma escolhido foi o tratamento dado ao nome de Helena por Ésquilo no Agamenon, por Górgias no Elogio à Helena e por Eurípides na peça Helena. Além destes autores, a investigação se orientou pelas reflexões de natureza especulativa acerca dos nomes encontrados principalmente no Crátilo de Platão, mas, também, em Aristóteles, na Retórica. O resultado de um estudo comparativo destes textos apontou para a riqueza de um tratamento mais indistinto dado a um nome próprio que leva em consideração não só o seu referente, mas, também, os seus conteúdos descritivos. Esta indistinção, que permite a exploração de várias possibilidades de interação entre referentes e descrições, revelou-se uma fonte rica para a criação de um discurso persuasivo. PALAVRAS-CHAVE: Nome próprio – Helena. Ésquilo – Agamenon. Górgias – Elogio à Helena. Eurípides – Helena. ABSTRACT: The concepts of intension and extension are used today to define the linguistic terms. In this paper they had their application extended in an attempt to understand how the ancient Greeks dealt with proper names. As a paradigm it

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was chosen Helen’s name in its use by Aeschylus in Agamemnon, Gorgias in the Helen’s eulogy and Euripides in Helen. The investigation also took on account more theoretical reflections on the names, mainly in Plato’s Cratylus but also in Aristotle. The result of a comparative study of these texts pointed out the richness of an indistinct treatment to proper names in which not only their referent is taken on account but also its descriptive content. With such an indistinct treatment the authors are allowed to explore a lot of possibilities of interaction between the referents and the descriptions in constructing a persuasive discourse. KEYWORDS: Proper Name – Helen. Aeschylus – Agamemnon. Gorgias – Helen’s eulogy. Euripides – Helen.

Introdução Atualmente, na filosofia da linguagem, os termos linguísticos são distinguidos, quanto ao seu valor semântico, em singulares e gerais. Um termo singular tem a função de se referir a indivíduos singulares – este é o caso de um nome. Já um termo geral tem a função de informar sobre as propriedades de indivíduos, assim como um predicado, motivo pelo qual ele é analisado a partir de sua extensão e intensão. Extensão se refere ao conjunto de indivíduos ao qual um termo se refere e intenção concerne à propriedade ou característica desses indivíduos expressa pelo termo. É a partir desses conceitos contemporâneos que se tentará identificar algumas características do uso do nome nos textos gregos antigos, não com o intuito de encontrar neles alguma antecipação deste tipo de perspectiva própria às teorias contemporâneas da linguagem, mas sim de aplicá-la como uma ferramenta que permite avançar ainda mais na compreensão de textos que já foram objetos de várias interpretações. Para tanto é preciso ter sempre em mente que aquilo que atualmente se encontra sistematizado quanto aos conceitos em elaboração na antiguidade mostram que eram tratados de forma mais ampla e vaga, o que não representa por si só um problema, já

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que, como se verá, a riqueza da reflexão acerca da linguagem entre os autores antigos reside muitas vezes justamente nas possibilidades de usos fornecidas por essa indefinição de tratamento. Um exemplo desta diferença de tratamento é o caso do nome próprio ao qual, segundo a distinção contemporânea, não se aplicariam os conceitos de extensão e intensão por se tratar de um termo singular. Neste quadro, em se tratando de um nome e não de um predicado, a palavra funcionaria apenas como um referente sem a capacidade de expressar alguma sua característica ou propriedade. Visto como um termo singular, o nome Orestes funcionaria apenas para fazer referência a um determinado indivíduo, por exemplo, o filho de Clitemnestra e Agamenon, sem a capacidade de indicar nenhuma outra propriedade do referente nomeado. Porém, este não parece ter sido o tratamento dado pelos gregos antigos aos nomes, como testemunha, entre outros textos, o Crátilo de Platão. Neste texto fica evidente que era um procedimento comum avaliar a correção de um nome próprio recorrendo a uma propriedade ou característica do indivíduo nomeado indicada pelas raízes etimológicas que constituem o seu nome. Nesta perspectiva, um nome próprio expressa uma característica, tornando-se assim passível de possuir uma intensão. Em um trecho do Crátilo, Sócrates trata do nome Orestes e ilustra esta situação: “Como também o (nome) de Orestes (Ὀρέστης) arrisca ser correto, tenha sido esse nome para ele atribuído por algum acaso ou por algum poeta, pois pelo nome é demonstrado o que de ferino, selvagem e de agreste (ὀρεινόν) era da sua própria natureza” (394e)1. Assim, o nome Orestes,

1 Ainda convém destacar nesta passagem, como fonte de comparação com a investigação que se seguirá, que os responsáveis pela correção do nome de Orestes que revela sua natureza agreste é são ou a sorte ou o poeta. Outros textos trarão ainda a possibilidade da correção do nome ter origem divina.

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além de se referir a um indivíduo, o filho de Agamenon e Clitemnestra, também possui uma intensão já que expressa uma característica da pessoa a quem ele se refere, a de ser agreste. Antes de prosseguir, convém esclarecer que a presente delimitação no tratamento do assunto aos gregos antigos é feita aqui apenas por ser este o objeto do artigo, uma vez que, como atestam inúmeros textos, várias outras culturas também parecem ter levado em consideração o valor informativo dos nomes próprios. Bronkhorst trata desta questão ao diferenciar a etimologia semântica da etimologia histórica: “As etimologias semânticas devem ser distinguidas das etimologias históricas. Uma etimologia histórica apresenta a origem ou a história de uma palavra. Etimologias semânticas fazem algo completamente diferente. Elas conectam uma palavra com uma ou mais palavras que, se acredita, elucidem seu significado. Etimologias semânticas são praticamente universais em culturas pré-modernas, e existem tratados em algumas culturas – como o Nirukta de Yaska na Índia antiga, o Crátilo de Platão na Grécia antiga – que lidam especificamente com ela” (BRONKHORST, 2001, p. 147). Neste artigo o termo etimologia é utilizado sem um qualificador, ainda que esteja em questão algo mais próximo do que Bronkhorst chama de etimologia semântica, e outros chamam de paraetimologia ou etimologia popular. Além disso, a postura de se considerar o significado dos nomes em relação às pessoas que eles nomeiam nem sequer deve ser limitada às culturas pré-modernas já que ainda hoje ela é tomada por operante, mesmo em um contexto de pesquisa científica, como um tendência humana. A pesquisa de Pelham, a que se recorrerá em alguns momentos deste artigo, é um exemplo. De acordo com o autor, “os estudos 7-10 sugeriram que as pessoas escolhem, desproporcionalmente, carreiras cujas denominações se assemelham aos seus nomes. (por exemplo, há uma ocorrência acima da média de pessoas que se chamam Denis

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ou Denise entre os dentistas)” (PELHAM; MIRENBERG; JONES, 2002, p. 469). De forma que o conteúdo descritivo de um nome, inclusive um nome próprio, parece sim ser operante ainda nos dias de hoje.

A função explicativa das etimologias Nos dias de hoje, ao se pensar em um nome embasado na percepção (mesmo ilusória) que ele provoca nas pessoas, não pode se ignorar o fato de que ao se aplicar uma intensão a um nome próprio este passa a ter um conteúdo descritivo, ou seja, a característica ou propriedade que se encontra nele expressa apresenta, de alguma forma, uma descrição do seu referente. Este é o principal problema da aplicação da intensão a um nome próprio segundo a filosofia da linguagem contemporânea já que o preço pago por um nome cumprir tal exigência seria o de enfraquecer sua função principal que seria simplesmente a de referir. Um exemplo da postura atual utilizada na crítica ao Crátilo encontramos em Robinson. Para este autor, “quando nos damos conta que referência é diferente de descrição, e que a função de um nome não é descrever mas referir, o fato de buscar esclarecimento nas etimologias perde o sentido”, e “qualquer descrição sugerida por um nome é irrelevante” (ROBINSON, 1956, p. 335). Porém, se não só existe uma busca por esclarecimento na interpretação de um nome, como esta, mesmo que seja vã ou ilusória, interfere na nossa percepção tanto do nome quanto da coisa nomeada, ela parece ser digna de ser levada em consideração. Em verdade, na necessidade mesma de mostrar que nós devíamos nos dar conta de que um nome não deve descrever fica evidente que o que fazemos, em geral, é considerar o conteúdo descritivo de um nome. Assim o fato de que um falante – não só na Grécia antiga! – normalmente tender a considerar o valor descritivo dos nomes ao utilizá-los, já serve para legitimar um uso consciente desta capacidade reconhecida em um nome em sua relação com o seu referente.

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Neste quadro, a explicação de uma coisa mediante a etimologia do seu nome é um meio, se não logicamente verdadeiro, pelo menos persuasivo, para convencer da veracidade de uma característica ou propriedade daquilo que ele nomeia. Isto gera uma situação em que o nome para funcionar não precisa ter intensão, embora a aplicação de uma intensão legitime seu funcionamento. Um exemplo desta posição atuante – mas não necessária – da explicação de um nome pelo conteúdo descritivo de sua etimologia acontece em várias definições que, utilizadas no dia a dia, podem obter um maior ou menor grau de sucesso. Pode-se pensar, por um lado, na explicação razoável da “esquizofrenia” como a “separação da pessoa” e, por outro lado, o quão cômico seria explicar o que é “ginástica” através da mesma estratégia, já que a palavra contém a raiz “gymn-” que significa “nu”. No caso dos nomes próprios, por sua vez, é ainda mais fácil adotar uma postura cética frente ao seu conteúdo descritivo, mas, como assinala a pesquisa de Pelham, uma vez que este conteúdo interfere na realidade ele merece ser considerado. Como mostra Pelham, Declarações do tipo ‘eu virei advogado por causa das associações positivas que eu tenho com a letra A’, ou ‘Eu aceitei um trabalho em Buffalo porque o meu primeiro nome começa com B’ simplesmente não aparecem na nossa lista de truísmos culturalmente aceitos para explicar porque as pessoas tomam decisões importantes nas suas vidas (NISBETT; WILSON, 1977). Apesar de considerarmos bem estabelecido que as pessoas às vezes sabem exatamente porque elas fazem o que fazem (QUATTRONE, 1985), a pesquisa apresentada aqui sugere que também existem vezes nas quais as pessoas não têm nenhuma pista” (PELHAM; MIRENBERG; JONES, 2002 p. 484).

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Assim, se é mais provável que um Denis se torne um dentista, mesmo que ele ache que o conteúdo descritivo do seu nome não interferiu em nada na escolha da sua carreira, seria possível considerar o caso de uma interferência inconsciente. A atitude de Aristóteles é instrutiva para pensar esta questão a partir do ponto de vista dos antigos. No De interpretatione, ele declara que um nome não depende de seu conteúdo descritivo: “Um nome é um som que tem significado por convenção… Apenas demonstrar uma coisa não constitui um nome. Sons inarticulados demonstram algo, por exemplo, os sons dos animais, mas nenhum deles é um nome” (De interp. 16 a 19-29). Porém, ao longo de sua obra, ele abusa de explicações etimológicas decompondo as raízes de um nome para demonstrar características de seu referente, como acontece, por exemplo, na Ética a Nicômaco: “foi assim que a sophrosyne ganhou seu nome (prosagoreuomen tôi onomati), pois ela preserva (sôzousan) a sabedoria (tên phronêsin)” (Eth. Nicom. 1140 b 11-12). Uma solução para se entender este comportamento aparentemente contraditório estaria na Retórica, onde ele diz que “um argumento baseado em conhecimento demanda instrução, e existem pessoas as quais não se pode instruir, neste caso devemos utilizar como modos de persuasão e argumento noções que todos possuem” (Rhet. 1.12). Então, se um bom discurso é aquele que, por ser adequado ao seu público, obtém sucesso em comunicar, as explicações etimológicas podem até não servirem para compreender os seus referentes, mas como elas convencem o público em geral nada impede de se utilizá-las ao se escrever uma ética que será lida por não especialistas2.

Parece que a postura de Platão em relação às etimologias é similar, já que no Crátilo ele as critica como um meio de se aprender sobre as coisas, porém, em outros diálogos as oferece como explicação. Cf. Crátilo 439 b: “não se deve aprender e investigar a partir dos nomes, mas antes a partir das coisas mesmas”.

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Em uma perspectiva que considera o valor descritivo dos nomes como uma tendência humana, e não apenas como uma prerrogativa dos antigos, o tratamento indistinto dado por esses aos nomes e às etimologias, à sua intensão e extensão, parece ser bastante instrutivo. Voltando a focalizar os nomes próprios, nota-se que existem diferentes atitudes em relação à sua extensão e intensão de acordo com o que o autor de um texto pretendia ao utilizar um nome. Um caso comum na antiguidade é aquele que se observa quando um autor se serve de um mito tradicional, com o qual, entre outras coisas, já recebe os nomes das personagens prontos. Nessa situação, ao recorrer a uma tradição precedente, quem trabalha com um texto deve, por um lado, manter inalterados os elementos de maior amplitude já conhecidos de todo um público (e nada é mais fixo do que os nomes), e, por outro lado, deve buscar apresentá-los de maneira particular, sendo esse o espaço em que tem lugar a intervenção do autor3. Desta forma, ainda que tenha que trabalhar com um nome que não foi criado por ele, um autor ficaria satisfeito com a possibilidade de interferir na sua intensão ou extensão para legitimar o seu texto. Para se verificar as diferentes atitudes que propiciariam a satisfação deste desejo será utilizado como paradigma um mesmo nome, com um mesmo referente, mas que, como se verá, de acordo com a opção do autor recebe características diferentes através da exploração da intensão e extensão a ele aplicadas. Convém ressaltar que neste caso o que importa não é

3 Segundo Wismann, “a presença preponderante de elementos tradicionais, e até genéricos, não deve mascarar o fato que um texto só atinge o estatuto de obra em virtude de uma intervenção suficientemente livre para reorganizar o material transmitido e conferir a ele assim um efeito incomparável” (BLAISE, COMBE, ROUSSEAU, 1997, p. 16). Sem precisar discutir o estatuto de obra ou não, o objetivo aqui será o de identificar os usos que os autores fazem dos nomes tradicionais em relação às características tradicionalmente aplicadas aos seus referentes.

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sua verificação em relação ao que aconteceu na realidade, mas antes a conveniência da descrição da característica de um referente encontrada no seu nome na coerência interna do texto.

Helena no Agamenon de Ésquilo O nome a ser analisado é o de Helena, cujo referente tradicionalmente é julgado como culpado por ter sido a causa da guerra de Tróia. Uma versão condizente com este retrato negativo de Helena é apresentada por Ésquilo no coro à Helena do Agamenon. Aqui o autor, valendo-se da intensão do nome próprio que indicaria uma propriedade da coisa nomeada expressa em sua etimologia, confirma a tradição de condenar a mulher por ter provocado a guerra na qual se perderam tantos homens e bens. Para tanto, o nome ‘Helena’ (Ἑλέναν4) é transformado em um predicado através da criação de um neologismo, ‘Aliena-naus’ (ἑλένας), composto de ‘ἑλεῖν’ (aoristo 2 de ‘αἰρέω: tirar, privar, sequestrar’, aqui traduzido por ‘alienar’) e ‘ναῦς’ (‘nau, embarcação’). A etimologia, que seria historicamente falsa, se embasa na semelhança para se provar convincente. Como se verá durante a análise dos outros exemplos, a estratégia da semelhança é tão eficaz na persuasão do público que vai chegar a ser problematizada por outros autores através da diferenciação entre aparência e realidade. Já no prólogo do Agamenon, Ésquilo faz o vigia (φύλαξ) explicar sua estratégia discursiva: “assim, deliberadamente, eu / anuncio aos entendidos e escapo aos não entendidos.” (vv. 38-39). Uma tal declaração parece afirmar que o texto é construído de maneira deliberada com dois níveis de compreensão, um usual e um outro, mais profun-

4 Ésquilo usa ainda o acusativo singular em alfa, que não é corrente, em uma atitude que pode legitimar a suposição de que o faz com o intuito de acentuar a semelhança.

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do, que depende de algum tipo de interpretação para ser acessado. Como afirma Hogan, “sua função (do vigia) mais importante é (...) estabelecer por metáforas e imagens os temas e motivos que vão pervadir a trilogia5” (HOGAN, 1985, p. 30). O caso do predicado ‘aliena naus’ seria similar ao do prólogo já que, através de uma semelhança percebida no nome Helena, ele explica o destino do nomeado demonstrando uma das estratégias de enunciação de um segundo nível, que ele utiliza e só é acessível aos entendidos. Por se tratar da identificação da expressão de uma propriedade ou característica do nomeado no nome, esta estratégia pode ser caracterizada como intensional. Nesta perspectiva, o prólogo de uma peça é como um nome próprio de uma pessoa que, se bem colocado, oferece a oportunidade a quem consegue ler o que está expresso na sua intensão – o seu segundo nível –, a oportunidade de compreender antecipadamente uma característica ou propriedade que define o seu referente, no caso do nome a pessoa (ou a personagem), no caso do prólogo a peça. Deste modo, um autor tem a possibilidade de intervir em favor da coerência interna do seu texto, mesmo se baseando em um mito tradicional, através da inserção, seja de um prólogo proclamado por uma personagem criada e inserida por ele (que nem sequer apareceria nas versões tradicionais do mito, pois nem mesmo na peça ele reaparece), seja de um predicado forjado a partir da derivação do nome de uma personagem tradicional de uma determinada raiz que acaba revelando como o seu referente será caracterizado pelo autor.

5 É interessante notar, também, que quando o poeta insere personagens que não pertencem à tradição, como o vigia e os mensageiros, ele não os nomeia, mas apenas predica através do adjetivo uma propriedade geral que os define, a saber, a função que exercem na peça, vigiar ou dar uma mensagem. Esta atitude pode ser comparada com aquela de Platão ao nomear suas personagens fictícias por meio de paráfrases descritivas como o ‘cidadão ateniense’ ou o ‘estrangeiro de Eléia’, as quais serão objeto de análise mais adiante.

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A atitude deliberada de se escrever um discurso com dois níveis, associada ao uso da semelhança para indicar a interpretação em segundo nível do conteúdo descritivo de um nome próprio, permite voltar ao contexto em que a etimologia de Helena é proposta para melhor entendê-lo. Ésquilo reforça a legitimidade do seu neologismo revelador atentando para uma não arbitrariedade da linguagem ao trazer em um nome o futuro do nomeado quando faz o coro dizer as palavras seguintes: “Quem então nomeou assim,/ nisto tão autêntico,/ com presciência do porvir, senão aquele a quem não vemos/ quando atribuímos a linguagem ao azar?/ E àquela que o armado esposo busca, disputada/ Helena (Ἑλέναν) foi propício pois/ (ela) Aliena naus (ἑλένας), aliena homens (ἑλανδρος), aliena vilas (ἑλέπτολις)”. (v. 681 e sq.). Primeiramente, convém procurar um referente para o descrito na frase “aquele a quem não vemos”. Além de não estar visível, sua característica reside na capacidade de nomear de forma “autêntica” e com “presciência do porvir”. No caso de uma peça de teatro, o autor do texto não está visível durante sua encenação6, mas “atua” com autenticidade e presciência do porvir, já que é ele quem compõe a trama. Porém, o problema é que não é ele quem nomeia, uma vez que ele já recebeu o nome Helena da tradição. Deste modo a referência parece ser mais de ordem externa, aludindo a uma divindade (que como tal é invisível aos humanos e tem presciência do seu porvir) que esconde nos nomes o destino dos humanos, do que interna, ou seja, a um autor que esconde no nome o destino de suas personagens. Ésquilo parece então defender, ou pelo menos endossar, por um lado, a posição segundo a qual o conteúdo descritivo dos nomes que não

6 Mesmo se o poeta atua, como fizeram o próprio Ésquilo e Sófocles, está ausente por causa do distanciamento causado pelo uso da máscara.

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é arbitrário esconde informações reveladoras sobre os nomeados7 e, por outro lado, ele mostra que no que se refere ao contexto interno de seu texto ele utiliza esta crença endossada de maneira consciente ao comprovar essa prescrição através de uma “póscrição”, na medida em que, nesse caso, a característica de Helena é revelada a partir de um neologismo criado por ele para confirmar a tradição8. De modo que parece legítimo ver na figura do autor um demiurgo, se não de nomes (já que estes em sua maioria são tomados da tradição), pelo menos de predicados intensionais concebidos a partir da etimologia dos nomes. A criação destes predicados seria um artifício através do qual os autores, propondo a leitura de um conteúdo descritivo de um nome tradicional, legitimariam a sua versão do mito como verossímil na medida em que é baseada em uma interpretação de segundo nível de um nome cujo estabelecimento não teria sido arbitrário. Para entender esta relação é interessante compará-la com aquela feita no Crátilo por Platão entre quem cria ou estabelece um nome, o nomotheta, e quem o utiliza, o dialético. Em 390b e sq., usando um topos recorrente nos diálogos platônicos, Sócrates faz seu interlocutor aceitar que, assim como quem usa uma agulha é melhor do que quem a fabrica para julgar se ela é boa ou ruim, também quem usa um nome, o dialético (ou o poeta), é melhor do que quem o cria para

7 No caso de Ésquilo, como também se verá no caso de Eurípides, é difícil determinar o quanto se acreditava no papel dos deuses como criadores de sinais deixados nos nomes ou em outros lugares. Clitemnestra (incorrendo em hybris?) em 275 e sq., por exemplo, em oposição ao coro de velhos, (que representa de forma negativa a tradição) ironiza quem, com atitude pueril, se fia em sinais dos sonhos (divinos), ao contrário dela que lê os sinais humanos, representado pelo fogo que anuncia a queda de Tróia. 8 Como se verá mais adiante em Eurípides, a ligação entre os poderes dos deuses em relação ao mundo e os do dramaturgo em relação ao drama, apesar de não ser explícita, não é exclusividade de Ésquilo.

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julgá-lo. Nesta perspectiva, a interpretação etimológica poderia ser inclusive um dos fatores úteis para uma diferenciação da excelência entre um poeta e outro. Ao usar os nomes, os mesmos nomes criados por quem quer que seja (com poder divino ou não), e, apesar disso, afirmar o caráter de seus referentes através da proposição de algum conteúdo descritivo criado a partir de uma etimologia proposta para a palavra, cada poeta, assim como cada tecelão, que usando uma mesma agulha pode tecer pontos mais firmes ou frouxos, teria espaço criativo para amarrar sua trama de maneira mais, ou menos, coerente. A justificativa para a exploração do conteúdo descritivo dos nomes depende do fato de que as pessoas, independente disso ser logicamente válido ou não, ao escutarem um nome tendem a associá-lo com algum predicado explicativo construído a partir de raízes encontradas na palavra. Portanto, também o sucesso de se explorar esta tendência humana depende da explicação proposta para um nome gerar alguma convicção em quem o escuta. Assim, a proposição de leitura de um nome que parecer aos ouvintes forjada a ponto deles não aderirem à ideia de que ela revela o destino escondido da personagem perde toda a força. Um enfraquecimento parecido pode acontecer ainda a posteriori, caso uma outra leitura etimológica seja mais convincente do que a anterior. Neste quadro não fica difícil pensar em um contexto em que o excesso de propostas de leituras etimológicas acabe por enfraquecer não só o valor de um nome específico, mas principalmente a estratégia de explicitação de um conteúdo descritivo como explicação de um referente. De que os antigos tinham consciência desta possibilidade constitui prova, mais uma vez, uma passagem do Crátilo na qual Sócrates problematiza o tema: “mas ao se admitir (a possibilidade) de acrescer ou retirar tudo que se quer dos nomes, grande será a facilidade com que qualquer um conseguirá adaptar todo nome a toda coisa” (414 d). Ou seja, uma vez que a

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ferramenta de quem trabalha com os nomes acaba permitindo um numero excessivo de alterações, a técnica acaba perdendo em legitimidade. Mais uma vez, em se tratando de uma perspectiva indistinta o bastante para comportar alterações sem abandonar por completo o que era vigente, como aquela do senso comum em relação à percepção dos nomes, pode-se esperar que surjam novas estratégias de persuasão a partir dos nomes que não usem explicitamente a explicação através da proposição de conteúdos descritivos, mas que ainda mantenham a semelhança, ainda que implícita, como um fator comprovador de coerência. Os dois casos analisados na sequência parecem se valer de uma tal atitude ambígua.

Helena no Elogio à Helena de Górgias Uma vez que a intervenção do autor funciona para corroborar a tradição, como a má fama de Helena por ter provocado a guerra de Troia no caso examinado acima, surge também a possibilidade de revisar a opinião tradicional ou através de uma estratégia similar ou a partir de uma nova estratégia que mostraria as falhas da anterior. O que acontece no caso dos antigos é que as duas opções de refutação são usadas em um mesmo texto sem nenhum problema. Utiliza-se a semelhança de forma mais sutil ao mesmo tempo em que se critica o fato de buscar uma explicação para o referente em seu nome. Um exemplo de uma atitude que tenta apresentar uma outra característica para a mesma personagem, Helena, ao trabalhar com uma outra derivação na intensão do seu nome através da semelhança, sem, no entanto, se embasar na criação de um predicado descritivo que revelaria o destino da personagem, é o Elogio à Helena de Górgias. Neste texto, o filósofo, sem tocar na versão mais tradicional do mito, tenta inverter a perspectiva de julgamento da personagem convidando seu público a vê-la como vítima. Em defesa dela, ele diz no parágrafo 7: “quanto à

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que foi violentada, retirada da pátria e privada dos amigos, porque não há de ser mais razoável termos clemência (ελεηθήσομαι, verbo que vem de ἒλεος ‘clemência’) dela ao invés de a difamarmos?” Ao se comparar essa passagem com aquela de Ésquilo examinada acima a inversão de perspectiva é evidente. Helena não é mais quem aliena naus, homens e vilas mas sim quem é privada da sua autonomia, da sua pátria e de seus amigos. E se poderia ir ainda mais além ao se aceitar algo que funcionaria como um argumento etimológico ex silentio, supondo que a escolha do filósofo de utilizar o verbo ‘στερέω’ (‘privar, retirar’) na passiva ao invés de ‘ἑλεῖν’ (‘pegar, sequestrar, alienar’), como fez Ésquilo, tenha sido feita deliberadamente com o intuito de mostrar que Helena foi vítima passiva e não causa de uma privação. Górgias, porém, vai além da mera omissão do enfoque intensional em relação ao nome de Helena, já que, retomando em alguma medida os temas, já vistos em Ésquilo, da invisibilidade e divindade relacionadas ao discurso. No parágrafo 8 ele diz: “o discurso é um senhor soberano que, com um corpo diminuto e quase imperceptível leva a termo ações divinas, pois ele pode pausar o medo, retirar a dor, produzir prazer e aumentar a clemência (ἒλεος), e como isso assim acontece eu demonstro”. Nesta declaração, a sutileza do discurso que com um corpo imperceptível realiza ações divinas pode estar sendo não só declarada, mas também realizada (afinal de contas Górgias afirma que ele demonstra) através do uso de ἒλεος, a clemência, palavra que soa semelhante ao nome Helena e significa a atitude clemente que o autor espera que o público tenha diante da mulher injustiçada. Se esta interpretação for legítima, apesar de se utilizar também ela do recurso da semelhança, para o filósofo, ao contrário de Ésquilo, o poder do discurso não seria aquele de dizer mais aos iniciados que sabem interpretá-lo, mas antes o de, passando desapercebido (de maneira subliminar), provocar nas pessoas opiniões as

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quais elas não teriam consciência de terem surgido a partir da sua exposição à sutileza do discurso. Esta suposição parece legitimada quando se recorre ao contexto subsequente da passagem citada, mais precisamente aos parágrafos 10 e 11, nos quais a ação divina própria ao discurso consistiria em sua “força mágica” de levar “ao erro da opinião” baseada na impossibilidade do homem de conservar a “memória do passado”, a “noção do presente” e a “previsão do futuro”. Assim, para Górgias, a força do discurso opera sobre a limitação humana em relação ao espaço, pois os humanos são por ele atingidos sem se aperceberem, e em relação ao tempo, pois eles não conseguem experienciar de maneira correta o passado, o presente ou o futuro. Mais uma vez, aproximando esta postura daquela identificada em Ésquilo, nota-se que, neste caso, o discurso não esconde a previsão do porvir, mas antes, embora de modo sub-reptício, intervém no modo como os humanos se lembram das coisas que aconteceram, experienciam a realidade que se lhes apresenta e projetam o que está por vir. Pode-se, então, identificar em Górgias uma atitude similar àquela de Aristóteles que foi mencionada acima, na qual o uso da semelhança não acontece na tentativa de mostrar um poder divino de previsão, mas no fato de se valer do poder mágico de persuasão do discurso. Tentando pensá-la em termos atuais, esta postura se aproximaria daquela que constitui a premissa do estudo de Pelham segundo a qual os humanos são vítimas de não terem consciência da intervenção neles provocada pelo conteúdo descritivo dos nomes. Pelham escreve: No entanto, nós suspeitamos que a pesquisa existente apenas começou a arranhar a superfície de como as associações implícitas das pessoas com elas mesmas influenciam os seus pensamentos e comportamentos (GREENWALD; BANAJI, 1995). Por sugerir que

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as associações das pessoas com as letras dos seus nomes influenciam as decisões mais importantes nas suas vidas, os resultados apresentados aqui sugerem a possibilidade intrigante de que muitas rotas através das quais o conceito de si influencia o comportamento podem ser implícitas ou inconscientes (SPALDING; HARDIN, 1999)” (PELHAM; MIRENBERG; JONES, 2002, p. 484).

Neste sentido, qualquer esforço de explicação de um nome a partir da criação de um neologismo ou de um predicado descritivo põe termo à potência associativa de uma palavra em estabelecer associações com as outras, já que, para isso acontecer, é preciso que tal associação passe desapercebidamente. A excelência discursiva neste caso não se coloca em termos da criação de uma boa explicação a partir da etimologia de um nome, mas antes em termos da criação de um ambiente, de um contexto que, ao envolver o nome, transforme o sentimento que provam os ouvintes ao escutá-lo. A associação de nomes a partir da semelhança, por exemplo, ao ouvir “Helena” pensar em “clemência”, seria apenas uma forma de fazer isso, e nem sequer seria a mais importante. Para que a mudança de perspectiva aconteça de fato seria preciso visar não apenas as palavras, mas aquilo que provoca as palavras, a saber, as coisas, isso pelo menos no caso de Górgias, já que ele, no parágrafo 85 do Tratado do não-ser, declara que “a palavra se forma a partir das coisas exteriores que se apresentam diante de nós, isto é, dos objetos sensíveis” e, portanto, não é a palavra que “é reveladora da coisa exterior, mas a coisa exterior é que se torna indicativa da palavra”. A partir deste raciocínio, pode-se supor que a inversão de perspectiva em relação a Ésquilo não seja apenas relativa ao caso específico de Helena, mas também de ordem metodológica. Para Górgias não seria o caso que o nome revele uma característica ou

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propriedade da coisa, mas, ao contrário, o modo como vemos a coisa é que nos levará a interpretação do nome. Neste caso, a extensão do nome, isto é a quem ele se refere, é que interfere na sua intensão, ou seja, a característica que ele indica. Este raciocínio se mostra coerente com a estratégia do filósofo no Elogio à Helena ao tentar gerar compaixão pelo referente do nome Helena sem propor explicitamente que esta atitude esteja prevista no conteúdo descritivo do seu nome. Por isso Górgias não se propõe a transformar explicitamente o nome “Helena” em um predicado do tipo “a que merece clemência”, o que seria contraditório em se tratando de sua posição no que concerne à linguagem. Como ele considera que a coisa nomeada tem proeminência na interpretação do nome, o que ele tenta fazer é demonstrar, através da sutileza do discurso, que Helena, independente da fama de seu nome, seria digna da clemência do público. Uma vez assumida a perspectiva de clemência por Helena é que, então, será possível ver no seu nome, não a culpa pela perda de naus, homens e vilas, mas antes a clemência merecida por alguém que fora privada de sua autonomia, de sua pátria e de seus amigos. Contudo, uma vez que a extensão do nome, isto é o seu referente, ganha em importância na construção de um discurso persuasivo, sem que a intensão através da semelhança seja totalmente relegada como estratégia discursiva, surge a possibilidade de se utilizar a intensão de um nome para explicar o seu referente não em termos de uma característica particular, mas sim de uma propriedade geral. Essa, por sua vez, ao ser compartilhada pelo público, acabaria por reforçar as chances de identificação entre eles. Isso faria com que os ouvintes sentissem menos dificuldade em adotarem a perspectiva de uma personagem, mesmo sendo ela aquela pela qual eles geralmente não tenham o costume de sentir compaixão. O caso que se examinará a seguir ilustra bem esta possibilidade.

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Helena, na Helena de Eurípides A peça Helena de Eurípides apresenta um outro exemplo que valoriza mais a extensão, sem, no entanto, exigir uma separação ou abandono da intensão de um nome. Logo no prólogo, o poeta, também com o intuito de negar a tradição que condena Helena9, põe ela própria em cena dizendo as seguintes palavras: “e, não a mim, mas uma imagem semelhante inspirada em mim/ de nuvem ajuntada, deu para/ o filho do tirano Príamo, que aparenta me ter/ não tendo, vazia aparência [...] E dos Frígios à força sou prostrada, não eu,/ mas o nome, o meu, prêmio para os Helenos” (vv. 34 – 43). Nesta peça, a diferenciação entre ser e parecer que se torna célebre na filosofia a partir de Platão é, por se tratar de teatro, encenada de forma materializada. Para tanto primeiro Eurípides esvazia o próprio corpo da Helena sequestrada ao declarar que, apesar de se parecer com a Helena real, aquela seria uma imagem feita de nuvem. Desta forma ele acaba com a extensão do nome daquela que teria por propriedade a responsabilidade de ter causado a guerra de Troia, já que o nome da Helena culpada se refere ao vazio. Porém, como resta não só a aparência mas também o nome, que é o mesmo e portanto teria uma mesma intensão, isto não é suficiente para inocentá-la, já que todos seguem acreditando que ela é a culpada. Ciente da profundidade deste problema Eurípides faz Helena desejar em 264 e sq.: “Ah se eu fosse apagada como uma pintura e de novo, pelo inverso,/ uma forma disforme ganhasse ao invés dessa

9 Como se trata de uma tradição que comporta várias versões de mitos o que Eurípides faz é escolher uma outra versão tradicional, mas, pode-se dizer, menos canônica, para inocentar Helena. Para um testemunho das duas posturas conferir Apolodoro Epitomo livro 3.1: “[3,1] Porém, mais tarde Alexandre, convencido por Zeus, sequestrou Helena, já que, desta maneira, sua filha se tornaria famosa por ter provocado uma guerra entre a Asia e a Europa.” E 3.5: “No entanto, alguns afirmam que Hermes, por ordem de Zeus sequestrou Helena, a levou ao Egito e a entregou a Proteu, o rei dos egípcios. Enquanto Alexandre teria ido a Troia em companhia de uma imagem de Helena, feita de nuvens.”

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bela./ E da sorte, a má, que agora tenho,/ os Helenos esquecessem, e outra, não má,/ sustentassem como de mim a má agora sustentam”. Percebe-se, aqui, que Helena deseja alterar sua aparência para deixar de ser considerada culpada, de modo que, lendo as duas passagens em consonância, seria preciso mudar não apenas sua aparência física, para ela se desvencilhar daquela feita de nuvens, mas também o seu nome, para apagar a má fama que ele possui entre os gregos, ou melhor, entre os Helenos. Porém, apesar da personagem acreditar que a solução está na mudança da sua própria aparência, o autor parece ciente de que, justamente por se tratar de uma aparência, esta pode ser alterada sem que seu referente necessite de uma mudança. Para conseguir alterar a percepção que se tinha de Helena, Eurípides, ao invés de mudar, enfatiza o nome da personagem para provar sua conexão com o público. Para perceber isto é que se faz necessária a tradução literal do termo que se refere ao povo grego por ‘Helenos’, pois, é através dele que, também apelando para a legitimação pela semelhança, Eurípides tenta apresentar ao público uma característica de Helena que, se não a inocentaria pelo menos facilitaria o surgimento de um sentimento de compaixão nele. Desta maneira, sem precisar alterar o seu nome ou a sua aparência, elementos mais fixos na transmissão do mito, o poeta consegue construir um drama coerente acerca de uma personagem difamada. A estratégia de Eurípides consiste em misturar intensão e extensão ao evidenciar, sempre por semelhança, a associação entre Helena e os Helenos, mostrando que o nome de Helena expressa em seu conteúdo descritivo como propriedade (intensão) do seu referente o fato dele estar contido no grupo dos Helenos (extensão), assim como o público espectador da tragédia. Em seu exercício de associação extensional entre referentes comprovado pela intensão de um nome, o poeta adota uma estratégia simples, direta e com apelo

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ao caráter humano de seu público para que estes inocentem uma compatriota. Sua estratégia é bem diferente do esforço rebuscado de Ésquilo ao propor, através de um neologismo, uma predicação funesta à Helena que teria sido escondida no seu nome por alguma divindade. Convém notar que na comédia As Rãs de Aristófanes os dois poetas, Eurípides e Ésquilo, criticam um ao outro segundo as mesmas bases demonstradas acima. Eurípides ataca a grandiloquência de Ésquilo dizendo que “nada que ele dizia nunca era claro” (vv. 1067) enquanto Ésquilo critica as monodias de Eurípides, nos quais as personagens principais realizavam digressões sobre a peça, como seria o caso da fala de Helena na peça homônima. É curioso notar ainda que como na Helena de Eurípides a personagem atribui o azar do seu destino à sua beleza excessiva, o mesmo pode ser dito em relação à disputa acerca do estilo de linguagem entre a simplicidade defendida por Eurípides e a beleza sublime almejada por Ésquilo. Para problematizar ainda mais a relação entre o papel da divindade e o papel do autor a partir da postura dos dois dramaturgos convém examinar, ainda, a fala final do coro com a qual Eurípides encerra cinco das suas tragédias que chegaram até nós. Nos versos finais das peças Bacantes, Andrômaca, Medeia, Alceste assim como na Helena se lê: “Muitas são as formas das divindades/ E muitas coisas inesperadamente fazem os deuses/ E as que pareciam não realizam/ Destas, como não parecia, conclui o deus/ E aqui tais se puseram em ação”. Com tal desfecho, o dramaturgo parece explicitar a analogia entre sua função no teatro e a função do deus na realidade. Em ambos os domínios, muitas coisas inesperadas acontecem assim como muitas coisas esperadas não acontecem. Um autor, ao usar palavras, as esvazia ou preenche de significados, tradicionais ou novos, do mesmo modo que faz Hermes com Helena na tragédia de Eurípides, criando um símile vazio e escondendo a verdadeira Helena de modo

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a intervir na maneira como os acontecimentos se desenrolam. Se for válido mais um esforço de comparação entre a atitude de Ésquilo e a de Eurípides, pode-se dizer que ambos estão cientes de exercerem um papel que pode ser adjetivado de divino em relação à produção de seus textos, na medida em que eles têm o controle do desenrolar da trama. Uma destas estratégias consiste no uso da semelhança para indicar não só a intensão de um termo (Helena = aliena naus), mas também sua extensão (Helena = Helenos), mas com a diferença que Eurípides tenta mostrar ao público a artificialidade destas suas estratégias que, no entanto, apesar de funcionarem são passíveis de questionamento10. Ao longo da tragédia de Eurípídes aparecem algumas reflexões sobre a linguagem que parecem revelar a tentativa do dramaturgo de problematizá-la a partir de uma postura crítica. Primeiramente, a verdade de um discurso é questionada no conselho do corifeu: “Helena, não suponhas que o estranho que aqui veio, quem quer que fosse, tenha dito toda a verdade [...] pois também através de mentiras surge uma narrativa” (vv. 306-7, 309). Mais instrutivo ainda é o fato de que, uma vez admitida a possibilidade da mentira, esta não é condenada, mas sim passa a constituir mais um recurso no uso consciente da linguagem. É o que se depreende dos versos em que Menelau e Helena armam o ardil para escaparem do Egito: Helena: “Você aceita, mesmo não estando morto, que seja dito em palavras que você morreu?/ Menelau: “(É) um mau presságio, mas

O que não implica na atribuição a Ésquilo de uma atitude como aquela que Dodds atribuiu a Hesíodo: “Hesíodo tinha uma paixão por nomes, e quando ele pensava algum novo, ele não o olhava como algo que ele acabara de inventar, ele o ouvia, eu acho, como algo que a Musa tinha lhe dado, e ele sabia ou esperava que ele fosse ‘verdadeiro’. Ele de fato o interpretava em termos de um padrão de crença tradicional, um sentimento que foi compartilhado por vários autores mais tardios – o sentimento que o pensamento criativo não é o trabalho do ego” (DODDS, 1973, p. 81)

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se é útil” (vv. 1050-51)11. Nesta passagem, Menelau representa uma postura mais próxima àquela de Ésquilo, segundo a qual a linguagem tem alguma característica divina de interferência na realidade, já que dizer que se está morto, estando ainda vivo, traria um mau presságio. Porém, convencido por Helena, ele aceita a utilidade da mentira, da boa mentira, que é aquela que não só aparenta ser verdade como é justificada por provocar consequências positivas na realidade. Diante destas duas atitudes, convém ressaltar a diferença do tipo de suas respectivas intervenções na realidade. Em um caso, que pode se chamar dos poderes divinos da linguagem, um nome traz mau augúrio, ou tem em si a sinalização do destino da pessoa previsto por alguma divindade, no outro caso, no que poderia ser chamado dos poderes persuasivos da linguagem, a mentira engana os humanos ao fazê-los acreditarem em algo que embora seja falso parece ser verdadeiro. Um exemplo que endossa a postura de usar uma mentira para se obterem resultados positivos fora do contexto de uma tragédia pode ser encontrado na República de Platão. Em 389 b, Sócrates diz que “uma mentira é inútil para os deuses, mas útil para os humanos como um tipo de droga”. Talvez seja assim que se deva ler o uso das explicações por etimologias forjadas em Platão e em Aristóteles, como mentiras que servem para persuadir em benefício de quem é persuadido. Assim também pode ser entendida a atitude de Górgias e Eurípides que apelam para um poder persuasivo da linguagem, mas sem utilizar, nos casos analisados, a explicação baseada em uma etimologia, ainda que eles não abandonem os artifícios válidos

Que é inclusive o mesmo ardil utilizado na Orestéia de Ésquilo por Eléctra e Orestes. Na peça de Ésquilo eles simulam com palavras a morte de Orestes para que este possa retornar ao seu palácio.

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para as explicações etimológicas como a semelhança, a intensão e a extensão aplicadas aos nomes próprios.

Conclusão Os gregos antigos realizaram suas reflexões sobre a linguagem tratando-a a partir do seu uso corriqueiro. Eles pareciam menos preocupados em encontrar as contradições deste uso, ou em normatizar sua forma ideal, do que em explorar suas possibilidades, muitas delas provenientes justamente de um uso que aceita a reunião de aspectos que podem carecer de fundamentação lógica. Sua abordagem do uso dos nomes, inclusive dos nomes próprios, desta maneira mais indistinta, não se preocupa em separar suas capacidades descritiva e referencial, ou em aplicar-lhes uma intensão e extensão. Desta maneira surgem possibilidades de uso que, explorando a perspectiva vaga com a qual comumente se interpreta um nome, acaba sendo efetiva na construção de um texto bem composto. O exemplo mais extremo deste uso indistinto talvez seja o de Eurípides ao usar a intensão de do nome próprio “Helena” a partir de seu caráter descritivo, algo que não seria aceito de um ponto de vista lógico atual, para identificar sua extensão com uma referência, não individual, como seria o caso de um nome próprio, mas sim plural, de um conjunto de indivíduos que se via como um grupo, os Helenos. Além disso, neste e em outros casos, não se observa a preocupação em explicitar esta associação para os ouvintes, fato que não os impediria de, talvez até inconscientemente, sofrerem seus efeitos. O fato de esta abordagem continuar operante nos dias de hoje, seja para quem produz ou para quem recebe um discurso – o que não retira a legitimidade de uma reflexão lógica em busca de uma determinação pertinente de um funcionamento ideal da linguagem – justifica o esforço para se entendê-la, tanto em uma perspectiva histórica quanto em uma perspectiva filosófica.

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Por fim, no intuito de apontar possíveis direções para o desenrolar desta investigação, resta a assinalar dois efeitos que o uso das etimologias como explicação de seus referentes pode ter gerado no mundo antigo. O primeiro deles encontramos na comédia que, ao ampliar uma estratégia a ponto de fazer com que se pareça ridícula, acaba desempenhando um papel similar de crítica a uma interpretação etimológica das palavras, principalmente dos nomes próprios. Neste caso, ao atribuir um nome a uma personagem criada pelo autor e não a uma personagem tomada da tradição, é possível ao comediógrafo escolher de maneira explícita uma raiz etimológica que indique uma propriedade da personagem. As comédias de Aristófanes oferecem vários exemplos desta postura, como ocorre com o nome de Lysístrata na comédia homônima (λύω: ‘soltar, desamarrar, dissolver’ e στρατός: exército), o qual remete à sua propriedade, ou ao objetivo final na direção do qual se desenrola a peça. Segundo Kanavou, Isto é certamente verdadeiro para os nomes das personagens principais, que são de longe os mais interessantes, pois eles são quase sempre ‘falantes’, frequentemente tendo algum tipo de som cômico bem como um propósito dramático: quase todos os heróis e heroínas aristofânicos programam atingir um objetivo comicamente fantástico, na maioria das vezes algo que é relevante por preocupações sociais e políticas de seu tempo, que é o elemento básico da trama e está expresso em seus nomes (cf. O nome de Lysístrata, que tem um plano fantástico que reflete a esperança em acabar com a guerra entre Atenas e Esparta) (2010 p. 11).

De forma que através de um uso cômico exagerado o comediógrafo mostra que, aplicado em excesso (ou de forma muito explícita), a estratégia que poderia ser indicação de uma previsão divina acaba

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tendo o efeito reverso. Ao invés de legitimar a coerência interna de uma narrativa o conteúdo descritivo de uma etimologia acaba expondo ao riso sua própria impertinência. E ainda, a título de suposição que merece uma investigação particular, parece possível propor uma explicação para o fato de Platão, ao introduzir em seus diálogos personagens fictícias que não são baseadas em indivíduos reais, utilize paráfrases ou predicados descritivos explícitos como o ‘cidadão ateniense’ para alguém que incorpora os costumes políticos de Atenas ou o ‘estrangeiro de Eléia’ para alguém versado nos ensinamentos de seu conterrâneo Parmênides. Estas personagens não teriam como referentes nenhum indivíduo em particular, mas antes incorporariam uma série de características universais cuja extensão os referiria a um grupo. Por isso, ao invés de criar nomes que expressariam estas características ou propriedades, o filósofo prefere referir a eles através destes predicados descritivos que tornam explícitos, sem o uso de subterfúgios, as propriedades que eles comportam. Uma passagem da Poética de Aristóteles ajuda a pensar a variação entre particular e universal relacionada ao estabelecimento de um nome: Um universal comporta um tipo de discurso ou de ação que pertence, por necessidade ou probabilidade, a um determinado tipo de personagem. […] Um particular é o que Alcibíades fez ou experienciou. Isto se torna claro no caso da comédia na qual é só após uma trama com eventos prováveis ter sido construída que se colocam nomes ordinários nas personagens. [...] Na tragédia, por outro lado, os poetas mantêm os nomes reais (1451 b 11-12).

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Como se viu, o fato de manter nomes reais não impede os poetas de utilizarem esta restrição a seu favor para gerarem uma coerência interna persuasiva. Uma das possibilidades é extrair de um nome um predicativo que descreva uma propriedade importante de seu referente. Contudo, em algumas situações, por exemplo, devido ao uso excessivo deste artifício, sua legitimidade pode ser abalada, gerando uma situação em que é melhor abandoná-lo, sem ter que abrir mão da potência que a semelhança tem na construção de um discurso coerente. Platão, por sua vez, talvez numa tentativa de colocar-se fora destas questões que podem ser consideradas principalmente retóricas, tenha visto como uma solução a estratégia de utilizar como nomes os predicados descritivos que seriam a forma mais explícita de indicar que se refere a algum tipo de personagem que traz características gerais. Esta solução, inclusive, talvez possa ter sido inspirada também na tragédia que, no caso de personagens secundários, se refere a eles apenas através de sua função, como o caso do “mensageiro” ou do “vigia”.

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GÓRGIAS. Die Fragmente der Vorsokratiker. Ed. H. Diels und W. Kranz. Berlin: Weidmann, 1960-1961. v. 1. HOGAN, J. C. A Commentary on the Complete Greek Tragedies – Aeschylus. Chicago: Chicago University, 1985. KANAVOU, N. Aristophanes’ Comedy of Names: a Study of Speaking Names in Aristophanes. Berlin: De Gruyter, 2010. PLATO. The Works of Plato. Edition by B. Jowett and I. Edman. New York: The Modern Library, 1930. PELHAM, B. W.; MIRENBERG, M. C.; JONES, J. T. Why Susie Sells Seashells by the Seashore: Implicit Egotism and Major Life Decisions. Journal of Personality and Social Psychology, v. 82, n. 4, p. 469–487, 2002. ROBINSON, R. A Criticism of Plato’s Cratylus. The Philosophical Review, v. 65, n. 3, p. 324-341, 1956.

Recebido em 14 de novembro de 2011 Aprovado em 5 de fevereiro de 2012

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Epítetos: entre Homero e a apropriação da tragédia e comédia Luciene Lages Silva UFBA

RESUMO: Este artigo se propõe a discutir às questões que envolvem o uso de epítetos nos poemas homéricos e no teatro clássico grego. Considerado como uma ferramenta típica dos poemas homéricos, os epítetos ocupam lugar de destaque na representação de um herói ou objeto. O artigo está organizado em três partes. A primeira, em que apresentamos os principais teóricos que se dedicaram a categorizar os epítetos, evidencia seu uso e sua relevância em termos gerais; a segunda se dedica ao uso de epítetos na obra de Homero; a terceira observa a apropriação desse recurso pelos três grandes tragediógrafos gregos e por Aristófanes. PALAVRAS-CHAVE: Epíteto. Homero. Teatro. ABSTRACT: This article proposes to argue the questions that involve the use of epithets in homeric poems and the Greek classic theater. Considered as a typical tool of homeric poems, the epithets occupy place of prominence in the representation of a hero or object. The article is organized in three parts. The first, where we present the main theorists who have dedicated themselves to categorize the epithets, demonstrating their use and relevance in general terms; the second is dedicated to the use of epithets in the works of Homer, the third looks at the appropriation of this resource by the three great tragedians Greeks and Aristophanes. KEYWORDS: Epithet. Homer. Theater.

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Introdução 0Epi&qetov, ‘ajuntado’, ‘aumentado’, ‘acrescentado’, ‘introduzido’, importado’, palavra que acrescenta ao nome uma designação particular. Formado pela preposição e0pi&e pelo verbo ti&qhmi, ‘colocar sobre’, ‘aplicar’, ‘ajuntar’. Segundo Aristóteles, o epíteto pertence manifestadamente à poesia, e o seu uso em prosa deve ser feito com moderação, porque sua frequência marca o discurso poético, e falar poeticamente na prosa pode tornar o estilo inconveniente, obscuro e até ridículo. De acordo com o filósofo de Estagira, aos autores do ditirambo convém o uso de palavras compostas porque são enfáticas; aos poetas épicos, as expressões obsoletas, porque têm majestade e elevação; e as metáforas, aos poetas trágicos e cômicos, porque podem ser ridículas, obscuras e de caráter trágico1. Com relação ao epíteto, o filósofo afirma ainda que se pode ajuntá-lo ao aspecto mau e vergonhoso ou ao aspecto bom de um objeto qualquer, e cita como exemplo a escolha entre o9 metrofo&nthv, ‘o assassino de sua mãe’, ou o9 patro&v a0mu&ntwr, ‘o vingador de seu pai’, referindo-se naturalmente a Orestes. Tal exemplo mostranos desde já o caráter seletivo e sincrético do uso de determinados epítetos, da escolha de uma característica que se quer pôr em destaque, colocando o foco neste ou naquele aspecto2. É evidente que o que se quer realçar pode estar motivado pela intenção poética

1 Aristóteles, naturalmente, não desaconselha o uso de epítetos e metáforas no discurso em prosa, o orador deve se esforçar em procurar epítetos e metáforas - visto que dispõe de menos recursos do que os poetas - que primem pela analogia, pela clareza, pelos termos belos, sejam eles belos pelo som, pela força de expressão, pelo aspecto ou por alguma qualidade especial, a tarefa está em encontrar a palavra que é mais própria do que outra, que coloca o objeto diante de nossos olhos. Retórica, III, II e III.

Veja-se Retórica, III, II e Chaïm Perelman, O Império retórico (1993, p. 63-66). Para esse autor, a neutralidade de uma descrição demonstra facilmente o que tem de tendenciosa quando se lhe opõe outra: “cada epíteto é exato, mas não exprime senão um aspecto da realidade”.

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de se provocar estranhamento ou de se variar o contexto, como, por exemplo: Citeria, kuqe&reia, ao invés de Afrodite, Tidida ou filho de Tideu, Tudei&dhv, ao invés de Diomedes. De acordo com Lausberg (1967, p. 154; p. 193-196), o epíteto em uma frase pode determinar com maior precisão um substantivo; pode funcionar como atributo, como adjetivo predicativo do sujeito e como nome predicativo do sujeito. Essa relação semântica entre o adjetivo e o nome ao qual ele está ligado pode ter um caráter enunciativo que ultrapassa o sentido próprio do nome ou pode exprimir um sentido que lhe é inerente. Os adjetivos enunciativos podem tanto ser necessários quanto desnecessários para completar semanticamente o contexto. Naturalmente, são desnecessários aqueles adjetivos atributivos e predicativos que não adicionam nenhuma novidade ao contexto semântico no qual estão inseridos, por isso foram chamados de epitheta ornantia, epítetos ornamentais. É o caso de: ga&la leuko&n, leite branco, em que o sentido do adjetivo é inerente ao substantivo. Para o referidoautor, se mais de um adjetivo estiver relacionado a um substantivo, a conexão entre eles se dá por meio da sinonímia ou de uma acumulação coordenante. É comum pensarmos nos epítetos como termos que trazem uma ideia suplementar ao nome ao qual estão ligados, mas Paolo Vivante chamou a atenção para o risco que corremos de vê-los como elementos secundários. Tal pensamento traz a implicação de que as coisas são, inicialmente, identificadas e, posteriormente, qualificadas, como se as suas qualidades não fizessem parte ou não fossem uma parcela de suas identidades. De modo que é exatamente a impressão qualitativa que nos faz re-descobrir a identidade do objeto e, em muitos casos, são as qualidades de um objeto que lhe dão distinção. Assim, um adjetivo pode funcionar como uma forma de designação, impressão, juízo de valor que se funde a um nome isolando-o,

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realçando-o, universalizando-o, como uma forma única de expressão de uma identidade, em que a sua natureza será realçada a partir de um determinado foco3. Contudo, é necessário destacar que nem todos os epítetos acrescentam essa impressão qualitativa ao nome a que se referem. De modo que podemos entender os epítetos como uma expressão que se ajunta a um nome servindo ao fim de ampliar, quantificar, qualificar, restringir, realçar uma ideia que pode ou não ser-lhe inerente. Tomemos como exemplo o epíteto dai&frwn, prudente, comumente utilizado para predicar Odisseu, que realça uma característica já marcada no herói, caso diferente se fosse usado para se referir a Héracles, que não aparece, em geral, designado por essa qualidade. Em termos gramaticais, um epíteto não é sempre representado por um adjetivo, pode também vir como um substantivo: a1nac, ‘rei’, ‘senhor’, ‘soberano’; ou como uma expressão apositiva: w] fi<at’a0ndrw=n. Ó mais amado dos homens. (fala de Mégara no Héracles, v. 531). Por fim, cumpre ressaltar que: a) alguns epítetos descrevem aspectos físicos; b) outros marcam aspectos do caráter; c) outros ainda descrevem ações; d) e alguns, em especial, suscitam mais prontamente uma imagem imediata. Até o momento, referimo-nos aos epítetos de modo genérico, mas, feitas essas primeiras considerações, procederemos a uma análise do uso dos epítetos em Homero e, posteriormente, na tragédia e comédia.

3 Para Paolo Vivante, essa fusão entre o adjetivo e o substantivo que ele qualifica assinala uma necessidade que vai além da mera comunicação, marca uma disposição criativa para se perceber o objeto em seu valor intrínseco (1982, p. 3-10).

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Os epítetos em Homero Os estudiosos da língua homérica sempre admitiram que a dicção homérica é feita em grande parte de fórmulas, representadas não só por epítetos mas também por símiles. Para os epítetos, servimo-nos aqui, principalmente, dos estudos de Milman Parry, em L’épithète traditionelle dans Homère, e de Paolo Vivante, em The epithets in Homer: a study in poetic values. Para autores como Bergson, o trabalho de Parry é, sem dúvida, a obra mais importante sobre os epítetos homéricos ornamentais. A publicação da obra na época de Parry se revelou como uma contribuição significativa para os estudos homéricos, sendo fato reconhecido que seu trabalho tratou o tema de maneira mais completa e definitiva que seus predecessores Düntzer e Meister (BERGSON, 1956, p. 19)4. Para Parry, fórmula é uma “expressão que é regularmente empregada, nas mesmas condições métricas, para exprimir uma certa ideia essencial”. E epíteto foi definido por ele como uma técnica formular em que um vocábulo é acrescentado – sem intermediário de algum verbo copulativo – a um substantivo, para qualificá-lo (PARRY, 1980, p. 14; p. 20-23; 1928, p. 16, p. 24-28). O helenista apresenta uma distinção entre epíteto particularizado (que visa à ação momentânea) e o epíteto ornamental (que não tem relação com as ideias expressas na frase nem com aquelas passagens em que se encontra). O epíteto ornamental, também chamado de epíteto fixo, depende, basicamente,

4 É importante ter em mente que o autor faz essa afirmação em 1956, no entanto, é impossível a qualquer pesquisador do tema não recorrer à obra como ponto de partida. Os principais predecessores de Parry apontados por Bergson são H. Düntzer, Homerische Abhandlungen (Leipzig, 1872, 507 p.) e K. Meister, Der homerische Kunstsprache (Leipzig, 1872, 226 p.), mas o próprio Parry refere-se às obras de outros autores que lhe serviram de base como J. E. Ellendt, Ueber den Einfluss des Metrums auf Wortbildung und Wortverbindung (Königsberg, 1861) e G. Hinrichs, De Homericae elocutionis vestigiis Aeolicis (Diss. Berol., 1875), entre outros.

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da sua facilidade e comodidade para atender às necessidades métricas. Por isso mesmo, são chamados de tradicionais5. Parry ressalta ainda que o auditório de Homero já estava familiarizado com o estilo da poesia heróica e com um certo número de expressões generalizadas, e que o estudante moderno deve compreender que esses epítetos chamados de ornamentais eram empregados para qualquer membro de certo gênero de coisas ou de heróis, tais como: qoh&n, veloz, para se referir a nau, nh=a, ou, por exemplo, o epíteto dai&fronov, prudente, sábio, empregado para se referir a Odisseu, Diomedes, Aquiles e Príamo, entre outros. A condição indispensável de toda interpretação do epíteto homérico é saber se ele foi usado em sentido ornamental, fundido com a ideia expressa pelo substantivo a que foi acoplado. E mais, como saber claramente que a escolha de determinado epíteto reflete uma intenção clara de Homero para completar a ideia de uma frase? As pistas para uma investigação podem considerar a repetição das mesmas condições métricas como um sinal de que o epíteto foi usado para completar a significação da oração, mas esse dado pode não ser prova suficiente. Há que se levar em conta o contexto em que o epíteto aparece e os outros empregos desse mesmo epíteto.

5 Parry (1928, p. 2-4; p. 99) aponta três fontes que tentam explicar porque o estilo de Homero é tradicional: a) (E. Drerup, Homerische Poetik. Würzburg, 1921, p. 27 ss.) é tradicional porque era empregado por todo poeta de seu tempo que compunha narrativas heroicas, tal premissa é considerada por Parry muito geral; b) (P. F. kretschmer, De iteratis Hesiodeis, Vratislav, 1913) algumas conclusões foram tiradas a partir da comparação entre o estilo de Homero e o dos fragmentos do Ciclo Troiano, do Escudo de Hesíodo e dos Hinos homéricos, hipótese considerada pouco consistente pelo autor vistoque pode servir como uma indicação sobre o estilo do épos, mas não o suficiente devido aos poucos fragmentos do Cicloe à brevidade do Escudo, sem falar no fato de que essas obras pertencem a épocas diferentes; c) a fonte mais abundante em indicações sobre o estilo dos poemas homéricos, e seguida por Parry, é a reconstituição dos elementos de estilo que são comuns à Ilíada e à Odisséia. Para Parry, um estudo das fórmulas homéricas deve ter em vista distinguir nos poemas o que pertence à tradição e o que faz parte da originalidade do poeta ou dos poetas que compuseram a Ilíada e Odisséia.

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Parry enumera quatro características que podem ajudar a distinguir um epíteto fixo de um particularizado, a saber: a) eles são empregados segundo seu valor métrico e não segundo sua significação; b) eles são tradicionais (ou seja, pertencem a uma tradição herdada dos aedos que os utilizavam com uma ou outra variação); c) eles são sempre ornamentais; d) eles são frequentemente genéricos. Tal classificação ainda exige interdependência, ou seja, um epíteto só poderá ser considerado fixo se possuir essas quatro características (PARRY, 1928, p. 208)6. O cerne da questão centra-se no fato de que todo epíteto começa como particularizado: é o seu sentido genérico que abre a possibilidade de ele ter um uso fixo ou ornamental. No método proposto por Parry, o sentido particularizado de um epíteto parte de uma investigação nas seguintes etapas: em primeiro lugar, deve-se isolar os versos em que o epíteto aparece; em segundo lugar, deve-se tentar dar ao epíteto uma significação particularizada com relação à sentença à qual ele pertence, observando-se se ocorre uma influência direta na ação do momento; em terceiro lugar, cumpre observar outros usos do epíteto para se confirmar se essa escolha do poeta foi de fato intencional (PARRY, 1928, p. 192-206). No entanto, certos epítetos usados com frequência em descrições tradicionais não perdem seu caráter particularizado. Parry cita como exemplo o epíteto i3ppourin, penacho de crina, que aparece quatro vezes nos poemas (Ilíada III, 336; XV, 480; XVI, 137 e Odisséia XXII, 123) para qualificar o substantivo kune&hn, capacete, elmo, cenas em

6 Bergson questiona a primeira classificação de Parry de que os epítetos fixos são empregados pelo seu valor métrico e não pela sua significação, para esse autor, é exatamente porque eles são fixos que facilitam a versificação, graças ao sentido de que são portadores (BERGSON, 1956, p. 21).

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que o poeta descreve o guerreiro se compondo com suas armas para o combate. Neste caso, temos uma imagem que a audiência de Homero, pelo uso frequente, estava acostumada a apreciar e, por isso mesmo, é provável que, em cada uma das quatro ocasiões, o epíteto tenha sido escolhido em virtude dessa significação, mantendo assim seu sentido particularizado. Milman Parry foi duramente criticado por Paolo Vivante, que viu na teoria do primeiro uma negação do significado dos epítetos. Na opinião de Vivante, a sistematização de Parry não ofereceu nenhuma distinção semântica precisa provando que o princípio da ornamentação poderia ser considerado compatível com o do significado. Mesmo a definição de Parry de que o epíteto deveria ser visto como “uma expressão usada regularmente, sob as mesmas condições métricas, para expressar uma ideia essencial” é censurada pelo autor que defende que a ideia essencial diz respeito à mera designação de uma coisa ou de um ato e que a negligência com a importância do significado seria sempre compensada com a força do metro. De modo que, diante de tal premissa, o epíteto funcionaria como um “luxo dispensável”. Vivante ainda postula que a abordagem de Parry é genérica e, ao mesmo tempo, discreta demais. Para aquele seria necessário responder a perguntas tais como: qual conexão há entre o ritmo e o significado? O ritmo pode ser tão privado do significado? E, ainda, o significado só é significado à medida que é particularizado? Vivante parece caminhar para formulações que priorizem sempre o significado. O seu estudo focaliza o princípio criativo como característica da expressão poética, ele estabelece sua teoria a partir da potencialidade poética antes de regras metricamente estabelecidas. Ele define o epíteto homérico como “uma palavra caracterizante de um grupo de palavras que estão intimamente atados a um

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nome para formar com ele uma imagem única, e isto sem qualquer ponto de conexão do significado com o contexto” (VIVANTE, 1982, p. 158-159). A ideia básica é a de que o objeto e o epíteto estão tão ligados que este não é simplesmente um meio para um fim, não está completamente submetido à circunstância, à causa ou ao efeito. Vivante cita como exemplo a passagem em que Aquiles é detido por Atena, no canto I, da Ilíada (v. 219): kai\ e0p’a0rgure&h| kw&ph| sxe&qe xei=ra barei=an - e sobre o punho prateado da espada conteve a mão forte. Segundo o autor, tanto a0rgure&h, ‘prateado’, quanto barei=an, ‘forte’, não têm conexão direta com o contexto narrativo. Todavia, os termos funcionam como um requinte poético que produz, na imagem, uma pausa necessária para uma visualização mais detida. De modo que somos levados a fixar a nossa atenção, momentaneamente, por exemplo, no brilho da prata e na força de Aquiles, representada por sua mão forte, robusta. Nesses momentos, o foco visual está nos objetos e não na ação. Apesar das críticas de Vivante, há autores, como Kirk, que consideraram que as contribuições de Parry foram negligenciadas já que, depois de sua morte prematura, a maioria dos trabalhos a respeito da língua de Homero parte de suas primeiras formulações. Para Kirk, Parry demonstrou, primeiramente, que as frases fixas em Homero compõem um sistema tão fechado e lógico que só poderia ser resultado de muitas gerações de refinamento. E, neste processo de refinamento, fica claro que o poeta tinha em sua memória um número de frases alternativas para todo conceito dado, cada uma contendo um valor métrico ligeiramente diferente. De modo que o poeta contava com uma margem de variações entre palavras e combinações, e podia se concentrar em preencher o verso hexâmetro, levando em conta um significado particular (KIRK, 2005, p. 59-68).

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É exatamente a partir das duas categorizações dos epítetos (fixos ou particularizados) formulados por Parry que outros autores puderam se aventurar a estabelecer uma nova classificação para tal ferramenta. Por fim, cabe ainda nos referirmos aos estudos de Leif Bergson que se dedicou, em L’épithète ornamentale dans Eschyle, Sophocle et Euripide, à análise dos epítetos na obra dos trágicos. Bergson apresenta três categorias de epítetos: a) epítetos determinativos, como o próprio nome indica, são aqueles indispensáveis à compreensão do contexto; b) epítetos qualificativos ou afetivos, que são, de certo modo, superficiais, mas, ao se juntarem ao vocábulo principal, acrescentam uma nuance justificada pelo contexto, ou seja, não são exclusivamente ornamentais; c) epítetos ornamentais, aqueles que não têm absolutamente nada a ver com o contexto. Tal categorização traz a implicação de que o epíteto ornamental sempre serve para tornar a palavra a que ele se liga mais compreensível em termos de contexto, ou ele pode ser pensado como aquele termo que, por pouco que seja, desperta um sentimento no auditório ou no leitor ampliando sua compreensão (BERGSON, 1956, p.17-18).

Os Epítetos na Tragédia e na Comédia É importante notarmos que, apesar de os epítetos não serem uma ferramenta básica do teatro, os poetas trágicos e cômicos não se eximiram de utilizá-los. Não temos trabalhos numerosos dedicados ao estudo dos epítetos no teatro grego, e quando há, a discussão em face do tema se faz mais forte em torno da preferência ou não que os grandes tragediógrafos tiveram pelo uso de epítetos ornamentais. No entanto, esse aspecto representa apenas um lado da moeda, porque os dramaturgos gregos podiam se servir livremente dos epítetos homéricos, ou mesmo dos que lhes chegaram através dos poetas líricos e, paralelamente, criar novos epítetos, epítetos não tradicionais. Ou seja,

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enquanto Homero se utiliza, de modo essencial, de uma técnica tradicional, os trágicos, por sua vez, puderam criar sua dicção pessoal. Essa liberdade de criação é um aspecto de suma importância, já apontado por Bergson: Os cantos homéricos são compostos frase por frase, enquanto que as tragédias gregas são compostas palavra por palavra. Em princípio, os trágicos puderam escolher seu epíteto em cada caso, o que para os poetas épicos não era nem possível, nem desejável (BERGSON, 1956, p. 43)7.

A argumentação do autor se pauta na questão métrica, visto que no gênero dramático a liberdade na escolha métrica dá ao poeta a possibilidade de eleger um epíteto cujo uso não seja motivado simplesmente pela facilidade na versificação. Quando se refere a Homero, Leif Bergson, geralmente, parece concordar com a posição de Parry a respeito do valor quase que essencialmente ornamental dos epítetos. Mesmo quando critica as definições de Parry, ele se preocupa mais em fazer um contraponto entre Homero e os trágicos como uma estratégia para ressaltar a sua posição de que os epítetos na tragédia são escolhidos, em sua maioria, motivados pelo contexto. O autor se dedicou à investigação dos epítetos ornamentais na obra dos três maiores tragediógrafos gregos sob duas perspectivas: uma, em que a análise centra-se nos epítetos ornamentais homéricos (nos

7 “Les chants homériques sont composés phrase par phrase, alors que les tragédies grecques sont composées mot par mot. Em principe les tragiques peuvent choisir leur épithète dans chaque cas, ce qui pour les poètes épiques n’était ni possible, ni souhaitable”.

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que conservam e nos que não conservam o mesmo valor estilístico), e outra, em que a análise está focada nos epítetos não-homéricos (que por sua vez, se dividem entre os que provavelmente são tradicionais e os que não são tradicionais)8. Desse modo, a dicção trágica pôde contar com epítetos ornamentais, mas se serviu deles para formar antíteses deliberadamente pretendidas, como por exemplo. É fato que os trágicos deram nova vida aos epítetos ornamentais, não seguindo de modo fiel o mesmo emprego que a fonte precedente, como se pode verificar neste trecho das Eumênides (vv. 743-5): Orestes – w] foi=b’ 1Apollon, pw=v a0gw\n kriqh&seqai; – Ó brilhante Apolo, como vai se decidir a luta? Corifeu – w] Nu=c me&laina mh=ter, a]r’ o9ra|=v ta&de; – Ó Noite, sombria mãe, vês o que acontece aqui? Orestes está diante do tribunal estabelecido por Atena e interroga seu protetor. Segundo Chantraine, foi=bov, Febo pode tanto significar puro quanto luminoso, brilhante, e é reconhecidamente o epíteto de Apolo. Em Homero, temos trinta e duas passagens em que esse epíteto acompanha o nome do deus e nove em que ele aparece sozinho, referindo-se a ele (CHANTRAINE, 1977, p. 1216-1217). Para muitos, Apolo é o deus mais importante depois de Zeus, já que a luminosidade

8 O autor apresenta uma catalogação dos epítetos ornamentais utilizados por cada um dos tragediógrafos: Ésquilo empregou 33 epítetos homéricos e 32 epítetos não-homéricos (18 tradicionais e 14 não-tradicionais); Sófocles, 50 epítetos homéricos e 31 não-homéricos (16 tradicionais e 15 não-tradicionais); Eurípides, por sua vez, empregou 83 epítetos homéricos e 81 epítetos não-homéricos (48 tradicionais e 33 não-tradicionais). Para Leif Bergson, Sófocles pode ser chamado de 9Omhrikw&tatov, o mais homérico, dos trágicos, visto que é o que menos usou epítetos não homéricos (BERGSON, 1956, p. 69-142).

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do deus se configura no seu aspecto físico, além de ser representado sempre jovem e majestoso. Apolo é também o deus purificador, o agýeus, o protetor dos caminhos (OTTO, 2005, p. 53-70). No trecho acima, Orestes clama pelo poder luminoso do deus. Em contrapartida, o coro formado pelas Erínias, deusas vingadoras do crime familiar, clama pela deusa Nýx, a Noite, que as gerou. O adjetivo me&laina, que aparece na invocação, é comumente traduzido para o português com o significado de ‘negra’, mas também, por extensão, pode ser traduzido com o sentido de ‘obscuro, sombrio’. Assim, optamos por ‘sombria mãe’ e não ‘negra mãe’, para ressaltar um aspecto da deusa e não da mãe, um aspecto que contrasta com a luminosidade do filho de Zeus. Segundo Chantraine (1977, p. 680), em Homero, o adjetivo me&lavserve para qualificar o vinho, o sangue, a água do mar ou de um rio e, por metáfora, é aplicado à morte, thánatos (Il. II, 834). Na tragédia, porém, esse epíteto é utilizado, em geral, para qualificar deuses, não só Nýx, a Noite (também em Electra, v. 54), mas Ares (Agamêmnon, v. 1511), Hades (Édipo Rei, v. 29) e a própria Erínia (Os Sete contra Tebas, vv. 978 e 988). Na cena acima, poderíamos destacar dois pólos: o dos suplicantes, Orestes X Erínias e o daqueles a quem a súplica é dirigida, Apolo X Noite. Todos estão presentes ao julgamento, menos Nýx, o que nos permite pensar que os epítetos servem para realçar, na própria representação, o caráter luminoso de Apolo X o caráter sombrio, não da Noite, mas das Erínias. Pensando sobre o ponto de vista da performance, o momento preciso da realização dessa cena deixaria mais evidente o contraste entre essas forças. Por exemplo, caso a cena fosse representada a partir do meio do dia, com o sol em todo o seu esplendor – nessa situação, melhor para Orestes e Apolo. Se no entanto, com o transcorrer do dia e das encenações (visto se tratar da última peça da trilogia de Ésquilo), se Eumênides fosse representada ao entardecer, no fim do crepúsculo,

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com o surgir das trevas, obviamente, o drama ficaria mais tenso9. Nosso comentário pretende apenas reafirmar que o espaço e o clima na representação de uma tragédia são essenciais e é relevante o fluir do tempo, a mudança das horas, das cores, da luz, na realização do espetáculo. De modo que esses aspectos funcionam como vetores para ressaltar a obscuridade das Erínias e sugerir não a materialização, mas a evocação da entidade Nýx, Noite. A oposição luz x sombra reforça outras duas oposições aludidas na peça: os deuses antigos (Erínias) X os deuses novos (Apolo e Atena); as leis antigas (o direito à vingança do sangue) X as leis novas (instituição do tribunal para os homens). De modo que tais epítetos (foi=bove me&laina)representam uma oposição antitética que é fundamental ao contexto das Eumênides. Por fim, cumpre também assinalar que os trabalhos dedicados à investigação dos epítetos no teatro grego apresentam estudos acerca dos epítetos homéricos, ou que vieram da tradição homérica, aplicados à tragédia e não à comédia. Isso se deve, provavelmente, ao fato de que a tragédia, de uma maneira ou de outra, ao usar um epíteto, conserva, reitera ou amplia o seu significado. No caso da comédia, o uso dos epítetos, muitas vezes, nega o modelo, o significante nos parece deslocado do significado, isto quando aquele não encontra

9 Em A. Pickard-Cambridge, The Dramatic Festivals of Athens, (1968, p. 67), encontramos um esboço da ordem das festividades nas Dionisíacas, entre outras coisas, supõe-se que 1) as cerimônias diurnas começavam na aurora; 2) provavelmente, bem cedo, o teatro era purificado através do sacrifício de um leitãozinho ainda lactente; 3) as libações eram comandadas, ao que parece, pelo estratego; 4) as homenagens concedidas aos cidadãos e o cortejo dos filhos de cidadãos mortos em batalha realizavam-se antes da apresentação dos dramas; 5) cada evento na competição era anunciado pelo som da trompa. Observando tais procedimentos, podemos pensar que se essas atividades eram realizadas no mesmo dia, as tragédias deviam ter início no princípio da tarde e no caso da trilogia Oréstia, a encenação de Eumênides ocorreria durante o crepúsculo. A transição dia-noite materializa a escuridão realçando mais um aspecto do conflito representado. Surpreendente e reconfortante para a audiência, no entanto, é a vitória da luz (Apolo) em meio às sombras, ao cair da noite.

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correspondência neste. Se, como apontou Aristótelesna Poética (1448a, 16-8, 26-8; 1449a, 32-5), a tragédia tem entre outros pontos comuns com a épica, o fato de serem ambas imitação (mi&mhsiv) de homens superiores, é natural que os epítetos que se referem a heróis e deuses encontrarão, no que diz respeito ao sentido, um campo fértil. A comédia, por sua vez, é imitação (mi&mhsiv) de homens inferiores, mais precisamente, daquela parte que é risível (geloi=on), e explora a ferramenta épica para, como é apropriado ao gênero, suscitar o ridículo, provocar o riso, propor novos parâmetros para denunciar a inadequação do pensamento antigo com o que se propõe no séc. V a.C. Sem a exigência rigorosa do metro, com possibilidades mais variadas, mas não somente por isso, o epíteto (ou a ausência dele) é escolhido em função do seu sentido, seja para denotar um aspecto específico do objeto (selecionado maliciosamente pelo poeta), seja para criar uma oposição entre o epíteto e o objeto que se predica, seja, ainda, para usá-lo como um instrumento de ataque aos seus inimigos, no caso de Aristófanes, tanto no campo literário quanto político. Gostaríamos de destacar, a título de exemplificação, quatro epítetos e seus usos na comédia de Aristófanes. Como primeiro exemplo, centramo-nos em um epíteto de Zeus (Il. 1 ,508) que é aplicado a Péricles n’Os Acarnenses10.O protagonista

OsAcarnenses foi a primeira comédia em que Aristófanes ganhou o primeiro lugar no concurso das Lenéias de 425 a. C. Data que marca seis anos da guerra do Peloponeso e quatro anos da morte de Péricles, quando a população circunvizinha a Atenas, como os habitantes de Acarnas – que tiveram as suas vinhas devastadas pela guerra – recorreu à proteção dos muros da cidade. Depois da morte de Péricles, a guerra trouxe lucros a muitos que desejavam continuar alimentando o conflito. Diante de tal quadro político, Aristófanes coloca em cena de um lado, Lâmaco, general ateniense que esteve à frente do exército, representando os que se beneficiam da guerra e, do outro lado, Diceópolis, cidade justa, que luta sozinho pela causa da paz e faz tréguas com o inimigo. Em segundo plano, está presente também na peça a paródia literária, em que Aristófanes parodia duas cenas do Télefo de Eurípides. Para mais detalhes, veja-se Sousa e Silva, “Introdução” à tradução d’Os Acarnenses (1988, p. 9-21); e a análise da parábase em O dono da voz e a voz do dono (DUARTE, 2000, p. 51-82).

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Diceópolis é acusado pelo coro dos homens de Acarnas de ser um traidor em meio à guerra. Para se defender, Diceópolis procura explicar como começou a guerra do Peloponeso. Segundo o personagem, alguns rapazes atenienses roubaram uma cortesã megarense, e os megarenses, por sua vez, roubaram duas cortesãs de Aspásia e, exatamente, por causa dessas três cortesãs, instaurou-se a guerra. Por isso: “Irritado com o fato, Péricles, o Olímpico (o0lu&mpiov), lançou o raio, fez ouvir o trovão, pôs a Grécia em polvorosa e estabeleceu leis redigidas à maneira de cantilenas: ‘que nem em terra, nem em praça, nem no mar ou continente, permaneça o Megarense’” (vv. 530-5)11. A paródia se baseia na expressão usada por Ésquilo para se referir a Helena em Agamêmnon (vv.60-63), “fazer guerra por mulheres de muitos maridos”, é um exagero (e um rebaixamento também), explorada por Aristófanes não só pelo uso da forma poética, mas também pelo conteúdo. O epíteto o0lu&mpiov, Olímpico, remete-nos, naturalmente, à morada de Zeus e ao próprio deus, foi aplicado a Péricles devido à sua superioridade como chefe político, comandante do exército e brilhante orador. Assim, nomeado com o epíteto o0lu&mpiov, Olímpico, Péricles corresponderia, para os atenienses, a Zeus para os deuses e homens, um aparente elogio de Aristófanes ao legislador. No entanto, ao colocar o raio e o trovão, atributos de Zeus, nas mãos de Péricles, o comediógrafo ironiza o decreto promulgado outrora pelo legislador, um decreto, com certeza, conhecido do público da época12.

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Versos 530-5, tradução de Maria de Fátima Sousa e Silva.

Tal decreto é uma espécie de sanção à cidade de Mégara, segundo Sousa e Silva (1980, p. 1617), o decreto nasceu como uma tentativa dos Atenienses de se fortificarem e aumentarem seu poder estratégico, porém, os megarenses solicitaram o apoio dos Lacedemônios que usam do fato para declarar guerra a Atenas, em um conflito que já vinha se arrastando há anos.

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O discurso de Diceópolis é longo, 55 versos, e assinala mais as desvantagens do decreto do que as vantagens. Versos adiante (vv. 720-3), ele declara que o seu mercado particular está aberto e que podem negociar com ele todos os peloponésios, megarenses e beócios. Aristófanes se apropria do epíteto homérico, aplica-o a um ‘herói’ que não é homérico, aproxima o deus do legislador – visto que ambos exercem o comando – mas critica o uso do poder que essa posição de comando propicia e as consequências advindas dele. O comediógrafo parece ironizar a situação de Atenas, já marcada pela guerra, pois em tal comparação de força, comando, poder, esse “Zeus” ateniense não pôde sustentar o equilíbrio do kósmos. O segundo exemplo que destacamos encontra-se também n’OsAcarnenses, e é um epíteto utilizado por Aristófanes para se referir a Héracles. A cena (vv. 750-815) mostra o protagonista Diceópolis – que estipulou por conta própria tréguas à guerra – negociando com um megarense, que vende as próprias filhas como se fossem duas leitoinhas. Diceópolis manda que sirvam figos às meninas e indaga: “Será que os vão comer? Ena pá! Que ranger de queixadas, por Hércules venerável (poluti&meq’ 9Hra&kleiv)! De que terra são estas leitoinhas? Da Papagônia, está-se mesmo a ver (vv. 807-9)”13. Na invocação, o nome de Héracles vem acompanhado do epíteto poluti&metov, que é formado pelo advérbio de intensidade polu&v,

Tradução de Maria de Fátima Sousa e Silva modificada. Segundo a tradutora, a cidade de Tragasai=a é uma brincadeira que Aristófanes faz com o verbo tragei=n, devorar, e a sua proposta de tradução apreende bem a ideia quando se refere à cidade de Papágonia. Cf. Nota 163, p. 126 da tradução portuguesa d’Os Acarnenes (1990). Veja-se também Bailly (1963, p. 1950). Optamos por traduzir xoiri& por leitoinha e não porquinha (como acontece na tradução portuguesa), julgamos a palavra mais apropriada (para o português do Brasil), visto que leitoinha nos remete à gordura e à voracidade, enquanto, porquinha à sujeira.

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muito, acrescido do adjetivo verbal ti&mhtov estimado, apreciado, honrado. Segundo Chantraine (1977, p. 927), polu&vé um advérbio extremamente produtivo como o primeiro termo na composição de antropônimos e, em Homero, há mais de 60 exemplos de vocábulos derivados dessa formação. Dos heróis homéricos, podemos destacar, por exemplo, Odisseu, que foi chamado de polu&mhtiv, ‘o que é fecundo em recursos’; polu&tropov, ‘astuto’; polumh&xanov ‘ardiloso’ (fecundo em ardis); polu&tlav, ‘que muito sofreu’; polu&ainov, ‘célebre’, ‘ilustre’; e polu&frwn, ‘muito prudente’. Assim, Aristófanes usa um epíteto não-homérico, mas, como se pode notar nos exemplos acima, utiliza o mesmo processo de formação advindo da tradição homérica para criar um epíteto novo. Héracles é poluti&mhtov, ‘muito apreciado’, ‘venerável’. No entanto, na comédia, o herói é invocado como signo de um aspecto que, na verdade, não é muito apreciável, nem virtuoso: a gula. Observe-se ainda que, nessa cena, as duas personagens, “as porquinhas”, filhas do megarense, não falam, apenas grunhem (vv. 780, 802, 804, 806, 808) e devoram vorazmente os figos. Temos um epíteto novo, nos moldes homéricos, e o epíteto nomeia um herói tradicional, mas o contexto faz com que, sendo passível de destacar caracteres elevados, evidencie o burlesco. Acreditamos que a maestria de Aristófanes no que diz respeito ao uso de epítetos pode também valorizar a ferramenta épica ao ponto de romper com as fronteiras do discurso. Nossa afirmação baseia-se no fato de que o comediógrafo chama à cena epítetos que não aparecem escritos literalmente na fala dos personagens. Referimo-nos a uma passagem d’As Rãs, em que o escravo Xântias e o deus Dioniso se encontram diante de Empusa (monstro enviado por Hécate que se metamorfoseava em uma linda mulher para atrair homens, aterrorizá-los e devorá-los) e é nessa situação de perigo que ouvimos: “-a0polou&meq’,

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w]nac 9Hra&kleiv. Estamos perdidos, ó Senhor Héracles!”(v. 298). Xântias, diante de tal visão, invoca Héracles. Afinal, para lidar com monstros, ninguém melhor do que o filho de Zeus. A situação faz uma clara alusão a um epíteto que não aparece na frase, o alexíkakos, ‘o que afasta os males’, epíteto utilizado nos cultos dedicados a Héracles (STANFORD, 1963, p. 99). Se um epíteto pode se indexar de tal modo ao objeto, como o caso de foi=bov, Febo, em que pode ou não vir acompanhando o nome de Apolo, aqui o comediógrafo inverte a posição fazendo com que o nome suscite o epíteto, visto que na fala de Xântias, o que vem primeiro é o verbo a0po&llumi, estar perdido, que enuncia a necessidade de um salvador, e por isso clama por Héracles, clama pelo alexíkakos. A alusão do alexíkakos parece mais uma ironia de Aristófanes, pois, apesar de valorizar a ferramenta homérica, ao mesmo tempo, desvaloriza o significado do epíteto de outrora, visto que o ‘que afasta o mal’ não é mais o salvador de ninguém. O último exemplo que queremos destacar é um epíteto criado por Aristófanes para qualificar Eurípides, um dos personagens prediletos do comediógrafo. Eurípides é personagem em Acarnenses (425 a.C.), Termoforiantes (411 a.C.), Rãs (405 a.C.) e, em outras peças como Lisístrata (411 a.C.), Aristófanes não o poupa de críticas. A cena faz parte da peça Rãs e se passa no Hades, o tragediógrafo disputa de modo acirrado o trono da tragédia, assento ocupado pelo krátistos, o melhor nessa arte (vv. 768-9), lugar até então ocupado por Ésquilo. Pelo escravo (vv. 771-8), ficamos sabendo que Eurípides, através de discursos contraditórios (a0ntilogiw=n), artifícios (lugismw=n) e rodeios (strofw=n), fez com que o “público” no Hades o julgasse o mais sábio (sofw&taton) na arte trágica. Segue-se o agón, disputa, entre Ésquilo e Eurípides, quando o autor da Orestéia vai acusá-lo de ser um xwlopoio&v, criador de coxos (Rãs, v.846). O epíteto marca um

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jogo irônico que Aristófanes estabelece com alguns personagens das peças de Eurípides: Télefo (um filho de Héracles, que teve a perna ferida por Aquiles a caminho de Tróia), Belerofonte (que caiu do cavalo Pégaso) e Filoctetes (mordido por uma serpente a caminho de Tróia). Aristófanes coloca em foco um aspecto particular do ponto de vista do espetáculo, uma ironia que nós modernos, talvez, jamais compreendamos. O público ateniense do século V a. C. compreendia o alcance risível de tal epíteto de modo privilegiado. Se lidamos basicamente com o texto escrito e com a imaginação, nesse caso, a situação é mais complicada, tendo em vista que os três personagens coxos de Eurípides pertencem a peças do tragediógrafo das quais só nos chegaram alguns fragmentos14. Sem o texto, não temos pistas seguras de como esses personagens foram representados. Mas a crítica de Aristófanes a um aspecto específico do teatro de Eurípides – centrado no figurino e na caracterização gestual dos personagens – parece-nos ser a reiteração de uma crítica já apontada em outra peça que foi representada anos antes: Os Acarnenses. Nessa peça, o protagonista Diceópolis dialoga com o epíteto xwlopoio&v, criador de coxos, quando quer suscitar a compaixão da assembleia e para tanto resolve procurar Eurípides e lhe pedir emprestado o figurino de um dos seus muitos mendigos e coxos. Eurípides indaga qual vestimenta pode lhe emprestar, enumerando assim aquelas personagens que o próprio tragediógrafo ousou colocar em cena, caracterizadas como coxos ou mendigos: Eneu, Fênix, Filoctetes, Belerofonte e Télefo. o epíteto xwlopoio&v, criador de coxos. Tal cena é paralela à segunda parte de As Rãs em que se defrontam Ésquilo e Eurípides mediados por Dioniso. São muitas as contendas discursivas

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Télefo, Filoctetes e Estenebéia.

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entre os dois tragediógrafos e as acusações variadas. Eurípides, por exemplo, acusa Ésquilo de criar ‘caracteres ferozes’, a0griopoio&n. Ésquilo retruca dizendo que Eurípides é ‘criador de mendigos’ e ‘remendador de trapos’, ptwxopoie\ kai\ r9akiosurrapta&dh (v. 837; 842). Os exemplos apresentados sugerem que, na comédia de Aristófanes, os epítetos são parte integrante de um conjunto de elementos-chave dos quais se serviu o comediógrafo para, entre outras coisas, criticar chefes políticos (Péricles); evidenciar aspectos grotescos de heróis consagrados (Héracles); ironizar aspectos específicos do espetáculo cênico (Eurípides); e sugerir epítetos que não aparecem no texto.

Conclusão Procuramos aqui observar as principais teorias acerca dessa ferramenta tão popular em toda a literatura grega. Cumpre ainda ressaltar o fato de que existem epítetos totalmente desnecessários à identidade do objeto percebida por nós e aparecem mesmo como elementos secundários, acrescentando pouco em termos de significação. É o caso, como já foi dito, desses adjetivos que vêm como atributo de um objeto, realçando-lhe uma característica já intrínseca a ele. Contudo, julgamos temerário dizer que em poesia um termo seja supérfluo. O epíteto que pareça secundário do ponto de vista conceitual pode ser fundamental para o ritmo do verso, para o colorido de uma imagem, para a representação de um excesso, para a reiteração de uma ideia. Do ponto de vista do sentido, o realce de tal ou tal característica explicita e define melhor o nome do qual é atributo, principalmente, se considerarmos tudo em poesia é constituinte de um universo complexo idealizado pelo poeta.

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Recebido em 13 de novembro de 2011 Aprovado em 5 de fevereiro de 2012

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Nome: percurso histórico e construção do conceito1 Márcia Zamariano UEL

RESUMO: Embora os nomes próprios sejam abordados nas gramáticas normativas e, de fato, se constituam objeto de estudos linguísticos de distintos interesses, diferentes correntes do pensamento tentaram, no decorrer da história, caracterizar ou delimitar sua função específica. De Platão, até a atualidade, a preocupação em elucidar a natureza do nome tem sido um tema instigador e recorrente na busca de respostas para perguntas do tipo: o que é um nome? Onde está o sentido de um nome? Existem diferenças entre nome próprio e comum? Como os nomes próprios referem os objetos? Respostas para perguntas dessa natureza não podem ser buscadas apenas no âmbito das ciências da linguagem. Em razão disso, buscamos realizar uma reconstrução da trajetória da concepção de nome: a partir da noção fornecida por filósofos de diferentes correntes filosóficas; sob a ótica da Mitologia e da Antropologia e, por fim, a partir de contribuições das diferentes correntes linguísticas. PALAVRAS-CHAVE: Nome próprio. Ato de nomear. Natureza do nome. ABSTRACT: Although the proper names are not discussed in normative grammars, in fact, they are the subject of linguistic studies of different interests. Some

1 Este trabalho é um recorte da tese intitulada Estudo toponímico no espaço geográfico das mesorregiões paranaenses: Metropolitana de Curitiba, Centro-Oriental e Norte Pioneiro, orientada pela Profa. Dra. Aparecida Negri Isquerdo (UFMS/UEL/CNPq), apoiada e financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), e defendida no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Londrina (ZAMARIANO, 2010).

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currents of thought have tried, throughout history, characterize or define their specific role. Since Platão until nowadays, the concern to elucidate the nature of the name has been an instigator and recurrent theme in search for answers to questions like: What is name? Where is the sense of name? Are there differences between common and proper name? How names refer objects? Answers for such questions can not be sought only within the sciences of language. For this reason, we aim to implemeting a reconstruction of the name concept trajectory from the notion provided by different philosophical thought lines, from the perspective of Mythology and Anthropology, and, finally, with the contributions of different linguistic currents. KEYWORDS: Name. Naming Act. Name Nature.

Desde seu aparecimento, a linguagem foi tão incompleta quanto o pensamento humano que ela representa. Por isso, a linguagem deve ser considerada uma mediadora entre o homem e os fenômenos do mundo que, por sua vez, não necessitam ser reais para se transformarem em objetos de atenção desse homem. O conhecimento, nos primórdios da humanidade, se limitava à observação comum e ocasional da realidade, a simples apreensão de fatos e fenômenos. O domínio absoluto da imaginação e do instinto era mais desenvolvido no homem primitivo: enxergava muitas coisas ao mesmo tempo. O homem encontrava dentro de si mesmo um eco secreto que respondia a todas as vozes exteriores, transformando-as em articulações e palavras. Conforme Renan (1950, p. 108), é preciso admitir “entre os que primeiro falaram, a existência de um sentido especial da natureza, que a tudo emprestava uma significação, vendo a alma no mundo exterior, e o mundo exterior na alma.” O autor destaca ainda que a percepção da realidade despertou no homem primitivo a necessidade de nomear o seu mundo e as suas sensações, recorrendo para isso à criação das palavras. Em consequência, com o passar do tempo, o homem criou um vocabulário que atendesse as suas necessidades momentâneas, mas

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[...] nem uma só das palavras atualmente usadas deixa de ter sua razão de ser, ligando-se todas elas, através de mil e uma transformações, a uma eleição primitiva. Ora, o motivo determinante na escolha das palavras deve ter sido, na maioria dos casos, o desejo de imitar o objeto que se queria representar (RENAN, 1950, p. 114).

O ser humano verbaliza seus sentimentos por meio da palavra, fenômeno linguístico que tem fascinado os homens ao longo da história. Em todas as civilizações, a palavra tem sido motivo de surpresa e de mistério. A pertinência da relação entre a palavra e aquilo que nomeia é investigada há séculos, pois sempre esteve revestida de poder e de superstição. Assim como a definição de palavra é algo muito subjetivo e filosófico, a identificação e a distinção entre nome próprio e léxico comum também se configura como uma questão complexa. Há muito que a temática relativa aos nomes e ao ato de nomear tem sido discutida, embora estudiosos de diferentes épocas tenham sempre demonstrado interesse pelas questões que afetam seu estatuto e, em razão disso, hajam reunido uma soma significativa de explicações acerca do tema, essa noção ainda varia quando se observa a maneira como os estudos onomásticos a concebem. A atividade de pesquisar e de analisar os nomes próprios, devido a sua importância como um resgate que favorece o estudo da cultura, da língua e da história de um grupo socio-linguístico-cultural, faz parte da Onomástica, que se integra à Lexicologia, caracterizandose como a ciência da linguagem que possui duas áreas de estudo: a Antroponímia que se ocupa do estudo dos nomes próprios individuais, os nomes parentais ou sobrenomes e as alcunhas ou apelidos – antropônimos e a Toponímia que investiga o léxico toponímico, por meio do estudo da motivação (exame da origem e do significado) dos nomes próprios de lugares – topônimos.

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O homem, ao nomear tudo que o pertencia ao seu meio, passa a ter o controle sobre o universo, organizando o espaço em que vivia e superando o desconhecido pelo desejo de conhecimento. A tudo e a todas as coisas, o homem atribuiu sentido, designou funções, nomeou coisas e se impôs perante os outros seres. Biderman (1998, p. 88), ao tratar da questão da nomeação, destaca que “é a partir da palavra que as entidades da realidade podem ser nomeadas e identificadas”. Em razão disso, o ato de nomear as coisas adquire importância fundamental, pois possibilita o encontro do que foi nomeado com sua origem, estabelecendo uma relação em que as palavras vão além da mera designação dos elementos, pois estão impregnadas de um significado que as transcende. Cabe aqui outra reflexão a respeito do nome: para a maioria das pessoas, ele é apenas “um nome.” Essa é a explicação mais casual, porque não se configura como hábito “pensar” sobre os nomes seja por parte do usuário, seja no âmbito do grupo a que pertence. Em algumas sociedades, os nomes pessoais são, com muita frequência, considerados algo mais do que casos de conveniência social. Molino (1982, p. 18) considera que [...] o nome próprio significa, mas ele significa para quem? Para aquele que nomeia ou para o portador do nome?”. Segundo ele, para apreender a dimensão significativa do nome próprio, “é importante distinguir as regras de recepção, de compreensão do nome próprio e as regras de sua produção.

Considerações sobre onoma no pensamento filosófico A questão do nome já era discutida na Grécia antiga, embora ainda não houvesse a distinção entre o conceito de nome próprio em oposição ao de nome comum, nos moldes em que é feita na atualidade,

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categoria que tem a capacidade de nomear/ referenciar. A concepção de onoma foi o princípio e por muito tempo o núcleo a partir do qual se estabeleciam as relações entre a realidade e o pensamento, a questão da verdade e do conhecimento. Em grego o termo onoma incluía, além dos nomes próprios, também nomes comuns (substantivos), verbos e adjetivos, ou seja, tudo que fosse uma palavra. Platão foi o primeiro pensador a indicar o caminho para o estudo das proposições, elegendo a linguagem como objeto de estudo. Em seus estudos, não se distinguem ainda os conceitos de letra e de fonema, e as sílabas formam os nomes (onoma) e os verbos (rhéma). Coube a ele estabelecer definitivamente a primeira distinção gramatical entre nomes e verbos (KRISTEVA, 1969, p. 133-135). A forma dos escritos platônicos é o diálogo, destacando-se entre eles o Crátilo, baseado na justeza dos nomes, o qual pode ser dividido em duas partes, de acordo com o interlocutor de Sócrates: Hermógenes, um discípulo seu, e Crátilo. O primeiro participa com Sócrates na maior parte do diálogo e o segundo apenas na quarta parte final. Sócrates não apresenta ao final do diálogo uma definição clara, nem a favor das teses defendidas por Hermógenes que vê os nomes como o resultado de uma convenção, nem a favor das de Crátilo que defende que os nomes são estabelecidos em conformidade com a natureza das coisas. Platão considera suficiente a conclusão de que não é por meio de seus nomes que devemos procurar conhecer ou estudar as coisas, mas, de preferência, por meio delas mesmas. Para ele as coisas têm uma natureza fixa e o nome é adotado para expressar essa natureza; é um instrumento destinado a pensar o ser das coisas. Depois de Platão, Aristóteles, formula algumas distinções importantes ao acrescentar uma terceira classe de componente sintático, a dos sýndesmoi, que compreendia o que mais tarde se chamou de conjunção, artigo e pronome, e separou os nomes (com três gêneros)

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dos verbos que tem a característica maior de poderem demonstrar o tempo, e das conjunções (KRISTEVA, 1969, p. 135). Com relação à concepção de nome, em Arte Poética, argumenta que o nome é um composto,significativo, sem indicação de tempo, e nenhuma de suas partes faz sentido por si mesma, pois, nos nomes formados de dois elementos, não empregamos cada elemento com um sentido próprio; por exemplo, em Teodoro, o elemento – doro não apresenta significado (ARISTÓTELES, 2004, p. 31).

Outras escolas filosóficas surgiram em Atenas, sendo a mais importante a dos Estóicos (fundada por Zenão). Com eles nascem os conceitos e, na representação, se reconhece a verdade das coisas. Distinguiam quatro partes do discurso: nomes que significam qualidades e se dividem em nomes comuns e nomes próprios; verbos enquanto predicados; conjunções, os pronomes e o artigo (KRISTEVA, 1969, p.137). Os Alexandrinos, interessados principalmente na linguagem como parte dos estudos literários, aperfeiçoaram as teorias gramaticais de Dionísio da Trácia (séculos II e I a. C.), que distinguiu oito classes de palavras: o nome (onoma – reunia nomes próprios e comuns), o verbo, o particípio (compartilha das características do verbo e do nome), o artigo (possui flexão de caso e que vem antes ou depois dos nomes), o pronome (pode substituir por um nome e que leva a marca de pessoa), a preposição, o advérbio e a conjunção (ROBINS, 1983, p. 27). Varrão é o primeiro dos gramáticos latinos a elaborar a teoria mais completa da linguagem, em sua obra “De língua latina”, considerada uma das principais fontes, de que dispomos sobre a controvérsia entre analogistas e anomalistas. Dividia as partes do discurso em: nominatus – i.) vocabula (nomes comuns); ii.) nomina (nomes próprios); iii.) pronomes e adjetivos interrogativos, indefinidos; iv.) outros pronomes;

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v.) verbos; vi.) invariáveis e vii.) particípios (KRISTEVA, 1969, p. 141-144). No século IV, surge Santo Agostinho, considerado como o primeiro grande pensador cristão; defensor dos ideais cristãos frente ao pensamento pagão. Para ele as palavras são nomes, seus significados são os objetos que elas substituem aos quais estão relacionadas e as frases são simples combinações de nomes, que descrevem como são as coisas. Nessa visão, a linguagem se vincula à realidade por meio de conexões entre as palavras e o mundo. Com o advento da Escolástica, surge como expoente São Tomás de Aquino. Em sua obra “Suma Teológica”, o autor destaca que todo nome ou é abstrato ou concreto. Os concretos não convêm a Deus, que é simples. Os abstratos também, porque não exprimem nada de perfeitamente existente. Logo, nenhum nome pode ser atribuído a Deus. Demais, os nomes exprimem a substância qualificada; os verbos e os particípios a exprimem no tempo; e os pronomes, demonstrativa ou relativamente. [...] Às vezes, uma coisa é a origem da qual um nome tira a sua significação, e outra, o objeto que ele designa. [...] Na medida em que podemos conhecer a natureza de um ser pelas suas propriedades e efeitos, podemos também impor-lhe um nome. Ora, como sabemos o que é a pedra por lhe conhecermos a substância, mediante uma de suas propriedades, esse nome – pedra – significa a natureza da pedra em si mesma, pois significa-lhe a definição pela qual sabemos o que ela é; porque a definição é a noção expressa pelo nome (AQUINO, 2005, p. 105-117).

Em meados do século XVIII, surge Thomas Hobbes, para quem “palavras conectadas de modo a se tornarem signos de nossos pensamentos

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são chamadas FALA, da qual cada parte é um nome”. Além disso, conquanto os nomes, isoladamente, sejam marcas, pois servem “para trazer à mente nossos próprios pensamentos”, eles não podem ser “signos a não ser quando dispostos e ordenados na fala como suas partes”. Argumenta que um nome é uma palavra tomada arbitrariamente para servir como marca que pode trazer à nossa mente um pensamento semelhante a um pensamento que tivemos antes, e que, sendo pronunciado a outros, pode ser para eles um signo de qual pensamento o falante tinha, ou não tinha, em mente. Mas, dado que, os nomes ordenados na fala (como se definiu) são signos de nossas concepções, é claro que não signos das próprias coisas; pois, o único sentido em que se pode entender que o som desta palavra pedra seja o signo de uma pedra, é de que aquele que o ouve conclui que quem o pronuncia está pensando em uma pedra (HOBBES, 2005, p. 16-17).

Para esse filósofo a natureza de um nome consiste principalmente no fato de ele ser uma marca assumida em prol da memória, mas que também serve, acidentalmente, para significar e dar a conhecer a outro nossas crenças e recordações. Além disso, pondera que, dentre os nomes, alguns são comuns a muitas coisas, como um homem, uma árvore; e outros próprios de uma única coisa, como aquele que escreveu a Ilíada, Homero, este homem, aquele homem. O nome comum é o nome de muitas coisas tomadas separadamente, mas não de todas elas tomadas em conjunto (homem não é o nome de toda humanidade, mas de

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cada um individualmente, como Pedro, João e os demais, tomados separadamente), sendo, por essa razão, chamado um nome universal (HOBBES, 2005, p. 19).

No século XIX, destaca-se John Stuart Mill, autor de “Sistema de Lógica” (1843) e da teoria da referência direta dos nomes, e, um dos primeiros a escrever sobre o significado dos nomes próprios. A classificação dos nomes segundo este autor é efetuada por meio de distinções sucessivas que culminam com uma complexa sequência de nomes e estruturas semânticas, cujo principal conceito é o de conotação. A primeira distinção que ele estabelece é a divisão dos nomes em gerais (é aquele “suscetível de ser afirmado verdadeiramente, no mesmo sentido, de uma entre um número indefinido de coisas”) e singulares ou individuais (é aquele “suscetível de ser afirmado verdadeiramente, no mesmo sentido, de uma coisa”). Esclarece ainda que nomes próprios como João, Maria, Jorge são claramente nomes singulares, mas destaca que os nomes singulares não se resumem aos nomes próprios, aos “nomes de batismo”, àqueles que são impressos muitas vezes arbitrariamente aos indivíduos, simplesmente com o objetivo de distingui-lo dos demais, como os nomes citados (MILL, 1979, p. 97, grifo nosso). Também estabelece a distinção entre nomes conotativos e nãoconotativos. O termo conotativo “denota um sujeito e implica um atributo” de outra feita, enquanto um nome não-conotativo “denota um sujeito somente, ou um atributo apenas”. Ele cita como exemplos de nomes não-conotativos João, Londres ou Inglaterra; e, como nomes conotativos virtuoso, branco, grande (MILL, 1979, p. 100). Mill argumenta que, ao chamar uma criança de Paulo ou um cachorro de César, pode-se dizer que “deve ter havido alguma razão para lhes dar esses nomes em vez de qualquer outro” (1979, p. 101-103). E

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mais, um homem poderia se chamar “João porque esse era o nome de seu pai; uma cidade poderia se chamar Dartmouth porque é situada na foz do rio Dart”. Entretanto, não há, na significação da palavra João, nada que indique que o pai da pessoa que possui esse nome tenha o mesmo nome; nem mesmo a palavra Dartmouth sugere que essa cidade esteja situada na foz do Dart. Se a areia obstruísse a foz do rio ou um terremoto mudasse o seu curso e o afastasse da cidade, o nome da cidade não seria necessariamente mudado. Conclui o autor: “sempre que os nomes dados aos objetos contenham alguma informação sobre o objeto – ou seja, tenham propriamente alguma significação –, esta significação reside não no que eles denotam, mas no que conotam”. Mill sustenta explicitamente que os nomes próprios não descrevem os objetos a que se referem, de maneira que não são sinônimos de nenhuma descrição associada. Salvo por seu exemplo clássico, da cidade de Dartmouth, na qual sustenta que a referência do nome não está determinada pela descrição empregada para batizar a cidade, ele não oferece uma explicação sobre como os nomes chegam a ter as denotações que de fato têm. Pode-se, pois, concluir da obra deste autor que nomes próprios, ou seja, não-conotativos, são aqueles que buscam a singularização das coisas. Desse modo, uma pessoa chama-se Antonio para ser distinguida de João, uma cidade chama-se Londrina para ser distinguida de Maringá, São Paulo, etc.; e, por isso, esses nomes são arbitrariamente atribuídos às coisas singulares, justamente para evidenciar essa singularidade. No final do século XIX surge o filósofo alemão Gottlob Frege, que em seu artigo intitulado “Sobre sentido e a referência” (1978), parte da noção de igualdade (identidade) para produzir conhecimento novo. Ele questiona se a igualdade seria uma relação entre objetos ou uma relação entre nomes ou sinais de objetos, dando a entender ter assumido a última alternativa. Apresenta como exemplo uma igualdade

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do tipo a=b, considerando que os sinais ou os nomes a e b referem-se à mesma coisa e conclui que “esta relação se manteria entre os nomes ou sinais, apenas na medida em que denominassem ou designassem alguma coisa. Sugere pensar as noções de sinal – sentido – referência para caracterizar a especificidade de cada um desses elementos. Para ele, o sinal corresponde a um sentido determinado, ao sentido corresponde uma referência determinada, e assim a referência não deve pertencer apenas a um único sinal. O autor pondera: [...] por “sinal” e por “nome”, entende qualquer designação que represente um nome próprio, cuja referência seja um objeto determinado (esta palavra tomada na acepção mais ampla)” (FREGE, 1978, p. 61-62). De acordo com Frege, para algo ser um nome próprio, é preciso que se “refira a um objeto singular, particular e não mais que um”. As únicas palavras que efetivamente nomeiam particulares são os nomes que se referem imediatamente a coisas simples. Para ele, “a designação de um objeto singular pode também consistir em várias palavras ou sinais, e cada uma destas designações de nome próprio, defendendo-os como palavras que se referem a particulares”. Na perspectiva de Frege, o nome próprio é um termo conceitual que exprime seu sentido, que pode ser caracterizado como convencional, constante, estável, pois é entendido como o modo de apresentação do objeto, ou seja, o sentido de um nome próprio “é entendido por todos que estejam suficientemente familiarizados com a linguagem ou com a totalidade de designações a que ele pertence” (FREGE, 1978, p. 63). Nesse contexto, elucida a referência, caso tenha uma, mas de uma maneira sempre parcial. A conexão regular entre o sinal, o seu sentido e a sua referência é de tal modo que ao sinal corresponde um sentido determinado e, ao sentido, corresponde uma referência determinada, enquanto a uma referência (a um objeto) não deve pertencer apenas um único sinal. Portanto, pode-se entender que um sentido nunca

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assegura sua referência. Há ainda a noção de nomes próprios genuínos, esclarecida por Frege (1978, p.63) com o seguinte ponto de vista no caso de um nome próprio genuíno como “Aristóteles”, as opiniões quanto ao sentido podem certamente divergir. Poder-se-ia, por exemplo, tomar como seu sentido o seguinte: o discípulo de Platão e o mestre de Alexandre Magno. Quem fizer isto associará outro sentido à sentença “Aristóteles nasceu em Estagira” do que alguém que tomar como sentido daquele nome: o mestre de Alexandre Magno, que nasceu em Estagira. Enquanto a referência permanecer a mesma, tais variações de sentido podem ser toleradas, ainda que elas devam ser evitadas na estrutura teórica de uma ciência demonstrativa, e não devem ter lugar numa linguagem perfeita.

Em suma, a proposta de Frege institui a tese de que um nome próprio (palavra, sinal, combinação de sinais, expressão) designa um objeto singular (um objeto determinado). Sob essa vertente, o nome próprio refere-se a um único objeto (unicidade) e não deve ser confundido com sentido, com referência, nem com representação. Essa diferenciação é fundamental para as construções teóricas que o sucederam. A referência de um nome próprio é o próprio objeto que por seu intermédio designamos; a representação que dele temos é inteiramente subjetiva; entre uma e outra está o sentido que, na verdade, não é tão subjetivo quanto à representação, mas que também não é o próprio objeto. Já no século XX, destaque para Bertrand Russell. Embora tomasse a Lógica como uma espécie de eixo metodológico, tratou também de questões metafísicas, epistemológicas e linguísticas. Em sua obra, admite que o significado de um nome deve estar identificado com

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o objeto que o nome denota. Instaura-se, por essa via, a condição necessária, embora não suficiente, para que algo possa ser nomeado – a de que possa ser denotado. Para ele um “termo” é tudo que pode ser mencionado; todo termo poderia ser um sujeito lógico de uma proposição; e tudo que pudesse ser sujeito lógico de uma proposição poderia ser nomeado. A questão dos nomes próprios – nomes logicamente próprios, por exemplo –, é analisada a partir de diversos ângulos, simultaneamente. Primeiramente, o nome próprio como o símbolo linguístico é empregado para a designação de particulares, que na sua óptica, são termos constituintes de relações com fatos atômicos, e isso basta do ponto de vista lógico (RUSSELL, 1974, p. 76-78). Posteriormente, Russell esclarece que existe uma única relação do nome com o que ele nomeia, ou seja, “um nome só pode nomear um particular ou, se não o nomeia, não é em absoluto um nome, é um ruído”. Aí está o ponto em que se situa a diferença entre nome e proposição: o nome deve ter exatamente aquela relação particular de nomear alguma coisa, mas uma proposição não deixa de ser uma proposição se for falsa. Importante destacar que, para Russell, a única espécie de palavra teoricamente capaz de representar um particular é um nome próprio, e por isso a questão completa dos nomes próprios é algo bastante curioso. Ele define: “Nomes próprios = palavras para os particulares”. Destaca ainda que os nomes comumente usados, como por exemplo, “Sócrates”, são realmente abreviações para as descrições e o que eles descrevem não são particulares, mas complicados sistemas de classes ou séries (RUSSELL, 1974, p. 78, grifo nosso). De fato, o destaque da teoria de Russell é a diferença entre nomes próprios e descrições definidas na superfície linguística e, por meio desse paralelo, esclarece as diferentes formas de denotação. Na sua concepção, nomes próprios são símbolos simples, completos e designam indivíduos sem indicar-lhes propriedades, ao contrário das

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descrições definidas que são compostas, incompletas e que só têm significado no contexto mediante o significado das palavras que as constituem. Outro filósofo de destaque foi Ludwig Wittgenstein2, considerado o precursor da pesquisa filosófica em linguagem. No TLP não há lugar para nomes próprios como ‘Sócrates’, ‘Homero’, pela simples razão de que Wittgenstein não oferece nenhum exemplo do que possam ser tais objetos, uma vez que podem ser definidos de diversos modos. A concepção dos nomes no TLP conserva uma mútua dependência da doutrina do atomismo lógico. Já nas IF, ele considera que é interessante comparar “a multiplicidade das ferramentas da linguagem e seus modos de emprego, a multiplicidade das espécies de palavras e frases com aquilo que os lógicos disseram sobre a estrutura da linguagem”. Nas IF, o autor faz muitas considerações sobre os nomes próprios da linguagem natural, tendo como parâmetro a tese de que o significado de um nome estaria identificado com o objeto nomeado. Mais explicitamente no § 40 (p. 21), avança na tematização dos nomes próprios. Ele chama a atenção para o significado de uma palavra, afirmando com relação a essa posição que: [...] confunde-se a significação de um nome com o portador do nome. Se o sr., N.N. morre, diz-se que morre o portador do nome, e não que morre a significação do nome. E seria absurdo falar assim, pois se o nome deixasse de ter significação, não haveria nenhum sentido em dizer: “O sr. N.N. morreu.”[...]: a significação de uma palavra é seu uso na linguagem. E a significação de um nome elucida-se

2 Para muitos estudiosos, sua obra se divide em: Tractatus logico-philosophicus (TLP), Investigações filosóficas (IF) e demais obras.

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muitas vezes apontando para seu portador (WITTGENSTEIN, 1979, p. 21-22).

As ideias apresentadas por Wittgenstein influenciaram o trabalho dos pensadores da segunda metade do século XX, entre eles John Searle. Em seu artigo “Proper Names” (1958), defende que todo nome próprio é associado a um determinado conjunto de descrições que determinam que objeto seja designado por esse nome. Para Searle um nome é um designador indireto. Um nome próprio tem sentido não porque descreva características de um objeto (não descreve), mas sim porque está logicamente conectado com o conjunto de descrições definidas necessárias e suficientes para a descrição de um objeto particular. Como bem afirma o autor: “nomes (e sentenças) têm essencialmente um sentido, e apenas acidentalmente uma referência” (SEARLE, 1958, p. 251). Defende a tese de que a distinção entre nomes próprios e descrições definidas pode ser explicada na originalidade dos nomes próprios, ou seja, o fato de eles possibilitarem a referência aos objetos sem que haja a necessidade de recuperar as características que devem apresentar a identidade do objeto. Desse modo, a imprecisão desses critérios, no que diz respeito aos nomes próprios, é então uma condição necessária para isolar a função referencial da função descritiva da linguagem. Contudo, há ainda outra questão a ser resolvida e questiona: se os nomes próprios tem um sentido? Se com isso se pergunta se nomes próprios são, ou não usados para descrever ou especificar as características dos objetos, a resposta é “não”. Mas se se pergunta com isso se nomes próprios estão logicamente conectados com características dos objetos que referem, a resposta é “sim”, num sentido lógico não estrito (SEARLE, 1958, p. 253).

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A resposta do autor é a impossibilidade de desvinculação do sentido do conteúdo intencional que o envolve. Significação e intencionalidade estão, assim, na mesma ordem no jogo da linguagem e encontram-se indissoluvelmente ligados. Por conseguinte, nomes próprios referem-se a objetos se estão vinculados a certas descrições que identificam univocamente um dado objeto. Isso significa que nomes próprios de fato não referem diretamente seus portadores, mas apenas por meio de descrições, e o conjunto dessas descrições a que os nomes próprios estão vinculados não se constitui em um conjunto fechado. Na concepção teórica deste autor, para que um usuário utilize um nome próprio com sucesso, significa tanto quanto poder especificar e permitir ao interlocutor que especifique o objeto referido por esse nome. Ao apontar essa questão como central para uma análise da referência do nome próprio, Searle já produz o deslocamento que lhe convém, pois o ponto a discutir não é a referência dos nomes, mas a intenção de referir os indivíduos quando deles se utilizam. Outro filósofo contemporâneo Peter Frederick Strawson, autor do artigo “On Referring” (1950, na revista Mind). Strawson exemplifica com a frase “O rei da França é sábio”, que já foi proferida em várias épocas (durante os reinados de cada um dos sucessivos monarcas franceses e nos períodos subsequentes nos quais a França já não era monarquia). Se a frase fosse pronunciada hoje, ninguém diria que se trata de uma sentença desprovida de significação; embora seja significante, todos sabem que não existe, atualmente, um rei da França. Todavia, se um homem a proferiu durante o reinado de Luís XIV e se outro o fez durante o reinado de Luís XV seria natural dizer que ambos estavam falando de pessoas diferentes, mas, em cada caso, o que se observa é uma mesma utilização ou uso de sentença, com elocuções diferentes da mesma sentença, segundo o proferimento de cada locutor. É a partir dessas distinções que Strawson caracteriza o sentido e a referência de

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expressões definidas e confronta a abordagem de Russell. Para ele uma expressão não tem a referência x ou y, mas é utilizada para mencionar ou fazer referência a x ou y (STRAWSON, 1980, p. 262-265). Strawson afirma que, para fazer referências individualizantes, deve-se utilizar as expressões que podem, de fato, ocorrer como sujeitos lógicos singulares (pronomes demonstrativos, frases substantivas, nomes próprios e pronomes), juntamente com o contexto (no mais amplo sentido). E acrescenta que tenta estabelecer uma distinção entre papéis ou partes diferentes que as expressões podem desempenhar na linguagem, esclarecendo que alguns tipos de palavras possuem predominantemente um papel referencial, como os pronomes e os nomes próprios. Observando o uso dos nomes próprios ordinários, o autor pondera que às vezes eles são considerados essencialmente “palavras”, utilizadas como “referência” a “apenas um único indivíduo”. Isso, segundo o filósofo, é falso, pois um nome pessoal ordinário é uma palavra, utilizada referencialmente, “cuja utilização não é prescrita por nenhuma significação descritiva que a palavra possa ter” e “não é prescrita, tampouco, por nenhuma regra geral para que seja utilizada como uma expressão referencial”, ou como parte de uma expressão referencial. Conclui que, “[...] pelo fato de eu referir-me a alguém pelo seu nome, é simplesmente a existência de alguém, a quem se faz referência agora, que é convencionalmente referido pelo nome em questão” (STRAWSON, 1980, p. 272-275; p. 277-278, grifo do autor). Mais um filósofo, cuja obra merece destaque, é o francês Michel Foucault. Em sua obra As palavras e as coisas (2002), não trata diretamente do nome próprio, mas faz algumas considerações a essa questão, à medida que relata a evolução da linguagem: sob sua forma primeira, quando foi dada aos homens pelo próprio Deus, a linguagem era um signo das coisas absolutamente certo e transparente,

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porque se lhes assemelhava. Os nomes eram depositados sobre aquilo que designavam, assim como a força está escrita no corpo do leão, a realeza no olhar da águia, como a influência dos planetas está marcada na fronte dos homens: pela forma de similitude [...] (FOUCAULT, 2002, p. 49-50).

Assim, enfatiza que o povo hebreu carrega resquícios dessa nomeação primeira para mostrar que foi outrora a língua comum a Deus, a Adão e aos animais da primeira terra: [...] Assim a cegonha, tão louvada por causa da caridade para com seus pais e mães, é chamada em hebreu Chasida, que quer dizer bondosa, caridosa, dotada de piedade... O nome Sus, do cavalo, é considerado do verbo Hasas, se não for antes este verbo que deriva do nome e que significa altear-se, pois, entre todos os animais de quatro pés, aquele é altivo e bravo como Jó o descreve no capítulo (DURET, 1613, apud FOUCAULT, 2002, p. 50).

Já em meados do século XX, o destaque recai sobre o filósofo Saul Kripke, ao delinear uma proposta denominada teoria causal da referência. Trata-se de uma teoria da referência, cuja orientação é mais filosófica que linguística, pois está menos dirigida à explicação de fatos linguísticos que à extração de argumentos ou teses de caráter metafísico. A teoria concebida por Kripke parte de considerações semânticas, como as relações entre a linguagem e a realidade e, posteriormente, aplica os resultados obtidos no ataque ou defesa de certas teses filosóficas. Disso provém à atenção que tem recebido essa teses e o interesse que tem despertado, constituindo-se uma referência obrigatória na filosofia contemporânea. De acordo com Molino (1982, p. 14),

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outro problema técnico da lógica conduziu Kripke a recusar a análise de Russell e propor uma nova concepção do nome próprio. Sabe-se que Russell identifica nomes próprios e descrições definidas porque seu comportamento lógico é análogo; por outro lado, Kripke opõe nomes próprios e descrições definidas, porque na análise semântica dos sistemas de lógica modal, os nomes próprios não têm o mesmo comportamento que as descrições definidas.

Granger (1982, p. 31) ressalta “a insistência de Kripke ao prosseguir as análises de Donellan sobre a caracterização do nome próprio como designador rígido”, ou seja, o nome próprio, “independentemente dos predicados atribuídos ao objeto que ele designa, se ligaria a esse objeto como a um ponto arquimediano sem fraudes”. Esclarece que “Kripke considera o nome próprio à medida que ele designa univocamente um indivíduo” [...] “não dependendo senão em aparência de nossa maneira de descrevê-lo”. Saul Kripke, em “Naming and Necessity” (1996), apresenta as argumentações teóricas sobre designação por pressupostos que circulam no campo da Filosofia. Na verdade, essa obra se situa na interface entre três disciplinas diferentes, a saber: a Lógica, a Filosofia da Linguagem e a Linguística. Em relação às descrições definidas, ele apresenta algumas considerações envolvendo os conceitos de referência e necessidade. Na questão da nomeação, esclarece que “nome próprio, isto é, o nome de uma pessoa, de uma cidade, de um país etc.” Afirma que nós usaremos o termo “nome” de tal forma que ele não inclua descrições definidas daquele tipo, mas somente aquelas coisas que em linguagem ordinária seriam chamadas ‘nomes próprios’. Se nós queremos um termo comum para cobrir nomes e

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descrições nós podemos usar o termo ‘designador’ (KRIPKE, 1996, p.254).

Kripke (1996, p. 258) declara que é necessário recorrer à noção de ‘identidade através dos mundos possíveis’, para fazer a distinção entre ‘designador rígido’ e ‘designador não-rígido ou acidental’. Chame algo ‘designador rígido’ se, em qualquer mundo possível, ele designa um objeto; um ‘não-rígido’ ou ‘designador acidental’ (casual) se não é esse o caso. Para o autor, nomes próprios não são sinônimos de descrições definidas, pois essas possuem um conteúdo que diz algo acerca do objeto, enquanto os nomes não têm esse conteúdo, não indicam qualidades acerca de seus referentes, ou seja, não descrevem uma ou mais propriedades dos objetos. Um fato levantado por ele para defender a tese de que os nomes próprios são designadores rígidos é o de que utilizamos os nomes em situações contrafactuais. Essa tese é, de acordo com Kripke (1996, p. 258-259), intuitiva. Em situações contrafactuais, usamos os nomes de tal modo que eles se referem ao mesmo objeto que se referem no mundo atual. Todavia, o quadro geral apresentado por ele é muito mais complexo do que parece, e as ideias defendidas por ele correspondem à exigência de ter que sugerir um modelo alternativo. Fica absolutamente transparente o quadro teórico kripkeano: um enunciado grosseiro de uma teoria poderia ser o seguinte: Um “batismo” inicial tem lugar. Aqui o objeto pode ser nomeado por ostensão, ou a referência do nome pode ser fixada por uma descrição. Quando o nome é passado de elo a elo, o receptor do nome tem, eu penso, de intencionar, quando ele o aprende, a usá-lo com a mesma referência com que o homem, de quem ele ouviu o nome, o usou (KRIPKE, 1996, p. 266).

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O propósito de Kripke, ao apresentar o alcance e os limites da sua proposta, é a de que o seu quadro causal, dentro do qual trabalha a noção de designador rígido, tenha maior capacidade explicativa do que o descritivismo e suas variantes, para o fenômeno da nomeação. E, ainda, ao tratar do nome próprio como designador rígido, não está procurando uma teoria da categoria em questão, mas sim um dispositivo técnico que permita a identificação de um indivíduo em todos os mundos possíveis. Nesse sentido, o autor afirma categoricamente: Aqueles que têm argumentado que para fazer sentido da noção de designador rígido, nós devemos antecipadamente fazer sentido do critério de identificação transmundana tem precisamente colocado a carroça na frente dos bois; é porque nós podemos referir (rigidamente) Nixon e estipular que nós estamos falando do que poderia ter acontecido para ele (são certas circunstâncias), que identificações transmundanas são não-problemáticas nesse caso (KRIPKE, 1996, p. 259).

O nome próprio na Mitologia A filosofia na Grécia nasceu com o problema da origem do mundo, da geração das coisas. Os primórdios da filosofia grega coincidem com as cosmologias míticas dos poetas, nos apótemas dos Sete Sábios e, sobretudo, na reflexão ético-política dos poetas. Chauí (2000, p.32), ao abordar a questão do mito, concebe-o como uma narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros, da Terra, dos homens, das plantas, dos animais, do fogo, da água, dos ventos, do bem e do mal, da saúde e da doença, da morte, dos instrumentos de trabalho, das raças, das guerras, do

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poder, etc.). A palavra mito vem do grego, mythos, e deriva de dois verbos: do verbo mytheyo (contar, narrar, falar alguma coisa para outros) e do verbo mytheo (conversar, contar, anunciar, nomear, designar). Para os gregos, mito é um discurso pronunciado ou proferido para ouvintes que recebem como verdadeira a narrativa, porque confiam naquele que narra; é uma narrativa feita em público, baseada, portanto, na autoridade e confiabilidade da pessoa do narrador. E essa autoridade vem do fato de que ele ou testemunhou diretamente o que está narrando ou recebeu a narrativa de quem testemunhou os acontecimentos narrados.

Já na perspectiva de Eliade (1991, p. 5), o mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada em perspectivas múltiplas e complementares. [...] o mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos começos [...] o mito conta graças aos feitos dos Seres Sobrenaturais, uma realidade que passou a existir, quer seja uma realidade total, o Cosmos, quer apenas um fragmento, uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É, pois, sempre uma narração de uma criação, descreve-se como uma coisa foi produzida, como começou a existir [...].

A importância dos mitos, no estudo das culturas, segundo Crippa (1975, p. 81), não resulta apenas do fato de “tudo neles se voltar para as origens, em busca de um encontro com os princípios”. Resulta, muito mais, do fato de “essas origens constituírem os modelos exem-

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plares de tudo o que o homem é, de tudo o que possa vir-a-ser, de tudo o que possa realizar e fazer.” De acordo com esse autor, a história das religiões atribui sacralidade às origens: “os mitos, constituindo a linguagem adequada às primordialidades, são religiosos ou envolvidos pela força do sagrado”. O mundo mítico é um mundo sagrado. Entre os gregos, o mais antigo documento da cosmologia mítica é a Teogonia: a origem dos deuses do poeta grego Hesíodo (século VIII a. C.), obra que inclui uma cosmogonia: o problema das origens do mundo e da causa de todas as coisas está estreitamente ligado ao da geração dos deuses. Destacam-se também as epopeias escritas por Homero, Ilíada e Odisséia (ABBAGNANO, 1985, p. 21). Na Teogonia: a origem dos deuses, o mundo surge com o nascimento dos numerosos deuses que o constituem. Nessa obra, alguns nomes próprios aparecem seguidos de uma definição/descrição: a.) ciclopes (Ciclope denominava-os, porque neles repousava sozinho na fronte um olho circular); b.) Afrodite (Deusa nascida de espuma); c.) Citeréia (porque tocou Citera); d.) Cípria porque nasceu na undosa Chipre; e.) o cavalo Pégaso (que tem esse nome porque nasceu ao pé das águas do Oceano) (HESÍODO, 1995). Na Odisséia alguns fatos que remetem ora ao nome ora ao ato em si como, por exemplo, em “[...] chamava-se Arneu, nome que a sua veneranda mãe lhe pusera, ao nascer [...]” e em “Antes de mais nada, quero dizer-vos o meu nome, [...] Eu sou Ulisses, filho de Laertes [...].” (HOMERO, 1994). Outro fato destacado por Homero na obra é a importância da nomeação de pessoas e de lugares: “Dize-me como na pátria o teu pai e a tua mãe e os outros homens da cidade e dos arredores te chamam; porquanto todos os homens, sem exceção, bons e maus, desde que nascem, tem um nome, [...]. Nomeia também a tua terra, o teu povo e a tua cidade [...]” (HOMERO, 1994, grifo nosso).

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Já na Ilíada o destaque se dá com relação ao grau de parentesco nos nomes, como por exemplo, em: a.) “[...] Filho de Atreu, quero crer que nos cumpre voltar para casa sem termos nada alcançado [...]”; b.) “[...] Entanto, alça-se o velho Nestor, o orador delicioso dos Pílios, de cuja boca fluíam, mais doces que o mel, as palavras”; e nos topônimos: a.) “[...]destruir as muralhas da alta cidade de Príamo, [...]”; b.) “[...] Tebas, cidade sagrada de Eecião [...]” (HOMERO, 2009, grifo nosso).

O nome próprio na Antropologia Outros pesquisadores, também discutem o tema nome próprio, e dentre eles, situam-se os que se dedicam aos estudos antropológicos. Na verdade, os antropólogos se interessam pelos métodos linguísticos na busca de informações, sobretudo etimológica, que esclarecessem os ritos e os mitos. Lévi-Strauss e sua obra “O Pensamento Selvagem”, pondera que os nomes próprios “não formam uma simples modalidade prática dos sistemas classificatórios”, por isso constituem um problema para linguistas e etnólogos. Segundo ele, os linguistas se ocupam da natureza dos nomes próprios e de seu lugar no sistema da língua, enquanto os etnólogos estabelecem que os nomes próprios fazem parte “integrante de sistemas tratados como códigos: meios de fixar significações, transpondo-as para termos de outras significações” (LÉVI-STRAUSS, 1970, p. 200). As pesquisas de Lévi-Strauss demonstram que a base descritiva e classificatória do nome próprio depende, em sua grande maioria, de toda uma simbologia reconhecida pelas diferentes culturas. Examinando tribos da América do Sul, entre eles os tupis, cavaíba e os bororos, comprova que esses povos formam seus nomes próprios com

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base nas denominações clânicas, já que os nomes procedem de um saber sagrado e esotérico ou estão ligados à personalidade social com o intuito de evidenciar costumes, ritos e proibições, apresentando, assim, um caráter totêmico (LÉVI-STRAUSS, 1970, p. 203). Destaca ainda a existência de tribos que não usam denominações clânicas, como os iroqueses, que formam seus nomes próprios a partir de um verbo e um substantivo incorporado, ou de um substantivo seguido de adjetivo, como por exemplo: No-centro-do-céu, Ele-levanta-o-céu, Flor-pendida, Ele-anuncia-a-derrota, Lá-onde-dois-rios-se-unem. Também menciona situações consideradas por ele como casos embaraçosos, relacionadas a diversas tribos africanas, entre elas a dos baganda, em que alguns clãs são ricos em nomes, enquanto outros são pobres. Os nomes dessa tribo não são reservados aos seres humanos, porque os dão também “às colinas, aos rios, aos rochedos, às florestas, aos olhos d‘água, aos desembarcadouros, aos arbustos e às arvores isoladas”. Na tribo dos lugbara, os nomes, dentro de um mesmo subclã, se referem ao comportamento e ao caráter dos pais: no vocábulo “preguiça” do nome Em-preguiça, os filhos recebem esse nome porque os pais são preguiçosos; e o vocábulo “cerveja” do nome No-pote-de-cerveja, é atribuído ao filho porque o pai é bêbado, etc. (LÉVI-STRAUSS, 1970, p. 207-209). Esse mesmo poder do nome aparece ilustrado em um novo episódio acerca da tribo Nambikwara (Mato Grosso – Brasil), para a qual conhecer o nome próprio de alguém equivale a ter poder sobre esse alguém. Por isso, na comunicação cotidiana, os indígenas utilizam pseudônimos, recusando-se a dizer o seu verdadeiro nome, o que acontece nos ritos religiosos. Referindo-se aos nomes próprios e aos nomes de espécie (aves, cães, gado, cavalos, etc.) (LÉVI-STRAUSS, 1970, p. 274-275). O autor defende a não existência de diferença fundamental entre os dois tipos, para destacar que,

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enquanto provenientes de um conjunto paradigmático, os nomes próprios formam, pois, a franja de sistema geral de classificação: são, ao mesmo tempo, seu prolongamento e seu limite. Quando entram em cena, o pano se levanta para o último ato da representação lógica. Mas o tamanho da peça e o número de atos são fatos de civilização, não de língua. O caráter mais ou menos “próprio” dos nomes não é determinável de maneira intrínseca, nem pela simples comparação com outras palavras da linguagem; depende do momento em que cada sociedade declara terminado seu trabalho de classificação. Dizer que uma palavra se percebe como nome próprio, é o mesmo que dizer que ela se situa num nível além do qual nenhuma classificação se faz necessária, não absolutamente, e sim dentro de um sistema cultural determinado. O nome próprio permanece sempre do lado da classificação (LÉVI-STRAUSS, 1970, p. 248).

Ainda tratando da questão do nome próprio no âmbito da Antropologia, recuperamos o pensamento de Frazer, na obra “O Ramo de Ouro” (realizado entre 1911 e 1915). Nessa obra ele destaca que, em várias tribos primitivas, o nome é considerado como uma realidade e não como uma convenção artificial que pode servir de intermediário, tal como os cabelos, as unhas ou qualquer outra parte da pessoa física, para fazer atuar a magia sobre essa pessoa. Assim, para membros desse modelo cultural, como os índios da América do Norte, o nome não é uma etiqueta, mas uma parte distinta do corpo, como os olhos, os dentes, razão pela qual se deve preservar e cuidar do nome como se faz com outras partes do corpo, caso contrário, é o próprio corpo físico que será atingido, ferido. Há, nessa cultura, um complexo sistema de interdições, ou de tabus, que visam a garantir a salvaguarda

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do nome, uma vez que o ato da pronunciação materializaria propriedades reais da pessoa que o usa, tornando-a vulnerável aos olhos dos seus inimigos (FRAZER, 1981, p. 167). Seus estudos exemplificam, por meio de dados oriundos de diferentes culturas, nessa dinâmica de preservação do nome-corpo: entre os Esquimós, com a prática de dar um novo nome para quando algum dos seus se torna velho; [...] um aborígene australiano acredita que um inimigo poderia praticar magia negra contra ele, se conhecesse seu nome; na Ilha de Chiloe, os índios guardam seus nomes em segredo; se um espírito malévolo os conhecesse poderia fazer-lhes mal; não os conhecendo, seria impotente para agir. Há um temor de que os maus espíritos façam maldades ao detentor do nome (FRAZER, 1981, p. 291-292).

Ainda segundo ele, “os antigos egípcios recebiam dois nomes: o nome verdadeiro (era secreto e ciosamente ocultado) e o nome onomástico, isto é o nome pequeno (era público)”. Menciona também a visão dos Cafres, sociedade onde as mulheres são proibidas de pronunciar o nome do sogro e de todos os varões da família do marido; como também quaisquer palavras que tenham semelhança com os mesmos, o que concede às mulheres um modo de falar tão peculiar que acaba por impor-lhes uma língua à parte (FRAZER, 1981, p. 291; p. 295-296). Já entre os Abípones, habitantes originários do Paraguai, segundo Frazer (1981, p.302), há o hábito de introduzir palavras novas todos os anos, uma vez que todas as palavras que de alguma forma fazem alusão aos nomes dos mortos devem ser substituídas por outras. Esse processo impossibilitaria o aparecimento de uma memória, mesmo em termos de uma tradição oral, pelo fato de a língua não se constituir como um código minimamente estável, mas transformar-se continuamente.

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Em muitas sociedades arcaicas o nome de um rei, de um chefe ou de uma pessoa sagrada é tabu. Segundo ele no Dahomey o nome do rei era sempre secreto, e se algum malvado o conhecesse poderia fazer-lhe mal. Os nomes com que os europeus conheceram esses reis não eram seus nomes verdadeiros, mas meros títulos. E também, no antigo Sião, era muito difícil descobrir o nome verdadeiro de um rei, pois esse era mantido em segredo por medo de bruxarias, por isso quem o dissesse seria encerrado em um calabouço. Para referir-se ao rei, diziam: o augusto, o perfeito, o supremo, o grande imperador, o descendente dos anjos (FRAZER 1981, p. 304-305).

Exemplifica ainda que entre os sulus (mar de Sulu, sul das Filipinas) ninguém mencionava o nome do chefe da tribo ou os nomes dos pais do chefe; nem pronunciava palavras comuns que coincidissem ou recordassem de algum modo o nome tabuado. E mais, em “Madagascar, tanto os nomes de família como os de pessoas” são tirados do vocabulário comum. “Por isso, é preciso inventar” um vocábulo novo, substituindo o anterior, para o objeto proibido (animal, planta, cor, etc.), quando esse nome se torna tabu. E ainda “são tabuados os nomes próprios de reis e chefes não só vivos, mas também soberanos mortos”. Entre os sakalavos, um povo da Polinésia, quando morre o rei, os nobres e o povo, reunidos em torno do cadáver, escolhem solenemente um novo nome para o extinto monarca e esse será o nome com que será referido no futuro. Adotado o novo nome, o antigo se torna sagrado e ninguém ousará pronunciá-lo sob pena de morrer (FRAZER, 1981, p. 305-306). A escolha do nome e o ritual do registro também são destaque na obra de Bram (1968). O autor cita o caso dos Kwotto (Nigéria do Norte) que contratam os serviços de um adivinho, que tem como função

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descobrir se um recém-nascido é ou não reencarnação de algum falecido ancestral do grupo. Assegura também o autor que, em algumas sociedades africanas, as crianças recebem dois nomes: um tido como o nome verdadeiro (nunca revelado a ninguém) e outro que é dado a público. Esse autor cita ainda que os Navajos (Sudoeste americano), povos que ocultam o nome verdadeiro, por acreditarem que ele seja um talismã, pois se for pronunciado com frequência enfraquece e perde a potência. Já os índios Pomo (Califórnia) dão nomes aos filhos de um homem, cuja profissão espera que a criança siga, enquanto os Menominee (Grandes Lagos – América do Norte) acreditam que os nomes pessoais são predeterminados pelo sobrenatural. Por fim, os índios Ojibwa (Grandes Lagos – América do Norte) contratam um feiticeiro para descobrir o nome a ser dado e aguardam que o nome das crianças seja revelado em sonhos (BRAM, 1968, p. 76-77).

O nome próprio na Linguística É fato que a discussão acerca dos nomes próprios não tem merecido muito destaque no âmbito dos estudos linguísticos, se comparado com o espaço ocupado entre as outras áreas do conhecimento. Somente nas últimas décadas, observa-se uma preocupação maior quanto ao estudo de aspectos semânticos, sintáticos, morfológicos, relativos aos nomes próprios. Destacamos, inicialmente, o surgimento, em 1660, da Grammaire générale et raisonnée de Port-Royal, ou Gramática de Port-Royal, de Lancelot e Arnaud que serviu de modelo para grande número de gramáticas do século XVIII. Nesta gramática, os nomes compreendem os substantivos e os adjetivos e ambos designam “os objetos de nossos pensamentos” e podem ser “as coisas como a terra, o sol [...], que chamamos substância”, ou aquilo que chamamos “acidente”, como “ser redondo, ser vermelho, etc.”, no primeiro caso estes nomes são substantivos e no segundo adjetivos (KRISTEVA, 1969, p. 194).

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A chegada do século XIX traz as constatações quanto à complexidade que envolveu os estudos sobre o nome próprio. Um autor de destaque é Michel Bréal, cuja obra se baseou no método neogramático. À época em que o “Ensaio de Semântica” (1897) foi publicado, os linguistas defendiam a classificação dos nomes próprios como uma categoria à parte, sob o pretexto de que esses nomes não apresentavam valor etimológico e sofriam transformações fonéticas mais lentas do que outras categorias de nomes da língua. Bréal (1992, p. 123) destaca: de tudo o que precede podemos tirar uma conclusão: não há dúvida de que a linguagem designa as coisas de modo incompleto e inexato. Incompleto, porque não se esgotou tudo o que se pode dizer do sol quando se disse que ele é brilhante, ou do cavalo quando se disse que ele corre. Inexato, porque não se pode dizer do sol que ele brilha quando se escondeu, ou do cavalo que ele corre quando está em repouso, ou quando está ferido ou morto.

Argumenta que, quando um substantivo é abstrato, há mais equivalência entre o nome e aquilo que ele representa, pois, a um substantivo abstrato, associa-se uma determinada “operação no espírito”, de modo que, quando tomo as duas palavras, compressibilité, immortalité, tudo o que se acha na ideia se acha na palavra. Mas, se tomo um ser real, um objeto existente na natureza será impossível a linguagem fazer entrar na palavra todas as noções que esse ser ou esse objeto desperta no espírito. A linguagem é obrigada a escolher. Entre todas as noções, a linguagem escolhe apenas uma: cria assim um nome

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que não tarda a se tornar um signo (BRÉAL, 1992, p. 123, grifo nosso).

Nota-se que, assim como os substantivos abstratos, os nomes próprios são diferenciados dos demais tipos de nomes. O autor finaliza argumentando que os nomes próprios formam uma espécie situada “fora da língua”, pois, para essa categoria, “o sentido etimológico não conta para nada”, havendo só uma diferença “intelectual” entre nome próprio e nome comum: se se classificam os nomes segundo a quantidade de ideias que despertam, os nomes próprios deveriam estar na frente, pois são os mais significativos de todos, sendo os mais individuais. Um adjetivo como augustus, tornando-se o nome de Otávio, sobrecarregou-se de uma quantidade de ideias que lhe eram primeiramente estranhas. Além disso, basta aproximar a palavra César, ouvida do adversário de Pompeu, e a palavra alemã Kaiser, que significa “imperador”, para ver o que um nome próprio perde em compreensão para se tornar um nome comum. Donde se pode concluir que do ponto de vista semântico, os nomes próprios são os substantivos por excelência (BRÉAL, 1992, p. 126).

De acordo com Bréal, com exceção dos nomes próprios, havia entre a palavra e aquilo que ela designa uma relação inconveniente, isto é, inacabada e inexata, pois a relação entre palavra e coisa nunca está inteiramente concretizada, havendo sempre uma lacuna pela qual o significado da palavra se ajusta a cada situação de uso. Numa época dominada pelas ideias defendidas pelos neogramáticos, surge a teoria de Saussure. O tema nomes próprios não aparece como tópico específico no Curso de Linguística Geral (1916). No capítulo

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Analogia e Evolução, aparece o destaque para o fato de o nome próprio como palavra isolada não permitir nenhuma análise no interior do sistema: as únicas formas sobre as quais a analogia não tem poder nenhum são naturalmente as palavras isoladas, tais como os nomes próprios, especialmente os nomes de lugares (cf. Paris, Gèneve, Agen, etc) que não permitem nenhuma análise e por conseguinte nenhuma interpretação de seus elementos; nenhuma criação concorrente surgiu a par deles (SAUSSURE, 1969, p. 201).

Outro linguista de destaque foi Stephen Ullmann. Em sua obra “Semântica – Uma introdução à ciência do significado” (1964), ele situa a linguagem no âmbito de uma teoria geral dos signos; e aceita a distinção entre língua e fala. Destaca a importância crucial do contexto, quando trata da determinação do significado das palavras. Assevera que até os nomes próprios (considerados por ele como as mais concretas de todas as palavras) têm uma variedade de aspectos dos quais um só será o adequado para uma situação particular. Ao tratar do nome, ele destaca a preocupação com algumas situações: “a posse de um nome desde tempos imemoriais”; “os nomes são frequentemente dotados de poderes mágicos e rodeados de complicadas superstições e tabus”; a distinção entre nome próprio e um substantivo comum é que o primeiro é “escrito com maiúscula”. E salienta uma vez mais que a diferença essencial entre os substantivos comuns e os nomes próprios reside na sua função: os primeiros são unidades significativas, os segundos, simples marcas de identificação (ULLMANN, 1987, p. 119; p. 148-151). Contudo, resta ainda uma questão: a fronteira entre as duas categorias não é de modo algum decisiva, pois muitos nomes próprios

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derivados de substantivos comuns ainda mostram marcas da sua origem, como por exemplo: Blackpool (pântano negro), Newcastle (Castelo Novo), apelidos como Smith (ferreiro), e Carpenter (carpinteiro), nomes de pessoas como Pearl (Pérola) e Heather (urze). Há, ainda, o processo inverso (um nome próprio se transforma num substantivo comum), seja de forma metafórica (quando uma pessoa ou um lugar dão o seu nome a uma classe inteira de pessoas ou lugares semelhantes: Cícero, (para todos os guias tagarelas conhecidos por cicerone-s), seja metonímica (baseado em qualquer relação, que não semelhança: chauvinismo – origem no nome próprio de Nicolas Chauvin de Rochefort, soldado cujo patriotismo exibicionista foi ridicularizado em caricaturas e no palco) (ULLMANN, 1987, p. 160-162). Nos casos citados, ocorre segundo Dick (1999, p. 125), a “intersecção dos campos onomásticos”, uma vez que o mesmo referente ou nome próprio “ensejaram a criação de termos funcionais, derivados da forma primitiva”. A “troca dos campos aplicados não altera, na estrutura básica do vocábulo, a sua carga semântica.” Houve modificação, portanto, na “passagem do vocábulo de seu estado de língua para o estado denominativo [...]”. Outro aspecto a ser destacado no âmbito de uma discussão acerca do estatuto do nome é o da relação semântica que se estabelece entre um objeto e sua denominação, e a referência entre o objeto, o conceito e a forma da palavra. Ao tratar da relação semântica existente entre um objeto e seu nome, Lyons (1980, p. 429), postula que os filósofos gregos do tempo de Sócrates, e, em seguida, Platão, propuseram a questão nos termos em que ela geralmente se propõe até hoje. Para eles a relação semântica que liga as palavras às coisas é a de “denominar”; e a questão que daí decorre é a de saber se os “nomes” dados às “coisas” eram de

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origem “natural” ou “convencional” [...]. No curso do desenvolvimento da gramática tradicional, tornou-se hábito distinguir entre o significado da palavra e a “coisa” ou as “coisas” por ela “denominada.” Retomando a distinção formulada pelos gramáticos medievais: a forma de uma palavra (vox – parte duma dictio) significava “coisas” em virtude do conceito associado a essa forma no espírito dos falantes; e o “conceito”, olhado desse ponto de vista, era o significado da palavra (a sua significatio). Consideremos essa a visão tradicional da relação entre palavras e “coisas”.

Ao tratar da questão do nome próprio, destaca os três tipos de expressões referenciais: sintagmas nominais definidos; nomes próprios e pronomes pessoais. A concepção de nomes próprios, no âmbito da Lógica, nos demonstra que, ao serem utilizados como expressões referenciais, “identificam os seus referentes, não os descrevendo em termos de uma propriedade relevante que o nome denota, mas utilizando a associação única e arbitrária entre um nome próprio e o seu portador”. Argumenta, ainda, que os nomes próprios, da maneira como são empregados no cotidiano, comportam duas funções: a referencial e a vocativa. Em relação à função referencial, destaca que “os nomes são frequentemente usados simplesmente para chamar a atenção do locutor para a presença da pessoa que se nomeia ou para lembrar ao auditor a existência ou importância dessa pessoa”. Já a função vocativa dos nomes próprios é reconhecida por atrair a atenção da pessoa que está sendo chamada e, também, em certos usos de nomes comuns, como por exemplo, no caso de “rapaz”, em “Vem cá, rapaz!”, em que, diferenciado ou não em sua forma, esse nome aproxima-se “do uso de um nome próprio ou de um título” (LYONS, 1980, p. 176; p. 178).

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Destaca também que, quando duas pessoas se apresentam pelo nome – “Apresento-te o João”, “Chamo-me Zé” –, entra em cena um ato de nomeação que é classificado por ele como “nominação didática”. Para explicar o conceito de “nominação performativa” recupera o exemplo utilizado por Austin para ilustrar os enunciados performativos: “batizo este barco Queen Elizabeth”. Nesse sentido, cada ato de “nominação performativa” é regido por regras que impedem que pessoas não autorizadas o realizem e “não se pode assumir esse papel quando e como bem entendemos” (LYONS, 1980, p. 179). Nessa perspectiva, alerta para o fato de não bastar escolher um nome próprio, pois é preciso produzir um ato de atribuição: o princípio de que os nomes próprios não têm sentido não é invalidado pelo fato de a nominação performativa formal ou informal poder ser determinada por certas condições culturalmente prescritas de conveniência semântica. Em determinadas culturas, há um conjunto mais ou menos bem definido de nomes de pessoas institucionalizados (João, Maria etc.) que são atribuídos às crianças (LYONS, 1980, p. 181).

Para Lyons, a questão de saber “se os nomes próprios pertencem ou não a um sistema linguístico particular”, ou se eles têm um sentido ou não, “não se pode dar uma resposta simples e universalmente válida”, sobretudo, porque, segundo ele, “certos nomes ao menos parecem ter uma significação simbólica, etimológica ou de tradução” (1980, p. 183). Para esse linguista, os nomes próprios “não têm sentido, ou um tipo de significação única e especial que os distinga, como classe, dos nomes comuns”. Todavia, chama a atenção para o fato de “os nomes de pessoas poderem ter uma função vocativa paralelamente a uma função referencial ou quase-referencial no comportamento linguístico”.

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Mais contemporaneamente, ainda na área da Linguística, outro trabalho de destaque é o de Kleiber (1984), para quem “a linguagem tem por vocação primeira falar sobre o real”, sendo que “função de designação e representação constituem a principal característica do signo linguístico: não basta estar no lugar de algo”. Dessa maneira, sustenta que a “relação de denominação é uma parte constitutiva desta dimensão referencial”, e estabelece a distinção entre denominação e designação. Segundo ele, a denominação se efetua na dependência de uma instauração prévia de um laço referencial particular entre o objeto x e o signo X. Considera a denominação como a relação que une uma unidade lexical codificada a seu referente. Já as frases de designação, contrariamente às frases de denominação, não pressupõem nenhuma denominação prévia. Além disso, o esquema X (signo) ↔ x (coisa) pode ser ainda desdobrado em pelo menos duas distinções principais: a referência e a denominação (KLEIBER, 1984, p. 77). Afirma ainda que com o ato de denominação prévio, os nomes se restringem aos simples signos que foram atribuídos às coisas da realidade que eles designam. Entretanto, destaca que há o estabelecimento de uma regra de fixação referencial que permite a utilização ulterior do nome pelo objeto denominado (KLEIBER, 1984, p. 81).

Argumenta que o estatuto exclusivamente referencial atribuído ao nome próprio confronta com as ideias de Mill (1843), à medida que este distingue os nomes quanto à sua significação, enquanto na sua proposta de ordenação das classes dos nomes, concebe o nome próprio como um nome de objeto que não conota nada e que não possui significação, mas sim denota os indivíduos a quem dão o nome, o que não implica qualquer atributo pertencente a esses indivíduos.

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E mais, o nome próprio possui uma determinada estabilidade enquanto outros nomes têm, geralmente, uma significação ocasional. Na Antiguidade, a escolha dos temas dos nomes que motivavam a sua imposição era feita segundo uma concepção diferente da abordagem moderna. Com o crescimento das famílias e da população das comunidades, alguns nomes começaram a se popularizar e a serem também usados por descendentes de outras famílias, gerando, assim, dificuldades na distinção de cada pessoa. Surge, então, a necessidade da criação de um segundo nome que, acrescentado ao primeiro, identificasse melhor as pessoas. Já na sociedade atual há nomes adequados às pessoas e aos lugares, embora deva ser considerado o fato de às vezes os designativos serem escolhidos muito mais pelos modismos do que por qualquer preocupação com o seu verdadeiro significado. Na verdade, percebe-se que, a partir da mesma matriz lexical da língua (de uma única lexia), formam-se topônimos e antropônimos, assim como se forma um topônimo a partir de um antropônimo e o contrário. Dick explicita que “a troca dos campos aplicados não altera, na estrutura básica do vocábulo, a sua carga semântica. Em qualquer das posições citadas (antropônimo, topônimo ou corônimo), a intenção da escolha é a homenagem ao ator que se esconde na forma linguística esvaziada (antropônimo)” (1999, p. 125). Como os estudos onomásticos envolvem a função referencial ou denotativa da linguagem, não se pode falar em Onomástica – Toponímia e Antroponímia – sem considerar a questão da referência. Segundo Seabra (2006, p. 1956), o topônimo e o antropônimo são, pois, entidades que vão além da expressão linguística e envolvem, obrigatoriamente, os referentes que destacam. Dentro dessa “teoria causal da referência”, Oliveira (1996) diz que o nome próprio é um “designador rígido”, pois designa um indivíduo de uma

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maneira única e direta. Mais que isso, acrescentamos que os nomes de lugares, assim como os nomes de pessoas são “designadores rígidos” já que representam ou são os próprios referentes em uma situação de comunicação, podendo-lhes atribuir, por isso, no âmbito dos estudos linguísticos, certa singularidade.

Na Onomástica, mais especificamente no nome de lugar, a função simbólica ou representativa do topônimo, isto é, o vínculo do significado do nome a determinada localidade ou acidente indica, necessariamente, que se pergunte o que esse nome simboliza e o que esse nome representa ou denomina. Embora a sociedade sofra mudanças ao longo do tempo, o topônimo permanece na língua, e o sistema de referência extralinguístico pode ou não se perder. Nessa conservação ou perda, a rede referencial se torna opaca, constituindo-se, portanto, uma referência exata: a pessoa identifica alguém ou determinada localidade sem, contudo, atribuir-lhe um significado, preserva o referente, mas não a informação e, assim, os topônimos e antropônimos permanecem na língua. Os proponentes da Teoria Causal da Referência3 chamam a atenção para o fato de o contato com o objeto ser um elemento determinante para a fixação da referência de um nome, ou seja, que o objeto seja considerado como a causa (a fonte ou a origem) de o nome ter uma referência. O ponto central da teoria é a tese de que os nossos usos de um nome dependem de usos anteriores, e estes, por sua vez, de outros usos mais anteriores, e assim sucessivamente até atingir o

3 Graça defende que a teoria da referência se trata de uma teoria capaz de explicar, “em termos de condições necessárias e suficientes, como é que a referência de um nome é para ser fixada” (2003, p. 195). Essa teoria é defendida pelos filósofos S. Kripke, K. Donnellan e H. Putnam, entre outros.

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ponto em que se encontram os primeiros usos do nome, que ocorrem na presença do objeto, relacionando, diretamente, o nome com o objeto que é o portador do nome. Basicamente podemos entender a cadeia causal como constituída por um conjunto de elos que ligam o uso atual de um nome a um uso anterior e assim sucessivamente até o primeiro uso do nome, que é considerado como tendo origem num objeto que é a sua causa (a causa desse primeiro uso).

Considerações finais Neste trabalho demonstramos vários posicionamentos com relação ao conceito de nome próprio, além da constatação de a análise dessa categoria do nome escapar ao estabelecimento de fronteiras entre diferentes disciplinas, o que obriga o estudioso desse assunto circular pela Filosofia, pela Antropologia, pela Linguística, dentre outras áreas do conhecimento. Autores como Mill, Frege e Russell conceituaram a categoria do nome próprio à luz da perspectiva lógica de cada um e, dada a sofisticação lógico-filosófica dos textos desses autores, o debate contemporâneo sobre o estatuto do nome próprio tomou rumos bastante diversos. As consequências mais importantes, a esse fato, é que, de repente, lógicos, filósofos e linguistas passaram a se ocupar da abordagem dessa categoria de nomes. Entretanto, nesse debate ainda não houve um consenso mínimo, pelo menos, quanto à delimitação da esfera de análise desse tipo de nome. O retorno necessário aos questionamentos lógico-filosóficos mostrou que o estudo dos nomes próprios, ainda na atualidade, constitui ponto de controvérsia para a teoria da linguagem, principalmente em termos de sistematização do estatuto linguístico desse tipo de nome. De um modo geral, pode-se destacar a posição dos teóricos que sustentam que o nome próprio funciona como marca individual (Mill); há também a posição daqueles para os quais o nome próprio assegura a

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continuidade da referência, tomando o ato referencial como relevante (Frege, Kripke); e aqueles que consideram a questão dos estudos da significação do sentido (o sentido enquanto objeto), a significação (Russell). Nota-se, pois, que as contribuições relativas ao conceito de nome próprio, apresentadas por teóricos vinculados às áreas do conhecimento anteriormente focalizadas – cada uma dentro das especificidades de seus posicionamentos teóricos –, fornecem elementos que não podem ser desconsiderados na análise do estatuto do nome próprio.

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Recebido em 11 de novembro de 2011 Aprovado em 7 de fevereiro de 2012

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CLIPE

Ensaio sobre o prólogo: liminaridade, dialogismo e autoconsciência no romance Augusto Rodrigues da Silva Junior UnB

RESUMO: A partir de uma genealogia do romance humorístico-autoconsciente faremos a análise de alguns prólogos. Considerados como poderosos topoi, revelam uma verdadeira poética do jogo discursivo no interior do gênero literário característico da modernidade: o romance. Levando ao mundo a consciência dos novos aspectos da palavra publicada, alguns artistas da modernidade escreveram discursos sobre discursos e fundaram uma variedade literária. Rabelais, Cervantes e Sterne cultivaram homens de papel e estilos polifônicos que movimentam a autoconsciência narrativa, espécie de ponto de fuga a disputar lugar com o enredo e outras partes estruturais. Nesse lugar de abertura e fechamento do livro, todas as vozes se encontram: autor, narrador, leitor, ideias, edição, editor etc. Partindo de uma posição liminar, o prólogo, cria-se um sistema de vozes que enunciam e respondem para mostrar como o homem se decompõe e se recompõe nesta sarabanda chamada vida. PALAVRAS-CHAVE: Prólogo literário. Dialogismo literário. Narrativa literária autoconsciente. ABSTRACT: From a genealogy of self-consciousness humorous novel will do the analysis of some prologues. Considered as powerful topoi reveal a true poetic discourse of the game within the genre characteristic of modernity: the novel. Taking the world awareness of new aspects of the published word, some artists wrote

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discourses about discourses and founded a literary variety. Rabelais, Cervantes and Sterne cultivated men of paper and polyphonic styles that move the narrative selfconsciousness, a kind of vanishing point instead to compete with the plot and other structural parts. In this place of opening and closing the book, all voices converge: author, narrator, reader, ideas, editing, editor etc. Based on a preliminary position, the prologue, it creates a system of voices that enunciate and respond to show how man breaks down and rebuilds this sarabande called life. KEYWORDS: Literary Prologue. Literary Dialogism. Self-conscious Literary Narrative.

A forma romance viabilizou uma releitura criativa no interior do próprio gênero. As fendas no interior deste locus movimentam as ideias dos personagens e dos homens do seu tempo com o leitor futuro. Tudo surge em um mesmo plano de autonomia discursiva e deixa aberturas para novas formas. Na variante humorística, o autor abdica de seus direitos “autoritários” e compartilha a imaginação. Essa linhagem insere o trabalho e a reflexão sobre o ato ético da escrita, propondo, em sua base uma disposição dialógica que equaciona a imagem do indivíduo na modernidade. Rabelais, Cervantes e Sterne (ainda tributários do carnaval medieval da linguagem, embora o último já evoque certa subjetividade) celebraram essa inventividade da autoconsciência. Os prólogos, além de refletirem metalinguisticamente a construção do enredo propriamente dito, ou seja, o universo habitado pelos seres de papel, criam argumentos e polêmicas a serem desdobradas ao longo das páginas e dos tempos. Imagens já conhecidas do grande público são jogadas distraidamente e cabe ao leitor recriar significações paralelas. Nestes livros tudo está em dúvida, até mesmo a própria dúvida é romanceada e serve como chave de decifração do mundo. Cervantes “queima” vários livros de Cavalaria na seleção feita pelo Cura e pelo

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Barbeiro. Sterne também, em muitos momentos, não deixa de destacar suas dúvidas ante o racionalismo das Luzes – não por acaso, elege como um dos seus precursores o francês Rabelais. Ao brincarem com suas glosas e citações, instauram um diálogo com a tradição e instigam o debate no interior da obra (feita de emendas criativas). Capciosamente cada nome aparece citado para motivar ou impedir a busca de despropósitos. Aventuras e opiniões recriam o retrato satírico das sociedades de seu tempo em um excedente de visão propiciado pela abertura da obra. Fazem rir o melancólico e gargalhar o já risonho no encontro do humor com a melancolia derrubando as fronteiras entre enunciado e público, condensando traços da miséria humana na pintura das contradições e desmistificando a concepção de mundo do seu tempo. O prólogo utiliza um ritmo oscilante e dúplice, com sua privilegiada posição de “entre-lugar” (do personagem-vivente, do narrador-biográfico e do autor criador) que lhe permite instalar-se no limiar. Entre o antigo fechado e o novo inacabado, o reconhecimento de outras vozes confronta a própria voz do escritor com padrões estéticos vigentes. Novas possibilidades de representação e de conjugação de “sistemas teóricos” (ideias de outros) apontam os infinitos substratos poéticos e estilísticos que povoam essa criação. Segundo Bakhtin (2002b), um conjunto de valores antigos ecoa de forma invisível a partir da cultura popular e oral. Em maior ou menor grau, ela reverbera e se transforma nos grandes romances. Nesta genealogia analisada, mantém-se a força de uma archaica estilística e os gêneros evocados são dotados de uma grande força capaz de fazer aterrissar, materializar e corporificar o mundo. Da dinâmica fundamental e problematizadora de Rabelais e Cervantes à presença do pensamento ambivalente do escritor inglês, matizado pelo tom corrosivo do escárnio, nascem enunciados. Esta topografia, pré-discursiva, proto-espacial, prepara a atmosfera das formas e imagens e têm a

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capacidade de colocar em circulação, antes da leitura do livro em si, detalhes internos e essenciais que se revelarão nas páginas posteriores. Como topos na modernidade podemos dizer que ele é um limen. Um campo liminar que consegue ser o começo do livro e o fim da história, cuja linguagem ataca o passado e revela a sua verdade nova no mundo. Neste momento de efervescência e consolidação da prosa, na tarefa de representar o momento, a literatura equaciona a vida social e representa a si mesma. Esta força do Ao leitor oferece um espaço capaz de abrigar imagens carregadas de realismo e história e, ao mesmo tempo, cria fantasias e levanta questões. Para demonstrar tais ações, consagraremos os nossos próximos passos à uma teoria do prólogo como espaço liminar da ascensão da prosa. Posteriormente, compararemos os modos de fazer esta tópica em Rabelais, Cervantes e Sterne – fundadores da tradição humorística-autoconsciente. Um fato dinâmico para a leitura deste topoi é entendê-lo como introdução do romance, último capítulo do livro e espaço fronteiriço entre o homem rememorado e o trabalho formal. No instante em que uma poética prenuncia-se e difunde as relações dialógicas entre autoria e escrita, nomes e trejeitos pertencentes à prosa ocidental anunciam uma forma que movimenta traços sério-cômicos, procedimentos e poéticas. A partir desse processo estilístico na abertura do livro e fechamento do texto o todo é antevisto e revisto. São delineados os modos de angariar e enganar o outro, as reflexões sobre a criação literária, os caracteres que objetivam a interação dialógica com outros escritores e os destinatários hipotéticos que têm suas réplicas antecipadas. No cruzamento estratégico de vozes ocorre a infiltração nos interstícios de outras vozes e o desejo de sua inserção no cânone. Da posição que se fala há sempre um movimento crítico, desdobrado do olhar

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do outro e dotado de inúmeros valores articulados. Assim, esta arena narrativa (o prefácio) é um microcosmo que revela o macrocosmo. Os prefácios assinados por autores, bem como aqueles assinados e estilizados por projeções autorais, marcaram profundamente a história do gênero. Apresentando ansiedades, explicações e sentimentos diante de uma plateia, são manifestos que elucidam procedimentos, inquietações de uma época, configuram artimanhas e se integram à trajetória do personagem com autonomia ideológica. Os intróitos são cartões de visita ambivalentes, pois trazem as matérias explícitas sumariamente mascaradas pelo tom confessional e fingidor. Uma voz farsista prepara o leitor, evoca a imagem da obra, e apresenta personagens-ideólogos – sujeitos da própria consciência. Os livros escolhidos para o exercício deste ensaio são: Gargântua e Pantagruel, As aventuras do engenhoso fidalgo dom Quixote de la Mancha e As aventuras e opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Na análise de suas tópicas polifônicas transparece a tradição humorística moderna (BAKHTIN, 2002a) e o legado da narrativa autoconsciente (SENNA, 1998). Destas duas visões chegamos à imagem do prólogo humorístico-autoconsciente. Assim, esta “conversa” antes de começar, instaura uma impressão de intimidade para agradar o leitor. Para isso, um halo de displicência e de aparente insegurança aliada à consciência e domínio (do todo) conjuga sentimentos e razões globais e toca instâncias criativas que envolvem a publicação, o exercício metalinguístico e a vida com seus realismos e fantasias. Com caracteres da totalidade do “que se vai ler”, os traços sociais, a história e a voz biográfica aparecem funcionando e em conflito. Para falar mais detalhadamente sobre os prefácios, vejamos sua natureza e suas variantes. Dentre as mais diversas manifestações, vários nomes re-significam esse locus amoenus/locus horrendus: invocação,

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pródromo, prolegômeno, preâmbulo, advertência etc. Sua aparente função de apêndice amalgama-se de tal maneira com o restante do livro, que, muitas vezes, impossibilita enxergar sua condição dúplice de autonomia e interatividade. Poucos textos críticos tratam diretamente do assunto. Um deles, O artigo sobre os prefácios de Carpeaux (1976) e o outro, um Prólogo dos prólogos de Borges (1985). A despeito da generalidade com que tratam do tema, apresentamos considerações convergentes. De outra maneira, a interpretação de Bakhtin (2002a) dos intróitos de Gargântua e Pantagruel no capítulo “O vocabulário da praça pública na obra de Rabelais” mostra a importância dessa forma estilizada para iluminar a crítica da literatura e da cultura. Segundo o pensador russo, as ideias que constituem o interior dos livros estão prenunciadas nas suas aberturas. Além disso, mostra como concepções de mundo confrontadas com “alusões e ecos da atualidade política e ideológica” (2002a, p. 169) reverberam na totalidade material e livresca. Seu caráter liminar acentua-se em grandes escritores e ilustra fatores importantes na formação do autor e da sua concepção de gênero. Os termos prefácio e prólogo, para Carpeaux e Borges, estão mais ligados à língua que utilizam do que ao tipo formal que definem. Para os dois, os traços estilísticos e estruturais estão integrados organicamente ao texto e ambos constatam a dificuldade de encontrar estudos sobre o assunto justamente pelo seu caráter de tópica à margem (aparente) do conjunto prosaico: Verifiquei que se trata de assunto totalmente inédito. Verifiquei que não existe no mundo livro nenhum sobre esse tema. Não há fontes nem referências. Os prefácios nem sequer têm verbete nas enciclopédias de termos literários. Como vou escrever sobre isso? [...] Só a [enciclopédia] espanhola, a Espasa-Calpe, tem várias páginas (CARPEAUX, 1976, p. 25).

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Que eu saiba, ninguém formulou até agora uma teoria do prólogo. A omissão não nos deve afligir, já que todos sabemos do que se trata (BORGES, 1985, p. 8).

Isso demonstra que durante muito tempo este topoi foi considerado acessório e que somente a partir do século XX ele passou a ser percebido de forma consciente como índice das contingências históricas e dos valores estéticos. No romance, são espaços formais de construção e tiveram muita importância na sua história, pois funcionaram como “[...] fórum público e coletivo de debate à procura dos modos de formalização estética de aspectos constitutivos de uma sociedade em mudança” (VASCONCELOS, 2007, p. 21). Na prosa, sob a máscara autoral, ou na condição de simples espaço para o contador de histórias, Carpeaux o define como uma forma de aproximação com o público e faz uma classificação de acordo com as intenções: prefácios-justificativa, pedidos de desculpas, desafios, manifestos, sentenças etc. Percebe ainda, na poesia, que o eu poético faz o mesmo movimento para buscar os pares literários. Sejam eles, as (antigas) musas inspiradoras ou os leitores que seguram seus volumes impressos: “O verdadeiro prefácio das Fleurs du mal é aquele que o próprio Baudelaire escreveu no interior do poema: Hypocrite lecteur, mon sembable, mon frère...” (CARPAEUX, 1976). Essa ideia de familiaridade, também apontada por Bakhtin ao caracterizar o intróito como uma evocação do outro, faz dele um documento que conclama uma arena de debate entre o leitor e aquele que assume/ assina – autor, pseudônimo, projeção narrativa etc. Outro destaque é o texto de Samuel Jonson (1755 apud CARPEAUX, 1976) no seu Dicionário da língua inglesa. Ao invés de bajular um “mecenas” ele descreve sua condição e os seus sofrimentos para publicar. O crítico vê no relato um marco literário: o começo da era burguesa. Em vez dos grandes senhores, o grande público. Sterne

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(contemporâneo de Jonson) leva às últimas consequências esse conflito editorial ao fazer dedicatórias irônicas, paródicas e subjetivas. Nos dois casos a era burguesa é representada (na Inglaterra) e a autonomia implica a necessidade de um comprador. Isso se estendeu gradativamente para outros países à medida que os públicos se formavam e o livro se firmava como mercadoria. Essa necessidade de inserir “coisas antes”, desde as epopeias, passando pelo teatro grego até as formas medievais sempre funcionou como artefato estilístico. Esse instrumento de devoção a algum credo ou ideologia, demonstração de respeito a algum mecenas ou estadista, é também um resumo do texto, uma evocação a deuses e uma topografia para mostrar erudição, confrontá-la ou dissimulá-la. Borges, por sua vez, introduz uma compilação (feita por um editor) de prólogos escritos ao longo de sua carreira. É um escritor canonizado que define esse exercício metalinguístico com um prólogo “elevado à segunda potência”. Mais condensado, pela própria natureza criativa, o escritor argentino chega a conclusões semelhantes às de Carpeaux e Bakhtin. Constata que nas primeiras linhas dos grandes textos o leitor mergulha em uma atmosfera verbal e estilística que se estende ao longo do processo. Uma atmosfera que prescinde, literalmente, da atenção do outro. O primeiro exemplo, o prefácio de Wordsworth para a segunda edição de suas Baladas líricas seria uma verdadeira poética das concepções temáticas e das imagens perceptíveis ao longo da obra. Para ele, quando o texto é essencialmente literário, o prefácio torna-se uma espécie de autocrítica e ficcionalização. Desde a abertura de As mil e uma noites aos Ensaios de Montaigne ele percebe o caráter liminar: separado, enquanto parte autônoma e tipográfica, mas fundida ao discurso como parte integrante do todo. Na análise de Gargântua e Pantagruel (2002a), Bakhtin mostra que desde as primeiras linhas o leitor é arrebatado por um clima verbal

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específico. Ele reconhece a presença da voz do autor e da “consciência polifônica” em diálogo com outros sujeitos-consciência. Destaca a constância das variantes orais no seu interior e como eles se estendem pelos volumes. O narrador conclama a tradição (negada e afirmada) como um imperativo e congrega artifícios da propaganda e dos pregões populares. Em todos os âmbitos, a voz atrai a atenção dos fregueses. Na galeria de introduções analisadas neste ensaio sempre ocorre essa intenção de angariar leitores: o modo de ver os acontecimentos da trama, os caracteres, a própria imagem como deslocamento metaconsciente, aditamentos em que o sujeito que enuncia tenta fazê-lo a partir da ótica do outro. Isso quebra qualquer rigidez clássica: o escrito e o oral surgem como forças e formas ambivalentes. Documento notório da publicação, o prólogo insiste que a obra é filha do mundo e um mundo concomitantemente. No caso do intróito assinado por seres de papel, a potencialidade dialógica amplia-se e as partes constituintes distendem sua capacidade semântica. A característica principal do prefácio assinado pelos autores projetados (de Rabelais a Sterne) é convidar o leitor a pensar sobre o gênero, seu conjunto de códigos e sobre a condição existencial. Os nomes que povoam as linhas introdutórias evocam genealogias específicas e têm caráter persuasivo. Se no âmbito ético-social, a dicotomia entre o sujeito e o outro transparece, desenvolve-se um artifício técnico na construção do diálogo entre o que é narrado, a enformação do personagem, o contexto histórico e a presença do leitor neste espaço criativo. Esta tópica permite a interação entre os pólos de consciência e aproxima difusamente realidade e fantasia com a vantagem de “eximir” o ser de carne e osso de qualquer coisa. Este topoi relativiza os movimentos de elogio e de injúria, inerentes aos contextos populares e faz com que as formas orais apareçam mescladas com antigas práticas retóricas (renovadas) na escrita.

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A arte literária do prólogo é, portanto, mais consciente e articulada do que suporíamos. Uma vez que a comunicação entre o sujeito projetado e o outro é uma das prerrogativas de qualquer intróito, a sua releitura após “o último capítulo” torna-se imprescindível para enxergar a visão do autor sobre si mesmo e sobre aquilo que ele queria antecipar ou despistar. Isto permitiria aprofundar as possíveis respostas às críticas sobre a obra, verificar se as filiações literárias procedem, se as promessas estilísticas se consumaram e se as propagandas eram enganosas... Em Pantagruel, a cultura religiosa da época transparece de uma forma rarefeita e inventiva – afinal, era necessário evitar as possíveis censuras da Igreja. Nos prefácios de Gargântua, há artifícios para a inclusão de questões da “ciência humanista” aproximando-se da cultura popular e confrontando a religião obrigatória e ideologicamente inserida1. Assim, o enunciado atendia a vertente radical da “crítica” – religiosa ou acadêmica. A questão científica romanceada confrontava os “intelectuais” da época e os discursos familiares eram facilmente reconhecidos pelos leitores “comuns”. Com disfarces e equações provocava a fusão desses caracteres para alcançar e polemizar com o maior número possível de pessoas. A opção, sendo artística, exigia criatividade. Rabelais, sob o pseudônimo (baixo-corpóreo) de Alcofribas Nasier2 se apresentava como “fazedor” de uma literatura inovadora e zombeteira. No prólogo de seu Livro IV, por exemplo, Alcofribas Nasier conversa com o leitor companheiro: “Notai bem tudo. O que aconteceu boa gente? [...] convidais-me para continuar a história pantagruélica,

1 Padre Jean, um cínico mascarado pela batina, erige um discurso que conjuga disparidades. O clérigo Yorick de Sterne também é um religioso que cultiva o riso de Gargântua e Sancho e um artifício para desafiar a ordem. 2

Nasier seria um nome advindo de nariz (nez) que, na cultura popular, liga-se à imagem fálica.

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alegando utilidades e os frutos colhidos na leitura, entre todas as pessoas de bem” (RABELAIS, 1991, vol. 2, p. 16). Por outro lado, tece comentários ácidos aos críticos (caluniadores): [...] diabos vestidos de saia; vendo todo mundo em fervente apetite de ver e ler os meus escritos, pelos livros precedentes, escarraram dentro do prato, quer dizer, censuraram-nos, desacreditaram-nos e caluniaram-nos, com a intenção de que ninguém não os visse, nem os lesse, fora suas poltronices. [...] advirto a esses caluniadores diabólicos que tratem de se enforcar no último pedaço daquela lua; eu lhes fornecerei os cabrestos (RABELAIS, 1991, v. 2, p. 18-20).

O prefácio fala com aqueles que deseja agradar e polemiza com os possíveis caluniadores da obra – que já está no seu quarto volume! O frontispício é uma resposta antes da proposição, pois antevê possíveis reações. Não por acaso recebe o epíteto de “ao leitor”, dando um tom de camaradagem e abrigando movimentos prenunciados na transposição da Idade Média para a Modernidade que ganham configurações à medida que a prosa afirmava-se no Ocidente. A consciência que sustenta o estilo multiforme de Rabelais está longe da sisudez retórica e diminui a distância entre ele e o leitor e estabelece um clima de familiaridade no qual os dois disputam os níveis interpretativos e axiológicos no embate discursivo. A carnavalização, portanto, funciona como uma crítica ética da literatura vigente e instaura uma forma paródica de representar diferentes individualidades. A linguagem estilizada, em que o sério-cômico é um motor desde as primeiras manifestações, rompe o curso normal da narrativa biográfica construída com “elementos basilares e típicos de toda trajetória vital: nascimento, infância, anos de aprendizagem, casamento, construção do destino, trabalho e afazeres, morte etc.” (BAKHTIN,

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2003, p. 213). Este espaço discursivo relativiza a prática do direito de fala e difunde nessa genealogia humorística um inacabamento que redunda em um interessante instrumento estilístico, paródico e irônico que nunca se fecha em si mesmo. Passemos a Cervantes e suas trapaças introdutórias. Quixote, de carne e osso (no plano realista da prosa), e ainda vivo, parte para o mundo (no volume I) para que suas aventuras sejam contadas. No tomo II ele já é um ser de papel, conhecido por causa de um livro. Neste segundo intróito Cervantes mata o personagem antes de narrar sua nova saída e novas empreitadas. Nessa ruptura entre o homem e a persona (que viria) e que já existe (no tempo da existência material da leitura) ele dedica suas aventuras, como um todo, à “restauração da cavalaria”. Se antes Sancho queria apenas dinheiro e uma ilha, passa a querer figurar na memória da humanidade como personagem de livro. Antes, as pessoas que os encontravam fingiam e compactuavam com a loucura do cavaleiro. Depois, elas o fazem porque conheceram a dupla andante por meio da publicação. A passagem no castelo do Duque, no livro II, ilustra essa proposição: todos entram no jogo fabular porque conhecem as aventuras. Entre os capítulos 30 e 69, diversas situações são “inspiradas” pelos eventos anteriores e são “respostas” para as expectativas da continuação. Com isto, a consciência ambivalente abole e renova limites: seres entre a condição de personagens e homens que têm o leitor (companheiro) como referencial e coexistem na condição livresca. Este contexto editorial amplia-se de modo conflitante: Quixote não é autor de uma obra, mas há uma passagem em que ele compõe oralmente uma aventura com o estilo que ele considera ideal para o romance de cavalaria. Estilo que “coincide” poeticamente com o livro em mãos! No que diz respeito ao livro de Cervantes romance como grande topoi polifônico da modernidade, Miguel de Cervantes inaugurou um

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capítulo especial na literatura mundial. Seus heróis conduzem e são conduzidos por aventuras que tocam o cerne da fundação do homem moderno. Obra inaugural e definitiva, nos campos da realidade e da fantasia, gerou duas figuras díspares e complementares: Dom Quixote e Sancho Pança. O escritor espanhol, na multiplicidade estilística que a prosa oferece, fecundou a prosa com sua verve articuladora de gêneros. Por isso, o berço dessa convergência entre realidade e fantasia e do movimento autoconsciente na narrativa têm O engenhoso fidalgo dom Quixote de la Mancha como trabalho primordial. Poucas obras conseguiram condensar com tanta grandeza as assimetrias e absurdos que impulsionam a humanidade. Particularmente, ela representa o diálogo com a tradição (oral, épica, cavaleiresca etc.) e fecunda a representação do “homem interior” – que terá em Sterne seu grande representante. Ele consolida um imenso celeiro de tipos da modernidade, formas e conteúdos e desenvolve inúmeras possibilidades do gênero (BAKHTIN, 2002b, p. 199). Nas aventuras dos seres andantes, explicita-se a racionalidade de um mundo louco. As dúvidas e fraquezas humanas, diante da grandeza da existência, confrontam mundos ultrapassados e arcaicos e apontam para o futuro. No Ao leitor do primeiro volume temos as inquietações essenciais do todo e as ansiedades fingidas (ou não) dos intróitos. Anunciando a capacidade de representar linguagens, a fusão interna de discursos expressos em um grande mundo chamado prosa, a originalidade autônoma da conversa inacabada ressoa. A vontade de impressionar tem sua energia criadora prenunciada no Ao leitor e caracteriza-se por ser uma realização com a leveza de começo e o peso de fim: Prólogo Desocupado leitor: independente de qualquer juramento, poderás crer-me que eu quisera que este livro, como filho do entendimento, fosse o mais

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formoso, o mais galhardo e o mais discreto que se pudesse imaginar. Não me foi possível, porém, ir de encontro à ordem da Natureza, de vez que, nesta, cada coisa engendra outra que lhe seja semelhante. Assim, que poderia engendrar este meu estéril e mal cultivado engenho, senão a história de um filho seco, enrugado, magro, antojadiço e cheio de ideias várias, nunca dantes imaginadas por outrem – como se tivesse nascido num cárcere, onde todo o incômodo tem seu assento e todo ruído faz sua triste morada? (CERVANTES, 1997, p. 7).

Seguindo os passos do siglo de oro espanhol, um caráter farsista distorce o motivo aparente de todo prefácio. Na conversa com um hipotético leitor, a voz narrativa é personificada e aparece discutindo a obra. Área “tradicional” para a venda, o anúncio é ardilosamente construído. A grandeza e o ineditismo e os elogios confrontam-se com a figura esquálida do personagem principal sofrendo para “introduzir” a obra pronta. Na multiplicidade potencial dessa introdução “adulterada”, o improvável se manifesta e, antes mesmo de adentrar as páginas, o leitor é arrebatado por uma aura de destemperanças, falcatruas e paradoxos. Construído como um labirinto de linguagens, não se pode afirmar se o prefácio é do escritor que assina a capa, pois, se o for, quem seriam, no interior da história, Cide Hamete Benengeli e esse homem personificado na sala de casa lamentando a falta de intróitos. “Dentro e fora do enredo” os dois amigos são conclamados a ocuparem um lugar no mundo, no livro, na edição. Se a voz de Cervantes tenta se impor na abertura, não sem fingimento, ela será diluída pelo próprio fingimento: Mas eu, que, embora pareça o pai, sou padrasto de Dom Quixote, não quero deixar-me levar pela

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corrente do uso, nem suplicar-te, quase com lágrimas nos olhos, como o fazem outros, caríssimo leitor, que perdoes ou releves as faltas que vires neste meu livro, pois não és seu parente, nem amigo; tens tua própria alma em teu corpo, e teu livre arbítrio para julgar o que é mais razoável; e estás em tua casa, da qual és o senhor, tal como o é o rei de suas alcavalas – ademais, bem sabes o que comumente se diz: “debaixo do meu manto, ao rei mato”. E tudo isso te isenta e libera de qualquer respeito e obrigação para comigo; e assim podes dizer desta história o que bem te parecer, sem temor de ser caluniado pelo mal, ou premiado pelo bem que dela disseres. Só quisera dar-te limpa e desnuda, sem ornamentos de prólogo e do inumerável catálogo dos costumeiros sonetos, epigramas e elogios, que soem ser postos no começo dos livros. O que te sei dizer é que, embora me tenha custado algum trabalho compô-la, maior foi o de preparar este prefácio que ora lês (CERVANTES, 1997, p. 7-8).

Negando arduamente a obrigatoriedade da abertura, os signos rompem a aliança entre o que é anunciado e o que se anuncia. Se o texto de Cervantes volta-se para si mesmo (o livro II retomando o livro I), o prólogo lido depois do fim, aumenta ainda mais as fronteiras da inventividade. A autoconsciência, filosoficamente cínica, condiciona os procedimentos editoriais e insere “enciclopedicamente” textos antes da história: epigramas, elogios, dedicatórias etc. Ao brincar com a expectativa da opinião, tem-se o embrião paródico das inúmeras dedicatórias de Tristram. A ideia de que a obra protege-se a si mesma, antevendo a crítica literária desfavorável, já é antevista por Cervantes. Essa presença, outra vertente que movimenta a narrativa humorística, surge do confronto destronante do grito dos pregões. Desfazer-se

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do mau comprador é uma forma de convocar uma clientela fiel. O embate paródico dos componentes que autorizam a voz revela a ignorância dos “formadores da opinião” que, “não sendo pais, destratam os filhos” alheios. Num clima de litígio que antevê a resposta, a imagem da recepção é energia criadora e pilar de uma ponte semântica. A categorização dos tipos de leitura presentes nos predecessores é plural: 1) a paternal e sentimental relação com a obra, típica do criador; 2) o eventual leitor que tem um olhar “mais independente”; 3) o crítico caluniador, que exige o inumerável catálogo de sonetos, epigramas e elogios antes do livro propriamente dito. Compartilhando o reflexo editorial da época, o intróito quixotesco, lembra a humanidade do ser de carne e osso e, com humildade dissimulada, confessa que deseja agradar aos leitores. Enquanto Cervantes despreza a tradição, o autor personificado sofre e titubeia. A “incapacidade” de inserir essa produção inacabada e subserviente desafia parodicamente a prática e lembra que a obra em si mesma se protege. Dramatizando a situação, insere um “amigo” – enquanto o livro começa naturalmente. Rindo da exigência intelectual de citar, alega que foi “mais fácil escrever o todo” do que inserir um rol de nomes e textos. Desvencilhando-se de qualquer opinião, transfere ao “outro” essa tarefa: Muitas vezes tomei da pena para redigi-lo e de novo a larguei, por não saber o que escrever. Certa feita, achava-me em suspenso com o papel diante de mim, a caneta na orelha, os cotovelos sobre a mesa e o rosto enfiado nas mãos, a pensar no que diria, quando entrou de súbito um amigo, espirituoso e entendido. Vendo-me este pensativo, perguntou-me a causa, que lhe não encobri: expliquei-lhe que ali estava a imaginar qual seria o prólogo para a história de Dom Quixote e que, na indecisão, não

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me alentava a escrevê-lo, nem, muito menos, a publicar as façanhas de tão nobre cavaleiro (CERVANTES, 1997, p. 8).

As exigências adquirem um novo olhar porque o significado das novelas de cavalaria também foi adulterado. Essa personificação da figura que assume a realidade da publicação e faz-se objeto da própria narrativa, evita falar diretamente com o público. O desespero e a melancolia fingidos provocam o riso e conotam uma crise da incapacidade de glosar. As citações latinas, os seres canonizados, os sonetos gloriosos etc. para introduzir com erudição e eloquência são subvertidos (e negados) em prol do enredo. Ao deixar o prefácio, os discursos posteriores dizem respeito aos personagens e ao contexto, frustrando a expectativa clássica e tradicional do poder “autorizante” e autoritário da abertura. Abolindo a prática, os volteios humorísticos apontam para a invenção: o estilo e a erudição na entrada encontramse no interior da obra. Na desrazão e na imaginação polifônica os interstícios do prólogo deixam que a realidade da publicação e a fantasia do enredo façam a fusão de traços constitutivos, anunciando uma nova experiência do discurso. Tudo nasce das negativas: da razão, do realismo, da cavalaria, do épico. No campo da tradição, contesta a ordem vigente nos idos de 1600. No âmbito dos personagens, renova os caracteres da representação prosaica. Nessa fusão das negativas, a loucura da leitura de Quixote, a sapiência popular de Sancho e a fluidez das máscaras autorais desafiam a lógica racional e afirmam um limen estilizado anunciando uma expressão multiplanar. O tom cervantino funda-se na escrita de um romance sobre o romance. O intróito, por sua vez, discute a arquitetônica prosaística, a natureza das introduções e o que elas movimentam nas esferas social, editorial e existencial. A comunhão de vozes prepara a recepção

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para o que irá ler e a metalinguagem problematiza a impressão de realismo. Nessa arena discursiva, extensiva ao todo romanceado, a linhagem fundada por Rabelais e Cervantes se constituiu autonomamente “quando foram criadas condições ideais para a interação e o esclarecimento mútuo das linguagens” (BAKHTIN, 2002b, p. 204). O Ao leitor torna-se uma ponte entre o passado e o presente, entre o livro impresso e a impressão da leitura. Desafiando o floreio (intelectual e bajulador) dos intróitos, a prosa supera a dinâmica das manifestações culturais anteriores e desafia parodicamente os mundos literários vigentes. Nesta tópica dramática reside na materialidade da publicação e dá nova visada ao objeto da representação. Provoca sua época e as expectativas da recepção e realiza uma hibridização intencional. Com isso, funde linguagens e traz o enunciado vivo de uma língua viva: [...] o híbrido romanesco é um sistema de fusão de línguas literariamente organizado, um sistema que tem por objetivo esclarecer uma linguagem com a ajuda de uma outra, plasmar uma imagem viva de uma outra linguagem. [...] Exemplos clássicos são o Dom Quixote, o romance dos humoristas ingleses (Fielding, Smollet, Sterne) e o romance alemão romântico-humorístico (Hippel e Jean-Paul). Nestes casos, o próprio processo da escrita do romance e a imagem do romancista já [aparece], em arte, no Dom Quixote, (depois em Sterne, em Hippel e Jean-Paul geralmente se objetiviza) (BAKHTIN, 2002b, p. 159).

O argumento do romance, como local para “superar” os livros de cavalaria, é uma “resposta” estilizada, uma “explicação” autoconsciente para si mesmo e para os outros sobre o que se lê. Reafirmando

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a liminaridade, o fingimento e a necessidade da releitura do intróito como último capítulo, enredo e ideias aproximam-se: Mal terminei, meu amigo desandou a rir e, batendo com a mão na testa, replicou: – Por Deus, irmão, que agora acabo de corrigir um erro em que laboro há muito tempo, desde que vos conheço. Sempre vos julguei, discreto e prudente em todas as ações; hoje vejo, porém, que estais tão longe disso como o céu da terra. Como é possível que coisas de tão pouco valor, tão facilmente remediáveis, possam ter força para tornar indeciso e absorto um engenho como o vosso, tão maduro, tão dado a romper e superar dificuldades maiores? Garanto que não é falta de habilidade, mas sobra de preguiça e penúria de discurso [que] vos tornam indeciso e covarde e vos impedem, de revelar ao mundo a história do famoso Dom Quixote, luz e espelho da cavalaria andante (CERVANTES, 1997, p. 09).

Uma vez que o “direito de fala” é dado ao amigo suposto, ele solucionará o problema de maneira risível e também tecerá elogios ao “autor”, ao livro e ao famoso Dom Quixote. A encomiástica embusteira é marca da tradição do discurso oral da feira. O exagero e a louvação, ironicamente, afirmam uma suposta fama e a importância do personagem antes mesmo da publicação. O nó literário se dá na certeza das aventuras famosas por isso mesmo transformadas em livro. A atitude dramatizada, o riso e o desprezo pelos acessórios são literalmente rupturas carnavalizadas e uma opção ética que se estende ao estético: se o livro foi escrito para criticar a malfadada galeria das aventuras de cavalaria, todo o intróito é elaborado para parodiar a prática de introduzir e para louvar (comicamente) a forma prosaica. A

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condição liminar, anseio da fundação de um estilo específico, ao negar, explicita a filiação e forja duplos paródicos capazes de constituir uma força transcendente: [...] essa capacidade de viver nos séculos futuros deve-se ao fato de que o romance de Cervantes dialogou em amplo e profundo com o que havia de mais valioso nas tradições anteriores da cultura, da literatura, da filosofia e da história, justificando, assim, sua continuidade em novas condições históricas e literárias (BEZERRA, 2005b).

No Ao leitor, aquilo que Cervantes desafia começa a ser referendado na prosa discursiva e na negação de artefatos que fogem do âmbito da narrativa. Negando uma linguagem neutra e agradável, em que a fluência e a suavidade são as marcas do estilo, as lamúrias e oscilações, os disfarces e presentificações rompem com o fluxo harmonioso e idealizado dos romances de cavalaria. Por estar separado formalmente do “enredo”, afirma sua ligação estilística com o todo e pelo sentimento de estar publicando, o espaço para a conversa inacabada tem o mesmo caráter do todo: o diálogo entre uma dupla, o dito popular, a paródia da tradição, o julgo da razão, a autoconsciência aberta em que o homem aparece em constante formação e transformação. A aura de fantasia, sendo uma ameaça, é anunciada pelas máscaras de autor, de tradutor, de quem quer seja que assine a obra. Dentro da problemática dos enunciados, questões fundadoras (e fundamentais) da modernidade são trazidas na abertura-fechamento. Ludicamente, o hibridismo instala-se e o Quixote percorre vários gêneros anteriores: o pícaro, o pastoral, o romance bizantino, o diálogo (dramático) e, principalmente, os modelos dos clássicos da cavalaria – para superá-los e continuá-los.

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Dom Quixote é um marco entre duas formas de pensar o mundo: a medieval, carnavalescamente criticada, e uma outra, que se anuncia. O romance, como gênero polifônico desde seu surgimento, dotado de um conjunto de consciências imiscuíveis capazes de estilizar as contingências, delineava a grande rede literária. Com diferentes individualidades, os personagens transformam-se em triste-alegres figuras das ações cotidianas e das mais profundas contradições humanas. Na vertente humorística da prosa, os seres se pensam e julgam em um embate de energias enformadoras. Nos falares diretos e indiretos sobre o processo de escrita, superar os modelos anteriores é a tentativa de sobrepor suas vozes e “restaurar a glória invejada” das aventuras do passado. É para ser famoso que Quixote deixa sua casa. Sancho, posto que mais prático, deixa sua morada com a intenção de ganhar algumas moedas e livrar-se de sua indigesta esposa. Durante as aventuras, à medida que eles ficam conhecidos, mais os seres que encontram pelo caminho participam de suas aventuras, conscientes de que farão parte de ações “cavaleirescas”. A contradição humana representada pelas tristes figuras de Dom Quixote e Sancho Pança (que também sonha em ser famoso no Livro II) cadencia o estilo e as vozes estilizadas. Não tão somente como duplos, mas em dupla ambivalente, realizam-se e respondem-se nas aventuras compartilhadas. Enquanto um acredita, é alto e magro, é leitor voraz e fantasista, o outro duvida, é baixote e gordo, iletrado, homem do povo e realista. Juntas, essas forças, aparentemente paradoxais, unem-se por meio do diálogo na representação de uma linguagem que se representa a si mesma. Das leituras proibidas do personagem, das vozes dissimuladas do narrador, do tradutor, de Cide Hamete Benengeli3 e da visão mundana

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Benengeli (‘Be en geli’), em árabe significa “filho de Cervo”, “Cervante”.

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de Sancho, a enformação da grande obra questiona a originalidade, a representação e o equacionamento da realidade pela literatura. O embate entre a cultura escrita e a oral, latente na postura e características culturais dos dois personagens, é relativizada pelas transformações sofridas pelos personagens. Ao longo do tempo, no segundo volume, tem-se um Sancho Pança dotado de uma linguagem mais culta e um Quixote desacreditado. Cervantes tem erige uma arquitetônica prosaica que prenuncia um embate polifônico entre consciências autônomas. As partes do todo têm poder de negociação com o autor. Às vezes justificando uma realidade, às vezes confrontando, a literatura humorística constrói-se dentro de um sistema em nome do novo (“vinhos de outros lavores” dirá Machado de Assis, ao discutir o Ao leitor de Memórias póstumas de Brás Cubas). A modernização se dá no desmantelamento de modelos anteriores em nome da fundação contínua de um futuro. O prólogo conclama o ato da criação e a crença na vida (e seus absurdos). Por isso, essa redefinição topográfica: para existir como obra e como projeto que se pensa enquanto se escreve, o prefácio permite o mapeamento da relação do romance com gêneros da cultura (literatura, história, filosofia) e variantes da tradição oral (cantos épicos, lendas, provérbios, pregões), realizando com amplitude excepcional possibilidades do discurso plurilíngue. Evocando tradições, nos mais vastos campos intelectuais, o romance abrange correlações e provoca alterações cronotópicas. Nega e assimila outros estilos para fundar-se originalmente em um processo paródico que aponta para a polifonia. Uma postura carnavalizada, plena de inversões, ambivalências e ironias, que desvela o espetáculo do mundo. A invenção do humano se dá no gênero, a reflexão desse humano como obra, como invenção, ocorre na tópica introdutória.

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Negando os modelos monológicos, um novo domínio literário surge. Complexo e livre, inquieto e dialógico, levando ao aborrecimento dos homens, as disparatadas histórias de seres e livros. Nessa linhagem, Tristram Shandy coloca-se como personagem de si mesmo, vivendo no tempo de seus contemporâneos. Na memória, a sua vida; no papel, um romance. O nó temporal se dá no ir e vir entre o presente de um homem de 40 anos que conta uma autobiografia, sempre interrompida pelas digressões e falas dos outros personagens. Tantas cabriolas não lhe permitem (factualmente) passar dos sete anos. Essa distensão temporal, os fatos revividos de forma sériocômica e a prática da “opinião” foram características que desafiaram uma pretensa hegemonia da linguagem enobrecida. Desfazendo-se da hierarquia de uma ordem única, essa tradição distorce a forma clássica e leva ao ápice a representação prosaica: Rabelais, Cervantes e Sterne são os exponenciais europeus. Aparecem depois: Diderot, de Maistre, Garret, Machado, Borges, Calvino e Saramago. Nesse sentido, estudar o prólogo é complementar os estudos dessa história moderna de prosadores. Desafiando o rigor da linguagem culta, vejamos os caracteres sternianos presentes em suas aberturas. Em A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy (STERNE, 1998) o discurso é cúmplice da trama e exige a participação do leitor como energia enformativa. Na interpretação dos silêncios como força articuladora, a autoconsciência torna-se pilar da tópica literária e pertence ao caráter daquele que conta a história. A partir dos intróitos sternianos, podemos mapear o circuito interativo entre enredo e metalinguagem gerador de uma narrativa analítica e divertida. A referência aos diversas começos desse paradigma fragmentário demonstrará o caráter progressivo da obra. As interferências plurivocais, anunciam cadeias comunicativas entre o que é dito e o que virá. O diálogo com

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a recepção, a visada sobre a reação dos contemporâneos e a técnica ziguezagueante são estratégias liminares que Sterne leva ao extremo. Seu romance biográfico, que recomeça continuamente e “nunca tem fim”, pode ser mapeado em um breve histórico da relação entre as edições e seu inacabamento editorial estilizado. Nos volumes iniciais: dois prólogos independentes. No terceiro, Sterne dialoga com o anterior; no quarto (ambos de 1761), a narrativa acontece sem retomar explicitamente os outros (isso acontecerá no andamento). No quinto, ao contrário, há novo recomeço e uma dedicatória ao Lorde John Spencer (amigo e protetor generoso). No sexto, ele apenas retoma a sequência (1762). Depois, há um intervalo de três anos causados por convalescença do clérigo. No sétimo volume, ele “recomeça” com um prólogo significativo para toda a obra, comentando o afastamento, a natureza concreta do fato como um todo e funde sua condição real com a história do personagemnarrador. O oitavo tomo, lançado no mesmo ano, apenas continua o anterior. No nono (1767), que não se sabe ao certo se foi finalizado por Sterne, há uma nova dedicatória endereçada ao Sr. Pitt – o mesmo homenageado na segunda edição em que saíram os quatro volumes iniciais. Pelo fato de o livro recomeçar sempre e ter uma postura metalinguística-autoconsciente, os intróitos são lugares para divagações de toda natureza. Funcionam como espaço-de-resposta para questões sociais, políticas e editoriais da época e como forte palco dialógico para os embates entre Sterne e Tristram Shandy. De natureza progressiva, as diferentes formas que abrem as histórias (os dois assinando prefácios, dedicatórias etc.) apontam para um jogo da escrita que contamina a todos os personagens e estilizações. Importa ressaltar que Sterne só fez suas dedicatórias pessoais depois da popularidade – a princípio, “o livro se protegeu a si mesmo” com Tristram. Portanto, na edição

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definitiva, a menção biográfica ao Sr. Pitt não fazia parte do começo do livro. São prólogos duplos que ensejam marcas do sério-cômico e confrontam os aspectos cotidianos e sociais. Primeiro, analisaremos a narrativa a partir dessas caricaturas de introduções e depois comentaremos a inserção desses índices que desafiam e se integram topo-estilisticamente ao discurso canônico. A autobiografia começa de maneira abrupta e tradicional. O personagem atém-se à descrição (de origem rabelaisiana) do ato sexual de seu pai com sua mãe. Ele nasce do coito interrompido pelas badaladas do relógio de corda. Sempre falando com o leitor, os três capítulos iniciais narram esses instantes iniciais da sua vida – a condição de homúnculo4. No âmbito do romance biográfico, há um rompimento com o começo tradicional – que reside na data do nascimento. Tristram utiliza-se do grotesco para inserir uma peculiaridade original. A partir da fecundação de sua mãe, rompe de forma ambivalente com o padrão realista e confronta a lógica daquele que está acostumado com vidas contadas de maneira retilínea. Por meio da imagem do baixo-corporal revoga qualquer postura moralizante (Sterne clérigo) e elege o riso fecundante. Quando o leitor desavisado acha que vai seguir uma “vida” linear, as “opiniões” digressivas do cavalheiro penetram brutalmente no quarto capítulo – e não param mais: Eu sei existirem no mundo leitores, bem como muitas outras pessoas que não são absolutamente leitores, – que não se sentem muito a gosto quando não são postas ao corrente de todo o segredo, do começo ao fim, de quanto diga respeito a uma pessoa. É por

4 “Homúnculo” designa no texto o espermatozóide, concebido na época, como miniatura do ser humano.

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pura submissão a tal estado de espírito, e por uma relutância da minha natureza em desapontar qualquer alma vivente, que tenho sido desde já tão minucioso (STERNE, 1998, p. 47-48).

Depois de contar o detalhe fescenino para uma Inglaterra religiosa, fala de duas categorias de pessoas no mundo, os leitores e os não leitores: é a primeira fenda pensante. Evocando o espírito de uma época, ele comunga as expectativas da recepção quanto ao estilo. As artimanhas, extensivas a outros personagens, a arena de vozes lança a cumplicidade do leitor desde as primeiras linhas. Sacrifica a prosa tradicional pela vontade de conversar. O embate de ideias (Pai, Tio e o empregado Trimm) prepondera sobre o que seria o tema principal: a história do cavalheiro. Assim, no intróito, o significado dos termos “vida e opiniões” constituem-se de forma litigiosa e plural. No primeiro rasgo, os três capítulos objetivos são comentados e prenuncia-se o caráter que será dado ao todo – pensar enquanto escreve. A partir de sua experiência ordinária e única no mundo, Tristram deseja chocar e surpreende atribuindo o fato de tergiversar diante da curiosidade do leitor. Dissimula as próprias vontades que darão o tom da autobiografia e, antes que seu livro se transforme em uma novela de sala, “como o temia Montaigne em seus Ensaios” (escritos da experiência), anuncia a sistemática violação do tom progressivo. Prevê “shandianamente” os curiosos habituados a prosas de outra monta (Defoe e Richardson?) e a herança da sátira luciânica, o anseio de dominar o leitor (SENNA, 2003), a tirania enfática do narrador (ROUANET, 2007) e a manipulação das citações de forma profana, desprovida de qualquer solenidade (SENNA, 2003). Tristram introduz marcas de fala e a vontade de monólogo (solilóquios autoconscientes) se rende à respondibilidade inerente a toda relação com o público:

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[...] estou deveras contente de ter começado a história de mim mesmo da maneira por que o fiz; e de poder continuar a rastrear cada particularidade dela ab ovo, conforme diz Horácio. Horácio, bem o sei, absolutamente não recomenda essa maneira de narrar. Mas o cavalheiro em questão falava tão-só de um poema épico ou de uma tragédia; (esqueci qual) – ademais, se assim não fosse, cumprir-me-ia pedir perdão ao senhor Horácio; pois, no escrever aquilo a que me dispus, não me confinarei nem às suas regras, nem às de qualquer homem que jamais vivesse (STERNE, 1998, p. 48).

A negação do ideal clássico, também esboçada por Cervantes quando faz referências às poéticas e a Aristóteles, confirmam o embate entre o épico e o romance consolidado. O gênero aponta a força prosaica ambivalente e dialógica que o move. Presente em uma archaica, o estilo ébrio difunde sua poética. O nome de Horácio mostra que as “poéticas clássicas” de nada servem para a prosa moderna. Com isso, citações, negações e glosas compõem o movimento autoconsciente e abolem o predomínio de uma linguagem única (o discurso enobrecido da cultura oficial). Depois de aproximar seu livro ao de Montaigne (prosaístico e biográfico) na negação dos ideais clássicos, ouve e reconhece os ecos do passado, mas impõe, no presente desvelado, o princípio organizador da “sua originalidade”. A cada linha, um nome comprova a consciência de uma longa genealogia de grandes nomes. Corroborando ou negando o desejo de estar entre eles, os nomes se equivalem e o desafio da herança literária e do enobrecimento da fala (transformada em escrita) confirma o que Tristram Shandy explicita: negar o hábito lógico de ler, pensar e escrever sempre em linha reta. O direito à voz, como na vida, é muitas vezes retratado em ziguezague porque a própria realidade

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multiplanar funciona assim. Os personagens, além de quererem ser autores e/ou personagens, querem ser únicos. As interrupções movimentam o tempo lógico e cronológico da ordem linear, mas nunca impedem que os anos do biografado passem. A pausa para o comentário, para a conversa, para a elaboração de teorias, rompe com a estrutura tirânica do pensamento monológico. Para isso escreve um romance que difunde “ideologias” e personalidades em luta. Logo, as fronteiras entre ficção e realidade se alargam, posto que as opiniões sobre o estilo polemizam com o que aparentemente seria mera reprodução de convenções reais. Os aparentes reflexos de uma ordem ganham novos sentidos: uma vida qualquer, de um homem qualquer, numa época e lugar qualquer. O estranhamento, a conjunção de citações e a expectativa de uma prosa linear servem para divertir e distrair. Sterne seria o terceiro grande articulador da liminaridade volúvel, pois ele radicaliza as matérias vitais. A trajetória do cavalheiro e sua biografia transformam-se no que ele pensa enquanto escreve. A matéria biográfica é acessória. A digressão passa a fazer parte do todo bio-gráfico. Aquele todo, que pode ser datado em uma lápide, ganha uma faceta ambivalente ao ser uma vida narrada. Distensão psicológica e temporal de períodos curtos da existência. Nas fendas, são lançadas questões sobre o gênero, sobre possíveis leituras e, principalmente, sobre o homem. De forma polêmica e irreverente as digressões miscelânicas estão ligadas à personalidade do digressionador (PAES, 1998, p. 31). Entre filosofias e filosofices antigas e de suas respectivas épocas, os seres autoconscientes flutuam de trapézio em trapézio, ora dando os próprios saltos, ora lançando os leitores no ar como esferas pascalianas. A citação shandiana conjuga vaidade e ironia. Ao trazer a referência, exibe a erudição. Ao dizer que esqueceu quem ele realmente citava desafia a autoridade do citado. A “emenda” situa-se no campo

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de atuação da memória oralizada característica da prosa. Utilizando a bivocalidade da palavra, assimila e transforma os mais variados estilos. Nos interstícios pensantes, elas ganham um caráter liminar e carnavalizado que deixa transparecer o discurso social comunicante e a especulação individual subjetiva. Se aquele que cita deseja dar maior destaque às suas ideias, muitas vezes a palavra alheia funciona como objeto funcional da ficcionalidade. Tristram Shandy tem consciência da liberdade característica do gênero e não se prende às regras, substituindo-as pelo riso, pela libertinagem e suas vontades. As opiniões, anunciadas no título, são prenúncios paródicos do romance sentimental. A fenda, no universo de papel, é abertura para as opiniões em moto-contínuo: Sterne, o autor da citação (parodiada), os personagens que interferem no domínio do narrador e o leitor: todos com a mesma força: Àqueles, todavia, que preferem não remontar tão longe nestas particularidades, o melhor conselho que posso dar é pularem o restante deste capítulo, pois declaro antecipadamente tê-lo escrito apenas para os curiosos e os indiscretos. Feche-se a porta (STERNE, 1998, p. 48).

Essa artimanha shandiana de “pular o capítulo” no corpo do texto, como se o leitor o tivesse feito, o leva de volta ao “retilíneo”. Assim, retoma a relação contingente do pai com a mãe até a próxima digressão e configura o tom do livro. A brincadeira com as expectativas do outro leitor/ouvinte desafia a atenção diante do enredo e a capacidade de acompanhar o ir e vir multiplanar. A “deformação”, que Bakhtin (2002b) atribui a Sterne, que se constitui da estilização paródica dos diversos estratos e gêneros da linguagem literária, ganham contornos expressivos na decomposição

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biográfica. Para ele, Sterne seria o “porta-voz máximo” da vertente humorística. Penetrado pelo espírito de Rabelais e Cervantes, o processo de escrita e de imagem do romancista torna-se complexo. As reminiscências, as digressões e a convocação da voz do outro são sempre bivocais na função prosaica da decomposição das memórias. No que elas têm de discurso verbal alheio, estabelecem ambiguidades e evocam um caráter irônico e paródico. Onde elas assumem uma função de retardamento e interrupção, no senso de inoportunidade que elas abrigam, geram tensão e posturas inovadoras para o prosaísmo biográfico e autobiográfico. Sterne também captou a questão da subjetividade, tão em voga para sua época (no Romantismo emergente), e fez dela elemento central da sua enunciação. Tomando-a como assunto, a subjetividade conjuga biografias e a relatividade da opinião antecipa uma consciência da alteridade. Na mente e na enunciação, opiniões (externas e rivais) disputam espaço na história. Com seu pai e seus sistemas5, diante das anedotas incansáveis e relatos de guerras (imaginárias ou não) de seu tio Tobby e de seu “fiel escudeiro” Trimm, os bastidores da escrita e da vida são violados a todo instante. Como o fez Cervantes ao construir seu livro a partir de artimanhas autorais, como o fizeram Xavier de Maistre (na prisão/quarto) e Machado de Assis, com Brás Cubas nas memórias do sepulcro, s fuga do linear instaura a reflexão que, por sua vez, movimenta as ideias e os caracteres nas fendas axiológicas da prosa. Enquanto a ação continuada da elaboração do texto mostra as angústias e relações dos volteios com a matéria narrada, por meio da pena que foge a todo instante, as “regras”

5 O shandismo, segundo Bakhtin foi um importante instrumento para “descobrir o ‘homem interior’, ‘a subjetividade livre e independente’, uma forma análoga ao ‘pantagruelismo’, que, na época do Renascimento, serviu plenamente para a descoberta do homem (2002b, p. 279).

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de uma “vontade tirana” são superadas pelo conjunto polifônico de vozes. Pela expectativa da recepção e pela vontade dos personagens de contar suas histórias, uma relação unívoca é superada e os discursos ganham autonomia nas palavras de ideólogos, tipos ou coadjuvantes. No contexto de Sterne, cada voz (inclusive a dele, como homem doente) quer contar sua história. Elas invadem literalmente o universo livresco e “tomam da pena” para (tentar) calar o narrador. Como exemplo, os embates entre Tio Tobby e o velho Shandy, entre o Tio Tobby e seu criado Trimm e, principalmente, as retomadas violentas por parte de Tristram. Ao confrontar teorias e crenças, os seres opiniáticos destronam tradições cultivadas dos mais variados momentos e lugares. Tudo isso articulado em ziguezagues, tendo a polifonia como forte propulsora da máquina movente, cujas engrenagens são mostradas enquanto ela funciona. Considerando dedicatórias nas aberturas, vejamos o que é feito delas no âmbito da paródia e do discurso oralizado (que lembra os pregões e risos da praça pública). Tristram, no volume I, critica os ricos nos capítulos 5, 6 e 7 e, no oitavo, faz uma louvação galhofeira e única no mundo: uma “dedicatória-virgem”. Ele a oferece a algum vaidoso que deseje ter seu nome impresso na próxima edição (note-se que ele insere a certeza da nova publicação!). Explicitando as relações sociais que possibilitam isso, a projeção de autor procede de forma irônica. O espaço para o comprador será providenciado após a negociação e o fingimento paródico se dá na força estilizadora de Tristram Shandy que, ao utilizar-se do movimento editorial como instrumento estilístico, atribui a si mesmo a publicação. Ele confronta e destrona aqueles que podem comprar indulgências e a cabriola introdutória caracteriza-se como uma boa pechincha, justamente pelo fato de vir antes do texto e dar destaque ao nome. Na libertinagem poética, além de inserir esta dedicatória

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“pura”, discorre sobre o ato de fazer dedicatórias (como o fizeram Rabelais e Cervantes em seus respectivos prefácios) e de vender espaços dentro de um livro. Lembrando que os quatro volumes saíram sem ela percebe-se que sua inserção seria um movimento de recuo. Mas, uma vez que elas estão condensadas, cada qual tem sua autonomia e distinção contextual. Sobre a necessidade de dedicar, uma vez que Tristram Shandy estava livre do julgo do mecenas, ela é parodiada. Sem ter a quem dedicar, não deixa de lembrar que é um vendedor de palavras e indica seu editor para a negociação (inserindo-o no literário como energia enformadora): Milorde: Sustento ser isto uma dedicatória, não obstante sua singularidade em três grandes respeitos: matéria, forma e lugar; rogo-vos, portanto, aceitá-la como tal e permitir-me depô-la, com a mais respeitosa humildade, aos pés de Vossa Senhoria, – quando sobre eles estiverdes – o que podereis fazer quando vos agrade; – e quando, senhor, haja ocasião para tanto, e, acrescentarei, para o melhor dos propósitos também. Tenho a honra de ser, Milorde, De vossa Senhoria o mais obediente, O mais devotado E o mais humilde servo, TRISTRAM SHANDY (STERNE, 1998, p. 54)

A “topica irônica” faz com que se cumpra metalinguisticamente uma função contrária ao hábito: ela não é oferecida a alguém especificamente. O personagem autor assina sua meta-dedicatória, deturpa sua matéria, rompe com a forma e com o lugar tipográfico.

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Reafirma seu nome, como os “egocêntricos” fazedores de autobiografias e utiliza a quebra do curso linear para discutir os hábitos literários de várias épocas. Aproveita o ensejo para escarnecer da longa casta de vaidosos “mecenas” que têm como hobby-horses a compra de coisas que estampem seus doutos nomes. Assim, as partes constitutivas enformam uma espécie de carnaval em que o indivíduo, na solidão do momento criativo, dialoga com o outro festivamente. Da consciência aguda do isolamento, como diz Bakhtin (2002a), ocorre a transformação do humor em jogo. Mas deixa de ser apenas alegre e ganha um caráter ontológico. A palavra “abre-se” em leilão para quem quiser comprá-la. Para “proteger a si mesmo” da calúnia, vende publicamente o “corpo do livro”. Conclui a passagem com uma “dedicatória à Lua”, trazendo difusamente (learning run mad) vozes de “personagens rabelaisianos” e da literatura-filosófica francesa: [...] e na próxima edição se cuidará que este capítulo seja expungido do livro, passando os títulos, distinções, armas e boas ações de milorde a figurarem no começo do capítulo anterior: Todo ele, desde as palavras, De gustibus non est disputandum, e quanto neste livro diga respeito a CAVALINHOS DE PAU, mas não mais, ficará dedicado a Vossa Senhoria – O restante dedico-o à Lua, que, diga-se de passagem, de todos os PATRONOS ou MATRONAS que me ocorrem, tem o maior poder de pôr meu livro a caminho e fazer o mundo correr feito doido atrás dele. Cara Deidade, Se não estais demasiado ocupada com os assuntos de Cândido e da senhorita Cunegunda, – tomais Tristram Shandy também sob vossa proteção (STERNE, 1998, p. 56).

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Como vendedor, propõe ao comprador que negocie seu hobby-horse diretamente com seu editor e insere novamente as instâncias da publicação em todos os níveis: escrita, edição, compra e leitura. Além disso, filia-se ao mesmo gênero das novelas filosóficas de Voltaire, o que reafirma as vozes francesas de Sterne e a atitude “benevolente” de permitir que troque o seu livro pela leitura dos assuntos de Candide e Cunegundes6. Demonstrando suas preferências e avôs literários, o jogo da publicação é levado ao extremo por Sterne. (Segundo José Paulo Paes (1998b), ele tornou-se um ícone da literatura, oferecendo inúmeras possibilidades e libertinagens estéticas para o campo da prosa. Além dos autores já citados, posteriormente tivemos Pirandello, James Joyce, Guimarães Rosa e Umberto Eco aproximando-se dessa vertente pensante). Passemos ao prefácio do livro que funciona como poética e dedicatória. Embora a figura do comprador imaginário ceda lugar a uma figura política real, ele não deixa de ser uma chave de interpretação: Ao ilustríssimo Sr. Pitt Senhor, Jamais pobre Criatura dedicante pôs menos esperanças em sua Dedicatória do que eu nesta; pois ela está sendo escrita num obscuro rincão do reino e numa erma casa com teto de colmo onde vivo, no constante empenho de resguardar-me dos achaques da má saúde e de outros males da vida, por via da alacridade;

6 Embora Mikhail Bakhtin acuse os iluministas franceses de terem silenciado Rabelais é sintomática a presença dos elementos cômicos e grotescos nos escritos filosófico-literários de Voltaire e a presença de Voltaire em escritores do porte de Machado de Assis e Italo Calvino.

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firmemente persuadido de que toda vez que um homem sorri, – mas muito mais quando ri, acrescenta-se algo a este Fragmento de Vida. Humildemente vos rogo, Senhor, que honreis este livro, tomando-o – (não sob vossa Proteção, – ele terá de proteger-se a si próprio, mas) para levá-lo convosco ao campo; e se jamais me disserem que ele vos fez sorrir, ou se eu puder imaginar que vos distraiu de um momento de desgosto – considerarme-ei tão ditoso quanto um ministro de Estado; – quiçá muito mais ditoso do que quem quer que (com uma só exceção) eu conheça dele ter lido ou ouvido falar. Aqui fica, ilustre Senhor, (e o que mais é para Vossa Senhoria) aqui fica, bondoso Senhor, com os seus melhores Votos, vosso mais humilde Compatriota O AUTOR (STERNE, 1998, p. 43)

A autodenominação, “Criatura dedicante”, é paródica. As marcas biográficas do clérigo Laurence Sterne estão na sua simplicidade material, no registro de sua doença em todos os anos de trabalho e a afirmação do seu sucesso. As marcas da venda e o novo lançamento confirmam-se pela negação de um possível pedido de proteção – função das dedicatórias. Nesse sentido, há o reconhecimento da autonomia, típica da literatura moderna, em que a obra “protege-se a si mesma” simplesmente sendo lida e confrontando-se com seus críticos: “ao deslocar o prefácio para uma posição arbitrariamente escolhida, o narrador chama a atenção para a arbitrariedade de toda a obra, criação autoral de um artífice que constrói, que manufatura

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seu produto livremente, sem submissão a convenções literárias” (SENNA, p. 28)7. Nesse caso, o autor criador não só manipula o constructo conforme lhe parece mais viável, mas procura manipular a recepção. Exercício divertido e imponderável, uma vez que é impossível domar a voz daqueles que passaram pela sua vida, que falam por meio de sua memória e daqueles que o lêem. Consciente desse trabalho ingrato, ele transforma essas partes constitutivas em artifícios e conjuga enredo melancólico e autoconsciência-humorística com os disfarces apreendidos de Rabelais e Cervantes. O autor inglês, ao voltar-se para realizações anteriores de outras paragens, bem diferentes dos livros em circulação em sua época e em seu país, ao exibir sua condição de artefato, sonda “a problemática relação entre o artifício que parece realidade e a realidade em si” (SENNA, p. 25). A admiração do clérigo por Rabelais e pelo Voltaire literário era explícita: desde o estilo, a linguagem do baixo corporal, os despropósitos carnavalizantes e as incursões ideológicas disseminadas em consonância com a grandeza de Dom Quixote de La mancha, seu fiel escudeiro Sancho Pança e o cavalo Rocinante (reverenciado no pangaré de Yorick). O dialogismo com a literatura inglesa ocorre mais especificamente com Shakespeare. Quanto a filosofia da época, ela é veementemente confrontada com o shandismo – nas palavras e atitudes do pai ideólogo. A instauração de vozes com ideias de outros lugares é uma percepção polifônica do romance humorístico. Os seus autores abordam as diversas variantes da linguagem literária penetrando nas estratégias

7 A citação refere-se ao narrador de Viagem sentimental através da França e da Itália, publicada em 1768, ano da morte do autor. Com evidentes relações dialógicas com Tristram Shandy, tomamos a liberdade de utilizá-la na interpretação das “opiniões do cavalheiro”.

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do fazer para depois enformarem a própria obra. Segundo Bakhtin, ocorre uma espécie de deformação do discurso externo e isso teria sido levado ao extremo por Sterne: Cervantes se encontra ao lado de Rabelais e, num certo sentido, supera-o pela sua influência determinante sobre toda a prosa romanesca. O romance humorístico inglês está profundamente penetrado pelo espírito de Cervantes. Não é por acaso que o mesmo Yorick [de Sterne] cita as palavras de Sancho Pança no leito de morte8 (BAKHTIN, 2002b, p. 115).

O legado da brincadeira formal não deixa de lado a humanidade dos personagens. Não importa em que categoria, lugar, ou época, os narradores direcionem seus artifícios para afirmar essa humanidade: De Cervantes, aprendeu Sterne a grande lição de como infundir grandeza humana ao cômico. No Dom Quixote, como se sabe, as figuras a princípio meramente caricatas do anacrônico e visionário cavaleiro andante e do seu improvisado e prosaico escudeiro vão ganhando densidade à medida que a narração avança, terminando por se converter em personagens ricos de sentido humano, capazes não apenas de provocar o riso mas também a empatia. [...] Graças a eles [os personagens] e às situações cômicas geradas pela interação de suas excêntricas mas amoráveis personalidades, foi que o romance alcançou tanto sucesso popular, dificilmente de

8 Quincas Borba, personagem de dois romances machadianos, faz o mesmo antes de morrer. Suas últimas palavras revelam uma “poética-filosófica”: “Pangloss não era tão tolo como o pintou Voltaire”.

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esperar-se tão-só das digressões de uma erudição quase sempre pitoresca com que, para deleite de seus leitores mais refinados, o romancista se divertia em frustrar as expectativas dos leitores menos refinados no tocante ao progresso da ação narrativa propriamente dita (PAES, 1998, p. 23).

Como vimos mostrando, nos prólogos, o engodo tem a especificidade de alcançar a todos. A leitura está ligada principalmente à diversão de qualquer tipo de leitor. A profundidade filosófica é sempre contrabalançada pelo movimento popular que se infunde nas fendas axiológicas da cultura erudita. A essência humorística é a pista deixada nos intróitos, anunciando um estilo paradoxal que alia autoconsciência, galhofa e melancolia, com sentimentos contraditórios inerentes ao homem envolvido pelo cotidiano. A partir de seus contextos históricos, mostrando no texto como e porque se escreve, a manipulação explícita dessa prática infunde uma reflexão sobre o que é realidade e fantasia na ficção. O ser de papel que exibe sua própria condição romanceada revela o que sentem os narradores enquanto narram, o que pensam e sentem os personagens enquanto homens – e parte de livro. A epígrafe, a dedicatória, o Ao leitor são variações do mesmo cadinho, no qual anseios e visões conjugam-se para revelarem o espírito inacabado do ser humano. Sentimentos contraditórios são pintados de forma fundamental pela pena e tintas do riso e do sério e isso garante a atualidade dos pares e a vontade de opinar: Gargântua e Pantagruel, Quixote e Sancho, Tio Tobby e Trimm, dentre outros. As digressões, além de desviarem os rumos da prosa, propiciam devaneios que espelham o homem. Quando os personagens se ensimesmam esquecidos do autor, vivem e possibilitam vivenciar uma experiência única no instante da leitura. Nas divagações, a pausa significa

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olhar-se quixotescamente do alto de seu cavalo buscando as respostas que o mundo desencantado (da modernidade) já não oferece. O gênero autoconsciente “abre uma abertura” no real para dar novos sentidos à realidade e às linguagens que a representam. Ao exibir-se em um entre-lugar, o personagem vivencia uma experiência da fantasia, também profunda, que foge ao poderio do cotidiano. Mais vivos que seus criadores, esses seres de papel renovam-se na eterna contradição humana. Gerados de forças discursivas aparentemente discordantes, revelam uma densidade espiritual que proclama a força da expressão – tudo “em seu lugar” dentro de um universo coerente chamado romance. O essencial, aparentemente maquiado pelo riso destronante e pela melancolia tirana, capaz de parodiar-se cinicamente, revela-se nas excêntricas ideias fixas e nas várias camadas da miséria e contínua vida – narrada e escrita incansavelmente. O romance humorístico-autoconsciente sabe que representa o mundo, mas se o mundo é absolutamente discurso, seu topoi desdobra-se em imagens. O enigma da vida, oculto sob o absurdo da existência, pergunta como o livro funciona para responder como a vida funciona.

Referências BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Annablume, 2002a. BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Annablume, 2002b. BEZERRA, P. A. A gênese do romance na teoria de Mikhail Bakhtin. 141 f. Tese (Doutorado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Letras, Rio de Janeiro, 1989. BEZERRA, P. A. O riso e seu papel no surgimento da prosa romanesca. Revista Brasil de Literatura, ano IV, 2002. Disponível em: . Acesso em: 18 mai. 2006.

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Recebido em 12 de novembro de 2011 Aprovado em 6 de fevereiro de 2012

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Reflexão sobre a fé e o simbólico em “The River”, de Flannery O’Connor Caroline Caputo Pires Maria Cristina Pimentel Campos UFV

The theologian is interested specifically in the modern novel because there he sees reflected the man of our time, the unbeliever, who is nevertheless grappling in a desperate and usually honest way with intense problems of the spirit. We live in an unbelieving age. Flannery O’Connor

RESUMO: O presente artigo aborda a temática do desenvolvimento e da adaptação social do ser humano no conto “The River”, na obra literária A Good Man is Hard to Find, da autora norte-americana Flannery O’Connor. Tais tópicos orientam o estudo na busca de identificar e questionar a origem das ansiedades, deformidades, atitudes grotescas e sofrimentos do homem ao discutir o comportamento das personagens e o modo como elas se relacionam consigo mesmas e com os membros da sociedade com os quais convivem. O trabalho fundamenta-se na teoria psicanalítica de Sigmund Freud, no estudo do texto dialógico e interdisciplinar de Mikhail Bakhtin e em críticas literárias relacionadas ao tema e à autora. O’Connor, ao apresentar a deturpação de sentimentos decorrentes de um desajuste familiar, incita o leitor a refletir sobre situações adversas da vida, responsáveis por atitudes e comportamentos que influenciam e comprometem o relacionamento do homem em sociedade. Nessa perspectiva, é importante entender como as personagens em

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“The River” relacionam-se consigo mesmas, uma vez que suas atitudes são mais consequências do que causa de suas inadequações espirituais e sociais. PALAVRAS-CHAVE: Conto norte-americano moderno. Flannery O’Connor – “The River”. Flannery O’Connor – A Good Man is Hard to Find. Inadequação social – Tema literário. ABSTRACT: This article addresses the issue of human beings’ development and social adaptation in the short story “The River” in Flannery O’Connor’s A Good Man is Hard to Find. Such topics guide the study to identify and question the origin of human being’s anxiety, deformities, grotesqueness, and sufferings as it discusses the characters’ behaviors and how they relate to themselves and to the members of society in which they live. This article is based on Sigmund Freud’s psychoanalytic theory and on Mikhail Bakhtin’s study of the interdisciplinary and dialogical text and relies on literary criticism related to the theme and to the author. O’Connor, in presenting feelings arisen from misunderstandings in a family, encourages the reader to reflect about life’s adverse circumstances, which are responsible for attitudes and behavior that influence and affect man’s relationship in society. Under this perspective, it is important to understand how the characters in “The River” relate to themselves, since their actions are rather consequences than causes for their spiritual and social inadequacies. KEYWORDS: North-American Modern Short Story. Flannery O’Connor – “The River”. Flannery O’Connor – A Good Man is Hard to Find. Social Inadequacy – Literary Theme.

Flannery O’Connor, rotulada como escritora cristã, grotesca e regionalista, deixa na mente do leitor, devido à perspectiva psicológica presente em suas obras, um enigma do inconsciente, que o conduz à inquietude do espírito. Os contos da autora, instigantes, complexos e profundos, realizam uma introspecção nos movimentos culturais, históricos, econômicos e sociais do panorama contemporâneo. A presença de conceitos religiosos, associada ao ensejo por reavaliação dos padrões morais do ser humano, constitui traços marcantes na es-

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critura da autora, que propiciam, através da caracterização das personagens, reflexão sobre as incongruências da vida em sociedade. Para Ruthann K. Johansen (1994), em seu livro de críticas The Narrative Secret of Flannery O’Connor: The Trickster as Interpreter, O’Connor cria histórias que retratam sociedades com problemas na estrutura religiosa e social descrevendo, pois, indivíduos isolados e alienados em uma era sem religião. A importância das obras ficcionais da autora não se deve simplesmente ao fato de ela ilustrar as vertentes da literatura americana e a herança social e histórica de seu tempo, mas de expor o espírito humano ligado a uma incessante busca pela liberdade ou felicidade. Suas histórias evocam reações de medo ou angústia no leitor, pois este é convidado a reconhecer que a falta de fé crista é evidente na consciência das pessoas no mundo contemporâneo. É notório que a estrutura narrativa de O’Connor faz um reconhecimento da psiquê humana e das tradições da história social e cultural norte-americana. Através da apropriação de mecanismos linguísticos, O’Connor cria histórias conduzidas por comparações na luta do ser humano contra as regras sociais, contra as forças destrutivas do inconsciente e contra ideias manifestadas de formas grotescas. Seu interesse centra-se na zona entre o humano e o divino, cuja investigação enraíza-se entre a realidade e a imaginação assim como entre o visível e o invisível. A autora utiliza da linguagem não apenas como um sistema linguístico de significação, no qual transmite a comunicação, mas também como um sistema metafórico envolvendo ações linguísticas verbais e não-verbais. O êxito profissional da autora deve-se ao uso de palavras adequadas e indispensáveis à expressão de seu pensamento. Mikhail Bakhtin, ao analisar as teorias psicanalíticas de Freud em seu livro intitulado O Freudismo (2009), ressalta que, como as palavras são a retratação do processo mental humano, essa relação se dá entre o vocábulo e

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a reflexão do pensar, extraído do dia-a-dia. Contudo, como afirma Bakhtin, a identidade do ser humano é um constructo do linguístico, pois o ser humano é construído na linguagem. Dessa maneira, nota-se, pois, que O’Connor faz o uso de signos linguísticos que se apresentam na realidade narrativa como visuais, sendo a função simbólica “aquela através da qual o indivíduo constitui seus modos de objetivação, sua percepção, seu discurso. O simbólico é o mediador da realidade e ao mesmo tempo o que constitui o indivíduo como um indivíduo humano” (GARCIA-ROZA, 1992, p. 184). O simbólico substitui e complementa aquilo que não se pode dizer apenas com palavras, envolvendo assim, gestos, imagens e silêncios. Como todo material narrativo deriva de um nível da experiência humana, pode-se relacionar as obras de O’Connor como envolvidas em um efeito simbólico, interligada com o inconsciente coletivo. Suas obras não ilustram apenas conceitos verbalizados, mas também sugerem sentimentos e expressões totalmente fora do alcance das palavras. Ao estabelecer essa diferença, Carl Jung, discípulo dissidente de Freud, teoriza, em seu livro O homem e seus símbolos (2008), a associação de palavras na técnica psicanalítica e estabelece o conceito de símbolo para expressar algo que pode ser apresentado de forma diferente na interpretação de cada indivíduo. Assim, uma palavra ou imagem é simbólica quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto e imediato. Esta palavra ou esta imagem tem um aspecto “inconsciente” mais amplo, que nunca é precisamente definido ou inteiramente explicado. E nem podemos ter esperanças de defini-lo ou explicá-lo. Quando a mente explora um símbolo, é conduzida a ideias que estão fora do alcance da nossa razão (JUNG, 2008, p. 19).

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Jung acentua que o homem só se realiza através do conhecimento e aceitação do seu inconsciente, conhecimento esse adquirido por intermédio dos sonhos e seus símbolos. Ao analisar os símbolos no inconsciente humano, Jung afirma que ao longo da vida esses não se perdem, mas passam a agir de maneira indireta e fazem isto por meio da força que o ser humano tem no inconsciente. A repressão aos símbolos inconscientes pode ser perigosa e prejudicial à psiquê humana. Jung destaca dois tipos de símbolos: os naturais e os culturais. Os naturais são os símbolos inerentes ao desenvolvimento da psiquê humana e os culturais são aqueles assimilados pelo homem no seu meio. Jung se utiliza do termo arquétipo para definir modelos materiais do fenômeno psíquico, que são tendências estruturais invisíveis do símbolo, que criam imagens ou visões que correspondem a alguns aspectos da situação consciente na vida cotidiana do ser humano. A psicologia analítica de Jung contribui para o estudo do material simbólico humano. O teórico vislumbra a herança psicológica universal denominada de inconsciente coletivo ou arquétipo, que surgem na consciência como imagem simbólica. Para Jung, a interpretação de uma imagem onírica, considerada como a melhor expressão possível de fatos ainda inconscientes, promove uma visão mais profunda e simbólica da humanidade, possibilitando sua melhor compreensão, como, por exemplo, a religião, a arte, a mitologia. Nesse contexto, o significado de palavras ou símbolos pode ser conectado a eventos que evoquem ações e sentimentos coletivos. Essa representação simbólica é também visível na oratória religiosa. Na tradição religiosa cristã, o batismo é um dos eventos coletivos mais importantes, sendo este o primeiro passo na iniciação sacramental, que confere ao indivíduo cristão a igualdade espiritual. Através das palavras ricas de simbolismo religioso desse ritual, O’Connor, no conto “The River”, cria uma divergência linguística entre as palavras do pastor,

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Bevel Summers, e a realidade pagã de uma criança, o que conduz o menino Harry Ashfield à morte, afogando-se no rio, ao escolher a vida em Cristo em vez da vida no mundo real. Na história, Harry, cujos pais displicentes têm pouco interesse por ele, vai a um encontro de evento religioso com sua babá, Mrs. Connin, o que muda sua vida. Encontra-se, pois, no conto, a essência do discurso religioso com questões ideológicas muito fortes, como a submissão a Deus e a autoridade do sacerdote. Percebe-se a relação de forças que determinam a credibilidade do discurso religioso. O sacerdote Bevel Summers, por exemplo, apresenta uma fala retórica, irrigada de significação, pois recorre a paráfrases bíblicas para sustentar seu dizer e se autoafirmar como representante direto de Deus. Michael Foucault, em A ordem do discurso (1996), provoca uma reflexão ao dizer que a vontade do poder está no seio do discurso e projeta o autoritarismo, como se pode observar na enunciação de conotação religiosa que Bevel Summers revela. Para o filósofo da expressão literária e da análise do discurso, o autor do texto ficcional parece levar o leitor a crer que o ser humano está submetido a uma teia invisível em que os movimentos são, sem perceber, limitados. O texto parece querer sufocar o leitor, mantendo a impressão de não haver saída do controle e de poderes dissimulados na sociedade. Foucault supõe que: Em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatória, esquivar sua pesada e temível materialidade (FOUCAULT, 1996, p. 8-9).

Para o filósofo, é necessário reconhecer na sociedade os procedimentos de exclusão que levam os sujeitos à submissão. O campo de

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ação da interdição do discurso está centrado nas esferas da sexualidade e da política que se articulam ao campo do desejo e do poder. Tais jogos de dissimulação são notórios em “The River”, onde se situa a prática de poder e da dominação da linguagem. Contudo, a importância da Bíblia nas palavras do sacerdote Bevel Summers, com seu discurso fundador, é muito grande, pois permite que sejam feitos vários usos da palavra de Deus para legitimar o discurso. O’Connor projeta a voz da igreja e do mundo para o arrependimento e a reconciliação com o perdão. Contudo, o foco do conto encontra-se nos aspectos dicotômicos do santo e do satânico, que aparecem juntos na figura do sacerdote. No local destinado pelo pastor para o ritual religioso, Bevel Summers prega seus dogmas e batiza seus seguidores. É neste ambiente que Harry toma ciência da existência de um Pai que cuida dele e que ao ser mergulhado nas águas do rio, ele pode entrar em contato com o local no qual seja reconhecido. Ao notar que em sua casa seu valor e afeto familiar lhe são negados, o menino retorna sozinho ao local que foi batizado no dia anterior e mergulha com o objetivo de encontrar o Reino de Cristo, mas se afoga. Através da linguagem simbólica de Bevel Summers, a criança visualiza ao seu redor um brilho envolvente em relação à vida na presença do Senhor. Com a inocência peculiar à idade, Harry deixa seus pais na esperança dessa acolhida amorosa. A história é contada a partir do ponto de vista de um narrador onisciente, abrangendo a vida da personagem principal no decorrer de dois dias. Harry, um menino de cinco anos, é filho único de uma família que tem pouco tempo para dar atenção a ele, sendo frequentemente enviado aos cuidados de babás. O pequeno desconhece as verdades do mundo, dos limites e das possibilidades que a vida oferece. Seus pais ocupam o tempo em festas, não se lembrando de, ou até mesmo não pretendendo, dar ensinamentos ao filho, aspecto esse necessário para a formação pessoal da criança.

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A história inicia-se às seis horas da manhã, com o pai de Harry preparando-o para sair com a babá, Mrs. Connin. A mãe da criança encontra-se impossibilitada de sair do quarto no momento e, assim, de ajudá-lo, por estar sofrendo de ressaca causada pelas festividades noturnas. Nas palavras do pai, o leitor nota que este quer “livrar-se” do menino o mais rápido possível para descansar da noite anterior, pois não consegue nem mesmo vestir Harry devidamente e empurra-o pelo corredor para que seja ajeitado por Mrs. Connin. Pede ainda que a senhora fique com a criança até tarde para que não os incomode, expondo a rejeição pelo filho: “Mas o menino então volta à noite, não é, lá pelas oito ou nove?” (O’CONNOR, 2008, p. 206)1. Mrs. Connin é a pessoa que cuida de Harry naquele dia e leva-o para o campo, apresentando-o à sua família, a seus animais e a Jesus. Sendo uma senhora simples e muito religiosa, acredita na cura pela fé, como afirma que o pastor afastaria a enfermidade da mãe de Harry: “Vamos pedir ao pregador para rezar por ela. É o Reverendo Bevel Summers, que já curou muita gente. Quem sabe ela ia estar com ele um dia?” (O’CONNOR, 2008, p. 206)2. Os ensinamentos cristãos do pastor enfatizam, que através do batismo, todos têm a possibilidade de alcançar o paraíso e serem reconhecidos por seus valores. A falta de conhecimento da criança nos dogmas religiosos, cujos ensinamentos deveriam provir da família, é exposta na interpretação contraditória de Harry entre a dedicada fé de Mr. Connin

1 Todas as passagens do romance estão, em português, no corpo do texto. Usamos a edição traduzida por Leonardo Fróes, Flannery O’Connor: contos completos (2008). As passagens originais, incluídas nas notas de rodapé, foram extraídas do livro A Good Man is Hard to Find and Other Stories (1983). Doravante, as referências a estas duas obras serão distinguidas por datas. “we’ll expect him back tonight, about eight or nine?” (O’CONNOR, 1983, p. 24). 2 “We’ll ask the preacher to pray for her. He’s healed a lot of folks. The Reverend Bevel Summers. Maybe she ought to see him sometime” (O’CONNOR, 1983, p. 24).

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e o ritual de batismo encenado por Bevel Summers. A incapacidade de o menino aceitar sua condição de desprezado pelos pais é percebida na atitude em que afirma ter o mesmo nome do pastor, tão venerado pela senhora. Quando Harry escolhe adotar o nome Bevel como sua nova identidade, o menino forma uma representação de sua unidade pessoal na identificação com a imagem do pastor. Ressaltando a noção contraditória que existe entre as duas personagens, O’Connor demonstra na identificação uma possível fusão, simbólica da interação entre o divino e o humano, como sugere Johansen (1994). Essa identificação entre as personagens pode ser entendida como a fase de formação do ser humano que se processa na primeira infância, quando a criança encontra-se, ainda, em um estado de impotência e dependência física e emocional. Adalberto de O. Souza (2009), ao analisar algumas teorias psicanalíticas, ressalta que Lacan, em uma retomada aos estudos de Freud, denomina esta etapa da vida como a fase do espelho. Vale esclarecer que esta unificação é imaginária e atualizada pela experiência na qual a criança vê sua própria imagem em um espelho. Harry espelha-se na imagem e no mundo da linguagem de Bevel Summers. Esse aspecto da psicanálise encontra-se na distinção que essa ciência faz da linguagem, do gênero, da identidade e da noção de distinção entre si e os outros, como argumenta Adalberto de O. Souza em seu texto “Crítica psicanalítica”: Pela fase do espelho a criança entra no simbólico, ou seja, entra no mundo da linguagem, no qual o mundo real é simbolizado e representado pela linguagem e outros sistemas que se operam como a linguagem. Diga-se de passagem, esse mundo real jamais pode ser conhecido, porque está fora da

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linguagem. Em sua entrada no Simbólico a criança não apenas se reconhece como um ser distinto, mas aceita a linguagem e os sistemas sociais e culturais que formam o seu ambiente (SOUZA, 2009, p. 248).

A análise do conto coteja as áreas da literatura e da psicanálise na intenção de resgatar a “verdade” que a autora pretende mostrar. Sob essa ótica, nota-se que Harry confronta a imagem que o mundo exterior devolve para ele. Essa imagem é comprometida pela linguagem do pastor levando-o a um reconhecimento errado de si mesmo e de sua vida, base de sua identidade pessoal, ou seja, a família. Ele, como criança inocente, tem a necessidade de se reconhecer no outro para formar sua própria identidade. A subjetividade da criança é construída na interação verbal e física com os outros, ou seja, na figura de indivíduos que são semelhantes a ele, como os pais ou irmãos. A criança busca sua individualidade no olhar do outro. No desenvolvimento infantil, a criança pode se fixar em um estágio de crescimento, por apresentar ansiedade e angústia. Nessa dependência, a criança usa da fixação em uma pessoa ou em um objeto como proteção, fato esse que impede que essa adquira independência subjetiva, como afirma Hall e Lindzey (1973), ao teorizarem sobre a personalidade no livro Teorias da personalidade. No caso de Harry, o valor que ele projeta na família enfraquece ou desaparece com o abandono dos pais e, assim, faz a representação afetiva em um novo valor, o espiritual. A diminuição de um valor familiar para Harry determinará o aparecimento do outro. Contudo, enquanto a estima do menino pelos pais abrevia-se, seu interesse por outras pessoas, como Bevel Summers e Mrs. Connin, e outras coisas, como o interesse religioso, aumentam. Como seu valor é reprimido, o menino transfere toda sua imaginação para criar sonhos e fantasias que possam levá-lo ao afastamento do desprazer.

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Ao ser levado para o campo por Mrs. Connin, Harry descobre que o mundo campestre é bastante diferente do que ele conhece na cidade. Conduzido ao chiqueiro pelos filhos da senhora, o pequeno aprende que os animais são diferentes daqueles dos livros. O menino nunca tivera a oportunidade de ir ao campo e ver animais reais, como por exemplo, porcos verdadeiros. Sempre os imaginava como sendo rosa e com rabo enrolado, imagem ilustrada simbolicamente em livros infantis. Harry também descobre, pelas palavras de Mrs. Connin, que ele veio ao mundo pelas mãos de um carpinteiro chamado Jesus Cristo e não das do médico Sladewall, como sempre imaginou. Harry conclui que as histórias de sua vida devem ser uma piada ou brincadeira, pois ao sair de casa ele descobre um novo mundo, como afirma o narrador do conto: “Julgava ter dado sorte dessa vez, por terem chamado Mrs. Connin, que o levava para passar o dia fora, não uma babá comum, que no máximo iria até a praça ou ficaria com ele em casa” (O’CONNOR, 2008, p. 212)3. Insatisfeito com a vida sem valor na cidade e almejando alcançar valor no campo, a ingênua criança fica dividida entre o ceticismo dos pais e a fé de Mrs. Connin e Bevel Summers. Sob essa ótica, considera-se que o âmbito essencial para a análise do sentimento religioso refere-se às complexas questões relacionadas à contribuição da religião na sociedade, pois seus mecanismos conduzem à ordenação e funcionamento das normas morais e éticas, afastando contradições e conflitos internos do homem em sociedade. Essa noção de religião é corroborada por Gustavo A. Ramos (2003), em Angústia e sociedade na obra de Sigmund Freud, ao afirmar que a

3 “It occurred to him that he was lucky this time that they had found Mrs. Connin who would take you away for the day instead of an ordinary sitter who only sat where you lived or went to the park” (O’CONNOR, 1983, p. 31).

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religião organiza o jogo de adaptação do ser humano em sociedade ao escolher técnicas de convívio, impondo a todos um caminho que leve a encontrar a felicidade e evitar sofrimentos. Argumenta que “a religião não pode manter a sua promessa, quando o crente se vê necessitado de falar dos misteriosos desígnios de Deus, é que não lhe sobrou outra possibilidade de consolo ante o sofrimento senão na submissão incondicional” (RAMOS, 2003, p. 232). Em “The River”, Harry vive a angústia perante a inevitabilidade do sofrimento, buscando, assim, na fé e nas palavras religiosas do pastor, a proteção, o afeto e o consolo às suas questões. Charles Reagan Wilson (2007), no capítulo intitulado “Southern Religion(s)”, define a religião no sul dos Estados Unidos como um evento cultural que confronta o sofrimento das pessoas na guerra, na frustração pessoal, na pobreza e na discriminação. A religião fornece visão de mundo para os sulistas que nutrem um senso de identidade com a região, como ilustra: “Juntamente com rígidas atitudes raciais, na economia agrícola e na vida rural, os padrões peculiares da religião dentro da cultura americana deram um toque distintivo à cultura do sul” (WILSON, 2007, p. 238)4. Para Wilson, o tema central da religião sulista americana é a procura na redenção dos pecados, cuja supremacia dos brancos trouxe problemas raciais na estrutura social, cultural e histórica. O crítico argumenta que O’Connor explorou a crise espiritual de sua região, como parte do complexo pensamento moderno. Na verdade, Wilson está convencido de que a religião é parte do panorama cultural e histórico em que vivem os escritores sulistas.

4 “Along with rigid racial attitudes, in agricultural economy, and rural life, peculiar patterns of religion within American culture gave a distinctive twist to Southern culture” (Tradução nossa).

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Dessa maneira, enfatizar a religião implica lançar a discussão da experiência histórica e cultural da autora, ao expressar no conto seu ensinamento religioso. De volta ao conto, Harry é levado pelos braços de Mrs. Connin à companhia de seus filhos. No caminho, ela lhe mostra um livro chamado “A vida de Jesus Cristo para menores de doze anos” (O’CONNOR, 2008, p. 212)5, baseado em doutrinas religiosas. Esse gesto demonstra a crença da senhora na fé cristã e na tradição histórica familiar, pois o livro pertencia à sua avó. Datado do ano de 1832, a senhora afirma que não entregaria a ninguém esse objeto com alto valor sentimental, demonstrando para o menino quão importante é manter e respeitar os conhecimentos tradicionais da família. A senhora ressalta a força da herança material e espiritual que assegura a perpetuidade das tradições. Ao mostrar o livro ao menino, Mrs. Connin pretende passar essa característica de respeito histórico, religioso e pessoal não só para ele, mas também para seus pais. No local de pregação de Bevel Summers, Harry, como um espectador a beira da água, assiste e ouve o pastor falar sobre o corpo de Jesus acolhido no rio e no reino do Senhor. O ato de batismo no rio provém de um ritual cristão bíblico ocorrido no Rio Jordão, onde o discípulo João Batista realizava essa cerimônia na necessidade de purificar os indivíduos de todos os pecados que carregavam. No convite de Bevel Summers para a união com Cristo nas águas do rio, O’Connor mistura a linguagem metafórica e denotativa nas palavras do pastor. ‘Você já foi batizado?’, o pastor perguntou. ‘Fui o quê?’ ‘Se eu te batizar’, disse o pastor, ‘você vai poder entrar no Reino de Cristo. Será lavado no rio dos sofrimentos, meu filho, e ir pelo rio fundo da

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“The Life of Jesus Christ for Readers under Twelve” (O’CONNOR, 1983, p. 24).

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vida. Você quer?’ ‘Quero’, o menino disse e pensou: oba, então eu vou por baixo d’água, não vou ter de voltar pro apartamento!’ ‘Você já não será mais o mesmo’, disse o pastor (O’CONNOR, 2008, p. 217-218)6.

Essa mensagem é diretamente ligada à experiência da criança em casa, cuja vida não tem préstimo e significação alguma. Na confusão da linguagem figurativa e simbólica, Harry percebe um vazio existente no distanciamento entre o que ouve e a realidade identificada por sua família, por pertences sem valor, pela falta afetiva e pela ausência de informação religiosa e moral. No ritual de pregação, o pastor consegue, com o poder da palavra, prender a atenção das pessoas e influenciar os indecisos em relação à fé. Defende firmemente seus ideais para mostrar os benefícios que as pessoas podem usufruir com o batismo. Sabe-se que todo conhecimento pode ser utilizado para o bem ou não; contudo, Bevel Summers aplica seu discurso com técnicas de persuasão, ciente das influências em seus ouvintes. Em local público, Summers conclama as palavras sagradas. Para ele, o batismo não é mero símbolo da promessa do homem em seguir Jesus, ou rito de passagem, ou de iniciação na ordem religiosa, mas sim um ato sacramental, ou seja, um ato de fundamentação da comunhão entre todos os cristãos, proporcionando ao batizado a benção e a graça de Deus como um ato de salvação. O reverendo deixa claro que o batismo marca a iniciação daqueles que acreditam em Cristo.

6 “Have you ever been Baptized?” the preacher asked. “What’s that?” he murmured. “If I baptize you, “the preacher said, “you’ll be able to go to The Kingdom of Christ. You’ll be washed in the river of suffering, son, and you’ll go by the deep river of life. Do you want that?” “Yes,” The child said, and though, I won’t go back to the apartment then, I’ll go under the river. “You won’t be the same again,” the preacher said” (O’CONNOR, 1983, p. 37-38).

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Aqueles que respondem ao chamado do Senhor podem alcançar, nas águas do rio, a absolvição dos pecados: ‘Se não vieram por Jesus, não vieram por mim. Se alguém aí só veio aqui para ver se conseguiria se livrar de uma dor entrando n’água, esse não veio por Jesus. Não se pode largar sua dor dentro do rio. Eu nunca disse isso a ninguém,’ parou, baixou a vista e olhou para seus próprios joelhos. VERIFICAR e observar parágrafos ‘Já vi uma mulher ser curada por seus poderes!’, gritou alguém da multidão bruscamente. ‘uma que puxava uma perna quando chegou, mas que depois se levantou e saiu andando normalmente’. O pastor ergueu um pé e logo o outro. Parecia quase, mas não ainda, a ponto de sorrir. ‘Pode ir voltando para casa, se é por isso que veio’, disse. Depois, erguendo cabeça e braços, bradou: ‘Ouçam o que eu tenho a dizer, minha gente! Existe apenas um rio, que é o Rio da Vida, e ele é feito do Sangue de Jesus. É nesse rio que vocês têm de largar seus sofrimentos, o Rio da Fé, o Rio da Vida, O rio do Amor, o rio do Sangue de Jesus, vermelho e bom!’ (O’CONNOR, 2008, p. 214)7.

7 “‘If you ain’t come for Jesus, you ain’t come for me. If you just come to see can you leave your pain in the river, you ain’t come for Jesus. You can’t leave your pain in the river,’ He said. ‘I never told nobody that’. He stopped and looked down at his knees.”

‘I seen you care a woman oncet!’ a sudden high voice shouted from the hump of people. ‘Seen that woman get up and walk out straight where she had limped in!’ The preacher lifted one foot and then the other. He seemed almost but not quite to smile. ‘You might as well go home if that`s what you come for,’ he said.” “Then He lifted his head and arms and shouted, ‘listen to what I got to say, you people! There ain’t but one river and that’s the River of Life, made out of Jesus’ Blood. That’s the river you have to lay your pain in, in the River of Faith, in the River of Life, in the River of Love, in the rich red river of Jesus’ Blood, you people!’” (O’CONNOR, 1983, p. 33-34).

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É surpreendente notar como as palavras de Summers chamam a atenção de uma criança de quatro anos. A falta de amor em casa é responsável pela atração que o menino sente pelas palavras do pastor que afagam sua carência afetiva. Assim, o menino aceita ser batizado, mas não como um ato de paz e satisfação, e sim como afastamento de sofrimentos. Embora O’Connor não explicita a razão pela qual Harry mergulha nas águas do rio, o leitor percebe a lógica do menino ao retornar à cena do batismo para ir ao encontro da nova vida prometida pelo pastor e afastar-se da situação familiar indesejável. Além disso, multidões de pessoas vão ao rio para serem batizadas, na esperança que Bevel Summers mostre o milagre da cura de todos os males e doenças, para terem seus corpos curados mais do que terem seus pecados espirituais redimidos. O pastor, contudo, prega às pessoas a existência de mais de um tipo de dor que clama por cura: uma sujeita à terapia médica e a outra originada na dor do pecado, da culpa e da alienação a Deus. O sacerdote, apropriando-se das palavras de Deus, fala com autoridade. Para a massa ouvinte é difícil distinguir o sagrado do humano. O discurso litúrgico sobre a importância do batismo, realçado pelo dom da oratória do pastor, aguça a sensibilidade dos ouvintes. A fala de Summers centraliza-se na ideia dicotômica do pecado e da salvação. O ato de batismo confere, aos pecadores, consolo e esperança de prosperidade, cura, libertação e paz interior, além de vislumbrar a salvação como solução imediata. No contexto da oratória, como instrumento de mediação de ideologias, é necessário usar cautela no uso das palavras, porque os sentidos que emergem deste uso podem tornar os ouvintes reféns. A palavra é provida da capacidade de impregnar o leitor ou ouvinte de imagens simbólicas, colocando a interpretação da linguagem a serviço da emancipação criativa do sujeito ouvinte. Para exemplificar melhor esse fenômeno vale lembrar que:

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Uma palavra surge sempre em diálogo com outras palavras já existentes. Nasce, cresce e morre no confronto com as insuficiências, contradições e esgotamentos de sua existência física no mundo. Pensar a linguagem numa perspectiva material significa pensá-la no mundo e não como espelho do mundo ou como sua representação. Portanto, falar é agir no mundo, introduzindo transformações de natureza incorporal. Se a linguagem é ação, podemos caracterizar as interações entre os sujeitos como jogos de linguagem (SOUZA, 2009, p. 171).

Adalberto de Oliveira Souza (2009) argumenta que o uso indevido da linguagem produz ilusões resgatadas através da interpretação literal das palavras elaborando, assim, uma inserção particular da compreensão estabelecida com base na narrativa linguística. Advém dessa interação entre locutor e ouvinte a formação de identidades. Retomando a análise das palavras proferidas pelo reverendo Bevel, observa-se que Harry, apesar de não ter qualquer experiência espiritual inicial, encontra-se envolto no discurso religioso do pastor e de Mrs. Connin. O menino, alheio ao significado da vida cristã, absorve as palavras que o conduzem, ironicamente, a um mergulho mortal em direção ao Reino de Cristo. O’Connor tem a habilidade de utilizar de uma estrutura narrativa de sentidos diversos que contribuem para a compreensão das várias vozes sociais inseridas em seu texto ficcional. As vozes das personagens no conto “The River” se caracterizam pelas preocupações individuais, pela distinção das classes sociais, crenças e atitudes estranhas. A voz de cada personagem está enraizada por cada comportamento em um conjunto de falas e gestos efetivado na narrativa através da comunicação entre estes. Ao analisar as vozes sociais projetadas pela autora, Maria Cristina Pimentel Campos, em “As vozes sociais

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de Flannery O’Connor em Good Country People” (2010), enfatiza que o entendimento da escrita de O’Connor não pode ser visto isolado de questões históricas e sociais. Para a crítica literária, “torna-se impossível analisar a obra dessa autora americana sem se levar em consideração os aspectos sociais e culturais implícitos na descrição do ambiente e na caracterização das personagens do mundo fictício criado por ela” (CAMPOS, 2010, p. 222). Vale ressaltar que o conto “The River” retrata o homem em sociedade entrelaçado por vozes que se complementam no desenrolar narrativo, desvelando a complexidade da natureza humana, assim como as aspirações da mente no aspecto do inconsciente. As palavras proferidas pelo pastor Bevel Summers revelam seu envolvimento na força do discurso construindo as inúmeras possibilidades de sentidos que o contexto teológico pode inferir na compreensão de cada ser humano. Assim, Harry vive entre a interpretação restrita da realidade e a representação simbólica do ato religioso. Na consciência do menino, ele associa a informação errônea de que sua vida seria diferente depois do batismo. As informações convergentes confundem a criança e assombra o leitor, que, pelo fio narrativo, antecipa o desenrolar da tragédia. A prática que Harry vive nessas duas perspectivas de realidade reproduz uma experiência humana comum. O’Connor demonstra que uma libertação ilusória e destrutiva ocorre quando não há equilíbrio entre o material e o espiritual. Harry, após ser batizado pelo pastor e perceber que nada mudara em sua casa, decide voltar ao rio mas desta vez sozinho: “Não queria mais saber dos pastores, nem queria mais bancar o bobo: ele mesmo ia se batizar dessa vez” (O’CONNOR, 2008, p. 224)8. Equivocadamente, o menino quer

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“not to fool with the preachers any more but Baptize himself” (O’CONNOR, 1983, p. 45).

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“continuar sempre em frente, até encontrar, no rio, o Reino de Cristo. Não querendo mais perder tempo, enfiou a cabeça embaixo d’água e se foi” (O’CONNOR, 2008, p. 224)9. A ausência afetiva dos pais e a solidão de Harry ao acordar em casa sozinho, sem ninguém que o assista em suas necessidades básicas de criança, como a simples preparação de uma refeição, desencadeiam na criança um sentimento de infelicidade e vontade de mudança. Ao acordar depois de um dia cansativo, mas cheio de novidades, Harry se levanta e decide se alimentar. Depara-se com a desorganização da casa após a festa noturna dos pais. Ele não se assusta com os alimentos deixados na mesa e nem com as cinzas de cigarro no chão, limpando-as para debaixo do tapete. Após minutos de solidão, Harry toma uma decisão que muda sua vida drasticamente, como anuncia o narrador: “Sua expressão começou a mudar bem devagar, como se ele visse aparecer pouco a pouco alguma coisa que nem mesmo sabia estar procurando. Mas de repente ele soube o que queria fazer” (O’CONNOR, 2008, p. 222)10. O’Connor expressa a manipulação da verdade na linguagem narrativa. Mostra o ilimitado potencial da linguagem ao retratar a distorção na compreensão e interpretação de quem lê e ouve as palavras enunciadas. No discurso do pastor, O’Connor ilustra o seu interesse na mediação do artístico e religioso, como a palavra que interliga a participação do homem e do divino no mundo real.

9 “to keep on going this time until He found the Kingdom of Christ in the river. He didn’t mean to waste more time. He put his head under the water at once and pushed forward” (O’CONNOR, 1983, p. 15).

“Very slowly, his expression changed as if he were gradually seeing appear what he didn’t know he’d been looking for. Then all of a sudden he knew what he wanted to do” (O’CONNOR, 1983, p. 43).

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Momentos antes de a água cobrir o menino, Harry reconhece que o rio pode não levá-lo ao paraíso e que a promessa do batismo “Não passa de mais uma brincadeira” (O’CONNOR, 2008, p. 224)11. Sua indignação tem origem no sentimento de revolta experimentado frente à afronta das palavras do pastor e ao desprezo dos pais. A reação que se desencadeia em situações de desprazer pode vir em forma de demonstração pacífica ou, até mesmo, violenta. A rejeição ao estilo e comportamento de vida dos pais leva a criança a sentir-se atraída pelo desejo de transformação e mudança expressas nas palavras de Bevel Summers. O sofrimento provocado pelo comportamento dos pais coloca o aparelho psíquico de Harry em ação, fazendo com que o pequeno busque repetir a experiência de satisfação sentida ao ouvir o discurso do reverendo. Freud (1974) escreve sobre as transformações do afeto no ser humano no qual o deslocamento ou a troca da afeição familiar pode conduzir a angústias e melancolias, se não trabalhadas corretamente. A criança, por não superar o sentimento de falta causada pela ausência dos pais, transporta para o plano simbólico uma saída estratégica para seu sofrimento psíquico. Harry, inconscientemente, busca no mergulho nas águas do rio a libertação de sua dor. Freud, em O mal estar na civilização (1974), afirma que todo ser vivo tem tendência para se identificar com a morte. Essa tendência, chamada de pulsão da morte pelo psicanalista, resulta de um esforço do próprio ser vivo de retornar ao estado original e evitar fatores externos que o conduzem ao desprazer. Para Harry, o objeto de desejo, o afeto dos pais, foi marcado pela falta e, antes de ascender ao plano simbólico, o desejo de Harry se realiza no plano

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“it’s just another joke!” (O’CONNOR, 1983, p. 45).

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do imaginário. Tendo como referência as palavras do pastor, Harry constrói o esboço do que é ser amado. Na medida em que o objeto, fonte de prazer, é apresentado, o menino toma-o para si próprio, na expectativa de que a dor psíquica seja expelida. O’Connor tem a habilidade de apresentar personagens com personalidades dúbias, como afirma Johansen (1994), ao analisar o conto como uma metáfora da concepção entre o bom e o mau, assim como o pecado é uma evidência do ser humano. A estudiosa observa as contradições na narrativa da autora revelando a sombra que ofusca a luz da verdade inserida na obra. Em “The River”, O’Connor apresenta dois tipos indecisos de personagens: uma que revela a confusão na interpretação literal da realidade resultante de sua inocência e a outra cuja experiência no uso da linguagem tem a habilidade de traduzir a realidade simbolicamente. Portanto, Harry e Bevel Summers fazem da relação simbólica da palavra com a realidade, o conflito pessoal de salvação ou de morte. Surpreendentemente, O’Connor, no fim do conto, introduz uma nova personagem, denominada Mr. Paradise, com o intuito de ressaltar a natureza corrupta da sociedade contemporânea. O pescador que vai ao rio diariamente em busca de alimento, assiste às reuniões de oração na expectativa de encontrar a cura para um câncer na orelha, embora não aceite a “verdade” verbalizada por Bevel Summers e critica-lhe as palavras de salvação. Já no final do conto, após Harry decidir que não há paz em sua vida e entrar no rio, Mr. Paradise fica surpreso em ver como a força das palavras do religioso pode agir sobre uma criança indefesa e conduzi-la à morte. Harry, já nas águas do rio, vê o olhar perplexo do homem: Mergulhou mais uma vez, e agora a correnteza que o esperava o pegou, qual longa mão delicada, e levemente o levou para a frente e o fundo. Por um

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instante ele foi tomando de surpresa: depois, como se movia cada vez mais rápido e sabia estar indo a algum lugar, toda a zanga e o medo o abandonaram. A cabeça de Mr. Paradise aparecia de vez em quando na superfície da água. Por fim, bem rio abaixo, o velho se ergue fazendo esforço, como um monstro fluvial muito antigo, e lá ficou de mãos vazias, seguindo a linha do rio até onde podia alcançar com seu olhar desanimado (O’CONNOR, 2008, p. 225)12.

Mr. Paradise é, certamente, uma personagem complexa, que apresenta vagas motivações na vida pessoal. Ao ver o menino se afogar, o homem move-se para salvá-lo. A atitude de Mr. Paradise é disseminada a partir dos dogmas cristãos pregados pelo pastor. Freud (1974) afirma que o ser humano, ao lutar contra sofrimentos tadvindos do relacionamento com o mundo externo e com os outros, como proteção, busca no isolamento a solução para os problemas de afetividade, achando assim, refúgio no próprio mundo. A realidade para Mr. Paradise é fonte de sofrimento causado pela doença e, por medo de discriminação, o senhor tende a romper relações com ela, protegendo-se no isolamento contra a dor de se expor. Para evitar o sofrimento, Mr. Paradise encontra sublimação na atividade da pesca. Não aceita como verdade a preleção de Bevel que a religião possa se um alívio para a dor, protegendo-se assim dos relacionamentos. A essa

“He plunged under once and this time, the waiting current caught him like a long gentle hand and pulled him swiftly forward and down. For an instant he was overcome with surprise; then since he was moving quickly and knew that he was getting somewhere, all his fury and his fear left him. Mr. Paradise’s head appeared from time to time on the surface of the water. Finally, far downstream, the old man rose like some ancient water monster and stood empty-handed, staring with his dull eyes as far down the river line as he could see” (O’CONNOR, 1983, p. 45-46).

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esquivança do mundo real e do relacionamento social, Mr. Paradise não faz com que ele seja hostil às regras civilizacionais e cristãs de ajudar ao próximo, pois tenta prestar socorro a Harry. Para assegurar sua própria segurança, Mr. Paradise forma mecanismos de defesa que operam como proteção de conflitos decorrentes da não adaptação à doença e, posteriormente, às relações sociais. O que torna a defesa do mundo externo no velho senhor um aspecto neurológico é a falta de humanidade. O’Connor, no final do conto, choca o leitor ao retratar a morte do menino e a constatação de que a mensagem deixada por Jesus Cristo de solidariedade ao próximo exercida por uma questão de responsabilidade cristã não está sendo fundamentada na sociedade contemporânea. Os relatos freudianos sobre “o primeiro e talvez o mais claro caso de uma religião monoteísta na história humana” (FREUD, 1997, p. 29) é destacado ao vincular a expansão imperialista e religiosa de Moisés e a necessidade de submissão dos povos a um único Deus. O ser humano, ao adquirir um caráter religioso fundado na crença de um Deus, vincula-se a ideia de uma entidade onipotente que foi materializada a partir da imagem de Moisés, sendo que os que crêem em um Deus tendem a fundamentos de humanização e a necessidade de tolerância e relação de mutualidade entre os homens e Deus. Assim, nota-se que Freud, em seu livro Moisés e o Monoteísmo (1997), observa como a mudança do mundo politeísta para o monoteísta levou a religião a ordenar e civilizar os homens a partir dos dogmas religiosos pregados por Moisés. Nesse contexto, o discurso narrativo em “The River” pode ser analisado sob a perspectiva do ser humano em busca da felicidade, advinda da satisfação individual. Freud enfatiza que a realidade é a fonte do sofrimento e, por isso, alguns indivíduos tendem a romper relações com ela. Harry tenta descobrir o caminho para a felicidade e imagina poder encontrá-lo no batismo, mais especificamente, nas

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profundas águas do rio. A teoria psicanalítica de Freud destaca a função da religião como conservadora da sociedade humana afirmando, pois, que esta se deve a uma defesa do indivíduo contra sofrimentos decorrentes de fatores externos. A religião, assim, oferece segurança e proteção mostrando o caminho para a aquisição do prazer. Conclui-se, assim, que Harry, por sentir um profundo desamparo familiar, busca satisfazer sua dependência afetiva e natural na relação com outras pessoas. Essa sensação de dependência é mencionada na teoria de Freud ao argumentar que: “Se ela perde o amor de outra pessoa de quem é dependente, deixa também de ser protegida de uma série de perigos” (FREUD, 1974, p. 34). Harry não tem o amor dos pais ficando assim vulnerável à presença de pessoas externas ao ambiente familiar. Bevel Summers mostra superioridade com o uso da linguagem religiosa simbólica. É a partir desse conceito que Freud desenvolve o processo de desenvolvimento do indivíduo que consiste no princípio do prazer e na busca da felicidade. Assim, em “The River”, explicita-se o simbolismo da linguagem teológica que pode ser interpretada de forma subjetiva, responsável por falhas na compreensão. A ausência de afeto em família e de espiritualidade e os distúrbios emocionais, advindos da vida moderna, conduzem a uma busca por superação das insatisfações na morte. A partir desses pontos abordados, percebe-se claramente que os dramas, tanto sociais quanto pessoais das personagens de O’Connor, nada mais são do que os reflexos de uma sociedade, resultados do fracasso da humanidade, da inabilidade de compreensão e de amor ao próximo. Dessa maneira, abrem-se abismos para que as personagens se tornem seres “grotescos”, ou seja, excêntricos em constante busca de felicidade e de sua própria descaracterização como homem e ser social.

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Referências BAKHTIN, Mikhail. O freudismo: um esboço crítico. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Perspectiva, 2009. CAMPOS, Maria Cristina Pimentel. As vozes sociais de Flannery O’Connor em “Good Country People”. In: ______. Literatura e Cultura: percursos críticos. Viçosa: Arka, 2010. p. 221-233. FOUCAULT, Michael. A ordem do discurso. 2. ed. São Paulo: Loyola, 1996. FREUD, Sigmund. O mal estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1974. FREUD, Sigmund. Moisés e o monoteísmo. Rio de Janeiro: Imago, 1997. FRÓES, Leonardo (Trad.). Flannery O’Connor: contos completos. São Paulo: Cosac Naify, 2008. GARCIA-ROZA, LuizA. Freud e o inconsciente. 7. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. HALL, C.; LINDZEY, G. A natureza da teoria da personalidade; A teoria psicanalítica de Freud; Teoria analítica de Jung; Teorias culturalistas: Adler, Fromm, Horney e Sullivan. In: ______. Teorias da personalidade. Tradução de Lauro Bretones. São Paulo: Edusp, 1973. JOHANSEN, Ruthann Knechel. The Narrative Secret of Flannery O’Connor: The Trickster as Interpreter. Tuscaloosa: The University of Alabama, 1994. JUNG, Carl G. O homem e seus símbolos. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. O’CONNOR, Flannery. A Good Man is Hard to Find and Other Stories. New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1983. RAMOS, Gustavo Adolfo. Angústia e sociedade na obra de Sigmund Freud. Campinas: Edunicamp, 2003. SOUZA, Adalberto de Oliveira. Crítica psicanalítica. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana. Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3. ed. Maringá: Eduem, 2009. p. 243-257. WILSON, Charles R.. Southern Religion(s). In: GRAY, R.; OWEN, R. A Companion to Literature and Culture of the American South. New York: Blackwell, 2007. p. 238-254.

Recebido em 16 de outubro de 2011 Aprovado em 21 de dezembro de 2011

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Mulheres protagonistas na literatura setecentista: reflexos nas traduções que chegaram ao Brasil Simone Cristina Mendonça UFPA

RESUMO: A literatura brasileira oitocentista apresenta uma variedade de personagens femininas memoráveis, de romances de sucesso, frutos da imaginação dos grandes autores. No entanto, mesmo antes da consagração do gênero romance em nosso país, já circulavam, nas mãos dos leitores, contos, novelas e histórias em prosa de ficção, traduzidos do Francês, trazendo aventuras e desventuras de mulheres. A Impressão Régia do Rio de Janeiro imprimiu algumas dessas histórias entre os anos de 1810 e 1822. Neste trabalho, voltaremos a atenção para a presença da mulher nas narrativas ficcionais publicadas nesse período, ressaltando os modelos e antimodelos de virtude femininos. Destaca-se a presença de personagens femininas resistentes às regras da moral, que nem sempre foram punidas nos desfechos. PALAVRAS-CHAVE: Romance brasileiro – Séculos XVIII e XIX. Personagem feminina – Séculos XVIII e XIX. Impressão Régia. ABSTRACT: Brazilian literature of the nineteenth-century presents a variety of memorable female characters in novels of success, great writers’ imagination products. However, even before the confirmation of the novel in our country, there were short stories, novels and stories in prose of fiction circulating in the hands of readers. They were translated from French, and brought women’s adventures and misadventures. The Impressão Régia do Rio de Janeiro printed some of these stories between the years 1810 and 1822. In this work, we will return our attention to the presence of women in fictional narratives published in this period, highlighting the

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anti-models and models of female virtue. There is the presence of female characters that were against to the rules of morality, which were not always punished the end. KEYWORDS: Brazilian Novel – 18th and 19th Centuries. Feminine Characters – 18th and 19th Centuries. Impressão Régia.

As personagens femininas dos romances românticos habitam no imaginário dos leitores dos clássicos da literatura brasileira, algumas vezes lembradas como modelos de moral e virtude, outras como mulheres que desafiaram as normas de conduta do século XIX, assumindo comportamentos nem sempre bem vistos pelos olhos dos costumes da época. Contrariando a opinião sobre o papel que deveriam assumir, pleiteando matrimônios com rapazes de colocação social mais elevada, negociando seus dotes ou mesmo trabalhando no meretrício, o fato é que, embora salvaguardadas por justificativas plausíveis, essas mulheres acabavam por ocupar lugares duvidosos do ponto de vista dos preceitos morais oitocentistas, ainda que momentaneamente. No entanto, antes mesmo de que os romancistas brasileiros concebessem essas personagens e suas desventuras, os leitores que moravam em nosso país já tinham conhecimento de histórias de mulheres virtuosas ou nem tão virtuosas. A leitura de tais histórias era possibilitada por meio da importação de romances europeus que aportavam no Rio de Janeiro, traduzidos ou em seus idiomas originais1. Romances, novelas, contos, prosas de ficção, enfim, já ocupavam as prateleiras dos comerciantes que lidavam com a venda de livros logo nos primeiros anos dos oitocentos. E devem ter alcançado sucesso junto

1 Sobre circulação de livros no Brasil no final do século XVIII e início do século XIX, vale a pena ler: Márcia Abreu, Os caminhos dos livros (2003); Leila Mezan Algranti, Livros de devoção, atos de censura: ensaios de história do livro e da leitura na América portuguesa (1750-1821) (2004); Luiz Carlos Villalta, Reformismo ilustrado e práticas de leitura: usos do livro na América portuguesa (1999).

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ao público leitor, tendo em vista que eram anunciados no único jornal disponível na época na Corte, a Gazeta do Rio de Janeiro, primeiro periódico impresso no Brasil, com circulação iniciada em 1808. Além dos títulos importados, havia a possibilidade de leitura de livros em prosa de ficção publicados na primeira tipografia legalmente instalada no Brasil, a Impressão Régia do Rio de Janeiro, inaugurada em 13 de maio de 1808, logo após a chegada de D. João e sua Corte na cidade. Destaca-se o caráter oficial da casa impressora, à qual foi atribuída primeiramente a função de imprimir os atos do governo e, depois, a tarefa de suprir a carência de livros didáticos para os estabelecimentos de ensino recém instalados2. Apesar desse caráter oficial, foram publicadas pela Impressão Régia do Rio de Janeiro obras de Belas-Letras, como textos de peças teatrais e livros de poesia. Além disso, a partir de 1810, imprimiram-se também narrativas ficcionais, traduzidas em sua maioria do Francês. Seguem os títulos nesse gênero (conforme ortografia da época), seguidos do ano em que foram publicados no Rio de Janeiro: O diabo coxo (1810); A filosofa por amor ou cartas de dois amantes apaixonados e virtuosos (1811); Historia de dois amantes ou o templo de Jatab (1811); Paulo e Virgínia historia fundada em factos (1811); Aventuras pasmosas do celebre Barão de Munkausen (1814); Historia da donzella Theodora (1815); Triste effeito de huma infidelidade (1815); O castigo da prostituição (1815) e As duas desafortunadas (1815)3 (SOUZA, 2007). No presente artigo, centraremos nossa atenção nas obras A filosofa por amor, Paulo e Virgínia e Historia da donzella Theodora.

2 Sobre o histórico da fundação da Impressão Régia do Rio de Janeiro, recomendo a leitura do capítulo introdutório das seguintes obras: CABRAL, Alfredo do Valle Cabral, Annaes da Imprensa Nacional do Rio de Janeiro 1808 a 1822 (1881; 1998), e de Ana Maria de Almeida Camargo e Rubens Borba Moraes, Bibliografia da Impressão Régia (1993). 3 Dos títulos listados, Historia da donzella Theodora e Aventuras pasmosas não foram traduzidos do Francês, tendo como idiomas de origem o Espanhol e o Inglês, respectivamente.

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Também nessas narrativas encontramos personagens femininas que podem ser tomadas como modelos e antimodelos de virtude, considerando-se o período em que foram publicadas. As histórias dessas personagens, incluindo o mau passo que eventualmente tenham dado, às vezes são encerradas com desfechos que indicavam um castigo, outras, terminam com um “final feliz”, seguindo uma linha de escritos com castigos para as personagens viciosas e recompensa para as virtuosas. Os discursos dos romancistas ingleses e franceses do séc. XVIII, período em que o gênero entrou em ascensão, expõem defesas ao romance apresentando estratégias para justificar o caráter moralizante do gênero e sua função de instruir os leitores, mesmo que fosse por meio de maus exemplos de comportamentos, pois prevaleciam os desfechos com a virtude recompensada e o vício punido4. Arrependimentos, da mesma forma, são presentes nos enredos, bem como atitudes extremas em nome dos bons costumes. Iniciemos tratando desse último caso, com um modelo de virtude, a personagem Virgínia, de Paulo e Virgínia, romance em dois tomos, de autoria de Jacques-Henri Bernardin de Saint Pierre, que, de acordo com Demougin (1994), foi publicado originalmente em 1788 “DEMOUGIN”, “Paulo e Virgínia”. Os protagonistas dessa história moravam com suas mães (Margarida e Madame de la Tour) e dois escravos (Domingos e Maria), em uma ilha pouco povoada, afastada de grandes centros, onde foram criados como irmãos. No entanto, eles se apaixonaram e tiveram de se separar porque, a certa altura, Virgínia foi intimada a morar com uma tia rica em Paris. Ao retornar para a ilha, o navio em que Virgínia estava passou por uma tempestade e

4 Acerca desses discursos, ver: Márcia Azevedo de Abreu, Os caminhos dos livros (2003); Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos, A formação do romance inglês: ensaios teóricos (2000) e Dez lições sobre o romance inglês do século XVIII (2002).

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ela não sobreviveu, pois, apesar dos apelos da tripulação, negou-se a se atirar no mar, temendo que, com o salto e o movimento da maré, ficasse parcialmente despida. Romance Paulo e Virgínia, de Bernardin de Saint Pierre, publicado na Impressão Régia do Rio de Janeiro em 1811.

Fonte: Biblioteca José e Guita Mindlin

Embora Virgínia tenha preferido a morte à exposição parcial de sua nudez, o comportamento e a história de vida das mães dos protagonistas são apresentados de forma a incitar uma reflexão acerca dos preceitos morais e da apropriação dos mesmos, aliada a uma crítica aos valores aristocráticos, dentre eles a impossibilidade de união entre pessoas que não fizessem parte de uma mesma posição social.

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Michael Mckeon ao tecer considerações sobre personagens de romances ingleses do século XVIII, nos auxilia a compreender melhor essa apropriação. Para o autor, as mudanças sociais ocorridas na Inglaterra no período, como a ascensão de uma classe burguesa que procurava se legitimar, desencadearam novas formas de concepção da moral, redefinindo, então, virtude como uma característica individual e conquistada a partir de ações, independente de honras familiares e títulos aristocráticos (VASCONCELOS, 2002, p. 15). O conceito de virtude, utilizado pelos romancistas ingleses, também foi empregado nas obras francesas do gênero, como verificamos em Paulo e Virgínia, por exemplo, na caracterização das mães dos protagonistas. A situação civil de Madame de La Tour, viúva, parece aceitável, embora ela fosse censurada por parte de sua tia residente em Paris pelo fato de ter contraído um matrimônio com um homem de condição social inferior, realizado contra a vontade de sua família. O leitor toma conhecimento da opinião da tia francesa por meio de uma carta que esta remeteu ao governador da ilha, na tentativa de difamar a honra de Mme. de la Tour. Nesse momento da leitura, em que o passado da mãe de Virgínia se tornou público e foi posto sob suspeita, um impasse é colocado pelo narrador: de um lado, está uma senhora francesa influente e rica, em defesa dos valores aristocráticos; e, do outro, uma mulher deserdada, totalmente sem posses, que se casara contra a vontade de seus familiares, mas que mantinha uma boa conduta durante sua estadia na ilha. Embora o governador da ilha tivesse optado por acatar o julgamento da primeira, o leitor é discretamente incitado pelo narrador a criar grande simpatia por essa última. Quanto à Margarida, mãe solteira, enganada por um homem que a abandonou grávida, o julgamento moral pelo viés aristocrático se torna ainda mais severo e isso é perceptível no modo indiferente como o mesmo governador da ilha a tratava. Todavia, o leitor também é

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levado a ter grande consideração por essa personagem, pois, com humildade, a mãe de Paulo mantinha uma vida honesta e havia acolhido e auxiliado Mme. de La Tour nos momentos mais difíceis. Além disso, mesmo com origens sociais diferentes, essas duas mulheres se tornaram amigas e, por extensão, seus filhos cultivaram grande simpatia um pelo outro. Quando se tornaram jovens, Paulo e Virgínia, se apaixonaram, fato que retoma a reflexão acerca da distinção de posições sociais, sobretudo no quesito matrimonial. O amor entre os jovens, de certa forma, já era previsto por suas mães, mas a reação delas quanto à possível união se deu de forma diversa. Madame de La Tour temia um casamento entre Paulo e Virgínia, relembrando as dificuldades que enfrentara ao escolher para si um esposo sem condições financeiras para proporcionar-lhe um vida digna. Pensava no futuro de Virgínia, sem grandes perspectivas, já que esta, da mesma forma como ocorreu consigo, nada receberia dos parentes que se encontravam na França. Margarida, por sua vez, nada temia em relação a essa união, cuja ideia de concretização lhe agradava. Contudo, a mãe de Paulo, de origem pobre, tomou conhecimento do abismo social que separava seu filho de Virgínia na ocasião em que esta organizava sua partida para morar junto da tia francesa. Os preparativos para a viagem incluíram a compra de roupas, tecidos e acessórios, com o dinheiro provindo da parenta distante, uma vez que a jovem não dispunha de vestimenta adequada para se apresentar na Corte francesa. Mesmo sabendo da necessidade dessa viagem, Margarida não via empecilhos para uma união futura entre seu filho e Virgínia, mas, na ocasião desses preparativos e da troca de roupa da jovem, a visão de Virgínia vestida e ornada como uma senhorita da Corte causou tamanho impacto em Margarida, que esta, esquecendo-se de quem era a menina que criara quase como filha até o momento anterior ao toucador, convenceu-se de que o enlace

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seria impossível. Foi preciso que Virgínia mudasse de trajes, ou seja, alterasse apenas sua aparência, para que Margarida percebesse o problema de um possível casamento entre os protagonistas. A estadia de Virgínia na Europa, de acordo com as cartas que esta remeteu à mãe, mostrou-se muito produtiva na formação da protagonista em relação aos estudos. E a notícia dessas conquistas da cultura letrada por parte da moça reafirmava a diferença entre ela e Paulo. Se antes ambos eram analfabetos, após a viagem encontravam-se a uma distância intelectual que parecia intransponível, apesar dos esforços de Paulo em aprender a ler a partir das lições que tomava com um senhor mais velho. Entretanto, antes de retornar da Europa, saudosa de sua vida simples, a personagem feminina declarou em carta à sua mãe que pretendia esquecer-se da vida na Corte e retomar as atividades cotidianas que fazia antes da partida. E, verdadeiramente, o amor entre os protagonistas se manteve até os últimos momentos de vida de Virgínia que, conformada com o fato de que deveria morrer afogada se quisesse se manter fiel aos seus princípios morais, nada fez para mudar seu destino. O final é triste e decepciona um pouco o leitor que, provavelmente torcia pela união dos jovens, mas satisfaz preceitos morais bem vistos na época. Outro exemplo positivo do ponto de vista da moral é Historia da donzella Theodora, em que se trata da sua grande formosura, e sabedoria, folheto de poucas páginas, cujos dados editoriais apontam para uma edição original em 1540, escrita por Juana Milian (SILVA, 1859, v. II, p. 30-31; v. IX, p. 35). Tal título, de grande sucesso em Portugal, foi publicado nesse país em 1712, numa tradução feita por Carlos Ferreira Lisbonense, e, somente no período selecionado em nosso recorte (com limite até o ano de 1822), foi reeditado no mínimo sete vezes (RODRIGES, 1992). Os comentários podem ser iniciados a começar pelo título, uma vez que a protagonista, apesar de sua

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“formosura”, mantinha-se “donzella”, condição em que permaneceu até o desfecho desta história, atestando sua “sabedoria”. Duas edições de História da donzella Theodora, publicadas na Impressão Régia do Rio de Janeiro, em 1815; e na Impressão Régia de Lisboa, em 1814.

Fonte: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

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Biblioteca da Ajuda/Palácio Nacional da Ajuda/Lisboa

Esse livro conta a história de Theodora, uma escrava branca, que servia um mercador falido. Este, para saldar as suas dívidas, sugeriu que ela fosse vendida para um rei, de nome Miramolim. Como o preço exigido pela venda da escrava era muito alto, o rei decidiu testar os conhecimentos da mesma com questões sobre muitos temas, feitas por três sábios contratados, às quais a donzela respondeu corretamente. Impressionado com a inteligência de Theodora, o rei não só pagou o valor estipulado ao mercador, como lhe devolveu a escrava, presenteando-a, ainda, com um vestido.

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Note-se que, não obstante sua condição de escrava, a protagonista havia se dedicado aos estudos, desenvolvendo uma esperteza invejável, que, no desafio lançado pelo rei, superou a inteligência de três sábios. Contudo, Theodora não se envaideceu, não tomou para si as glórias desse feito, nem se voltou contra o mercador que havia decidido vendê-la, mantendo-se humilde e submissa. Embora tivesse recebido uma alta quantia em dinheiro, por seus próprios méritos, além de um vestido de brocado, não se deixou levar pela ambição ou pela vaidade e foi também fiel e leal ao seu senhor, conformada com sua condição de escrava. Com menor conformismo diante da vida e, sobretudo, dos obstáculos impostos ante a realização da felicidade, Adelaida, a protagonista do romance epistolar A filosofa por amor, talvez já não pudesse ser considerada uma personagem tão exemplar, uma vez que, por amor, se colocou contra a opinião de seus pais. A filósofa por amor ou cartas de dois amantes apaixonados, e virtuosos, teve sua primeira edição em Língua Portuguesa em 1806, traduzida por Luís Caetano de Campos5. A edição traz um prólogo, de autoria não identificada, que se inicia com uma exaltação do gênero romance, no qual há um breve histórico, que relaciona desde as manifestações romanescas de cavalaria, até chegar às publicações francesas, com especial atenção para as epistolares, caso em que se encaixa o romance em questão. O elogio para esse tipo de escrita é feito nos seguintes termos do “Prólogo”

5 Infelizmente, não obtivemos dados sobre a edição original desse romance. Gonçalves Rodrigues (1992), em estudo sobre a tradução em Portugal, considerou esse romance como tendo sido escrito pelo francês Retif de la Bretonne. De acordo com o pesquisador, Retif de la Bretonne, para compor esse romance, teria adaptado a primeira parte de um livro intitulado Julie ou La Nouvelle Heloise, de Jean-Jacques Rouseau, publicado pela primeira vez em Paris, no ano de 1766. A hipótese de Gonçalves Rodrigues, contudo, não foi confirmada.

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de A filosofa por amor ou cartas de dous amantes apaixonados e virtuosos: “Este methodo [epistolar], mais variado, offerece de huma maneira mais viva ao Leitor os differentes acontecimentos que se lhe referem” (A FILÓSOFA, 1811, p. 4)6. A filosofa por amor ou cartas de dous amantes apaixonados e virtuosos, romance de autoria não identificada, publicado pela Impressão Régia do Rio de Janeiro, em 1811.

Fonte: Biblioteca da Universidade Católica João Paulo II/Lisboa

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Manteremos nas citações desse romance a ortografia e a pontuação presentes na edição consultada.

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A história de Adelaida dialoga com a de Paulo e Virgínia na medida em que mantém características de valorização da moral e de crítica social. Esse último tema volta à baila em A filósofa por amor e, nesse romance, as referências ao comportamento aristocrático também apontam para os limites sociais que impunham obstáculos aos relacionamentos amorosos entre nobres e plebeus. Com maior desenvolvimento da discussão acerca desse assunto, da mesma forma, é reforçada a defesa da virtude individual. Em resumo, essa é a história de uma estudante, filha de pais muito ricos, que se apaixonou por Durval, um homem sem títulos de nobreza, filho de lavradores. Aos olhos do narrador, conforme já havia sido declarado no prólogo, a união desses dois jovens apaixonados seria algo aceitável e totalmente consoante aos princípios da natureza. Entretanto, no enredo, foram colocados muitos empecilhos ao casal de origens sociais distintas, justificados no prólogo pelo fato de que “a natureza, porém perdeo muito dos seus direitos, a sua voz só falla aos corações, e he mui geral, envergonharem-se de adornar a sua boca com ella” (A FILÓSOFA, 1811, p. 7). A possibilidade de um relacionamento entre pessoas de posições sociais diferentes feriria convenções vigentes no Antigo Regime, que valorizavam as demarcações. A oposição presente no enredo entre os desejos e comportamentos naturais, ligados ao privado e as convenções culturais aristocráticas, ligadas ao público, envolvia desde regras de cortesia e modos de como vestir-se, até normas de comportamento, direcionadas para a constituição da civilidade (SENNETT, 1998, p. 117-120). O principal entrave para o casamento das personagens principais, Durval e Adelaida, foi revelado, logo no início, pelo próprio Durval, que reconhecia seu lugar na sociedade parisiense, como plebeu e filho de um lavrador: “jamais vossos pais consentirão na nossa união:

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porque eu não sou nobre, nem assas rico para o poder ser” (A FILÓSOFA, 1811, t. I, p. 14). Mas a falta de títulos de nobreza ou de uma genealogia de prestígio não impedia a jovem rica de perceber no caráter de seu amante qualidades pessoais para ela mais valiosas: “Convence-te, jovem adorável, ainda que mui tímido, que para merecer a tua Adelaida bastão as tuas virtudes” (A FILÓSOFA, 1811, t. I, p. 15). Ao elogiar as virtudes de seu amado, Adelaida se mantém na linha de defesa da moral, conceito, de certa forma, em modificação, a partir de valores burgueses, como analisou Michael Mckeon. No entanto, ainda que elencadas todas as virtudes de Durval, para os pais de Adelaida, nobres habitantes de Paris, o casamento era inaceitável, isso para desespero da jovem protagonista que, na luta por seus objetivos, se posicionava contra a opinião dos progenitores. A desobediência de Adelaida em relação às ordens paternas se fez ainda maior quando ela descobriu que sua mãe a enganara, contando que Durval já teria se casado com outra mulher. A severa reação da Sra. de Saint-Fray, ao ser desmascarada, nos informa sobre o comportamento que Adelaida deveria assumir, na perspectiva dos pais: Tu não tens de modo algum o direito de dispor da tua pessoa, porque este direito pertence aos authores da tua existência. O teu primeiro dever he obedecer-lhes; apartar-se da sua obediência he hum crime, e todo crime destroe a virtude (A FILÓSOFA, 1811, t. II, p. 19).

Os pais desejavam que a protagonista se casasse com um outro pretendente, também nobre, com o qual já negociavam. Assim o matrimônio seria dado por contratos e arranjos entre as famílias, de modo que seus nomes e suas fortunas fossem preservados e valorizados. A intenção de Adelaida, então, de se casar com um plebeu, inspirada pelo

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amor, soava como inconcebível aos pais, que a julgavam má, insolente e desonrada. Ainda assim, ela questionou a obrigação de ser submissa, em cartas dirigidas à mãe: Não seria melhor dizer huma filha deve amar a virtude, e tudo sacrificar a ella? Este principio teria sido mais evidente, e conforme á vossa própria opinião sobre a nobreza, visto que a tratais de preoccupação, e ao desejo de ser nobre, de paixão tão violenta como a do amor. [...] Entende-se a authoridade de hum pai até violentar huma filha, fazendo-a renunciar à felicidade, e suffocar as virtudes? (A FILÓSOFA, 1811, t. II, p. 14; p. 66).

As atitudes da protagonista revelam outra característica do romance moderno, inserido numa sociedade burguesa, na qual as relações familiares foram abaladas pela diminuição do peso da autoridade paterna, enquanto os jovens filhos, retratados diante de decisões importantes, como o amor e a carreira, ganharam espaço, apontando para o rompimento de algumas tradições aristocráticas (HUNTER, 1988, p. 21). Apesar das disputas com os pais e do embate que se dá entre preceitos aristocráticos e vontades individuais, Adelaida consegue alcançar seus objetivos quando o pai, acometido por grave doença e já acamado, cede aos pedidos da filha e convoca Durval para conceder-lhe a mão de Adelaida. O romance, assim, é encerrado com o matrimônio dos protagonistas. O romance em questão, devido principalmente ao comportamento rebelde de Adelaida diante de seus pais, quase não foi impresso em Portugal, onde a aprovação para impressão e circulação só foi conseguida após acalorados debates entre os censores (ABREU, 2005; 2008). Isso porque as questões relativas à moral e à virtude, ainda

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que permeadas de alertas sobre as mudanças pelas quais estavam passando esses conceitos no século XVIII, despertavam polêmicas na aprovação dos romances pelos órgãos da censura. Felizmente, o livro foi aprovado e pudemos tomar conhecimento da história dessa estudante, fruto da imaginação de um autor desconhecido. Adelaida, Mme. de La Tour e Margarida, então, são exemplos de personagens femininas de livros em prosa de ficção que desafiaram a vontade de seus familiares, as convenções sociais e a opinião da maioria das pessoas com que conviviam, movidas pelo desejo de concretizar uma história de amor. Ainda que nem sempre bem sucedidas, essas histórias foram vividas e as mulheres souberam lidar dignamente com os julgamentos que receberam. Mais comedidas, Virgínia e Theodora deixaram de experimentar situações que ultrapassassem os limites do comportamento que delas era esperado e que, talvez, lhes trouxessem realizações pessoais. Mesmo assim, as histórias dessas personagens foram merecedoras do apreço do público leitor luso-brasileiro e conquistaram um lugar privilegiado no imaginário dos leitores do século XIX não alcançado pelas personagens acima comentadas. Isso ocorreu, sobretudo, com Virgínia, que conquistou o público brasileiro já de início e, tanto agradou os leitores que habitavam o Rio de Janeiro da época, que logo teve sua história contada em uma peça teatral, como nos informa o anúncio do Teatro São João, em 1822: “Paulo e Virgínia. Adornado de vestuário rico, e proprio ao caracter, onde além dos engraçados Bailaveis de que he composta, tem a Scena do Naufragio, completamente executada com todo o maquinismo necessário” (DIÁRIO, 09/11/1822). É de se notar, então que foram as personagens mais virtuosas, exemplos de comportamento moral feminino bem vistos naquele tempo, que maior sucesso tiveram entre os leitores, não somente na

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época em que foram publicadas, mas por longo período do séc. XIX. Tendo em vista os preceitos morais vigentes e a presença da censura aos materiais impressos, é possível mesmo questionar a presença daquelas mulheres que se colocaram contra regras a elas impostas pela sociedade, como, por exemplo, o casamento por arranjos familiares e a fim de manter ou aumentar o patrimônio. Em busca de independência em relação aos pais, nem sempre conseguiram uma vida agradável, como foi o caso de Madame de La Tour, mas se mostraram detentoras de personalidades fortes, cuja construção por parte dos autores setecentistas merece destaque. Contudo, foram as personagens submissas e valorosas que sobreviveram ao tempo.

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Recebido em 17 de agosto de 2011 Aprovado em 2 de fevereiro de 2012

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REVISTA SEMESTRAL DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

N. 22, 2012/2 - ISSN 1519-0544

DOSSIÊ: A TÓPICA NA LITERATURA (DA ANTIGUIDADE AO SÉCULO XVIII)

Vitória 2012

SUMÁRIO

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197 Dossiê A tópica na Literatura (da Antiguidade ao século XVIII) Eduardo Sinkevisque 199 Tratado político (1715), de Sebastião da Rocha Pita: galeria de tópicas Elaine Cristine Sartorelli 255 Tópica e loci communes no renascimento Livia Lindóia Paes Barreto 277 O mito de Orfeu no prefácio do livro II do De Raptu Proserpinae

Marcello Moreira 293 Caramurus da Bahia: A tópica natio e procedimentos descritivos na composição de retratos satíricos do corpus poético atribuído a Gregório de Matos e Guerra

355 Clipe Ana Isabel Correia Martins Nair de Nazaré Castro Soares 357 Um amor feliz que nasce no género feminino Ana Paula Cantarelli Rosani Úrsula Ketzer Umbach 379 a estrutura narrativa e o contexto de produção do romance Pedro Páramo, de Juan Rulfo Jacques Fux Vitor Cei Daiane Carneiro 395 O real e o paradoxo em Auschwitz

EDITORIAL

O topos, tanto na acepção de padrão retórico argumentativo como na de lugar-comum, é um dos pontos nodais na construção da literatura ocidental. Aristóteles foi o primeiro a ocupar-se deles não só nas Topica como na Arte Retórica: nas primeiras, lista mais de 300 topoi; na segunda, divide-os em vinte e oito tipos gerais. Na tradição romana, passando pelo Auctor ad Herennium e por Cícero, desenvolve-se uma lista de loci organizada menos pela sua estrutura e mais pelo seu conteúdo: os loci communes como expressões fixas apropriadas a certas situações apontam para uma mescla do estrutural e do conteúdo na apropriação romana do topos grego. Ambas essas abordagens do topos se mantiveram vivas através da Idade Média até o século XVIII: em Boécio, a divisão dos topoi por sua estrutura é evidente; na jurisprudência, na epistolografia e em outras artes, as listas de loci communes pelo conteúdo foram a regra durante o medievo e Idade Moderna.

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O declínio da retórica a partir do século XVIII marcou o desprestígio do topos como recurso retórico e estilístico até o século XX, momento em que Ernst Robert Curtius reestabeleceu o topos como uma categoria analítica importante e um instrumento de interesse na interpretação da literatura, em especial da literatura pré-oitocento. O renovado interesse no estudo dos topoi no século XX não se extinguiu no século XXI – novas formas de estudar os lugarescomuns, exemplificadas pela nova retórica ou pela abordagem ideológica de McGee, mostram a fertilidade do conceito para o pensamento crítico. Com este propósito apresentamos a chamada de publicação para o dossiê A tópica na literatura (da Antiguidade ao século XVIII), da revista Contexto n. 22, que conta ainda com seção de temas variados (Clipe).

Leni Ribeiro Leite Paulo Roberto Sodré

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Dossiê: A tópica na literatura (da Antiguidade ao século XVIII)

Tratado político (1715), de Sebastião da Rocha Pita: galeria de tópicas Eduardo Sinkevisque UFRGS

RESUMO: O artigo se ocupa em descrever as tópicas de gênero demonstrativodeliberativo do Tratado político (1715), de Sebastião da Rocha Pita, interpretando o sentido delas, segundo modelos e padrões teológico-político-retóricos de sua invenção. PALAVRAS-CHAVE: Literatura e História brasileira – Século XVIII. Sebastião da Rocha Pita – Tratado político. Tratado político – Retórica. ABSTRACT: The article deals with describing the demonstrative- deliberative topics of the Tratado político (1715) by Sebastião da Rocha Pita, interpreting their meaning, according to theological-political-rhetoric models and patterns of his invention. KEYWORDS: Brazilian Literature and History – XVIII Century. Sebastião da Rocha Pita – Tratado político. Tratado político – Rhetoric.

Aqui é que a arte daquele que fala aparece [...]: exaltar as coisas pequenas, avivar as lânguidas, fazer romper as do solo, dar àquelas coisas que não são tristes nem penosas pena e tristeza. Pois quais seriam a virtude e a arte daquele que fala ou escreve se as coisas se mostrassem, dignas, alegres, tristes e grandes

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por sua própria natureza, e não por arte e engenho desse mesmo que fala ou escreve? Robortelo Librum Aristoteles. Da Arte Poetica Explicationes

O propósito deste artigo é o de apresentar as tópicas utilizadas por Sebastião da Rocha Pita, na composição do Tratado político (1715), definindo o sentido delas em conformidade aos padrões e modelos teológico-político-retóricos de sua invenção. Este trabalho, reescrita do segundo capítulo de minha Dissertação de Mestrado (SINKEVISQUE, 2000), é feito a partir da leitura dos manuscritos tombados na Biblioteca da Universidade de Coimbra (MSS-30) e na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (MSS-4,1,23), que cotejei para transcrever e estabelecer o texto ao propor edição acompanhada de estudo introdutório, índices e notas. Consultei também a edição do Tratado preparada por Heitor Martins (1972), mas faço as referências a partir do texto que estabeleci1. As notas, fundamentais na economia de meu texto, a respeito de personagens e passagens históricas assim como de aspectos mitológicos, bíblicos e geográficos, foram confeccionadas a partir da The New Encyclopaedia Britannica (1993), da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (s.d.), da Bíblia de Jerusalém (1995) e da consulta às obras de Junito de Souza Brandão (1992; 1990). Penso que, no Tratado político, as citações, alusões etc. dessas personagens e aspectos, de que faço menção, funcionam também como tópicas, argumentos, principalmente como exempla, mais do que como exibição de erudição.

A edição do Tratado Político preparada por mim, segundo volume da minha Dissertação de Mestrado, encontra-se no prelo da Edusp.

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Para leitores contemporâneos a Rocha Pita, talvez, conhecimento partilhado, muitas vezes evidente. Fazer essas notas, hoje, pode amplificar o que o letrado condensa. O Tratado político é uma prosa histórica imitativo-emuladora, um desenho, um retrato que tem no primeiro parágrafo de cada um de seus três discursos argumentos correspondentes a eles. A partir dos outros parágrafos, pintam-se quadros em que as tópicas são demonstradas com ampla e exaustiva exemplificação de casos particulares narrados e descritos de maneira ecfrásica. A ecfrase é, além de um gênero poético descritivo, anterior a Filóstrato, um procedimento elocutivo geral. Entendida como descriptio, é um expediente retórico utilizado na descrição/evidenciação de tópicas como as de lugar, pessoa, físico, ações, caráter etc. Seu uso, amplifica o discurso, podendo ser entendido como modo instrutivo de ornar ou adornar o texto, na articulação do docere com o delectare. Escrito em oitava, cuja letra, larga, possui características que remetem a um tipo de grafia dos séculos XVII e XVIII, o artefato recebeu, ainda, abreviaturas de palavras, como é o caso do item lexical “que”, cuja presença é verificada desde o século XVI e sobreviveu, ao que se saiba, até os séculos XVIII-XIX. Há inúmeras junções de palavras e letras, inadmissíveis na grafia atual, bem como separações destas, no corpo do texto. Havendo, também, trechos em que há lacunas e outros que foram reescritos pelos bibliotecários de Coimbra. A hipótese é que – por ser o texto um tratado político e, por ser lugar comum tanto em Rocha Pita, quanto nos papéis volantes e encadernados do Seiscentos e Setecentos haver a presença da tópica do “remédio”, aplicada à metáfora do corpo, quando se faz referência ao “corpo político” em ocasiões em que é necessário deliberar sobre a res publica – o letrado ministra, ao fazer história, todo um repertório de “remédios” para a boa “saúde” do reino. As tópicas descritas e analisadas

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aqui funcionam como elenco de conselhos administrados nos negócios públicos e pelo governante, a exemplo do que ocorre em tantos livros tidos como “espelho de príncipes”. É prosa considerada assim, porque especular, “no isomorfismo corpo/Estado, como uma relação especular em que o micro alegoriza o macro” (HANSEN, 1992, p. 20). A organização do Tratado é feita em três partes distintas: “Dedicatória”, “Prólogo” e “Discursos”, ao longo de 2120 linhas, em um total de 137 páginas. Os “Discursos”, por sua vez, se subdividem em três, ou seja, “Discurso Primeiro”, “Discurso Segundo” e “Discurso Terceiro”. Cada um deles é composto por uma parte nomeada, pelo letrado, de “Argumento”, e outra que é o “Discurso” propriamente dito. Os “Argumentos” constituem-se como parágrafos únicos e iniciais dos “Discursos” e apresentam uma margem reduzida em relação ao restante do texto, o que lhes confere um destaque visual. Eles são uma tábua das matérias a serem abordadas e indicam o modo como se apresentará a narração, pois uma vez estabelecida uma ordem de matérias no chamado “Argumento”, ela será facilmente reconhecida ao longo do texto. Dentre as matérias contidas nos “argumentos”, destacam-se algumas, as quais serão utilizadas pelo narrador como cerne das questões que se propõe para confecção do Tratado. Essas matérias podem ser chamadas de tópicas (topoi), mesmo esse conceito podendo ser aplicado às outras, e ainda a várias máximas políticas, tropos e figuras de linguagem, como metáforas, metonímias, hipérboles e eufemismos, entre outros expedientes do fazer textual, identificados no Tratado. Os topoi são esquemas de argumentação no ato da produção do discurso. Ocupam a invenção-disposição de textos. Modalizam o discurso conforme o decoro de seu gênero. No caso, trata-se de topoi de gênero demonstrativodeliberativo por se tratar de uma prosa histórica, um tratado político, espelho de príncipes. Segundo afirma João Adolfo Hansen, ao ler a poesia atribuída a Gregório de Matos,

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como representação, os topoi modelizam os discursos locais conforme regras do decoro […]. Simultaneamente fazem-no como avaliação, ou encenação do julgamento da persona, refratando-se as tópicas segundo padrões institucionais do século XVII, como a hierarquia, o código de honra, o direito canônico, a ortodoxia religiosa etc. (HANSEN, 1989, p. 309).

O texto tem uma folha de rosto, não numerada, em que constam o título, subtítulo e a quem é oferecido, e, em seu verso, por quem é composto. Na sequência são apresentados a “Dedicatória”, o “Prólogo” e os “Discursos”. A “Dedicatória” vai da linha 17 a 109 (p. 1 a 6), contendo quatro parágrafos, que desenvolvem tópicas de modéstia e encômio, sendo que o primeiro (linhas 19-52) se inscreve no sentido de pedir proteção e amparo ao Senhor D. Pedro Antônio de Noronha2. Sebastião da Rocha Pita afirma não competir no talento com nenhum dos grandes “escritores” que o antecederam, em uma demonstração de humildade, mas se igualar na proteção recebida, solicitando para os seus escritos a sombra da “excelentíssima” pessoa do conde de Vila Verde. Traz à memória ocasiões em que autores antigos procuraram refúgio em heróis, como Virgílio3, que buscou o favor de Augusto4,

Trata-se do primeiro marquês de Angeja, segundo conde de Vila Verde, mordomo-mor da princesa do Estado do Brasil, vice-rei da Índia de 1692 a 1699, mestre de campo do exército que ocupou Madri em 1706, comandante do exército do Alentejo em 1710, terceiro vice-rei do Estado do Brasil (1714-1718).

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A citação de Virgílio aponta Públio Virgílio Marrão, poeta latino que nasceu em Andes, como uma das auctoritates de Rocha Pita. Embora o discurso em questão seja de gênero histórico, temse um pensamento de comparação motivado pelo fato de que Virgílio tenha sido favorecido por Mecenas e Pita estar pedindo amparo para sua escrita ao vice-rei.

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4 Gaius Julius Caesar Octavianus (63-14 a.C.). Primeiro imperador romano. O letrado se refere a Augusto ser tido como protetor das artes e das letras, favorecendo historiadores e poetas como Tito Lívio, Horácio, Ovídio e o mencionado Virgílio, auctoritates de Rocha Pita.

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e Plínio5, o de Trajano6. Louva as ações de D. Pedro Antônio de Noronha, atribuindo ao capitão maior valor do que tiveram Hércules Líbico7 e Hércules Tebano8. O segundo parágrafo (l. 53-78), por sua vez, afirma que os motivos de dedicar o tratado ao vice-rei residem em sua origem nobre. Já o terceiro (l. 79-93), por outro lado, é um pedido de desculpas e uma justificativa. O letrado adverte que, caso o capitão de mar e terra, a quem dedica o tratado, venha a julgar excessivo o texto apresentado, lembre-se de que “nos mapas cabem imensas zonas e que um membro só basta para representar a grandeza de um só corpo” – em uma nítida referência à representação de monarquia, sendo o rei a cabeça (membro) e os súditos, o corpo – tornando-se justificável, em pequeno espaço, narrar tamanha matéria. Provavelmente está citando velha anedota contada por Tesauro, por exemplo, sobre o pintor Timantes, engenhosíssimo. Tinha que pintar um gigante e fez só o dedão do pé, mais alto que as colunas de um templo. Com isso conseguiu sugerir a altura enorme do monstro, sendo muito aplaudido. O texto de Pita parece paráfrase de um trecho que encontrei na edição espanhola. Cito a passagem para cotejo:

5 Plínio, o Moço. (61 ou 62-c. 113). “Escritor” romano. Nasceu em Como. Amigo de Trajano. Autor de Panegírico de Trajano. Plínio é mencionado ao lado de Virgílio também como uma das auctoritates de Rocha Pita. Por um lado tem-se uma epopeia como modelo e por outro, uma história.

Marco Úlpio Trajano, estabeleceu estreitas ligações com Plínio, o Moço, com quem trocou correspondência acerca dos cristãos. Seu nome ficou imortalizado na famosa coluna de Trajano, que mandou construir e erigir em 113 d.C.

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7 Hércules Líbico. O Mel-kart dos fenícios, ao qual a lenda atribui a façanha de ter aberto o Estreito de Gibraltar, dando assim comunicação ao mediterrâneo com o oceano. Para comemorar este feito erigiu duas colunas, uma do lado da África e outra do da Europa.

Era costume dos povos antigos, gentílicos, pagãos, não cristãos, atribuírem o nome Hércules a divindades, segundo o local em que habitavam. Assim, Hércules Tebano é o filho de Júpiter e Alcmena, correspondendo ao herói dos doze trabalhos.

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Compuestos de Agudeza ARCHETIPA, y VOCAL son aquellos symbolos, los quales com una palabrilla figurada demuestran com tal destreza el concepto, que la mayor parte se lee en el animo de quien la dice, y del que la oye: teniendo esta agudeza Laconica tal virtud, que alguna vez com un solo Mote, te pinta en el oìdo un entero Entimema com brevedad; como Timante pintando en pequeña tablill. El Gran Ciclope Petronio (TESAURO, 1741, p. 33).

E finalmente, o quarto parágrafo (l. 94-109) atualiza a tópica antiga da humildade, como modéstia afetada. Rocha Pita se coloca na possibilidade de ser indigno de oferecer tão sublime obra a tão venerado capitão. No final da dedicatória, encontram-se a data e a assinatura. O “Prólogo” contém dois parágrafos e se inicia na linha 110, terminando na linha 167 (p. 7 a 10). No primeiro parágrafo (l. 111-151), são apresentadas as razões que levaram à escrita do tratado, com a finalidade de se fazer a memória dos princípios e fins das antigas monarquias, bem como os objetivos do texto e o modo como o letrado vai dispor a matéria. Assim, Sebastião da Rocha Pita indica dez tópicas que orientarão sua prática. São elas o passado, as mudanças do tempo, as da fortuna, os estrondos marciais, as pretensões das coroas, o temor do aumento das monarquias, o ciúme do poder dos vizinhos, as políticas dos Estados, os interesses das Repúblicas e a comoção geral que introduziram novas e várias cenas no teatro de Europa9. Previamente, é dito que objetiva ajuizar nos primeiros dois “Discursos das coisas presentes pelo exemplo das passadas” e discorrer, no terceiro e último, sobre o estado

Referir-se ao mundo como “teatro” é lugar comum nos séculos XVI, XVII e XVIII. Trata-se de uma tópica muito explorada tanto na poesia como na história.

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em que se achavam os negócios militares e políticos no tempo em que estava escrevendo o texto. Desse modo, intenta ponderar motivos, sem indagar maiores circunstâncias, nos seus dizeres. Enquanto que, no segundo e derradeiro parágrafo do “Prólogo” (l. 152-167), encontra-se uma justificativa do risco de causar fastio ao marquês de Angeja, em virtude de haver muitos exemplos, à semelhança de muitos casos idênticos. Rocha Pita enuncia que fará a exposição de evento e ações desde o princípio do mundo até o tempo presente, ou seja, in ordo naturalis, disposição decorosa ao gênero histórico verificável no texto. Por sua vez, o “Discurso Primeiro” começa na linha 168 e termina na linha 724 (p. 11 a 46). A quantidade de parágrafos totaliza dezoito. Em linhas gerais, organiza-se em favor da ideia geral de que os homens construíram reinos, de tudo quiseram se apoderar e viram sua ruína devido à sua ambição e falta de fundamentação na religião católica. O texto defende que para cada porção da terra é necessário haver governantes próprios com limites para seus domínios, visando o equilíbrio e conservação do mundo. O primeiro parágrafo (l. 170-182) é o “Argumento” do “Discurso Primeiro” dividido em quatro matérias, que, neste caso, são conceituadas tópicas. A primeira delas (l. 170-175) cita a vaidade dos homens em erguer reinos e unir monarquias que dificilmente se conservariam juntas e nem permaneceriam em excessiva grandeza, aparecendo no decorrer do primeiro “Discurso Primeiro” por sete vezes. A segunda (l. 175-176) é incluída no corpo do texto duas vezes e se refere à mudança e à variedade das monarquias. A terceira (l. 176-180) afirma que um homem não basta para o governo de tantas porções do mundo quantas abraça sua ambição, sendo mobilizada em oito oportunidades no decorrer do “Discurso Primeiro”. A quarta, caracterizada como sendo a tópica do discurso primeiro (l. 180-182), faz referência à ideia de que só no equilíbrio das potências dos reinos pode ser conservado o mundo, sendo que esta possui maior força e importância,

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visto que é o cerne do “Discurso Primeiro” e Sebastião da Rocha Pita a utiliza por dez vezes, embora trate das outras três tópicas de forma articulada com a última, no andamento do “Discurso Primeiro”. No segundo parágrafo (l. 183-218) o letrado trata da ambição e vaidade dos homens (primeira tópica), descrevendo o princípio do mundo, com seus alimentos, edificações e a ambição, propriamente dita, fazendo referências às primeiras monarquias das antigas civilizações de Babilônia, Tróia, Roma e Egito. O terceiro parágrafo (l. 219-244) inicia-se em continuação ao anterior, discorrendo sobre ações que visavam o agrado e o triunfo despendidos aos governantes, e que, com o passar do tempo, tornaram-se mais sofisticados, uma vez que a descrição vai do ato da caça (passagem bíblica) às vitórias em batalhas (passagem mitológica). Na sequência, trata da vaidade dos homens e cita exemplos de templos, pirâmides e mausoléus para glorificação dos soberanos mortos, desde os egípcios, romanos, até os católicos de então, em contrapartida à falta de vaidade dos hebreus, que enterravam os seus em simples campos. É utilizada a imagem do dilúvio bíblico para justificar a divisão, feita por Noé10, das três partes do mundo até então conhecidas, a seus três filhos11 (terceira tópica implícita), no quarto parágrafo (l. 245-274). Reforça a ideia de ambição, citando os netos de Noé que intentaram

10 Patriarca célebre na “primeira idade do mundo”, por causa do dilúvio universal de que se salvou com a família. Era filho de Lameche. Acredita-se ter vivido até a idade de 950 anos. Cerca dos 500 anos foi pai de Sem, Cham e Japhet. Determinando Deus castigar o gênero humano por causa da corrupção em que tinha caído, ordenou a Noé que construísse uma arca em que se recolhesse com a família. Tinha Noé 600 anos, quando veio o dilúvio. Passado o cataclismo, Noé saiu da arca e construiu um altar em que ofereceu um sacrifício a Deus. Entregou-se depois à agricultura e, tendo feito vinho, embriagou-se e desnudou-se na sua tenda. Cham viu-o naquele estado e comunicou o caso aos irmãos que, movidos pelo respeito filial, o cobriram com um manto. Sabendo disto, Noé amaldiçoou a descendência de Cham e abençoou a todos os outros filhos. 11

Trata-se de Sem, Cham e Japhet.

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penetrar o céu pela construção da Torre de Babel. O restante do parágrafo se refere aos homens terem povoado e murado cidades, dividido reinos e fundado impérios e cada um dos seus monarcas terem aspirado ao domínio de tudo, o que acabou por gerar disputas e guerras, sem que soubessem que, segundo Rocha Pita, ao retomar a terceira tópica do “discurso, a esfera da capacidade humana não permite a um só homem o senhorio e governo do mundo”. É iniciada a argumentação da terceira tópica, no quinto parágrafo (l. 275-321), ao citar Adão, como sendo o primeiro homem que, desprovido de talento para governar o mundo, acabou por perdê-lo. São apresentados exemplos de divisões geográficas das regiões, feitas por Deus, através de montes (em Espanha, Itália, Albânia, Mauritânia12, Armênia), dos rios (Tejo, Sena, Pado13, Danúbio, Ganges e Nilo) e dos oceanos. Rocha Pita retoma a primeira tópica do “Discurso”, mostrando que mesmo toda esta separação não bastou para conter a ambição dos homens. Afirma que estes cortaram os montes, construíram pontes sobre os rios, mudaram seus cursos, fabricaram naus para navegar os oceanos, além de atravessarem toda a Terra a cavalo, a pé e a nado. O letrado questiona no início do sexto parágrafo (l. 322-339) o mau uso dos três elementos da natureza pelo homem. Segue narrando as transformações através da caça, pesca, domesticação de animais, e a criação de meios de transporte, em nome da ostentação da ambição humana.

12 Extensa região arenosa, entre os planaltos de Adrar e de Tangante e a costa atlântica da África, do rio de Ouro ao Senegal. 13 Trata-se do rio Pado ou Padus. Forma latinizada do nome do rio Pó. Camões se refere ao rio e, Os Lusíadas I, XLVI assim: [...] O Pado o sabe, e Lampetusa o sente [...].

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No sétimo parágrafo (l. 340-372) Sebastião da Rocha Pita analisa os acontecimentos citados no parágrafo anterior, como um dano causado à natureza e, maior ainda, aos próprios homens, uma vez que se refere aos feitos como decorrentes da cegueira e cobiça de dominar. Dá prosseguimento com inúmeros exemplos de dominação, alargando esta noção da natureza para a disputa de poder entre os homens, citando personagens e passagens históricas de assassínios ocorridos entre filhos e pais, pais e filhos, entre irmãos, e entre amigos e súditos, a seus senhores. Esta exemplificação segue no oitavo parágrafo (l. 373-386) na descrição de mortes planejadas, por senhores, a seus súditos e amigos14. Pita questiona no nono parágrafo (l. 387-412) de que serve toda a ambição dos homens em conquistar muitos reinos, se eles se esquecem das regras de conservação, como aconteceu com as maiores monarquias que negligenciaram esta máxima e acabaram arruinadas. Faz alusão ao fato de Deus ter criado vários substitutos (natureza, dia e noite, planetas, astros) para sua onipotência na Terra, com a finalidade de conservar o mundo, mostrando que os homens, analogamente, devem-no fazer. Embora tenham sido feitas particularizações até a linha 412, algumas vezes, ao mencionar trechos bíblicos, históricos e mitológicos, discorreu-se de forma generalizada sobre a ambição e vaidade dos homens e sobre a ideia de um homem só não bastar para o governo de tantas porções do mundo. A partir do décimo parágrafo (l. 413451), deixa-se claro que se iniciará a particularização de exemplos de monarquias que, após terem chegado a seu auge, brevemente viram a

14 Esse mesmo tipo de descrição é encontrada de maneira semelhante no capítulo 14 da Poética de Aristóteles, ao se referir às ações catastróficas entre amigos, entre irmãos, e entre pais e filhos.

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decadência. Faz-se referência a um pensamento de Virgílio Lusitano15 a respeito do providencialismo da “fortuna – Chamam-lhe fado mau fortuna escura sendo só providência de Deus pura” – e que a queda dos impérios não se deu só pela natural falta de sorte, mas também pela fragilidade de sua fundamentação. Há uma longa descrição, com a finalidade de demonstrar a variedade e mudança das monarquias (segunda tópica do “Discurso”) pelas conquistas dos medos sobre os assírios, dos persas sobre os medos e assírios, dos gregos sobre os persas e egípcios, dos romanos sobre os gregos, dos cartagineses e partos sobre os romanos, dos godos, árabes e turcos sobre os partos. Evidencia-se que, mesmo estas dominações, para a ampliação dos impérios, não foram suficientes para evitar a sua ruína (quarta tópica). Pita inicia o décimo primeiro parágrafo (l. 452-484) com um comentário acerca do anterior, em que reafirma não haver maior cegueira do que ampliar impérios que hão de crescer para sua ruína ou de se sustentar para prejuízo do mundo (quarta tópica), articulando com a terceira tópica, de que só um homem não basta para governar tantas porções do mundo. Apresenta três exemplos particulares de imperadores que limitaram seus domínios. O primeiro é o do Rei Antioco16, que agradeceu ao senado por lhe tirar muitas províncias. O segundo é o do Imperador Augusto, que deixou por escrito um documento a seus sucessores que limitava o império romano. O terceiro, de Élio Adriano17, que pôs termos à monarquia mandando derrubar a ponte

O letrado está se referindo a Camões, “Chamam-lhe fado mau, fortuna escura, / Sendo só providência de Deus pura”, considerando o poeta como Virgílio. Os Lusíadas X, XXXVIII.

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16 Rei da Síria de 138 a 129 a.C., cognominado Sidetes; lutou contra os judeus e ocupou Jerusalém em 133 a.C. Sucedeu seu irmão Calínico no trono da Síria. Morreu lutando contra os partas. 17

Pai de Adriano ou Hadriano, o imperador.

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que Trajano havia construído sobre o Danúbio, estabelecendo o Eufrates como último limite de seu império. O décimo segundo parágrafo (l. 485-521), por sua vez, inicia-se com uma paráfrase da terceira tópica, em continuidade ao parágrafo anterior, alargando-o com seis exemplos de imperadores (os gentios, Aurélio Caro, Diocleciano18, Hercúlio, Galério19 e Valentiniano20) que se aliaram a outros, “para melhor direção das províncias e expediente dos súditos”. Prossegue com a articulação da quarta tópica, cuja ideia de equilíbrio das potências para conservação dos mundos é demonstrada a partir da descrição de impérios que foram separados em vários domínios. No décimo terceiro parágrafo (l. 522-536), Pita faz uma analogia da destruição das sete maravilhas do mundo com a decadência das monarquias (quarta tópica implícita). A partir da linha 537 até a 579, o décimo quarto parágrafo explicita a importância da religião como fundamento da monarquia, ao particularizar o império da Alemanha que tem na sua criação a religião católica como instituto e lei fundamental. Este será o argumento para afirmar que só este império terá larga duração e equilíbrio (quarta tópica). Num segundo momento, fica claro que a Alemanha após ter-se unido à Áustria, também católica, e dividindo seu império em vários senhorios, como Roma, igualou e moderou sua força à de seus inimigos, para conservação de seu império (terceira e quarta tópicas).

18 Trata-se de Gaio Aurélio Valério Diocleciano (245-313 d. C). Imperador romano de 284 a 305, quando abdicou em favor de Galério. Reorganizou e subdividiu o império. Perseguiu os cristãos. 19 É Valério Maximiano Galério (305-311). Imperador romano. Assumiu o poder em 306. Moveu perseguição aos cristãos. Fez de Licínio seu sucessor. 20 Há na História três imperadores romanos chamados Valentiniano. Viveram de 321 a 455. São eles: Valentiniano I, Valentiniano II e Valentiniano III. Se considerarmos a narrativa de Pita, não é possível afirmar com certeza qual dos três imperadores está sendo mencionado, pois os três dividiram o império durante seus reinados.

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A ideia da divisão dos impérios para sua conservação (terceira e quarta tópicas) é retomada nos dois parágrafos seguintes (l. 580624 e l. 625-672), com a menção dos reinos de França e Espanha, que enquanto permaneceram divididos em muitos “potentados”, não causaram dano às demais províncias da Europa. No décimo quinto parágrafo, discorre sobre as invasões da França à Itália (nos reinos de Nápoles, Sicília, nos ducados de Sabóia21 e Mântua22, na república de Gênova e de Veneza), à Espanha (em Flandres23, Catalunha e Castela) e à Alemanha (Lorena24, Alsácia25, Magúncia26, Neoburg e Palatinado27).

Região que foi primeiro um ducado situado entre a Itália e a França, depois uma parte do reino da Sardenha, e que desde 1860 pertence a França. A casa de Sabóia é a mais antiga família reinante da Europa, um ramo da qual, o de Saboia-Carignan, ocupou o trono da Itália desde 18611946. A casa foi fundada por Humberto c. 1003-c. 1056.

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Cidade italiana, na Lombardia, sobre o Míncio, afluente do Pó.

Antigo nome de uma região que compreendia, além das atuais províncias belgas da Flandres oriental e da Flandres ocidental, a parte meridional da província da Zelândia, na Holanda, e o departamento francês de le Nord, constituindo, na idade média, um principado poderoso e quase indepente, governado por condes sob a sucerania do rei de França. O nome Flandres proveio da palavra Vländergav, designação do território em torno de Bruges e Sluis, a cujos condes fora confiada a guarda da costa NE. Da França no período das incursões dos normandos, na segunda metade do século IX. As relações entre Flandres e Portugal datam dos tempos da fundação da monarquia portuguesa, podendo-se considerar na sua história três fases distintas, a saber: primeira, que vai do século XII ao XV e se caracteriza por vínculos de ordem dinástica e religiosa, a segunda que abrange os séculos XV e XVI apresenta relações sobretudo de natureza econômica e política, e a terceira cujas características remontam as invasões da Bahia e Pernambuco. A terceira fase se prolonga do século XVI à atualidade. 23

24 Antiga província da França oriental, correspondente aos atuais departamentos de Mosa, Mosela, Meurthe-e-Mosela Vosgos. 25

Lorena, região da França.

Mogúncia. Cidade da Alemanha, no grão ducado de Hesse, capital da província do mesmo nome da Renânia e do distrito de Mogúncia, sobre o Reno.

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27 Região da Alemanha à margem esquerda do Reno, a qual confina com a Alsácia, a Lorena, o Baden, o Hesse e a Renânia prussiana, e depende da Baviera. O nome Palatinado fora atribuido inicialmente ao conjunto dos castelos imperiais dispersos pelo império germânico. Posteriormente, o nome liga-se à resistência dos antigos comes ou condes palatinos.

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O mesmo tipo de descrição é feito no décimo sexto parágrafo para as conquistas de Espanha na Itália (república de Veneza, Ravena, Ferrara, Brescia, Lombardia, Milão, Florença e Gênova), na França (Provença, Picardia, Bolonha e Flandres) e contra os inimigos e rebeldes da Áustria, com a ajuda da Alemanha. Nestes dois parágrafos, fica patente a presença da segunda tópica – mudança e variedade das monarquias – através do grande número de guerras e invasões ocorridas e citadas. O letrado encerra o pensamento dos dois parágrafos anteriores no décimo sétimo parágrafo (l. 673-694) com a quarta tópica às avessas, aumento e temor das monarquias. Finaliza o parágrafo utilizando a terceira tópica, em uma comparação do Rei Luís XIV28 com o gigante Tifão29. O décimo oitavo parágrafo (l. 695-724) é o conclusivo do “Discurso Primeiro”, em que se afirma ser, agora, a consequência de tudo o que foi dito anteriormente. Retoma-se a tese do “discurso, uma só cabeça não pode servir a muitos corpos, nem uma só voz fazer consonância a muitos coros”. Compara as grandes monarquias com as árvores, no tocante à altura, grossura, grandeza, superioridade, equilíbrio e conservação. Encerra-se o parágrafo com a quarta tópica do discurso – “no equilíbrio das repúblicas pode conservar-se o mundo” – reafirmando-se que, se as potências da Terra mantiverem-se ordenadas, esta não se arruinará.

28 Luís XIV viveu de 1638 a 1715. É o chamado Rei Sol. Foi o maior representante do absolutismo monárquico. Durante seu reinado, na França, floresceram as artes e as ciências. Viu-se envolvido em quatro grandes guerras: de Devolução (1667-1668); da Holanda (1672-1678); da Liga de Augsburgo (1689-1697) e da Sucessão Espanhola (1701-1714).

Em grego Typhôn, cuja raíz em etimologia popular seria o indo-europeu dheubh-, gerar obscuridade, nevoeiro e fumaça. É uma espécie de síntese da violência das forças primordiais. Era maior que todas as montanhas. A comparação é hiperbólica.

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O “Discurso Segundo” é composto de 13 parágrafos e começa na linha 725 e termina na 1347 (p. 47 a 86). Sebastião da Rocha Pita apresenta uma única tópica no “Argumento”, a qual, por todo o “Discurso”, orienta e defende a ideia de que Portugal foi escolhido para ser o maior império do mundo. As razões apóiam-se em nunca ter havido cismas, alterações, inconstâncias e o surgimento de heresiarcas nesse reino, como aconteceu em França, Espanha, Grécia, Roma e Alemanha, que levassem à dúvida do fundamento e firmeza da religião católica como base da monarquia portuguesa. Esse “Discurso” é todo composto de noções providencialistas. Dentre as três matérias – “são mais prodigiosas as maravilhas de Deus imediatas só à sua onipotência, a mais estendida e permanente monarquia da Terra há de ser a de Portugal, e o motivo pelo qual foi escolhido este reino para tão grande império” – presentes no “Argumento” do primeiro parágrafo (l. 727-736), tem-se que a segunda é a tópica, mediada por uma suposição (de que as maravilhas de Deus, através da natureza, são admiráveis) e pela inferência do discurso humano (de que Portugal foi o escolhido para maior império do mundo). A partir da suposição, descreve-se, no segundo parágrafo (l. 737776), algumas das maravilhas da natureza, pela criação de Deus, como o monte Etna30, o mar Morto, a fonte de Épiro31, a flor heliotrópio, o

30 Vulcão da costa oriental da Sicília. Trata-se do vulcão mais elevado da Europa. Os antigos julgavam ser a montanha mais elevada da terra, chamando-lhe, pela sua posição em relação ao mundo conhecido, o pilar do céu, fonte de várias lendas mitológicas. No cimo da cratera houve um templo dedicado a Júpiter.

Nome que se dava à região situada no extremo NO da Grécia antiga. Era limitada a E. pela Tessália, ao S. pelo Golfo de Ambrácia e a a Etólia, a O. pelo mar Jônio, ao N. pela Ilíria e a Macedônia. Na fronteira oriental estendia-se a cadeia do Pino. A principal cidade era Dodona, situada na única planície bem regada de chuvas e fértil, chamada Helopia. Cerca do começo do terceiro século a.C. o rei Pirro, um dos príncipes mais poderosos do tempo, conseguiu unir os habitantes do Épiro sob o seu governo. Desde o fim do quarto século o Épiro fez parte do império Bizantino até 1240. Foi conquistado pelos turcos em 1430. Desde o século XIV foi sendo povoado por Albaneses.

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peixe tremelga, a salamandra, entre outros animais, tipos de vegetais e personagens mitológicos32. O letrado critica, no terceiro parágrafo (l. 777-810), o sentimento religioso dos gentios33 que atribuíam às suas divindades (Júpiter34, Marte35, Netuno36, Flora37, Pomona38, Ceres39, Baco40, Vulcano41, Éolo42, entre outros) todas as produções da natureza (flores, frutos, vento...), incluindo o espírito bélico de Rômulo43, o esforço de Hércules44

32 O gênero histórico dos séculos XVII e XVIII é repleto de passagens e personagens mitológicos. Rocha Pita não foge a regra e trabalha com esse tipo de expediente, seja para reafirmar a Igreja Católica, tomando a mitologia em oposição, seja para comparar o herói Católico com o herói grecorromano. A principal autoridade, neste sentido, é Ovídio de As Metamorfoses. 33

Não católicos, pagãos.

Nome latino de Zeus, em grego Zeús, a maior divindade do Olimpo. Filho de Saturno e Cibele. Coube a esses dois o domínio do céu e da terra. Júpiter tudo vê e sabe, possuindo o “Dom” de prever o futuro. 34

Nome latino de Arges, do grego Áres, deus da guerra. Filho de Júpiter e Juno. Os romanos preferiam invocá-lo nas guerras.

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Nome latino de Posídon, do grego Poseidôn. Filho de Saturno e Cibele. Na partilha do mundo, enquanto Plutão recebeu os infernos e Júpiter o céu e a terra, Netuno, obteve a supremacia sobre o reino do mar, da águas subterrâneas. Em Roma era considerado o deus da fecundidade e da vegetação.

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Faz florescer as plantas. Adorada pelos sabinos, seu culto foi introduzido em Roma por Tatius. Identifica-se a Clóris, deusa da primavera entre os gregos.

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38 Ninfa romana que velava sobre os frutos. Tinha um bosque sagrado, o Pomonal, no caminho de Roma a Óstia. Esposou Vertunmo e sua fidelidade imortal permitia-lhe envelhecer e rejuvenescer sem cessar, à imagem do ciclo e da maturação das plantas e dos frutos. 39 Divindade latina da vegetação e da terra. Festas Cereálias e as Fornicales eram celebradas no fim da semeadura e da colheita. Venerada em todo o Lácio. 40 Do grego Bákkhos, nome latino de Dioniso, em grego Diónysos. Deus da metamorfose. Fixou-se como divindade do vinho e da embriaguez.

Nome latino de Hefesto, em grego Héphaistos. Vulcano é o fogo nascido nas águas celestes. Filho de Juno e Júpiter. Em suas oficinas no Etna trabalhava febrilmente. Entre suas obras destacamse Talo, o gigante de bronze; a couraça de Hércules; o cetro de Agamenão; as flechas de Apolo; o escudo de Aquiles. Vulcano combateu na guerra de Tróia.

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Filho de Netuno e Arne. Deus dos ventos. Originava tempestades e naufrágios.

Figura lendária que com seu irmão Remo, teria fundado Roma em 753 a.C. Diz a tradição que os gêmeos, filhos de marte e Régia Sílvia, foram lançados ao Tibre por Amúlio, e depois amamentados por uma loba. 43

Do grego Heraklês, possivelmente com um intermediário etrusco hercle. O maior dos heróis gregos, era chamado de Héracles, por ter sido vitorioso nos doze trabalhos gigantescos a que o rei Argos lhe impôs.

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e Alexandre45 e o emprego marítimo de Sexto Pompeu46, além de designarem um deus para protetor de cada uma das partes do corpo humano. No quarto parágrafo (l. 811-829) há uma associação dos dois parágrafos anteriores com a ideia de ser a monarquia uma “obra natural”, não da forma como viam os gentios, mas sim, segundo os cânones da religião católica. Nesse sentido, Sebastião da Rocha Pita utiliza a tópica desse “Discurso” para afirmar que o domínio da monarquia portuguesa é providencial, não bastando as divindades gentílicas para manter o sossego dela. O quinto parágrafo (l. 830-898) dedica-se à narração do episódio histórico da aparição de Cristo ao primeiro rei, D. Afonso Henriques47, ocorrido na noite anterior à batalha a Ismar48 e a outros quatro reis mouros, no campo de Ourique49, em que foi assegurada vitória ao monarca português, por ser esta guerra em nome de Deus empreendida contra os blasfemos de Seu santo nome. Pita segue narrando aparições de Deus, antes de batalhas, a outros quatro reis, no sexto parágrafo (l. 899-957), salientando que a

45 Alexandre Magno (356-323 a.C.). Famoso general que comandou os gregos na conquista do império persa. Educado pelo seu tio Leônidas, teve como mestre o filósofo Aristóteles. Aos 18 anos, tornou-se herói na batalha de Queronéia. Aos 20, era rei de Macedônia.

É Gnaeus Pompeius Magnus. O Magno Pompeu (106-48 a.C.). soldado e político romano. Integrou o primeiro Triunvirato com Júlio César e Marco Lívio Crasso (60-53 a.C.).

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(1111-1185) Pertence à primeira dinastia (Borgonha). Filho de Henrique de Borgonha. Em 1139, venceu os mouros na batalha de Ourique (em que segundo a tradição, Cristo aparece a D. Afonso) e é proclamado o primeiro rei de Portugal. Notável por suas conquistas, no ano seguinte derrotou os leoneses em Val-de-Vez. Em 1147, auxiliado pelos cruzados que iam para a Palestina, toma Lisboa aos mouros.

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Pita se refere, no Tratado, a Ismael, no entanto sabe-se ser Ismar, chefe árabe do século XII. Também conhecido como Esmar, liderou os mulçumanos que se defrontaram com as forças de D. Afonso Henriques na batalha de Ourique. Chamam-lhe rei ou Abu Zacaria (o Abzecri ou Auzecri). Governador de Santarem.

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Região de Beja, Lisboa.

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nenhum deles fez igual promessa de soberania permanente, como no caso de D. Afonso Henriques. Os outros reis citados são Clodoveu50 (França), Constantino51 (Roma), Garcia Iñiguez52 (Navarra) e Tibério53 (Constantinopla54). É utilizada a tópica do “Discurso”, na forma de paráfrase, nos quatro exemplos. O sentido, primeiro e mantido em cada uma das vezes, é de que só o reino de Portugal e seus descendentes foram escolhidos, por Deus, para firmar a mais estendida e permanente monarquia da Terra. Pita interroga no sétimo parágrafo (l. 958-1022) o porquê de Deus não ter conferido a tão ilustres nações, como a francesa, a italiana, a grega e a espanhola, o maior império, ainda que a estes também tenha sido revelada a presença Dele, preferindo a nação portuguesa para tal missão. O argumento apresenta-se em razão da incompreensão sobre os juízos de Deus e pelas características da constância, do valor e da igualdade pertencentes ao reino português.

Trata-se de Clóvis (c. 466-511). Chefe germânico fundador do reino dos francos. Converteuse ao cristianismo. Redigiu as leis sálicas e transformou Paris em capital do reino. É conhecido também pelo nome de Clodoveu I.

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(c. 288-337) Imperador romano que oficializou o cristianismo e mudou a capital para Constantinopla, quando se preparava para lutar contra os persas. Havia sido batizado por Euzébio, antes de falecer.

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O letrado menciona Garcia Ximenes, porém é Garcia Iñiguez. Rei de Navarra, filho de Iñigo Arista, o fundador do reino. Iñiguez morreu entre 861 e 884. Casou-se com Urraca, de sangue real, de quem teve fortuna Garcês, seu sucessor.

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53 Tibério Cláudio Nero. (42 a.C. – 37 d.C.) Imperador romano. Enteado e filho adotivo que desde 14 d.C. suscedeu Augusto. Governou cautelosamente, no entanto o seu reinado ficou marcado pelo incidente dos julgamentos por traição e conspiração. Influenciado e encorajado por Sejano, Tibério deu voz aos seus receios de assassinato. O mesmo que muito contribuiu para a partida do imperador para Capri, de onde nunca mais voltou.

Capital do Império Romano do Oriente durante mais de onze séculos (330-1453). O direito romano, as letras gregas e a teologia cristã estão intimamente ligados com a história de Constantinopla. Na idade média foi o grande foco de irradiação de influências civilizadoras. Foi fundada por Constantino Magno, por meio do alargamento da antiga cidade de Bizâncio no ano de 328 e inaugurada como nova sede de governo em 330.

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O restante do parágrafo se alonga na citação de batalhas nas quais Portugal participou em benefício próprio e de seus confederados, com seus célebres capitães lusitanos55 Licínio56, Gargaris57 e Abidis58 na ampliação de seu domínio; com Cesaron59, Viriato60 e Hércules Lusitano61 na defesa de Sertório Italiano62; nos socorros que os lusitanos deram aos cartagineses; nas conquistas de Mitrídates63 em muitos reinos de Ásia contra Pompeu; ajudando Pompeu e seus

Rocha Pita menciona como capitães portugueses um rei e duas personagens mitológicas. Cf. três próximas notas, mas o letrado pode estar comparando-os a Viriato e a Hércules Lusitano em conjunto a Cesaron, pois os dois últimos citados são mesmo Portugueses.

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(c. 270-325) Imperador romano, nasceu na Dácia. Seu reinado compreende o período de 311 a 324. Era cunhado de Constantino, o Grande, que o destronou e o condenou a morte.

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Personagem mitológica. Rei dos luretas, ao qual se atribui a invenção de preparar o mel. Sua filha teve um filho havido clandestinamente e a que Gargaris quis dar a morte. Livrou-se a criança dos perigos a que foi exposta e com tal prudência e valentia que Gargaris, também chamado Gárgoris, o elegeu seu sucessor e lhe pôs o nome de Habis.

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Personagem mitológica. Divindade celtibera, rei de Tartésia (do veda Aptya ou Trita-aptia). Abidis ensinou aos homens o cultivo do trigo, a utilização dos bois na lavoura, proibindo que eles fossem dados e vendidos como escravos.

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59 É Filopator Filometor César. Último imperador da dinastia Ptolomaica, filho de César e Cleópatra, também chamado Cesarion. Reinou a partir de 44 a.C. e após seu assassinato ocorrido em 30 a.C., o Egito se transforma em província do império romano.

(século II a.C.) Chefe militar lusitano, natural da região ocidental da Lusitânia. Viriato assumiu o comando dos lusitanos em 147 a.C., conduzindo, graças à sua força e capacidade para governar, várias guerrilhas (147 a 139 a.C.) contar os romanos, então apostados na conquista da Península Ibérica, defendendo deste modo a independência do território. Roma acaberia mesmo por considerar a Lusitânia terra independente. Porém, sentindo a falta de apoio das populações, Viriato viu-se obrigado a negociar com os romanos, acabando por ser traído por seus companheiros Audax, Ditalco e Minuro. Morreu assassinado por ordem do procônsul romano Servílio Cipião, em 139 a.C.

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Personagem desconhecida. Não se sabe a quem Pita atribui esta denominação. Entende-se que se trata de adjetivação utilizada pelo letrado com finalidades encomiásticas.

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(c. 123-72 a.C.) General romano, chefe da resistência dos rebeldes da Lusitânia contra Roma. Nasceu em Núrsia e introduziu na Península Ibérica as leis e os costumes do império romano.

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63 Mitrídates VI, Eupator ou o Grande (132-63 a.C.) Rei da região do Ponto, no Mar Negro, na costa da atual Turquia. Reinou de 123 a 63 a.C. Foi o maior obstáculo da expansão romana no leste. Foi vencido por Pompeu na terceira guerra Mitrídica entre 74 e 64 a.C. Foi morto por um soldado que cumpriu sua ordem.

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filhos contra César; a Espanha contra os romanos e finalmente nas resistências pela liberdade das cidades portuguesas de Cinânia64, Monte Ermínio65 e Braga. No final, adverte que mesmo pelo fato de as outras nações terem empreendido guerras semelhantes, este ainda não é o fator suficiente para Portugal ter sido escolhido como maior reino do mundo. Para tanto, o tratadista faz uso da citação sobre os auxílios de Espanha prestados na povoação de Itália, com o rei Atlante Ítalo; na fundação de Tróia com Dárdano66; nos socorros dos cartagineses e dos romanos; em Sagunto67 contra Aníbal68; em Numância69 contra Cipião70 e em Calahorra contra Afrânio71. Em continuidade à descrição de batalhas, o oitavo parágrafo (linhas 1023-1088) inicia-se com a narração das conquistas feitas por

Nome de uma antiga cidade da Calécia, que Valério Máximo enalteceu pela sua heroica resistência aos romanos. Há quem pretenda a sua identificação com a Citânia de Briteiros, mas o assunto não está definitivamente assente. Nos agiológios do século XVII aparece referida a Cinânia como teatro de episódios do martiriológio cristão. Em alguns manuscritos lê-se Cininia e Cinginia.

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65 Como o próprio Rocha Pita denomina depois, por sinonímia, Serra da Estrela, ao extremo norte de Portugal.

Filho de Júpiter e da atlântida Electra. Originário da Samotrácia. Edificou a fortaleza de Tróia e reinou sobre a Tróade. Segunda a lenda, unificou a Itália à Tróade.

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67 Cidade da província de Valência. A origem de Sagunto é muito obscura. É provável ter constituido uma das primeiras feitorias comerciais da Ibéria, quinze séculos antes de Cristo. As primeiras denominações da cidade foram: Drakanza, Zakynthos, Segontia, Arse, Zakanoa e Saguntum, depois Murviedro.

General cartaginês a partir de 221 a.C. Era filho de Amílcar Barca. O cerco por ele encetado em Saguntum, atual Sagunto, a pouca distância de valência, precipitou os confrontos com Roma, de onde eclodiu a Segunda guerra Púnica.

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Antiga cidade da Península Ibérica, situada junto do rio Douro e perto de Sória.

(236-184/3 a.C.) Publius Cornelius Scipio Africanus. Militar e estadista romano, um dos maiores estrategistas da antiguidade. Derrotou o exército cartaginês comandado por Aníbal na batalha de Zama (202 a.C.), pondo fim a Segunda guerra Púnica, o que lhe valeu o cognome de “o Africano”. Eleito cônsul em 205, decidiu não enfrentar Aníbal na Itália, optando por uma ofensiva na África, dirigida contra a própria Cartago. 70

Rocha Pita diz de um Afrânio, contudo trata-se de Afriano. Chefe que os lusitanos elegeram para se defenderem dos romanos, vingando-se dos agravos recebidos. Derrotou Mânlis Capúrnio. Morreu em batalha.

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França em Espanha e em Itália, onde edificaram a cidade de Milão e de onde saíram contra Roma, permanecendo no domínio desta por dez anos; os triunfos dos capitães gregos Ulisses72, Diomedes73, Aquiles74, Agamenão75, e Menelau76 em Tróia; a fundação de Lisboa por Ulisses, após ter passado por Espanha; a dominação de muitas cidades italianas por Diomedes e, na defesa de Grécia contra os persas em dois episódios, sendo um sob o comando do capitão Cinegiro na batalha dos campos Maratônios, em relação ao primeiro Dario77, e

72 Do grego Ulíkses que através do latim Ulixes forneceu Ulisses. Nome latino de Odisseu (Odysseús). Filho de Sísifo e Anticléia. Segundo outra versão era filho de Laertes, rei de Ítaca, a quem a jovem esposou depois de sua união com Sísifo. Recebeu o trono de Ítaca da mão de Laertes e se candidatou a esposar Helena, filha de Tíndaro. Casou-se com Penélope, da união nasceu Telêmaco. Ulisses comandou doze navios à Tróia, combatendo com bravura nesta guerra, destacando-se por sua prudência e astúcia. Apoderou-se do Paládio. Inspirado por Minerva, propôs a construção do cavalo de madeira, com o qual os gregos invadiram a cidadela inimiga. É considerado o herói por excelência. 73 Filho de Tideu e Deípila. Educado pelo centauro Quirão, sucedeu a seu avô Adrasto no trono de Argos. Na guerra de Tróia, distingui-se como um dos heróis de maior valor. Colaborou com Ulisses na busca de Aquiles e Filoctetes e na conquista do Paládio (estátua de madeira de Palas Atena, que garantia a invencibilidade de Tróia). Lutou contra Heitor e Enéias; apoderou-se dos cavalos de Reso e, protegido por Minerva, ousou atacar Marte e Vênus.

Filho de Peleu, rei de Ftia, na Tessália, e de Tétis. Para tornar seu filho imortal, Tétis passou ambrosia no corpo de Aquiles e o manteve sobre o fogo; depois, mergulhou no rio Estige, cujas águas deveriam fazê-lo invunerável. Somente um dos seus calcanhares ficou intocado pelas águas, sendo este seu único ponto fraco. Foi o principal herói grego na guerra de Tróia. Muito conhecido pelas suas façanhas, conquistou várias cidades da Cilícia. Desentendeu-se com Agamenão, que lhe arrebatara Briseis, retirando-se da luta, em seguida, o que acarretou inúmeras derrotas para os gregos. Quando seu amigo Pátroclo foi morto por Heitor, voltou ao combate, usando uma armadura mágica, forjada por Vulcano. Matou Heitor, arrastou seu corpo em torno de Tróia e o entregou a Príamo. Foi morto por Páris, com uma flechada no calcanhar.

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75 Filho de Plístene e Aeropa. Juntamente com o irmão Menelau foi criado pelo tio Atreu que o fez herdeiro do trono. Com a morte do tio, Tiestes usurpou-lhe a coroa. Comandou a Expedição grega contra Tróia. No decorrer da guerra, Agamenão desentendeu-se com Aquiles por causa da escrava Briseis. Agamenão urge no mito como o rei por excelência, encarregado na Ilíada do comando supremo dos exércitos gregos que sitiavam Tróia. 76 Irmão de Agamenão. Casou-se com Helena e se tornou herdeiro do trono de Tíndaro, em Esparta. Avisado por Íris do rapto de Helena, pediu ajuda a Agamenão. Foi um dos guerreiros que penetrou em Tróia dentro do cavalo de madeira, travando combate com Páris. 77 (c. 550-486 a.C.) Rei da Pérsia, da dinastia Aquemênida. Também chamado Dario, o Grande. Foi organizador do império persa, dividindo-o em províncias. Foi vencido na batalha de Maratona, ao tentar a invasão da Grécia.

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outro, contra Xerxes78, capitaneados por Leônidas79, finalizando com as vitórias gregas de Alexandre em Ásia. A narrativa se estende nas ações dos guerreiros romanos Rômulo, Túlio Hostílio80 e Anco Márcio, pelas conquistas de muitas terras em Itália; dos três irmãos Horácios no reino de Albânia; em valor de Horácio Cocles na defesa da pátria de Porsena81, rei de Etrúria; com seus cônsules Fábio Máximo82, Tito Mânlio, Caio Mário83, Cornélio Cipião, Nei, o Pompeu e seus imperadores Augusto César, Úlpio Trajano, Severo Sétimo84, Antonino Caracala85, Diocleciano e outros, na conquista do mundo. O letrado Trata-se de Xerxes I, filho mais velho de Dario I. em persa pronuncia-se Kxaiarxa. Nasceu em 519 e morreu em 465 a.C. Subiu ao trono da Pérsia com 34 anos, após a morte de seu pai. Decidiu-se empreender guerra em desforra ao insucesso de seu pai na batalha de Tessália, após um sonho. Para a passagem do seu exército mandou fazer sobre o Helesponto uma sólida ponte de 300 barcas, entre Sestos e Ábidos. Esta foi destruída pela tempestade. Xerxes mandou construir uma segunda ponte de 314 barcas perto da primeira. Foi morto após não ter conseguido conquistar a Grécia e quem o sucedeu foi Ataxerxes. 79 Rei de Esparta que assumiu o poder provavelmente em 488 ou 489 a.C., durante a Segunda guerra grécopérsica. Foi considerado o maior herói entre os espartanos, tendo demonstrado sua coragem na batalha das Termópilas. 80 Terceiro rei dos romanos. Morreu em 630 a.C., tendo sucedido a Numa Pompílio. Seu reinado se caracterizou pela organização civil e religiosa de Roma, fruto da sua índole pacífica. Era dotado, porém de temperamento belicoso, sendo-lhe atribuída a organização militar da mesma cidade. Empenhou-se em várias batalhas, principalmente a guerra contra Alba – a longa (combate entre os Horácios e Curiácios). Alguns afirmam que morreu fulminado; outros, que foi assassinado por instigação de Anco Márcio, seu sucessor. 81 Rei etrusco que pretendeu restabelecer Tarquínio, o soberbo. Foi aprisionado por Horácio Cocles na ponte Sublicius e depois amedrontado pela tentativa de Múcio Cévola que conseguiu penetrar no acampamento para o assassinar. Levantou o cerco a Roma. 82 O letrado se refere a Quinto Fábio Máximo Verrucoso (c. 260-203 a.C.) General romano que ficou conhecido pelas cautelosas táticas infligidas a Aníbal Barca, entre 217 e 214 a.C., que lhe valeram o encômio de Cunctator, ou “Contemporizador”. Essas táticas ficaram caracterizadas pelo desgaste contínuo do exército de Aníbal, sem recorrer à batalha localizada. 83 Menção a Gaius Marius (155-86 a.C.) General romano de ascendência plebeia. Nasceu em Arpino. Combateu na Espanha, derrotou Jugurta. Usurpador do trono da Numídia, no norte da áfrica. Ganhou várias batalhas na Gália. Salústio escreve que Mário, feito cônsul pela plebe, depois de ter sido eleito imperador da Numídia. Na Guerra Jugurtina, Salústio repõe um longo discurso proferido por Mário. 84 Rocha Pita se refere a Lúcio Septímio Severo (146-211) Primeiro dos imperadores africanos de Roma. Nasceu em Leptis, Magna. Reinou a partir de 193. Hábil general, venceu por três vezes Pescênio Níger, concorrente ao trono. Foi protetor das artes e das letras. 85 Alusão ao imperador romano, filho de Septímio Severo. Viveu de 186 a 217. Reinou a partir de 211, mandou matar mais de 20 mil pessoas. Concedeu a soberania romana a todos os habitantes livres do império, pela constituição antoniana, em 217. 78

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encerra o parágrafo salientando que todas essas batalhas e conquistas se deram anteriormente às aparições de Deus, previamente relatadas (“Discurso 2º”, parágrafos cinco e seis). A interrogação feita no sétimo parágrafo a propósito de Portugal ter sido eleito por Deus para estabelecer a permanente monarquia é retomada agora, nas linhas 1089 a 1101 (parágrafo nono), não conforme o primeiro enfoque, mas com o intuito de provar que, mesmo tendo as outras nações recebido aparições de Deus e participado de batalhas e conquistas, semelhantemente ao ocorrido com Portugal, somente a nação portuguesa foi escolhida por Deus, uma vez que é usado o argumento primordial de que esta escolha ocorreu em virtude da maior firmeza e constância na religião católica professada pelo reino português, em comparação às outras, bem como por estas terem sofrido alterações e cismas nas suas monarquias. No décimo parágrafo (l. 1102-1165), é defendido o argumento apresentado no anterior, com exemplos da inconstância na fé católica, desobediência à igreja e prevaricações dos reinos de Grécia, Roma, Espanha, França e Alemanha, esta última com “mais lástima”86 por ter havido a cisão na Igreja Católica com a Reforma luterana. O décimo primeiro parágrafo (l. 1166-1211) organiza-se a partir de uma máxima política em chave teológica de que “é a religião o maior atributo dos mortais e a mais firme coluna das monarquias”. Desenvolve-se com a finalidade de provar que a religião católica é necessária para o bom governo das repúblicas e a conservação dos impérios, uma vez que na narração fica claro que mesmo os povos que não a adotavam tinham em suas religiões a sustentação de seus

86 Nota-se que a utilização da expressão “mais lástima”, refere-se ao enaltecimento da fundamentação católica no reino de Alemanha, previamente feito pelo letrado no décimo quarto parágrafo do “Primeiro discurso”.

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impérios. Desse modo, é enumerada a cega idolatria e adoração de divindades por parte dos gentios, como as ocorridas em Tróia com o deus Penates, em Roma com a proteção da deusa Egéria87 a Numa88, na Lacedemônia89 com Apolo90, em Catargo91 com Saturno92, em Creta93 com Júpiter, em Atenas94 com Minerva95, e no Egito com

87 Ninfa de Roma ligada ao culto de Diana dos Bosques. Era esposa, ou amiga de Numa Pompílio. Costumava conceder ao soberano entrevistas secretas para orientá-lo quanto à política a adotar. Após a morte de Numa, retirou-se para a floresta Arícia e chorou tanto que Diana, comovida, transformou a Deusa Egéria em fonte. Os romanos honravam-na como deusa, cultuando-a junto à Porta Capena, ao pé do Monte Célio. As mulheres ofereciam-lhe sacrifícios para terem parto feliz. Egéria simbolizava a solidão oportuna às grandes meditações. 88 Numa Pompílio (715-672 a.C.) segundo rei legendário de Roma, a quem se atribui a criação das primeiras instituições religiosas as cidade e do ano de 12 meses. 89 O mesmo que Esparta, cidade grega. 90 Do grego Apólon. Deus da luz. Uma das doze divindades do Olimpo. Filho de Júpiter e Latona. Protetor dos campos, dos navegantes, dos artista e dos médicos. Encarregado de desvendar o destino, pois revela aos seres humanos a trilha que conduz da “visão” divinatória ao pensamento. 91 Uma das mais famosas cidades da antiguidade, na costa setentrional da África, fundada cerca de 814-13 a.C. pelos fenícios, destruída pela primeira vez pelos romanos em 146 a.C. reconstruída pelos árabes em 698 d.C. Estava situada no Sinus Uticensis (moderno golfo de Tunes) e tinha dois portos: o militar e o de comércio, que comunicavam por um canal. 92 Nome latino de Cronos. Do grego Krónos. Filho do Céu e da Terra. É o mais jovem dos Titãs. A pedido da Terra, mutilou o pai e ocupou seu lugar no trono do universo. Esposou a titânia Cibele e teve Vesta, Ceres, Juno, Plutão e Júpiter como filhos. Ele os devorava assim que nasciam para evitar um prognóstico do oráculo que dizia que um deles o destronaria. Júpiter ofereceu-lhe uma droga que o fez vomitá-los. Após combate com Júpiter, auxiliado por outros Titãs, foi expulso do Olimpo e se instalou no Capitólio, onde fundou a cidade de Satúrnia. 93 Creta é conhecida como Candia. A ilha fez parte do primeiro império romano em 1669 foi tomada pelos turcos que a conservaram até 1898. 94 Capital da antiga Ática, metrópole da cultura grega antiga. Deve sua situação, certamente, à colina rochosa da Acrópole, que se eleva a cerca de 75 metros acima da planície Ática e que nos primeiros tempos serviu de cidadela, de resistência e de sítio dos Santuários. A constituição de Sólon (549) repartiu os cidadãos em quatro classes segundo a riqueza, fixou as atribuições das diversas assembleias, instruiu os tribunais populares e preparou assim o advento da democracia. As guerras contra os persas colocaram Atenas no primeiro lugar entre as cidades gregas. A guerra contra Esparta (Guerra do Peloponeso) destruiu o império marítimo de Atenas. 95 Nome latino de Atená, do grego Athenâ. Uma das doze divindades do Olimpo. Filha de Júpiter e de Métis. Ao nascer, já investida de capacete e de armadura, emitiu um ressonante grito de guerra. Dotada de inteligência e sabedoria, Minerva tornou-se conselheira dos deuses, ajudandolhes, particularmente, a vencer os Gigantes Palas e Encélado. Deusa guerreira, o que mais lhe interessava não era a batalha sangrenta, como a Marte, mas da arte bélica, de golpes executados com inteligência, da coragem inspirada por ideal. Seus atributos eram a lança, o capacete e a égide, em cujo centro estava fixada a cabeça da Medusa.

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Mercúrio96, entre outros casos particulares, em que são citados os ídolos romanos e os deuses gregos e cartagineses. Há a reiteração, no décimo segundo parágrafo (l. 1212-1274), de que a religião católica é a única e verdadeira base dos reinos, cujos impérios não podem durar em sua ausência. Denominam-se as outras religiões, já referidas, como falsas, mesmo que tenham fundamentado monarquias. Traça-se o aparecimento de heresiarcas em diversas nações – Árrio em Alexandria97, Nestório98 em Constantinopla, Priciliano99 em Galícia100, Ziska101 na Boêmia, Lutero102 na Alemanha e Calvino103 na França – menos em Portugal, onde Pita diz nunca ter havido alterações na religião católica e cujos monarcas sempre foram os maiores defensores da Igreja Romana, o que o leva a afirmar Nome latino de Hermes, do grego Hermês. Uma das doze divindades do Olimpo. Filho de Júpiter e Maia. Seu nascimento, no monte Cilene, na Arcádia, traduz um rito iniciático. Dotado de muita inteligência. Inventor de uma lira. Tinha o Dom da adivinhação. Por fim passou a tutelar a eloquência.

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Cidade do baixo Egito, na margem NO. Do delta do Nilo, situada em uma costa baixa e arenosa dirigida de SO. A NE. Entre o mediterrâneo e o estreito de Mário.

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98 Pita está mencionando o patriarca de Constantinopla, prometido por Teodósio II, e heresiarca que nasceu na Germanícia (Síria) pelo ano 380 e morreu na Líbia em 451. Nestório foi discípulo de Teodoro de Mompsúestia em Antioquia.

O letrado cita o herege espanhol do século IV que morreu decapitado por ordem do imperador Maximus em 385. Priciliano foi condenado à morte pelos bispos que participaram dos Concílios de Saragoça (381) e de Bordeaux (384).

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100 Galícia ou Galiza, região da Espanha. É de crer que no século VI a.C. entrassem na Galiza os celtas, cujas povoações afetaram a forma geral dos castros e citânias, como os que abundam no Minho. A Galiza foi invadida por romanos, por germanos (suevos e godos), por mulçumanos. A Galiza veio a ser reino autônomo de D. Garcia, filho de D. Fernando I, filho de Sancho, o maior.

Rocha Pita grafa “Cisca”. Entretanto, trata-se de João Ziska, herói nacional e chefe militar da seita religiosa dos Hussitas, na Boêmia do século XIV. Ziska nasceu em Trocnov em 1380. Acompanhou o rei Veceslau IV nas suas guerras, sendo que em uma delas perdeu um dos seus olhos, de onde lhe veio a alcunha, depois nome, de Ziska – “torto de vista”.

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Religioso alemão que viveu de 1483 a 1556. Nasceu em Eisleben, Saxônia. Fundador da doutrina protestante em oposição ao catolicismo. Doutorou-se em teologia pela Universidade de Wittenberg. Em 1517, submeteu suas teses a debate e, em 1520, foi excomungado como herege pelo papa Leão X.

102

103 João Calvino é o teólogo e reformador francês que viveu de 1509 a 1564. Nasceu em Noyon, Picardia. Junto a Martinho Lutero, foi um dos chefes da reforma protestante que abalou a Europa no século XVI. Exilado da França, estabeleceu-se em Genebra, Suiça, um dos centros do protestantismo na Europa. Calvino é autor de Institution Chrêtienne.

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que por estas virtudes Cristo fez a promessa de estabelecer o maior império em Portugal, sendo a décima sexta geração a do sereníssimo senhor rei D. Pedro II104, monarca desta nação. Deste ponto em diante, segue-se toda uma justificação apoiada na genealogia da família real portuguesa, a começar por D. Sancho II105. Enumeram-se, no décimo terceiro e último parágrafo do segundo “Discurso” (l. 1275-1347), quatro “linhas” da família real portuguesa cujos descendentes ficaram inábeis da sucessão de Portugal por não fazerem parte do décimo sexto grau, uma vez que foram oriundos de casamentos entre a nobreza portuguesa e as estrangeiras de Castela, Áustria, Sabóia e Parma, sendo essas uniões proibidas pelas leis fundamentais do reino, instituídas nas cortes de Lamego106. Somente D. Catarina107 se fez benemérita da sucessão ao se casar com o duque D. João108, que, ainda distante, conservava a mesma real baronia dos

104 (1648-1706) Rei de Portugal. Nasceu em Lisboa. Era filho de D. João IV e de D. Luísa de Gusmão. Em 1701, firmou com Luís XIV um tratado de aliança em favor de Filipe V, da Espanha, anulando-o no ano seguinte, quando uma esquadra inglesa surgiu na costa portuguesa. 105 Pita está se referindo a D. Sancho II, o Capelo que viveu de 1209 a 1248. Foi o quarto rei de Portugal. Filho de D. Afonso II e de D. Urraca. Nasceu em Coimbra e subiu ao trono com 13 anos. O reinado de D. Sancho II caracterizou-se por uma desordem social interna crescente, mas no plano externo a conjuntura revelou-se mais favorável. D. Sancho iniciou a fase de alargamento do território, favorecido pela estabilidade que se vivia com o vizinho reino de Leão. Empreendeu campanhas de reconquista, estendendo a região alentejana e o litoral algarvio. Lutou contra os mouros e conquistou várias praças. Foi deposto em 1245 em razão da instabilidade e da inabilidade política sua e de seus conselheiros. 106

Lamego é cidade portuguesa.

D. Catarina, duquesa de Bragança, foi esposa do 6o duque de Bragança D. João I, seu primo e co-irmão. Era filha do infante D. Duarte, duque de Guimarães (filho do rei D. Manuel) e da infanta D. Isabel, filha de D. Jaime I, 4o duque de Bragança. Era natural herdeira do reino por morte de D. Sebastião. Nasceu em Lisboa em 1563. Entre seu filhos contam-se D. Teodósio, 7o duque de Bragança e D. Alexandre, inquisidor geral e bispo de Évora. 107

108 Pita não se refere ao fato de ser o D. João I, por outro lado em virtude de afirmar ser casado com D. Catarina, sabe-se pela historiografia ser o rei de Portugal que viveu de 1357 a 1433, chamado Princípe de Boa Memória. D. João I era filho natural de Pedro I, o Cru. Fundou a dinastia Joanina ou de Avis. Cercando-se de homens como João das Regras e Nun’Álvares Pereira, o mestre de Avis, pôde derrotar o exército de João I de Castela em Aljubarrota (1385) e tomar conta dos mouros (1415). Entre seus descendentes, “a ínclita geração” – mencionada por Rocha Pita nas linhas 74, 1235 e 2072 do Tratado Político – incluem-se D. Duarte e D. Henrique, o Navegador.

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monarcas portugueses. Narra-se a ameaça de ter um príncipe estrangeiro como regente, sofrida pela décima sexta geração, com a morte da infanta Isabel109, filha de D. Pedro II. Esse relato tem a finalidade de ilustrar a vontade divina, a partir dos outros filhos gerados por D. Pedro II, de que estes deveriam não só permanecer em Portugal, mas se espalhar por todo o mundo, para cumprimento da promessa de Deus e as esperanças dos súditos portugueses. E finalmente, o “Discurso terceiro” vai da linha 1348 à linha 2120 (p. 87 a 135) e contém 31 parágrafos. Percebe-se que o letrado compõe os dois primeiros “discursos” de forma a somar argumentos para este terceiro, que é o “discurso” fundamental para o propósito da escrita deste tratado, o auxílio de D. Pedro II a Carlos III110, rei de Áustria, na invasão a Castela. O “Argumento” do primeiro parágrafo (l. 1350-1358) define as duas matérias que serão tratadas, sendo a primeira a tópica de ser “a guerra necessária não só para o aumento mas para a conservação das monarquias” e, a segunda, os motivos, tanto para o rei de Portugal ter rompido a paz com Castela e se ligar com outras nações para a defesa de seus reinos, quanto para ter invadido Espanha em favor do rei Carlos III, sem, no entanto, dizer quais são estes dois motivos. No segundo parágrafo (l. 1359-1376), Rocha Pita enobrece a resolução de D. Pedro II de ter se conservado neutro frente às dissensões de Europa desde o início de sua regência até o momento da escrita do

Trata-se de Isabel Luísa Josefa (D.). Princesa de Portugal. Nasceu em 6/1/1669 e morreu em 28/10/1690. Filha de D. Pedro II e de Maria Francisca de Sabóia. Foi proclamada herdeira presuntiva do trono português pelas cortes de Lisboa em 1674. Entretanto, lhe derrogaram o título por impedimento imposto pelas cortes de Lamego que não consentiam que príncipes estrangeiros cingissem a coroa portuguesa.

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Carlos III é chamado “o Nobre”. Rei de Navarra que viveu de 1361 a 1425. Foi sucessor de seu pai, Carlos II, o Mau (1387). Seu governo foi calmo, justo e marcado pelas relações de amizade que manteve com os demais países da Europa.

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tratado, comparável à paz que Cristo trouxe quando veio ao mundo. Compara a guerra de Castela com a Púnica entre Roma e Cartago, atribuindo à primeira maior crueldade. O parágrafo terceiro (l. 1377-1398) traz a máxima política de que um rei que declara guerra por causas tão forçosas não só se fará mais justificado, porém mais glorioso, uma vez que só a ele compete o maior poder que é o de dar a paz e a guerra a seu próprio arbítrio. Apresenta dois exemplos de monarcas que deliberaram a paz ou a guerra quando assim julgaram apropriado. Agora, no quarto parágrafo (l. 1399-1446), a máxima política apresentada é de que embora seja “a paz a maior felicidade que logram os homens, é incomparavelmente maior a glória que lhes resulta dos troféus de guerra”. Para fundamentá-la, o letrado cita casos de invejas ocorridos entre personagens com laços de parentesco, como Alexandre Magno, que ambicionava os triunfos de seu pai Filipe de Macedônia111, e Tibério César, que matou seu sobrinho Germânico112 pela inveja que sentia deste. A fundamentação se estende com a exemplificação de outros diversos capitães, como Júlio César113 e Carlos quinto114.

Alusão ao pai de Alexandre, regente em 359 a.C., depois rei da Macedônia de 356 a 336 a.C. Filipe consolidou as fronteiras de seu reino e organizou um poderoso exército, vencendo as cidades gregas umas após outras. Impôs sua vontade à Grécia no congresso de Corinto, em 337 a.C., garantindo a direção da liga das cidades para si. Morreu assassinado em 336 a.C.

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Fora enviado em 14 d.C. para restaurar a supremacia de Roma, tentando subjulgar as tribos germânicas. Como foi chamado por Tibério no meio de suas vitórias, não conseguiu tal feito.

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113 Pita alude a Caio Júlio César Octaviano (100-44 a.C.). Homem de estado e general romano. No ano de 60 a.C., em conjunto com Pompeu e Crasso formou o primeiro triunvirato. Entre 58 e 50 a.C., conquistou a Gália e em 55 e 54 invadiu a Bretanha. Quando dos confrontos de Farsália, nos anos de 49 e 48, desferiu uma violenta derrota a Pompeu. Em 46, após um período de retiro no Egito, regressou a Roma como ditador. Nos idos de março de 44, foi assassinado por conspiradores.

Menção ao imperador do Sacro império romano e herdeiro dos domínios dos habsburgos que viveu de 1500 a 1558. Carlos V foi também rei de Espanha como Carlos I por herança dos reis católicos Fernando e Isabel, pais de sua mãe. Era filho de Filipe de Borgonha e de Joana, a Louca e neto de Maximiliano I. Eram tantos e tão grandes seus territórios que costumavam dizer que no seu império o sol nunca se escondia. Sustentou diversas guerras contra Francisco I. Teve que tolerar o luteranismo, não conseguindo conter sua expansão.

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A ideia de que o empreender a guerra é mais venerado do que a paz, por dar muito mais glória ao vencedor, é reiterada no quinto parágrafo (l. 1447-1481) com inúmeros exemplos de escudos de guerra utilizados pelos homens, desde os primeiros que os criaram, que não traziam pintados sinais de paz, nem hieróglifos115 civis ou instrumentos de deleite. Entretanto, são formados “dos despojos ganhados e adquiridos com excessivo esforço em rigorosas empresas já conseguidas contra valerosos homens”. Nesse sentido, há uma longa exemplificação de emblemas, cujo tema é a guerra, e não a paz, que se organiza em torno de ações particulares de caráter mitológico, e finaliza com a descrição do escudo utilizado na guerra entre as famílias dos Lancastres e Iorques, na Inglaterra. Inicia-se o sexto parágrafo (l. 1482-1534) com uma paráfrase da tópica deste discurso e com o comentário de que as nações que mais guerrearam foram as que com maior poder se constituíram. No entanto, adverte que as monarquias necessitavam empreender guerras externas não só para sua ampliação, mas também conservação, pois caso contrário correriam o risco de vivenciar guerras civis. É o caso de Roma que, embora tivesse a todos os demais reinos excedido no exercício militar, quando não havia mais a quem se opor, passou a viver conflitos internos, como as dissensões de Sila116 e Mário e as guerras travadas por Pompeu e César, que levaram à sua ruína.

O uso deste tipo de representação remonta o Egito antigo e várias localidades do Oriente antigo. Nos séculos XVII e XVIII era comum a circulação desta espécie de representação que constitui, ao lado dos emblemas e empresas, parte da gráfica pictórica de então.

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Militar e político romano que viveu de 138 a 78 a.C. e foi líder da aristocracia republicana. Em 82, derrotou Mário, o democrata, pondo fim à guerra civil e, tornando-se ditador. Obteve grandes vitórias militares contra Mitrídates. Quando o letrado diz sobre as dissensões está aludindo a guerra civil em que Mário e Sila participaram. Este episódio é copiosamente narrado na historiografia antiga como por exemplo em Plutarco, Tito Lívio e Tácito.

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A mesma tópica é desenvolvida no parágrafo sétimo (l. 15351569) na particularização sobre o reino de Inglaterra que, enquanto manteve a guerra com os franceses, teve dentro de seus domínios a paz e a concórdia, porém conseguida a restauração e assentada a paz entre as duas coroas, voltaram os conflitos entre as famílias inglesas dos Iorques e Lancastres (já citado no parágrafo quinto). Em conformidade com o parágrafo anterior, da linha 1570 a 1605 (oitavo parágrafo), tem-se que, também, a França não se viu livre do dano e prejuízo acarretados pelas guerras civis, quando as externas contra a Itália cessaram, levando não só à morte de grande número de seus vassalos, como a de dois sucessivos reis, os Henriques terceiro e quarto117. Desta forma, no nono parágrafo (l. 1606-1620), encerra-se a descrição sobre a França, com a afirmação de que os reis Luís XIII118 e XIV, este último contemporâneo do tratadista119, percebendo que a máxima de Estado de que a guerra é útil para a ampliação e conservação do reino (tópica do discurso), ocuparam os espíritos bélicos dos franceses em batalhas fora de seu país, nas quais obtiveram glória e fortuna. Baseando-se nos exemplos que apresenta, Pita reafirma a tópica do discurso, de modo parafraseado, mais uma vez.

Trata-se dos sucessivos reis de França, sendo que Henrique III, governou de 1574 a 1589 e era filho de Henrique II e de Catarina de Médicis, o último da Casa de Valois, conde de Anjou. Por sua vez Henrique IV, governou de 1589 até 1610. Cognominado O Grande, era o terceiro de Antônio de Bourbon e de Joana D’ Albert.

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Rei de França, filho e sucessor de Henrique IV. Nasceu em Fontainebleu em 1601, vivendo até 1643. Foi auxiliado pelo cardeal Richelieu, a quem nomeou chefe do conselho real contra a vontade de sua família. Fortaleceu o poder real e reuniu os estados gerais da França.

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119 Sebastião da Rocha Pita deixa explícito que Luís XIV está no poder na data de escrita do Tratado, nas linhas 1608 e 1609: “Luizes 13 e 14, hoje reinante”. Sabe-se que Luís XIV viveu até 1715, por esta indicação Pita pode ter de fato escrito o Tratado Político nesta data. Entretanto, o “hoje reinante” pode ser aplicado à data anterior.

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O letrado dá início ao décimo parágrafo (l. 1621-1638) com a afirmação de Políbio de que Atenas era governada para o emprego da guerra, e tão melhor era este governo quanto mais guerras externas empreendesse, enquanto que na paz permaneciam desatentos e confusamente governados. Dá exemplos de capitães que alcançaram maior fama neste exercício (Pirro120, Aníbal e Cipião na Ásia, África e Europa) do que os que promulgaram leis, como Trimegisto121, Minos122 e Licurgo123, em Egito, Creta e Esparta. A importância da educação dos príncipes direcionada para a guerra é abordada no décimo primeiro parágrafo (linhas 1639-1659), sendo função dos aios criá-los, desde tenra infância, com aspereza proporcional a seu trabalho. Este é o caso de Alexandre que foi criado por Leônidas124 e teve em sua formação a experiência da caça, da cavalaria, dos jogos bélicos, e o de Tibério125 que foi enviado a

120 (316-272 a.C.) Pertence à linhagem de Aquiles e de Neoptólemo a quem sucederam vários reis seus descendentes. Esta linhagem é conhecida como pírridas, porque esta personagem quando criança ostentava o epíteto de Pirro, o “vermelho”. Pirro é filho direto de Ftia e de Eácides. Nunca se dedicou a outra arte que a da guerra, para ele a mais digna de um rei. Desprezava as demais, considerando-as meros passatempos. Empreendeu várias batalhas e foi morto em uma delas. 121

Trata-se de Mercúrio Trimegisto. É o Mercúrio egípcio. Comparável a Sólon, legislador em Atenas.

Alusão ao filho de júpiter e Europa que sucedeu Astério, seu pai adotivo, no trono de Creta. Quando seus irmãos Sarpedão e Radamanto contestaram esta herança, Minos respondeu que o reino lhe tinha sido destinado pelos deuses. Acrescentou que tudo que pedisse às divindades lhe seria concedido. Foi considerado o primeiro civilizador de Creta. 122

O letrado menciona o legislador espartano do século IX a.C. que modificou a constituição de seu país para transformar Esparta em uma nação de soldados.

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124 Rei de Esparta que assumiu o poder provavelmente em 488 ou 489 a.C., durante a segunda guerra greco-pérsica. Foi considerado o maior herói entre os espartanos, tendo demonstrado sua coragem na batalha das Termópilas. 125 Menciona-se Tibério Cláudio Nero (42 a.C. – 37 d.C.). Imperador romano filho de Agripina que foi enteado e, desde 14 d.C., sucessor de Augusto. Governou cautelosamente, no entanto o seu reinado ficou marcado pelo incidente dos julgamentos por traição e conspiração. Influenciado e encorajado por Sejano, Tibério deu voz aos seus receios de assassinato. O mesmo muito contribuiu para a partida do imperador para Capri, de onde nunca mais saiu.

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Druso126 para estudar a guerra pela experiência de passar sua infância em campanha, como outros príncipes que também mandavam educar seus filhos, com este mesmo propósito. O décimo segundo parágrafo (l. 1660-1676) é crucial na organização do terceiro “Discurso”, pois ocasiona uma nítida divisão (não observada nos anteriores) em dois momentos distintos da argumentação preparatória para a conclusão deste discurso, com o intuito de provar ter sido devida a ajuda de D. Pedro II ao rei Carlos III, na invasão de Castela. Esta divisão ocorre na presença das ideias d´“o justo temor que se deve ter do aumento e opulência dos vizinhos e d´a generosa ação de restituir a um príncipe amigo católico e parente a um reino que por tantos títulos lhe pertence”, ambas, embora previstas no argumento, explicitam agora os motivos com que o rei nosso senhor rompeu a paz de Castela, constituindo-se como tópicas do restante do discurso. A partir da linha 1677 até a 1878 (do décimo terceiro ao vigésimo parágrafo), o tratadista inicia a narração das ações que comprovam e exemplificam o primeiro ponto, que é o temor que o monarca deve ter do aumento dos reinos vizinhos ao seu, pela longa particularização de guerras ocorridas em virtude da inveja do poder. Por outro lado, da linha 1879 até a 1961 (do vigésimo ao vigésimo quinto parágrafo) para fundamentar sua argumentação, Pita descreve vários episódios em que príncipes católicos prestaram auxílio a outros, sendo estes infiéis ou não127. A partir desta longa exemplificação, justifica e descreve a ajuda de D. Pedro II ao rei Carlos III, de Áustria, na guerra a Castela. Sendo assim, com relação ao primeiro ponto, faz referências no décimo terceiro parágrafo (l. 1677-1691) às guerras ocorridas entre

126 Refere-se a Druso César (c. 13 a.C. – 23) General romano, filho de Tibério César e Vipsânia. Dominou uma insurreição de legiões romanas na Panônia e governou o Ilírico. Este episódio ocorrido entre o pai e o filho também é narrado por Tácito nos Anais. 127

Católicos ou não.

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os gregos contra Tróia, os rútulos contra os latinos, os albanos e sabinos com os romanos, os persas com os armênios e os chineses com os tártaros. No décimo quarto parágrafo (l. 1692-1724), há uma introdução a respeito da disposição, poder e opulência dos domínios espanhóis, e sobre a inveja que os reis cristãos sentiam uns dos outros da união de Leão a Castela, de Castela a Aragão, Catalunha a Aragão e de França a Navarra. Reforça a ideia de que Portugal, apesar de se ver temeroso com o aumento de Espanha, sempre teve reis invencíveis, confiou no valor de seus vassalos e se assegurou com maior força nos repetidos vínculos de parentesco. É reiterada, no décimo quinto parágrafo (l. 1725-1748), a ideia do ciúme e temor que sempre tiveram os príncipes, ao citar os italianos, que sentiam o aumento de seus vizinhos, tanto internamente, como no caso da guerra contra os duques de Milão e os reis de Nápoles, como externamente, quando se uniu a estes, na defesa contra França, cujos domínios haviam crescido após terem invadido a Espanha. No décimo sexto parágrafo (l. 1749-1769) é brevemente narrada a guerra ocorrida entre a república veneziana e seus estados vizinhos, comandados por Júlio II128, em razão do ciúme provocado por esta república ao ter alcançado seu maior auge desde sua fundação. Narra-se, no décimo sétimo parágrafo (l. 1770-1803), a vontade de Luís XI129, rei de França, de abater e arruinar as casas de Borgonha

128 Referência a Júlio II, Pontífice. Papa de 1503 a 1513. Formou a Liga da Cambrai com a Áustria, a França e a Espanha, para contrabalançar o poder de Veneza. Iniciou a construção da Basílica de São Pedro e fundou o Museu do Vaticano.

Rocha Pita menciona o rei da França, filho e sucessor de Carlos VII que nasceu em Bourges em 1423 e morreu em 1483. Fortaleceu o poder real mediante intriga e suborno, lutou contra Carlos, o Temerário. Anexou a Borgonha e a Picardia, sendo considerado por muitos como artífice da “unidade nacional”.

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e Flandres, que o ameaçavam, e que somente foi alcançada após a morte de Carlos, o Bravo, duque destes estados. Por ter sido sua vitória de forma não conquistada, o monarca preferiu não incorporar estes estados à casa de França, através do casamento de seu filho com a filha herdeira do duque, com o risco de, a partir desta linhagem, novas batalhas internas pudessem surgir. Segundo a narrativa, o rei de França prefere a conquista de outras casas vizinhas, deixando as duas primeiras livres para a invasão alemã para torná-las enfraquecidas e desunidas, cessando, assim, os temores de França. O letrado faz uso de dois exemplos no décimo oitavo parágrafo (l. 1804-1822) para continuar justificando os motivos que levaram os reinos a empreender a guerra pelo temor do aumento do poder de seus vizinhos. No primeiro exemplo, tem-se o caso dos imperadores de Constantinopla que, após guerra com a Grécia, invadiram os reinos de Sicília e Nápoles, desunindo-os e forçando-os a se entregar aos aragoneses, por serem, estes últimos, menos poderosos, tornando a vizinhança mais segura. Cita, no segundo, a ajuda dos florentinos ao duque de Milão na conquista da república veneziana, de modo a evitar que esta se tornasse senhora de quase toda a Itália. O décimo nono parágrafo (l. 1823-1853) é o penúltimo da primeira parte da divisão ocorrida no terceiro “Discurso”, cuja importância se verifica ao justificar a declaração de guerra de Portugal a Castela. É composto a partir de uma máxima de estado – “trabalhar no abatimento da vizinhança poderosa” – que é uma paráfrase do primeiro ponto apresentado no décimo segundo parágrafo. Salienta o poder que a Espanha sempre exerceu sobre toda a Europa, mesmo quando fazia oposição à França, e mais ainda quando estes dois reinos se uniram, fazendo com que Portugal, com temor desta vizinhança, introduzisse a guerra em Castela, com o

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apoio da Inglaterra e Holanda130. Ainda, com o objetivo de valorizar a atitude portuguesa de não esperar que a guerra ocorresse em seus domínios, o letrado traz à memória os exemplos mitológico e romano, colocados como semelhantes à invasão de Espanha131, da vitória de Perseu132 em terras estrangeiras com o auxílio de Palas133, e de Roma que enviou Cipião à África, para saúde de sua república. Metáfora do reino como corpo. Rocha Pita mantém política, historiográfica e moral do costume (consuetudo) que concebe a monarquia como um corpo e as ações em seu benefício como remédios. Esta tópica potencializa o sentido dos discursos de aconselhamento, deliberativos. Pita, no vigésimo parágrafo (l. 1854-1878), vale-se do argumento de autoridade de Justino134, ao fazer o relato dos exemplos particulares de

Sebastião da Rocha Pita refere-se, no Tratado, a uma liga de nações feita antes da guerra a Castela, podendo-se inferir que seja a aliança feita com Inglaterra e Holanda em 1703 em favor do rei Carlos III de Áustria.

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131 Lembro que esse tipo de comparação é recorrente na prosa histórica dos Seiscentos e Setecentos ibéricos. 132 Do grego Perseús. Filho de Júpiter e Dânae. Seu avô era rei de Argos e o encerrou em uma arca de madeira junto a mãe, lançando-os ao mar. Na ilha de Sefiro, após libertá-los, o pescador Díctis (etimologicamente, a rede) o educou. Perseu foi incumbido por seu pai adotivo (Polidectes), rei desta ilha, de buscar a cabeça de Medusa, sendo protegido por Minerva e Mercúrio nesta empresa.

Epíteto ritual de Minerva. Era filha do deus Tritão. Palas e a deusa exercitavam-se juntas na arte da guerra, mas um dia, puseram-se a lutar entre si. No momento em que Palas ia atingir Minerva, Júpiter interpôs-se, elevando sua égide. Assustada, a jovem não pode aparar o golpe da adversária e foi mortalmente ferida. Em sua homenagem, Minerva adotou o epíteto de Palas, e fabricou, consoante uma variante tardia, em nome da morta, o Paládio.

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Historiador romano do tempo dos Antoninos. No século II da era cristã. Escreveu uma Historiae Philippicae, em 44 livros que se tem como adaptação modernizada para o tempo da vasta Historiae Totius Mundi, de Pompeu-Trogus, contendo a crônica do império da Macedônia desde sua origem. A história de Justino é uma das “fontes” para a narrativa das campanhas de Alexandre Magno, tendo-se imposto aos leitores pela elegância e vivacidade do seu estilo. Esta obra teve uma edição princeps em 1470. A primeira edição é a inglesa de 1564, posteriormente teve uma outra em 1677 (Ad usum delphinum). Justino caracteriza-se como auctoritas de Rocha Pita.

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Davi135 e Marco Antônio136, monarcas que, por esperarem a guerra em casa, acabaram por perdê-la. Encerra a descrição fazendo uso das regras de milícia do imperador Leão137, de que a guerra deve ser ofensiva, sempre que possível travada em terras estrangeiras, e retoma as ideias de Justino, ao afirmar que, “quem assalta vai com maior ânimo do que quem espera”. Quanto ao segundo ponto apresentado no décimo parágrafo, que é o da “generosa ação de dar ajuda a um príncipe que se vai valer da amizade do outro e buscar seu favor”, observa-se no vigésimo primeiro parágrafo (l. 1879-1889) a afirmação de que é próprio da grandeza dos reis não faltarem a esta virtude, não só por magnanimidade, mas por obrigação. O letrado questiona no vigésimo segundo parágrafo (l. 1890-1897) o valor de toda a majestade do rei de Bitínia138 e de Ptolomeu139, rei de Egito, que se negaram ao auxílio de Aníbal e Pompeu, respectivamente.

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Não se trata do Davi bíblico, pois a cronologia não confere.

Cita-se o político e soldado romano que combateu na Gália ao lado de Júlio César e viveu de 83 a 30 a.C. No ano de 44, como cônsul, procurou garantir o título de rei para César. Após o assassinato deste, formou, com Lépido e Octaviano (mais tarde Augusto), o segundo triuvirato. Em Filipos, no ano de 42, derrotou Bruto e Cássio. O Egito foi-lhe atribuído simultaneamente com a parte do império que lhe cabia. Manteve uma relação amorosa com a irmã de Octaviano, Octavia. Declarada a guerra a Cleópatra e a Marco Antônio pelo senado em 32, foram ambos vencidos em 31, na batalha de Ácio. Suicidou-se. 136

137 Provavelmente, trata-se de Leão VI, o Filósofo ou Sábio. Imperador de 886 a 912, cujo reinado foi agitado. Promulgou algumas leis que ele próprio compôs e foram fixadas em Tratado de tática, Homílias e Oráculos. Rocha Pita se refere a uma suposta obra denominada Regras de Milícia que deve ser a mencionada a cima. 138 Antigo reino da Ásia Menor, ao sul do Ponto-Euxino, ao Norte da Gálacia e da Frígia. A E. era limitada pela Paflagônia e a O. pela Mísia.

Trata-se de Ptolomeu XII, rei do Egito, filho de Ptolomeu XI. Ascendeu ao trono em 51 a.C., e foi casado com sua irmã Cleópatra, a quem mais tarde afastou do poder. Morreu afogado no Nilo, quando lutava contra César, que reintegrou Cleópatra no trono.

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O vigésimo terceiro parágrafo (l. 1898-1913) inicia-se com o comentário geral acerca dos príncipes católicos nunca terem duvidado da gloriosa ação de “acudir a um príncipe despojado ou ofendido”, mesmo sendo este infiel, particularizando-o, em seguida. Assim o fizeram, D. Afonso de Castela140 ao rei de Sevilha141, o imperador Carlos V ao rei de Túnis142 e o rei D. Sebastião143 ao de Marrocos144.

Há vários Afonso de Castela, entre os quais o VI, o VII, o VIII e o X. Pelo trecho não foi possível inferir de qual se trata.

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Pita menciona como rei de Sevilha Aben Hamet. Encontrei a personagem Aben, como “o filho de”, em línguas semíticas e Hamet como sendo o mouro do século XVIII, filho de um secretário do rei Mequinez que matara seu príncipe em legítima defesa e fugira para Mazagão. Hamet chegou a Lisboa em 1720. D. João V considerou-o criminoso arrependido; viu-o cheio de tendências de conversão ao catolicismo, o que foi decerto o seu melhor empenho para ser perdoado. Recolhido no seminário de S. Patrício, aprendeu o catecismo e se dedicou a receber o batismo. Recebeu o nome de João de Deus, sendo os reis os seus padrinhos. Portanto a personagem de que Pita fala é o filho deste mouro.

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Trata-se de Mulei Hassem, ao qual Pita grafa Muleasses.

(1554-1578) O Desejado. Rei de Portugal, neto de D. João III. Era filho do infante D. João e de D. Joana de Áustria, filha de Carlos V de Espanha. Somente ascendeu ao trono após atingir a idade de 14 anos, após morte de seu avô. D. Sebastião morreu na célebre batalha de Alcácer Quibir com apenas 24 anos, deixando a questão da sucessão em aberto novamente. Em agosto de 1574, o rei foi pela primeira vez a Marrocos, sem sucesso. Nos anos seguintes, preparou a grande expedição contra o xerife marroquino, episódio que Rocha Pita se refere. D. Sebastião procurou o apoio papal e de seu tio, Filipe II, que o tentou demover até o fim e com quem se encontrou em Guadalupe. D. Sebastião recuperou Arzila e conduziu-se a morte nos campos de Alcácer Quibir. O seu desaparecimento originou o chamado sebastianismo, um dos mitos mais duradouros da história de Portugal com a crença de seu regresso em uma manhã de nevoeiro. Este sebastianismo faz com que o caráter providencialista na concepção de história dos séculos XVII e XVIII lusobrasileiros ficasse ainda mais evidente na leitura do Tratado Político. Este episódio de Alcácer Quibir, ao lado da batalha de Ourique, é recorrente não só em Rocha Pita, mas em Padre Antônio Vieira, da História do Futuro, entre outros letrados.

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O letrado está apontando para Abd-El-Melek Ben Mohamed-Achchack, conhecido como Mulei Maluco, porque os portugueses no oriente sempre traduziram ulk-Mulk (chefe, governador) por Maluco. Imperador de Marrocos de 1576 a 1578. Quando soube da ascensão de seu irmão Abdallah ao trono, fugiu para Argel onde se conservou até a morte daquele. Conseguiu que o rei da Turquia, Amurat III, desse-lhe uma carta para os habitantes de Argel em que lhe recomendava que o auxiliassem na sua empresa contra Marrocos. Depois de vencer seu sobrinho Mahamed, sucessor de Abdallah, entrou em Fez. Mohamed, apesar de novamente derrotado junto de Salé, reconquistou o trono à Espanha e a Portugal. Filipe II desatendeu as suas pretensões, mas D. Sebastião aproveitou o ensejo para realizar a sua sonhada expedição a Marrocos, onde foi desbaratado e morto. Cf. nota anterior. Abd-El-Melek que, ao que parece, fora envenenado, morreu durante a batalha.

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Tendo-se referido à ajuda prestada aos príncipes “infiéis”, o tratadista confere no vigésimo quarto parágrafo (l. 1914-1938) maior valor aos auxílios realizados por reis a outros igualmente católicos. Estes auxílios versam sobre Maximiliano I145, empreendedor da restauração do ducado de Milão aos filhos de Ludovico Sforza146 e, Luís XII147, rei de França, conquistador do reino de Navarra para Henrique de Labrit148. Segue, no parágrafo vigésimo quinto (l. 1939-1961), com os socorros de Francisco, duque de Bretanha, ao conde de Aquimunda e os de Jorge Castrioto, imperador de Albânia, a Fernando, rei de Nápoles149. Após oito episódios (nos quatro últimos parágrafos) em que são descritos o valor e a glória de um nobre prestar auxílio a outro – nos quatro primeiros apenas exemplificadas as ações sucedidas e, nos demais relatadas as históricas e particulares eventos -, o texto contido entre as linhas 1962 e 1975 (parágrafo vigésimo sexto) desperta a atenção para as razões que levaram D. Pedro II a ajudar e socorrer o rei Carlos III. O “Discurso” vinha, até este ponto, enumerando “estas” razões precisas para proceder no auxílio a reis e tratando do apoio de um católico a outro católico. Neste parágrafo, além “destas”, como se

145 Menciona o imperador do Sacro Império Romano que nasceu em 1459 e morreu em 1519. Filho de Frederico III. Consolidou a união das possessões de seu país. 146 Trata-se de Luís Maria Sforza. Político milanês, também conhecido como Ludovico, o Mouro. Nasceu em 1451 e morreu em Loches em 1508. Era filho de Francisco Sforza, duque de Bari e de Branca Maria Visconti. Pertenceu a liga concluída entre o papa Alexandre VI, o imperador Maximiliano I e o rei de Espanha Fernando V para lutar contra os turcos.

(1462-1515) O “Pai do povo”. Rei da França a partir de 1498, quando subiu ao trono em substituição a Carlos VIII. Nasceu em Blois. Chefiou a fracassada revolta contra a regente Ana de Beaujeu, mas distinguiu-se nas lutas contra a Itália em 1494.

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Provavelmente Pita se refira a Henrique D´Albert.

Trata-se de Fernando II que viveu de 1469 a 1496. Ascendeu ao poder em 1495, com a abdicação de seu pai Afonso II. Com ajuda de Gonzalo de Córdoba, expulsou os invasores franceses.

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não bastassem, uma maior razão é acrescentada, que é o fato de ambos serem descendentes da mesma linhagem da casa real portuguesa. Enaltece a virtude que todos os antecessores de Carlos III professaram na religião católica, desde o primeiro imperador de Áustria. Faz, no vigésimo sétimo parágrafo (l. 1976-2008), narração das ações que levaram a casa de Áustria a ser eleita por Deus como a maior coroa da Terra150, desde o início de sua fundação, sendo perpetuada sucessivamente desde Frederico III151, até o senhor imperador Leopoldo I152, sendo esta a augustíssima casa real mais respeitada em toda a Alemanha. No início do vigésimo oitavo parágrafo (l. 2009-2034), Pita declara que nunca houve imperadores mais cristãos e defensores da Igreja que os encontrados na Casa de Áustria e reafirma essa constância na religião católica ao deixar claro que desta jamais saíram heresiarcas, como é o caso da Alemanha, sendo comuns os motivos de união entre D. Pedro II e Carlos III, por seus vínculos de sangue, em pelo menos quatro “linhas” sucessórias. Da linha 2035 até a 2061 (parágrafo vigésimo nono) tem-se o desenho da genealogia de Carlos III, a partir das quatro “linhas” sucessórias

150 Noto que a designação utilizada, neste caso, é semelhante àquela atribuída à coroa de Portugal, por ocasião de D. Afonso Henrique, na Batalha de Ourique (“Discurso segundo”, parágrafo quinto). Percebo ser a narração também muito semelhante, seu início principalmente. Por que haveria dois reinos de ser aclamados por Deus como maior coroa da Terra, a não ser pelo fato de ambos terem ligações genealógicas como aconteceu entre a casa de Áustria e Portugal?

Alusão ao imperador do Sacro Império Romano filho de Ernesto de Habsburgo, duque de Estíria e Catarina. Frederico III nasceu em 1415, em Innsbruck, Áustria e morreu em 1493. Envolveu-se em guerras civis e internacionais.

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Leopoldo I. Imperador do Santo Império Romano Germânico. Esteve no poder de 1658 a 1705. Nasceu em 1640. Era o segundo filho do imperador Fernando III e de sua primeira mulher, Maria Ana, filha de Filipe III de Espanha. Foi eleito imperador em Fracfort em 1658. Esteve em antagonismo com o rei Luís XIV de França. Seu reinado esteve em guerra a maior parte do tempo. Foi aliado da Polônia contra Carlos X da Suécia. Esteve envolvido na guerra de sucessão da Espanha.

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portuguesas (as de D. Duarte153, D. João I, D. João, infante de Portugal154 e D. Manoel155) e Frederico III de Áustria. A partir da linha 2062 até a 2119, os dois últimos parágrafos do terceiro “Discurso” apresentam a conclusão do tratado, embora este tenha em cada um dos seus “discursos” conclusões preliminares do texto como um todo, e particulares de acordo com estas partes. Nesse sentido, o trigésimo parágrafo (l. 2062-2078) sintetiza na expressão “a estes fundamentos políticos” os inúmeros e incontáveis exemplos, acompanhados de seus devidos argumentos, que louvaram a resolução de D. Pedro II em romper a paz e declarar guerra a Castela, entendendo-se que são encontradas nessa atitude “as mais sutis políticas de estado” e “os melhores dogmas do governo das monarquias”, virtudes descritas pelo texto como herdadas por D. Pedro II de todos os seus antecessores. Em contrapartida ao concurso de prerrogativas que levaram à ação de D. Pedro II, o texto, no trigésimo primeiro parágrafo (l. 2079-2119), encerra com as alegorias da navegação156 e da astrologia em relação ao governo das armas, para transmitir a ideia de que é necessário não só seguir o que foi determinado pela Providência, mas também se guiar através dos acontecimentos temporais, em um equilíbrio destes dois poderes, sem nunca deixar de buscar em Deus a fundamentação para as ações virtuosas, visto que Ele sempre as glorificou. Fica patente

Chamado o “Eloquente”. Foi rei da segunda dinastia e o 11o rei de Portugal. Filho de D. João I, rei de Portugal, e de D. Filipa de Lencastre, rainha de Portugal. Nasceu em Viseu em 1391, e morreu em Tomar em 1438. Casou-se com Leonor de Aragão e teve como descendentes João, Filipa, Afonso, Maria, Fernando, Leonor, Duarte, Catarina e Joana.

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Filho de D. João I e de D. Filipa de Lancastre. O menos notável dos da “ínclita geração”. Nasceu em Santarém em 1400, e morreu em Alcácer do Sal em 1442. Foi o 3o condestável do reino, sucedendo a D. Nuno Álvares Pereira, e administrador da Ordem de S. Tiago. 154

155 Manuel I. Rei de Portugal de 1495 a 1521. Nasceu em Alcochete em 1469. Filho do infante D. Fernando (duque de Viseu, filho do rei D. Duarte e irmão de D. Afonso V) e da infanta D. Beatriz, filha do infante D. João e neta de D. João I. É o rei dos “Descobrimentos”. 156

Alegoria copiosamente encontrada desde Horácio, das Odes.

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a noção de que a guerra a Castela foi empreendida, além dos motivos da tópica desse discurso (argumento do “Discurso terceiro”, parágrafo primeiro, l. 1350-1358), por razões providenciais. Em síntese, Sebastião da Rocha Pita escreveu um tratado político com objetivo de justificar a ação de D. Pedro II no rompimento de paz com Castela em favor do rei Carlos III. Para tanto, a linha de raciocínio é silogística, podendo-se entender o “Primeiro discurso” como sendo uma premissa maior – só no equilíbrio das potências é possível conservar o mundo – o segundo, como uma premissa menor – a escolha de Portugal para ser o maior império do mundo equilibra as potências – e o terceiro, como uma conclusão – Portugal deve declarar guerra a Castela para a conservação do mundo. Para Aristóteles o silogismo retórico é o entimema usado na oratória e na poesia para levar a audiência à dedução e, consequentemente, a persuadir (ARISTÓTELES, Retórica. I, 2, 6). Entretanto, este mesmo expediente retórico pode ser observado na organização de cada um dos três “discursos”. No primeiro, após apresentar a premissa maior de que os homens erigiram reinos, os quais vieram a se arruinar devido à sua ambição de governar o mundo todo e não de o equilibrar em potências distintas com limites próprios, e pela falta de fundamentação na religião católica, na premissa menor são demonstrados e exemplificados exaustivamente casos particulares em favor desta afirmação, concluindo-se que a conservação do mundo só pode ser obtida através do equilíbrio das repúblicas. No “Segundo discurso” toda uma afirmação em chave teológica é utilizada, a partir da premissa maior de que Deus escolhe os reinos constantes na fé católica, para defender a ideia de que Portugal sempre teve constância e fidelidade, únicas, na religião católica, concluindo, portanto, que Portugal foi o escolhido, entre tantos outros reinos, para ser o maior império do mundo.

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Assim, pode chegar a seu propósito já afirmado, no “Argumento” do “Terceiro discurso”, com a premissa maior de que as guerras são necessárias para aumento e conservação das monarquias, sendo que o letrado discorre na premissa menor a respeito de Portugal ter empreendido uma guerra justa a Castela e consequentemente, que a monarquia portuguesa será conservada. Ocorre que, dentro da premissa menor do rompimento de paz com Castela, Pita repete a técnica do silogismo, de forma a provar que apesar de D. Pedro II sempre ter se conservado neutro frente às dissensões em Europa, um rei pode declarar a guerra quando julgar justo e necessário, por ser esta uma prerrogativa do governante, além de ser a guerra gloriosa a quem a empreende e ter fortalecido todos os impérios que a fizeram. Dessa forma, a declaração de guerra torna D. Pedro II mais glorioso e justo, além de mais fortalecido o reino de Portugal. Como se não bastasse, é feito o desmembramento desta premissa menor em dois novos silogismos, para fundamentar a justificativa tanto do emprego da guerra a Castela, como da ajuda ao rei Carlos III. No primeiro, mostra que todos os impérios que temeram o aumento dos vizinhos declararam guerra fora de seus reinos. Como Portugal se viu temeroso do aumento de Castela, declarou a guerra. No segundo, apresenta uma vasta exemplificação, acerca da tópica da guerra justa, de ser próprio da grandeza de um rei dar ajuda a um príncipe católico, da mesma linhagem e amigo. Como Carlos III é um rei católico e descendente da casa real portuguesa, a atitude de D. Pedro II é grandiosa. As tópicas que figuram no Tratado político se encaminham desde o início do texto em tom de elogio e troca de favores do letrado ao vice-rei157 e à cabeça do Estado158 em uma relação que mantém e

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O marquês de Angeja, d. Pedro Antônio de Noronha.

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D. Pedro II.

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repõe a hierarquia monárquica. O texto pode ser lido como um espelho de príncipes de fundo providencialista e corporativista. Verifica-se, no Tratado político, uma história que se projeta em ações sucedidas e particulares, in ordo naturalis, por uma primeira pessoa, que é singular e plural. O sentido de tal concepção pode ser identificado inclusive como o de “átomos providenciais” (PÉCORA, 1994, p. 160) que reafirmam a Igreja Católica e o poder monárquico, por meio do elogio a uma resolução do rei de prestar ajuda e apoio a outro rei católico e da mesma linhagem. O elogio se constrói também em pequenas partículas da providência pulverizadas ao longo do texto, em especial no “Discurso Segundo”, toda vez que Pita argumenta em chave católica corporativista, como uma espécie de providencialismo corporativista. A história, nos séculos XVII/XVIII, define-se, pois, pela diferença no modo de imitar da narração, em contraposição à poesia. Sendo assim, João Adolfo Hansen afirma, a partir de Michel de Certeau, que desde a Poética de Aristóteles, o discurso da história foi diferenciado do da ficção não propriamente pelo compromisso de dizer a verdade sobre o passado, antes pelo compromisso de afirmar que a história é uma versão do passado despojada de ficção. Isto é, pretendendo dizer a verdade do tempo, mas não podendo assumir com todas as letras a pretensão de ser verdadeiro, o discurso da história constituía ficção como irrealidade e, pelo avesso da constituição, o irreal da ficção o define como real: “foi assim”. A mesma distinção aristotélica de história/poesia supunha, porém, que tanto o historiador quanto o poeta aplicam esquemas retóricos nos discursos que narram. Usam endoxa, topoi ou

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lugares comuns que, nos Tópicos I, Aristóteles define como opináveis, opiniões que parecem verdadeiras para todos os sábios ou para a maioria deles e que devem ser aplicadas para a constituição do evento no discurso. Ou seja: os endoxa formulam os mythoi, os discursos que são o a priori do discurso historiográfico ou poético, pois definem a plausibilidade do que se narra conforme a opinião, fazendo com que o narrado se assemelhe ao que é tido como um acontecimento verdadeiramente visível e dizível. Obviamente, o mesmo Aristóteles propõe, os opináveis da história distinguem-se dos da poesia, pois são enunciados de existência, enquanto que a poesia opera com enunciados de essência. Mas ambos aplicam opináveis para constituir os eventos que narram (HANSEN, 1994, p. 14).

O Tratado político é um exemplar de prosa histórica, acadêmica e inscrita no gênero epidítico, é uma técnica, um fazer (téchne), pela narração do encômio e de ações sucedidas e particulares em verossimilhança a muitos casos idênticos conhecidos pela recepção. Faz, portanto, a atualização do modelo antigo das autoridades, em favor da persuasão, num gênero que prescreve o docere, ao repetir aquilo que se sabe, em uma espécie de reconhecimento, de revelação do que estava encoberto, de representação, como uma reapresentação que visa a “saúde” do “corpo” político. Rocha Pita reapresenta, revela e representa o destino de Portugal, a vocação prognosticada para que este reino seja “a maior monarquia do mundo”, a “eleita”, segundo escolha e desígnio de Deus. Podem ser identificadas várias partículas de providencialismo e de corporativismo no Tratado político. Concepção homóloga e ideia de história providencialista acham-se principalmente em Vieira e em auctoritates

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biblícas não mencionadas diretamente por Rocha Pita159, mas subjacentes à sua escrita e citados nominalmente por Padre Antônio Vieira na História do futuro. Como demonstrei, o segundo discurso do Tratado político é escrito do início ao fim em chave providencialista. Nele se verificam os fundamentos para que Portugal seja considerado o escolhido de Deus para formar “tão grande império”160. No mundo católico, a questão teológica do providencialismo fundamenta questões políticas, como as da expansão e da conversão dos gentios. Nele, os eventos históricos são o lugar específico de Deus, isto é, um topos causal, uma teleologia que fundamenta o providencialismo, por ser Deus a condição de possibilidade de tudo, inclusive das práticas de representação que são signos Dele. A sucessão dos dias, por exemplo, é histórica (é história) e crônica da providência que atualiza, a cada momento, os acontecimentos históricos. Articulação de um relato inspirado (iluminado). No Tratado político, veicula-se uma noção católica comum e bastante difundida nos séculos XVII e XVIII, que é a da luz da Graça. A questão da luz é uma analogia tomista da causa e efeito. Rocha Pita fez do discurso efeito segundo de uma Causa Primeira. Em termos teológicos, a história é efeito, causa segunda, signo análogo de Deus. A história se subordina ao tempo e é indiretamente produto de Deus, ação da humanidade e a providência em palavras. Deus produziu o livro da natureza. O homem escreve segundo essa perspectiva. A história é signo profético de Deus, cujo modelo é fornecido por Abraão, Davi, Salomão, Cristo. Na dedicatória do Tratado, Rocha Pita se inventa como sombra da figura real ao postular que seus escritos são

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A não ser o profeta Daniel citado no “Prólogo”.

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Linhas 735-736, p. 47.

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sombras que necessitam de luz e ao pedir iluminação ao interlocutor dos textos. Segundo João Adolfo Hansen, de um modo geral, os teólogos leram estas marcas de Deus no mundo e nos textos segundo três graus de proximidade: a sombra, representação confusa e distante de Deus; o vestígio, representação distante, mas distinta; a imagem, representação próxima e distinta. Desta tripartição, recorre outra distinção: uma criatura é a sombra de Deus pelas propriedades que se referem a Ele, sem que se especifique o gênero de causa pelo qual Ele é considerado; o vestígio é a propriedade de um ser criado que se refere a Deus, considerado como causa eficiente, exemplar, final; a imagem, enfim, é toda propriedade da criatura que supõe Deus, não só como causa, mas também como objeto (1987, p. 45).

Deste modo, o texto, como criatura material, pode ser sombra ou vestígio de Deus e do vice-Cristo, na figura de D. Pedro Antonio de Noronha, Marquês de Angeja. O escrito está para a sombra, assim como o rei está para a luz161, em uma espécie de alegoria tipificadora, em um topos personarum que distingue também a hierarquia monárquica. O sentido teológico, neo-escolástico, é reciclado no (e por meio do) texto. Tem-se com esta metáfora a ideia de que o corpo místico do rei, ou seja, a dupla pessoa do rei na esfera do poder político e na sua posição divina é o que fornece sentido para o discurso. A dupla pessoa do rei

161 A questão da luz é também neoplatônica. Na dicotomia luz/sombra tem-se a figura alegórica da verdade.

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se distingue na pessoa física e na pessoa ideal, fictícia, mística, como uma identidade supra-individual. Um topos da perpetuidade do poder público absoluto para além da sucessão temporal, cuja identidade é sagrada nos séculos XVI e XVII, ampliado no século XVIII, conforme noção presente no texto analisado. Este topos aplica-se ao soberano do Estado absoluto. João Adolfo Hansen lembra, com Kantorowics, que a reativação escolástica aplica, em Portugal, um esquema tipológico à figura do Rei: assim como Cristo é, em sua humanidade, instrumento da divindade, também o Rei é proposto duplamente, como sendo o que é por aquilo que está nele mesmo e além dele mesmo (HANSEN, 1992 [b], p. 351).

A propósito, Hansen comenta a doutrina jurídica contra reformista do pacto de sujeição, na definição de Suárez e outros, assim: como corpo místico do reino como a unidade de uma vontade coletiva que se aliena do poder e o transfere para a pessoa mística do Rei, que se torna cabeça do corpo político do Estado subordinado, submetido ou súdito. No contrato, a soberania real é sagrada porque figura a vontade coletiva que se aliena nela, segundo o modelo jurídico da escravidão, recebendo em troca os privilégios que a hierarquizam em ordens e estamentos. Celebrando a pessoa real ou a cabeça, a comunidade ou corpo também se autocelebra, pois demonstra reconhecer e revalidar o pacto que a funda como natureza de corpo político de ordens e estamentos hierarquizados. Por outras palavras, a apologia das virtudes da cabeça é entendida como defesa dos interesses do corpo (HANSEN, 1995, p. 44).

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Tem-se, como fundo, uma lógica argumentativa que propõe a “verdade”, – igual, relativa ou proporcional a uma essência teológicopolítica que fundamenta o poder e o mantém em termos de uma segunda pessoa, que é o rei e, porque tal, capaz de iluminar os corpos a sua mercê, inclusive o discurso que o celebra – cuja faculdade tendencial é instituir-se, portanto, sedimentar-se politicamente. Toda instituição, todo organismo não se sustenta sem essa verdade nos séculos XVII/ XVIII. Pécora propõe que o lugar da transcendência se prolonga na história, esta não se pode pensar senão como prolongamento daquela (PÉCORA, 1994, p. 203). Historicizar-se é próprio de Deus, buscar o sagrado em si é próprio da história e, porque não, próprio das formas de representação da época, do mundo católico, em particular do Tratado político. Convém lembrar, ainda, que no século XVI Giorgio Gilio inverte o preceito aristotélico da superioridade da poesia, que trata do universal, sobre a história, arte das particularidades, afirmando que a história é superior, porque é sempre história sacra, conforme o providencialismo católico que ratifica a doutrina da luz da graça infusa na consciência e no tempo como projeto profético de Deus para sua Igreja, como estabelecido em Trento (HANSEN, 1994 [b], p. 30-31).

No final da dedicatória do Tratado político, Rocha Pita pede que Deus proteja o rei com a frase “Guarde Deus muitos anos”. Esta frase é lugar comum na prosa encomiástica do mundo católico. Aqui, a tópica retórica revela finalidade persuasiva e demonstra o caráter teológico na questão da proteção divina. Nos casos citados de Rocha Pita, e de outros letrados ibéricos, esse pedido acompanha a tópica da razão de Estado, uma vez que a ideia de “guardar” semantiza a

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conservação. Ora, se o pedido é que Deus conserve o rei, solicitase também que conserve o Estado, já que a tópica se faz em termos de aumento e conservação da monarquia. Conservar e aumentar, saúde e Estado são tópicas da razão de Estado católica, aplicadas ao corpo político, do qual o rei é a cabeça. A metáfora do “corpo/ cabeça” remonta a ideias políticas medievais, das quais decorre o caráter “natural” ou naturalizado da constituição social, por extensão, uma fisiologia do corpo humano ou ordem da natureza, ideias ligadas ao pensamento jurídico medieval. A tópica da saúde do corpo é neoescolástica. O Estado é organismo, cujas circunstâncias difíceis eram pensadas como afetos que ameaçavam a saúde; pela “concórdia”, como pacto, buscava-se a harmonia. O sentido das tópicas do Tratado político é analógico. A analogia é conceitual, isto é, conceito utilizado para permitir o encontro do humano com o divino na história, uma vez que análogo e/ou analogia tem sentido tomista de participação que as criaturas têm em Deus enquanto Seus efeitos. A analogia é estabelecida, escolasticamente, na relação entre o natural e o divino, e utilizada no discurso como base para o ornato, entre conceitos engenhosos e os sinais divinos no mundo, entre as figuras da técnica discursiva e as do sistema providencial. Parece ser este o tipo de prova aceita por essa narrativa como figura ou elocução constituinte do tipo de raciocínio na concepção de história uma vez que a analogia fundamenta e regula a representação. Essa prosa empenha-se como análogo de Deus que, em sentido tomista, leva à verdade. Assim, a verdade proposta pelo Tratado político é conseguida por tópicas teológico-retóricas providenciais, associadas à relação paternal de Deus para com o povo. Vontade de Deus associada à providência, como eleição, aspecto visto em Vieira, de acordo com o que afirma Pécora (1994, p. 151), e igualmente verificável em Rocha Pita.

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Como define Hansen, em sua reativação neo-escolástica dos séculos XVI e XVII, a história é uma compilação de contingentes passados que, ciceronianamente, formam um análogo prático para a ação e experiência presentes. Como magistra vitae, a história fornece, enquanto narração política, a exemplaridade dos modelos da experiência moral prudente, vivida por varões ilustres e proféticos, espelho de príncipes. Acrescentando-se do objetivo pedagógico, é previdente: História do Futuro é bem o título que figura a especularidade da doutrina da história como repetição diferencial e conservação da experiência passada como padrão futuro. Ordem natural escrita por Deus no tempo, a circularidade da tipologia implica obediência política, uma vez que o governante é causa Segunda da Causa primeira e desobedecer-lhe é não só um erro político, mas também pecado contra a vontade (1989, p. 152).

O modelo é, portanto, constitutivo da pessoa. A pessoa é “memória”, “vontade” e “inteligência”. Talvez a característica de maior relevância no Tratado político seja a mobilização dos exempla dialéticos, ou seja, a utilização de uma grande cópia de exemplos para construir e sustentar sua argumentação. Entendendo-se, aqui, dialética como uma técnica cognitiva de divisão e análise, segundo as dez categorias aristotélicas – substância, matéria, forma, acidente, propriedade, causa, efeito, fim, simpatia e semelhança – e não por meio de seu sentido hegeliano de tese, antítese e síntese, o pensamento opera para formar juízos, segundo o critério antigo do Estagirita para o conceito. No Organon, Aristóteles ensina que o raciocínio é dialético “quando parte de opiniões geralmente

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aceitas, prescrevendo que são verdadeiras e primeiras aquelas coisas nas quais acreditamos em virtude de nenhuma outra coisa que não sejam elas próprias”. Prossegue dizendo que são “opiniões geralmente aceitas aquelas que todo mundo admite, ou a maioria das pessoas, ou filósofos – [...] todos, ou a maioria, ou os mais notáveis e eminentes pensam ser”. As noções de divisão e análise são visíveis na ordenação discursiva do Tratado político, em sua disposição em três discursos. Cada discurso apresenta argumento ou argumentos dispostos em separado da narrativa propriamente dita, como já disse. A narração ecfrásica e parafrástica descreve e orna exemplarmente as tópicas da invenção, mobilizando casos históricos semelhantes ou contrapostos ao que está sendo narrado em entimemas silogísticos etc. Tem-se com isso um discurso empenhado em demonstrar argumentos plausíveis em defesa de um rei e de um poder legítimo e naturalmente constituído, cujo poder monárquico absoluto é representado. No entanto, dividir e analisar é o que se denominava, nos séculos XVII e XVIII, anatomia. Assim, ao dispor os três discursos como partes de um entimema silogístico macro textual, dividindo cada um dos discursos específicos também silogisticamente, Rocha Pita propõe uma anatomia argumentativa que funciona em direção ao fim demonstrativo-deliberativo, captando ou capturando a adesão do destinatário. O texto de Rocha Pita, porque confeccionado a partir das categorias mencionadas acima de imitação, emulação, divisão e análise, pode ser entendido como ciceronianamente honesto, para homens honestos e de mãos e razão igualmente honestas. E porque honesto, justo, pois justa é a expressão da verdade, segundo o que o gênero e o pensamento de sua época veiculam. Cícero tem como honesto um homem prudente, justo, forte, cujas ações são mediadas

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pela ideia de temperança. O conceito de honestidade é pensado pelo orador a partir dessas quatro noções. É com elas que Pita constrói o retrato de D. Pedro II e autoriza-se a fazê-lo, afirmando-se digno disso. Diz Cicero, nos Ofícios (L. I, VII, VIII; L. II), que todas as ações virtuosas emanam da honestidade e que o decoro é inseparável dessa qualidade, porque tudo que é honesto é, igualmente, decoroso. A honestidade é a mais útil das virtudes, porque dela se faz o bem comum. O texto de Rocha Pita, por ser honesto é útil, sendo uma prosa pragmática, cuja função é interferir na ação e prática humanas e não um mero virtuosismo de linguagem e retórica laica, exibição de hipérboles e elogio fútil. Como prosa de aconselhamento, o Tratado político visa o bem comum, como disse, identificando nas ações narradas e nos caracteres apresentados, dispostos e pateticamente ornados, equilíbrio e conservação da monarquia, porque em consonância com a felicidade coletiva, comunitária e corporativa que o bem comum garantido pelo rei, como cabeça, proporciona. Essa tópica da felicidade é central na discussão aristotélica moral de que Rocha Pita se apropria e relê. Para Aristóteles, da Ética a Nicômaco (I, IV, 15) a tópica identifica o ser feliz com o bem fazer e agir. O texto é, pois, decoroso. Funde o passado, exemplarmente narrado, com o tempo presente de sua enunciação, no empenho constante de empreender ações honestas e virtuosas. Em mundos católicos, esse é um dos principais decoros políticos interpretado providencialmente, cuja memória dos casos se faz por meio da erudição que autoriza a ideia de eleição de um povo, como o português, como causa segunda de Deus na história. Decoro político, aqui entendido como teológico-político, racionalização da hierarquia que define o Estado soberano do Antigo Regime como harmonia das partes de seu corpo concebida na metáfora estóica da amizade aristotelicamente definida e proveniente de usos letrados de Sêneca e de Tácito.

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O texto de Rocha Pita, em semelhança a outros de seu gênero, faz da história um particular. No entanto, ao selecionar quais eventos narra, ensina que a história antiga emulada e a dos séculos XVII e XVIII são prosas prescritivas, estabelecidas a partir do decoro, que orienta o pensamento ou o engenho, quando letrados se propõem a redigir a história. Nesse sentido, há tópicas selecionadas, inventadas, dispostas e ornadas em uma instituição que demonstra, além dos assuntos, o uso também da máquina retórica persuasória e defensora de argumentos específicos do gênero. Essa prosa faz uma espécie de seleção e de eleição próprias do discurso, segundo critérios ordenativos dialéticos, como análise e divisão em curso. Para usar um termo de Pécora: não em “repouso” (1994, p. 2630).

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Recebido em 23 de dezembro de 2011 Aprovado em 23 de janeiro de 2012

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Tópica e loci communes no renascimento Elaine Cristine Sartorelli USP

RESUMO: Este artigo visa a comentar o surgimento e a importância das compilações de loci communes no Renascimento, especialmente a partir de Agricola e de Erasmo de Rotterdam. PALAVRAS-CHAVE: Agricola. Erasmo de Roterdã. Compilações de Lugarescomuns. Renascimento literário. ABSTRACT: This paper aims to analyze the emergence and importance of commonplace books in the Renaissance, specially from Agricola and Erasmus of Rotterdam. KEYWORDS: Agricola. Erasmus of Rotterdam. Commonplaces Books. Literary Renaissance.

Em Aristóteles, os topoi pertencem ao campo da dialética e são parte da invenção de argumentos que se dá quando as proposições repousam sobre opiniões já aceitas, de forma que raciocínio seja guiado, num processo lógico, a partir das premissas extraídas daquelas. O que ele propõe é encontrar uma linha de raciocínio que traga à luz aquilo que favorece o argumento, ao mesmo tempo em que afasta tudo aquilo que seria obstáculo para a argumentação. Sua Tópica dá, pois, uma definição de tópico e um método capaz de possibilitar o

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raciocínio sobre problemas a partir de opiniões geralmente aceitas. Regis (1993, p. 132, nota 4) contou nesse tratado 337 normas que são tópicas. Estas se dividem em duas partes: primeiro, uma instrução sobre um ponto de vista do qual considerar um argumento particular; e, em seguida, uma regra, a qual deve ser aceita como verdadeira, a partir da qual se pode debater contra ou a favor do argumento. E, tendo em vista que os problemas podem ser particulares ou universais, e que aquilo que for estabelecido para estes últimos, de caráter geral, vale também para os outros, uma vez que aquilo que vale para o todo vale para uma parte sua, a finalidade é demonstrar que um predicado que se aplica a todos os casos também se aplica a alguns casos. Os topoi são, assim, lugares conhecidos dos quais esses argumentos podem ser retirados. O processo é portanto indutivo, e, fazendo pontes entre o universal e o particular, confirma também as premissas inicialmente aceitas que possibilitam, por sua vez, uma conclusão para o problema segundo a lógica. Um silogismo pode ser dialético (as premissas são endoxa, e sua conclusão é resultado de um raciocínio lógico) ou retórico (quando tem intenções persuasivas, mais do que demonstrativas, e seu desfecho contém a possibilidade da discussão)1. Interessa-nos particularmente este último, no qual, tendo-se partido de uma premissa geralmente moral aceita pelo senso comum, é possível chegar-se a uma conclusão igualmente lógica em si mesma, ainda que aqui não forçosamente demonstrável, mas antes provável. Ambos servem-se dos topoi, assim como o silogismo elíptico, o entimema. Neste, os topoi de Aristóteles são, segundo Dyck (2002, p. 116), especialmente importantes, pois,

1 Pode ser ainda demonstrativo (quando suas premissas são verdadeiras ou aceitas como tal), mas este pertence ao domínio da ciência.

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argumenta, são “relações binárias que podem substituir a implicação para construir os silogismos generalizados (frouxos, fracos) chamados entimemas”. Esse mecanismo, por sua vez, implica que a “dedução retórica pode então ser entendida como uma generalização da dedução lógica”2. Isso ocorre porque o entimema é também uma estrutura de inferência, apenas suas premissas podem ser prováveis. Para Bitzer (apud MURPHY; KATULA, 2003, p. 69), o recurso ao entimema é uma brilhante estratégia do rétor, que, assim, exige a participação do ouvinte para criar o sentido do argumento. Isso significa que o ouvinte é que fornece a conclusão e, ao chegar ele próprio à solução (igualmente lógica segundo a plausibilidade) do entimema, é como se persuadisse a si mesmo... A própria necessidade de persuadir, porém, nos remete à retórica, e talvez nos permita afirmar que o silogismo é o instrumento do dialético, enquanto o entimema é a ferramenta do rétor3. Em Cícero, os tópicos são os lugares em que os argumentos são encontrados (Topica 1.3-5; Ad Familiares, VII, 19) e a Tópica é um sistema para a descoberta de argumentos ou a arte de descobrir argumentos, mas sua meta, mais do que a dialética, é a retórica, e mais especificamente a retórica judiciária. A Tópica ciceroniana fornece um sistema gerador de argumentos que podem ser aplicados não apenas nas disputas em regra com vistas à demonstração lógica, mas também

2 I have argued that Aristotle´s topoi are, in fact, binary relations that may replace implication to construct the generalized (relaxed, weak) syllogisms called enthymemes. If the binary relation of implication is considered a topos, – “implies” – “then the syllogism can be seen as a special case of the more general (weak) enthymeme. Although neither rhetoric nor logic has noted it to date, rhetorical deduction may then be understood as a generalization of logical deduction.

No livro II do Ecclesiastes, Erasmo, ao tratar da invenção das provas (probationes), aborda a argumentação no dialético e no rétor (silogismo e entimema, retrospectivamente) (948 C-949 C, CHOMARAT, p. 1066).

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naquelas situações em que estão em jogo causas, como o tribunal e a assembleia (MACK, p. 133). Os loci são sedes, lugares em que argumentos são encontrados. Os tópicos cabem em todos os discursos, e é tarefa do orador selecioná-los segundo sua utilidade e conveniência. “A primeira coisa a ser entendida é que não há nenhuma discussão à qual um tópico ou outro não seja aplicável; mas que diferentes tópicos são convenientes a temas diferentes”, diz no capítulo XXI. Outro ponto importante é que os lugares eram os argumentos intrínsecos à causa. Em De Inuentione (I, XXVI), Cícero distingue os loci das circunstantiae, estas extrínsecas: “continentia cum ipso negotio, quae semper affixa esse uidentur ad rem neque ab ea possunt separari e in gestione negotii [...], quae negotiis attributa sunt: locus, tempus, modus, occasio, facultas”. Quintiliano, cuja versão dos tópicos segue a de Cícero (5.10.54-94) exprime a mesma antítese em V, X, 20-23; em V, X, 104 ele dá circunstantia como o oposto de “iis quae cuiusque causae propriae sunt”. Em Cícero aparecem também as auctoritates, isto é, citações consagradas de autores igualmente conhecidos e legitimados por seu prestígio e que servem de testemunho, aportando credibilidade à causa em questão. Em Aristóteles, os lugares eram bases de dedução para se argumentar a partir das opiniões dos homens sábios; em Cícero, esses autores são citados como que num mecanismo de auto-validação do argumento (MOSS, 2002, p. 25). Segundo Ann Moss (2002, p. 24), os topoi parecem, pois, ser três coisas ao mesmo tempo: o processo do raciocínio dialético em que são universalmente aplicáveis; os pontos específicos para cada assunto que são mais úteis para a retórica; e as proposições que formam as premissas dos diferentes domínios do conhecimento. Nós trabalharemos neste artigo com estes três sentidos para a palavra locus, na medida em que aparecem às vezes entrecruzados, às vezes com

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definições claramente estabelecidas, mas encaminhando-nos para o momento em que à acepção de titulus, rubrica, verbete e sedes argumenti acrescentaremos também loci communes como termo técnico. Não nos será possível aqui dar prosseguimento à cronologia dos loci. Apenas citamos de passagem a enorme influência de Boécio, para não mencionarmos o prestígio do manual Ad Herennium, atribuído a Cícero na Idade Média, período ao final do qual os lugares haviam se tornado maximae propositiones, algo como regras axiomáticas de deduções necessárias (MOSS, 2002, p. 44). Apenas lembramos também a existência, a partir do século XII, dos florilegia, ou coleções de flores auctorum, isto é, de citações de autores clássicos, as quais serviam não apenas como auctoritas moral, mas também como elemento de embelezamento do discurso. Essa questão adquire grande importância no Renascimento em virtude de um aspecto apontado por Mack (2011, p. 6) e por Green e Murphy (2006, p. xvii): havia, naquele momento, uma grande dependência da retórica para com a dialética, e esta foi um grande impulso para mudanças naquela. E não apenas pelos mesmos motivos existentes na Antiguidade, já brevemente apontados, mas também porque os humanistas, herdeiros da tradição clássica ciceroniana, eram igualmente herdeiros da escolástica medieval, com seus debates de lógica rigorosa e minuciosa. E ambas as concepções, a do humanismo receptor e emulador dos clássicos, retórica, e a da lógica aristotélico-escolástica, dialética, que nos parecem hoje divergentes, conviviam nas universidades dos séculos XV e XVI; ambos lidavam com problemas de inferência, ambos tentavam um retorno aos padrões da Latinidade antiga (MACK, 1993, p. 13-14), embora o fizessem em graus diferentes e com diferentes motivações. Naquele momento, os topoi eram elementos para produção de argumento, tanto quanto princípios organizadores dos textos. Retórica (varietas, inventio, copia

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etc.) e dialética (esta concentrada nas técnicas argumentativas) eram então estudadas conjuntamente. Se a maior parte dos manuais de retórica dedica-se à invenção, esta, por sua vez, mostra como encontrar argumentos convenientes para cada tipo de caso. Assim, a invenção inclui o argumento. Há uma lógica que preside tanto a escolha dos argumentos quanto o vocabulário e as figuras com que abordá-los. Não nos deve causar espanto que a acusação de barbari, geralmente aplicada então contra aqueles que não manejavam bem a língua latina, pesasse também contra os dialéticos em textos de Petrarca (Familiares, I.7), Salutati (De laboribus Herculis) e Bruni (Dialogus ad Petrum Paulum Histrum). A intersecção entre a retórica e a dialética tem em De inventione de Agricola e no De copia de Erasmo seus exemplos máximos. A influência deste último sobre a produção de tratados retórico-pedagógicos tornou a questão ainda mais profunda e abrangente. Segundo Cave (1997, p. 281), “a abundância de texturas e de cores retóricas vai de par com a diversidade dos materiais ou dos topoi”. Se a copia é um ideal estilístico, as técnicas para adquiri-la são derivadas da dialética, num processo que levou a que esse conhecimento acabasse por ser organizado em loci communes e formalizado em sententiae. De inventione dialectica, de Agricola, de 1479, é uma obra dividida em três livros. O Livro I é inteiramente dedicado aos tópicos, e desenvolve-se a partir de Quintiliano, Boécio e Aristóteles; o Livro II responde à questão “que é a dialética?” a partir de Aristóteles e das Partitiones Oratoriae de Cícero, e mostra como preparar o material para a invenção tópica (a matéria), como expor e argumentar a partir dele (o instrumento) e o uso prático dos tópicos (o tratamento, a prática). E o Livro III mostra como arranjar o material encontrado pela invenção para movere e delectare, promovendo assim o encontro entre a dialética e a retórica. Outra forma de interpretar o formato do livro,

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segundo Peter Mack (1993, p. 124) seria vê-lo como uma construção sobre as três tarefas do orador: docere (Livros I e II), movere (parte 1 do Livro III) e delectare (parte 2 do Livro III). Este formato seria, em si mesmo, a síntese da tentativa de Agricola (e que será a do século XVI) de unir retórica e dialética. Agricola faz um grande esforço para simplificar a explicação acerca da natureza dos tópicos (“definire quod sit locus”), esclarecendo aquilo que em seus antecessores parecia estar implícito, e recorrendo mesmo a exemplos mais grosseiros, a fim de tornar o entendimento mais fácil (“id quo facilius accipi possit, crassiore quidem, sed apertiore exemplo ostendamus”). Sua definição: “non aliud est locus, quam communis quaedam rei nota, cuius admonitu, quid in quaque re probabile sit, potest inueniri”. Em 1541, Bartholomaeus Latomus o explicou ainda mais em seu Epitome Commentariorum Dialecticae Inventionis: “locus est communis rei nota cuius admonitu quid in re quaque probabile sit facillime inveniri potest: ut definitio, genus, caussae, eventa, notae sunt et veluti signa, quibus admonemur in re quaque explicanda ab eis ducenda esse argumenta” (fol. 5, apud ONG, 2004, p. 342, nota 104). O método de Agricola é explicado no Livro II. Primeiramente, o estudante deve recolher e analisar os argumentos encontrados nos melhores autores, observando as estruturas argumentativas implicadas e classificando as relações tópicas subjacentes a eles. Esse procedimento serve tanto para visualizar o método de cada autor, como para obter familiaridade com os tópicos e seus usos. Então ele dá instruções para a descrição e para comparar e combinar as descrições tópicas de duas coisas, as quais devem ser ligadas, a fim de fazer um caso. O orador é designado para tratar de um assunto ou proposição. Ao aplicar um tópico particular a uma das palavras-chave do tema designado, o orador deveria ser capaz de chegar à outra palavra ou

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conceito. Percorrendo uma sucessão fixa de “entradas” ou cabeçalhos em relação a uma palavra-chave particular, o orador produz uma lista de palavras e ideias, que é a “descrição tópica”, a qual deve prover pontos de partida argumentativos. Todo esse processo de associação verbal é presidido por uma lógica que faz com que algumas descrições sejam aceitas para determinado cabeçalho e não o sejam em outros. Agrícola exemplifica o processo com a descrição tópica de “filósofo”, que reproduzo a seguir, seguindo o resumo de Peter Mack (1993, p. 130-131)4: Definição: homem que busca o conhecimento das coisas divinas e humanas, com virtude. Gênero: homem. Espécie: estóico, epicurista, peripatético, acadêmico etc. Propriedade: desejo de conhecimento, com virtude. Todo: o mesmo como homem (parte do mundo). Partes: o mesmo como homem (braços, pernas). Conjugados: Filosofia, filosofar. Adjacentes: palidez, magreza, tremor, testa enrugada, retidão de vida, elevação dos valores morais, amor ao trabalho, falta de preocupação com as tarefas cotidianas, desprezo pelo prazer e pelo sofrimento. Ações: estudar, ficar acordado até tarde, trabalhar, sempre tentar fazer o que quer que melhore a vida humana.

O quadro completo consistiria de vinte e quatro lugares, divididos em dois grupos: internos e externos. Os internos podem ser intrínsecos (definição, gênero, espécie, propriedade, o todo, a parte, o conjugado) e extrínsecos (adjacente, ato e sujeito); os externos podem ser cognatos (agente, fim, efeito e intenção), circunstâncias (lugar, tempo, posse), acidentes (contingência, anúncio, nome, comparação, semelhança) e repugnâncias (o oposto, o diferente).

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Causa eficiente: outro filósofo, dores, devoção ao estudo. Causa final: viver bem e pacificamente. Efeitos: escritos, melhorias nos valores morais, viver melhor, fama. Destinata: tudo o que for produzido pela causa da filosofia que segue. Connexa: algum tipo de riqueza, fama, discípulos, respeito. Lugar: lugar de nascimento, de ensino. Tempo: jovem ou velho.

Em outro texto, a carta De formando Studio Epistola ad Iacobum Barbirianum, Agricola descreve um método que viria a ser considerado pelos autores do norte europeu como a origem da prática dos loci communes. A técnica, provavelmente aprendida em Ferrara de um dos seguidores de Guarino (MACK, 1993, p. 235), consistia em escrever uma palavra-chave (Justiça, Amizade, Misericórdia, Paz, Temperança etc.) no alto de cada página de um livro em branco. Assim, quando estivesse lendo os autores clássicos, o estudante poderia anotar ali as sentenças que lhe chamassem a atenção e tivessem ligação com o verbete. Quando lhe surgisse a ocasião de tratar de um daqueles temas, as frases anotadas forneceriam uma citação perfeitamente cabível, ou que ao menos lhe daria um ponto de partida. Erasmo refere-se a algo parecido no livro II do De copia, em que prescreve o método de coletar exemplos e ditos para uso no embelezamento das composições, e propõe um livro em branco, no qual citações e ditos sejam anotados sob verbetes morais. Erasmo dá a entender que este método lhe “veio à mente” (veniebat in mentem), mas o mais provável é que ele tenha concebido a ideia a partir de Guarino via Agricola ou, ainda mais secundariamente ainda, via Hegio, o qual seguia Agricola (MACK, 1993, p. 309).

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Erasmo se pergunta como fazer para possuir um estoque de lugares à disposição. Em primeiro lugar, diz, é preciso ter lido todos os autores ao menos uma vez na vida, pois a leitura produz um thesaurus, um supellex de figuras e de argumentos. Tendo-os lido, é preciso fazer um fichário, um repertório, como que um “butim de adágios” (CHOMARAT, 1981, p. 514); sob cada titulus organiza-se o catálogo de vícios e virtudes ou de “coisas humanas”. No De copia, Erasmo insiste em que “aquele que decidiu ler por inteiro os autores de todos os gêneros (porque ele deve absolutamente fazer isso uma vez na vida, se quiser ser considerado entre os letrados) reunirá para si verbetes o mais numerosos possível (“quam plurimos locos”). Ele extrairá uns dos diferentes gêneros de vícios e de virtudes com suas subdivisões, outros dos principais aspectos da condição humana, aqueles que se mostram mais frequentes quando se quer persuadir; e convirá que ele as classifique segundo suas afinidades e oposições”. São exemplos da primeira categoria: piedade (com suas subdivisões e seu contrário, a impiedade, mais a superstição), fé, bem-aventurança; exemplos da segunda: longevidade, velhice imatura, juventude precocemente sábia, sorte extraordinária, memória excepcional, súbitos reversos da fortuna5. Os loci devem, pois, ser organizados por temas e cada gênero será dividido em espécies, considerando-se também a noção oposta. Um exemplo: na palavra-chave Piedade, há duas divisões em espécie: para com Deus e para com os homens, sendo que esta última subdivide-se em piedade para com os pais, os filhos e os benfeitores. A noção oposta será a Impiedade, que, obedecendo à mesma lógica, subdividir-se-á

5 No Methodus, de 1516, ele se dirige ao futuro pregador com as seguintes recomendações: “trata-se de ter algumas rubricas teológicas (locos aliquot theologicos) que a gente mesmo prepara ou que são recebidas e tomadas de outros: a gente repartirá tudo o que ler como em pequenos ninhos (nidulos), a fim de ter imediatamente à disposição, para quando parecer oportuno sacá-los à conveniência: fé, jejum, suportar os males, amparo dos enfermos, cerimônias, piedade etc.” (514-5).

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também em duas: para com Deus (a Superstição) e para com os homens (como é o da indulgência inepta dos pais para com seus filhos). Há, pois, um método que deve ser observado: para se tornar um bom leitor, é preciso ler; para se tornar um bom escritor, é preciso escrever. E, como uma ponte essas duas atividades, há a lista de topoi e o livro de lugares-comuns, os quais não apenas registram, mas também classificam o conhecimento obtido nos livros antigos, preparando-o para estar à disposição para ser reutilizado. Ao comentar o De copia, Betty I. Knott (apud WEILAND; FRIJHOFF, 1988, p. 144) aponta não apenas a proverbial pressa com que parece Erasmo parece tê-lo sido escrito6, mas também algumas imprecisões. Por exemplo, muitos dos exemplos da edição de 1512 extraídos dos textos clássicos não trazem qualquer referência sobre sua origem ou autoria, e outros tantos parecem ter sido inventados pelo próprio Erasmo. É frequente ainda que apenas parte do conteúdo diga respeito ao cabeçalho. Mesmo as edições revistas posteriores, de 1514, 1526 e 1544, não sofreram alterações substanciais, permanecendo, como a original, “ricas, desiguais, confusas, obscuras” (apud WEILAND; FRIJHOFF, 1988, p. 144). Chomarat (1981, p. 632), por sua vez, reivindica para Erasmo a fundação, neste tratado, de “um tipo de lei geral, de verdade reconhecida – aquele que se chama um lugar-comum – que ele formula de uma frase sentenciosa”, a máxima, a qual pode ser introduzida em qualquer parte do discurso (no capítulo De sententiis, do De copia), uma vez que permitem suscitar a emoção, dão valor ao argumento, servem de transição. Para este autor francês, o que a segunda parte do De Copia faz é “desenvolver

6 Acreditava-se que Erasmo escrevia muito rapidamente, mas relutava em reler ou revisar seus escritos. Ele mesmo faz referência a essa sua fama no delicioso Dialogus Ciceronianus.

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a ideia de como desenvolver uma ideia, unindo o exemplo ao preceito” (CHOMARAT, 1981, p. 736). Os lugares-comuns são estudados em dois momentos: primeiro, na análise dos modos de provar e de argumentar, e depois no método para se constituir um estoque ordenado de lugares7. Os lugares-comuns fornecem proposições para várias causas: os loci communes, uulgares ou generales, como seu nome indica, podem ser empregados não importa a causa, e são muito úteis para o elogio e o vitupério. Erasmo enumera treze lugares-comuns, mas adverte que haveria sexcenta millia e não prescreve absolutamente nenhum princípio por meio do qual classificá-los. Uma única proposta seria ordená-los por contrários, em pares: celibato ou casamento, por exemplo. Certos excertos podem estar relacionados a vários lugares diferentes ou mesmo opostos, e, segundo Chomarat (1981, p. 755), nada mais erasmiano que essa “percepção do equívoco ou da polivalência”. Mesmo quando fica claro que os loci também se fazem presentes na leitura filosófica ou, antes, moral, de um texto, Erasmo mostra-se totalmente desprovido de dogmatismo acerca da questão de como dividir e ordenar vícios e virtudes: que cada um o faça segundo sua própria conveniência. Outra solução seria apelar a Cícero, Valério Máximo, Aristóteles ou Tomás de Aquino, conforme o caso. O ponto de vista e o objetivo do orador não são os mesmos do filósofo. Juan Vives é outro importante humanista que lidou com a questão dos loci, aconselhando o orador a organizar seus tópicos como “em

7 Ainda em De copia (LB I 83 E e II E), Erasmo distingue circunstanciae ligadas às pessoas (natio, patria, sexus, aetas, educatio etc.) e as ligadas às coisas (causa, locus, occasio, instrumentum, tempus, modus etc.). As circunstâncias servem para amplificar ou atenuar, dar colorido ou confirmar a argumentação. Quanto aos lugares, Erasmo retoma a definição ciceroniana: locos, hoc est sedes argumentorum et probationum.

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ninhos”. Seu método era anotar também, em arquivos separados, os “assuntos da conversa diária”, as formulae dicendi, as sententiae, os “passos difíceis extraídos dos autores”, as “matérias que parecem dignas de nota para teu professor ou para ti mesmo” (BOLGAR, 1973, p. 273). Vives parece ter tido o método de Agricola em vista ao tratar da memória naquilo a que chamou “quadro da mente”. Quando descreve a razão percorrendo os conteúdos da memória, as operações que ele cita referem-se à associação de ideias e são expressas em termos de relações tópicas (MACK, 1993, p. 318). A razão progride por meio de tópicos, os quais correspondem, portanto, ao processo da razão (“adquirir e organizar conhecimento”, nas palavras de Vives). A palavra-chave em Vives para a habilidade de manusear este processo é prudentia, precisamente o termo usado por Agricola para designar o conhecimento dos tópicos (MACK, 1993, p. 318). Outro dos livros mais importantes e influentes no século XVI foi precisamente o Loci communes rerum theologicarum, publicado por Melanchthon em 1521. Esse tratado, que, segundo Lutero (De servo arbitrio, 1525), não é melhor apenas do que a Bíblia, tenta oferecer um completo e claro resumo da doutrina protestante, organizando os dogmas cristãos em loci, à maneira da lista de Pedro Lombardo. Por arranjar as definições dos termos teológicos comuns à maneira aristotélico-medieval, Melanchthon inaugurou uma corrente que futuramente viria a ser chamada de “Escolástica luterana”. Em um texto anterior, De Rhetorica Libri tres, de 1519, Melanchthon insiste no ensino de ambas as matérias, retórica e dialética. Isso porque “ex dialectica pendent omnia, quae ut sint initia studiorum, reliqua ex suo modo temperant. Porém, iam explosa ex scholis rhetorica, vide quam sit exigua, quam sit manca, quam sit inutilis dialectica”. Ele também aconselha os alunos em treinamento para a disputatio que preparem listas de loci communes sob rubricas ou

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verbetes (capita) e define loci communes como “certas regras gerais de viver, das quais os homens são persuadidos pela natureza, e que eu poderia não injustamente denominar de leis da natureza”8. Por isso, diz, os tópicos são sedes argumenti, mas o que ele deixa implícito é que não visam a gerar um argumento, mas antes a amplificar e apoiar aquilo a que se chegaria automaticamente (MACK, 2010, p. 110). Em outro livro, De dialectica libri quatuor, Melanchthon busca a definição de cada coisa e ensina que, acerca de cada uma delas, devem ser feitas quatro perguntas: 1. Que é?; 2. Quais são suas causas?; 3. Quais são suas partes?; e 4. Quais suas funções ou efeitos?. Formular a proposição é a base da invenção tópica, mas ele próprio confessa que não vai se alongar no assunto, uma vez que o leitor deve conhecer Agricola. Apesar disso, inclui máximas. Em Erotemata dialectices, de 1547, Melanchthon acrescenta uma lista de 25 tópicos para a invenção de argumentos. Em outra obra, De locis communibus ratio, explica que, por loci communes, ele quer dizer “todas as formas comuns de todas as coisas a ser feitas, de todas as virtudes, de todos os vícios e de todos os outros temas comuns, que estão largamente em uso e que podem surgir nos diferentes incidentes dos assuntos humanos e cartas” (CR, XX, 695: “voco igitur locos communes omnes omnium rerum agendarum, virtutum, vitiorum, aliorumque communium thematum communes formas, quae fere in usum, variasque rerum humanarum ac literarum causas incidere possunt”). Em Elementa Rhetorices, Melanchthon acrescenta uma grande inovação (o genus didascalicum) à tradicional tripartição dos gêneros

Uma interessante aproximação poderia ser feita aqui entre esta afirmação, feita em um tratado de retórica, e outra, teológica, acerca da acepção de “Lei” de Melanchthon. Sobre esta, tratei brevemente no capítulo Lei e Evangelho de minha dissertação de Mestrado, Liberdade e livre-arbítrio no pensamento de Miguel Servet: Teologia e Retórica, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em 2006.

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segundo as causas (iudiciale, deliberatiuum, demonstratiuum). O gênero didascálico propõe cinco perguntas (Que é isto? Quais são suas partes ou espécies? Quais suas causas? Quais seus efeitos? E que coisas se lhe opõem?) e analisa questões a partir de cinco tópicos (definição, causas, efeitos, partes e coisas opostas). Para evitar maiores explicações, remete o leitor a seus tratados de dialética. Quanto aos loci communes, eles podem ser usados como prova ou para amplificatio, e versam não apenas sobre vícios e virtudes, mas sobre tudo aquilo que, nas artes, pode ser ensinado. Anotar flores, no entanto, sem qualquer método, não leva a nada, pois demonstra que o coletor de lugares não tem um objetivo em mente, ou então nada compreendeu do livro lido. “Este estudo tem pequena utilidade e, por seu nome, causa muito dano, porque, entre as pessoas tolas, produz a convicção de aprendizado, e nada é mais pernicioso do que isso” (“hoc studium exiguam utilitatem habet, et hoc nomine plurium nocet, quid in stultis doctrinae persuasionem parit, qua nihil est perniciosius”). É importante, pois, observar que lugares-comuns só são “corretamente compreendidos” quando “as artes em que estão contidos forem perfeitamente conhecidas” (“sciendum est igitur, ita locos communes recte cognosci, si artes illae, in quibus versantur, perfecte cognitae fuerint”). Não são, pois, apenas ornamentos, mas suporte das proposições. Assim como o Cícero de De Oratore, Melanchthon requer para o orador o máximo conhecimento possível de todos os assuntos. E o livro de lugares-comuns é um auxiliar no processo de aquisição e organização de conhecimento. Assim, os estudantes deveriam persistir na anotação de sententiae extraídas de suas leituras, segundo o método prescrito por Agricola em De formando Studio. Assim como para Melanchthon, também para Erasmo os topoi são parte da didática e do processo de memorização: para aprender (e apreender) algo, é preciso organizar aquilo que foi compreendido, repartindo-o em loci: “que o orador tenha diante de si os lugares, as

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classes e as fórmulas (“locos et ordines quosdam ac formulas”), tudo pronto, a fim de registrar no lugar apropriado (suo ordine) tudo aquilo que encontrar de notável” (AMS 1-2, 120, 6-8, apud CHOMARAT, 1981, p. 515). Como nos lembra Plett (2004, p. 134), a inventio renascentista está ligada de perto com a memória. Antes da invenção da imprensa por Gutenberg, o receptáculo mnemônico dos lugarescomuns era a memória individual de cada orador ou o manuscrito. A retórica clássica está voltada para a memória individual com seu postulado de uma memoria artificialis, composta de lugares e imagens. No Renascimento, esse método, fortemente marcado pela oralidade, estava já obsoleto, e fora substituído pelas Miscellanea, que eram listas ou catálogos de “ajudas para a memória”, e nos quais estava contida a ideia de que todo o conhecimento humano poderia ser concentrado em pequenas e breves entradas. Para Erasmo, a verdadeira memória repousa exclusivamente sobre a compreensão, e apenas aquele que de fato compreendeu um texto pode ordená-lo com vistas a reaplicá-lo9.

Quanto ao procedimento que consiste em: 1. fixar na memória a disposição de um local ou de um espaço vasto e complexo; e 2. associar cada elemento do texto a um elemento do espaço ou da imagem escolhida como ajuda ou suporte, este já havia sido criticado por Quintiliano, porque exige em realidade um duplo esforço da memória. Erasmo retoma a objeção; em sua hostilidade para com todos os apoios artificiais da memória, ele vai ainda mais longe, pois critica o hábito escolar de ditar e de tomar notas. No colóquio Ars notoria, de 1529, Erasmo critica também o procedimento mnemotécnico que consiste em associar a palavra ou ideia a desenhos, e zomba de um tratado que prometia a seu leitor o aprendizado de todas as disciplinas liberais em 14 dias: “o livro encerra diversas figuras de animais, dragões, leões, leopardos e círculos variados ou estão escritas as palavras gregas, latinas, hebraicas ou bárbaras”. Deve tratar-se de Logica memoratiua de Thomas Murner, de 1509, em que pequenos desenhos simbolizavam as noções lógicas: um grilo, a enunciação; uma lagosta, o predicável; um peixe, o predicativo; etc. cada capítulo é ilustrado por uma figura parecida com uma carta de tarô. É a aplicação à lógica de um procedimento analisado por Quintiliano, XI, 2, 17-26. (CHOMARAT, p. 516-517). Erasmo tampouco se mostra entusiasta de uma tática muito utilizada então, que consistia em confeccionar cartazes ou tabelas sinóticas (tabulas depicta) que o estudante dependurava na parede de seu quarto, a fim de ter sempre diante dos olhos nomes geográficos, nomes dos pés utilizados na versificação, das figuras gramaticais, genealogias etc., a fim de os aprender ainda que de certa forma inconsciente, ou então de gravar sententiae em objetos familiares – anel, caneca etc. – ou nas portas, paredes ou janelas do apartamento...

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Thompson (1978, p. xxxviii) apresenta uma questão relevante do ponto de vista da história do livro como objeto. Segundo ele, manter um livro de anotações neste formato parece algo tão óbvio que podemos nos perguntar por que Erasmo se dá ao trabalho de insistir nisso. E a razão é que, embora o emprego de lugares-comuns e “tópicos” seja “tão antigo quanto Aristóteles”, somente a partir do século XVI se podia contar com uma invenção recente: o livro de papel. A disponibilidade de papel e a popularização do livro advinda da impressão fizeram do hábito de tomar notas uma inovação no XVI10. E é a partir desse momento que se pode falar no surgimento de coletâneas de lugares-comuns, como um estoque ordenado de lugares com que provar e argumentar, uma coleção de anotações que o compilador poderia acessar e reutilizar mais tarde. Nem sempre distinguindo claramente entre loci e loci communes, o Renascimento organiza então compêndios e antologias de exemplos e citações cujo material se oferece para reutilização em invenções imitativas ou secundárias. Embora a estrutura e o propósito destes volumes variassem enormemente, eles se distinguiam dos livros de citações aleatórias por estarem organizados sob chamadas convencionais, ou “entradas” de temas, como verbetes de um dicionário. Esses livros eram, além de uma forma de preservação do conhecimento das citações, anedotas, máximas, versos, trocadilhos etc., também uma coleção de ideias universais usadas na argumentação, com propósitos persuasivos, com

10 Thompson (1978, p. xxxviii) interpreta a importância e a prevalência desta prática entre os alunos pela cena em que Hamlet, ato I, cena V, versos 107-8, exclama, quando lhe ocorre uma sententia: My tables! – meet it is I set it down that one may smile, and smile, and be a villain! Na tradução de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes: “Minhas tabuletas! É conveniente lá anotar que é possível sorrir, sorrir e ser velhaco” (São Paulo: Abril, 1978. p. 224, sob licença da Ed. Nova Aguilar, Rio de Janeiro).

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a vantagem adicional de o material citado estar legitimado previamente pela auctoritas dos autores citados. Coleções de lugares-comuns não consistem de regras abstratas, mas de exemplos concretos. Cada locus communis é como uma lei geral, de verdade reconhecida, formulada numa frase sentenciosa, carregada de imagens que, repetidas regularmente, tornaram-se convencionais. Livros de lugares-comuns dizem respeito à memória, o que assume forma tanto material quanto imaterial, e é como uma gravação daquilo que uma memória seletiva e organizada poderia parecer. Partem da ideia de que partes de textos ou autores são mais dignas de imitação do que outras, e constituem o “musée imaginaire” de André Barbault ou o “western canon” de Harold Bloom11. O auditório (e no XVI já se pode falar em público leitor) tinha expectativa quanto ao uso do loci communes. Peter Mack (1993, p. 371) suscita a questão acerca do tipo de leitor gerado por esta prática: um leitor acostumado a ler à procura de referências, perguntando-se: “sob qual verbete eu poderia colocar esta citação? A que assunto esta sentença está logicamente relacionada?” E, segundo ele, este hábito capacitava o leitor renascentista a ler em dois planos simultaneamente: um, por seguir a história, o enredo; e outro, por procurar tópicos que pudesse anotar12. No século XVII, o livro de lugares-comuns era já um gênero e havia ingressado no domínio retórico da ornamentação do discurso. Uma famosa compilação de autoria de Thomas Gainsford (ou atribuída a ele)

11 Barthes, em seu L´ancienne rhétorique: Aide-memoire, de 1970, diz, acerca dos lugares-comuns: “Ce sont des formes vides, communes à tous les arguments (plus elles sont vides, plus elles sont communes); 2) ce sont des stereotypes, des prepositions reaches“ (Communications 16, 1970, p. 207).

Mack ainda reivindica para os lugares-comuns a base de novos tipos de texto produzidos a partir do XVI, como os Ensaios de Montaigne (1993, p. 372).

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tem como título um vocabulário que é, em si mesmo, uma descrição do gênero, como salienta Plett (2004, p. 137): “O rico gabinete mobiliado com variedade de excelentes descrições, caracteres refinados, discursos engenhosos e deliciosas histórias divinas e morais”, tudo isso disposto “alfabeticamente em lugares-comuns”. Temos aqui a soma de todas as qualidades exigidas pela retórica: copia (rico), varietas (variedade), ornatus (refinados), ingenium (engenhosos), delectatio (deliciosas). Desde Agricola, a confecção de um livro de loci communes era parte importante do método de estudo, porque aquilo que foi estudado deve estar pronto para ser usado no discurso do próprio orador. Aplicar a invenção tópica às palavras chave do argumento é a chave para a copia tanto no plano da elocutio quanto na inventio (MACK, 1993, p. 127). A proposta principal do livro de lugares-comuns era, portanto, a de capacitar o estudante a reutilizar em composições próprias o material advindo das leituras. Considerados como coleções de clichês, os livros de lugares-comuns foram sendo abandonados e reduzidos ao formato dos almanaques de frases feitas. Mas as compilações de loci são a base da organização da enciclopédia, e, atualmente, do método de pesquisa em nosso computador moderno em que o usuário “entra” com uma palavra-chave que acessa informações que tenham conexão com ela. Neil Rhodes e Jonathan Sawday (2000, p. 18) chegam mesmo a afirmar que, “usando edições on-line disponíveis, nós podemos criar nossas próprias versões paródicas dos livros de lugares-comuns ou florilegia da Renascença, e então desenvolver uma perspectiva interessante sobre a forma do conhecimento do começo da Era Moderna, por meio da comparação entre a lista dos tópicos”. Segundo esses autores, é possível então reconhecer que tanto nós, que recorremos ao computador como uma espécie de memória coletiva, quanto os renascentistas, com seus livros de lugares-comuns, buscamos todos a

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possibilidade da reprodução de algo de domínio público com vistas a algo como uma “customização” individual. Aquele que recorre a eles busca não inspiração, mas algo como inventários de tópicos. O livro de loci communes é um dos meios de ter o que foi lido pronto para uso em seu próprio texto e, assim, diz respeito também à conexão íntima entre recordar e refazer um texto – a prática de ler na dependência de escrever e vice-versa que está na etimologia da palavra “autor”, do verbo latino augeo, “aumentar”. O autor é, portanto, o “aumentador” de uma tradição de que ele se alimentou para enfim enriquecê-la.

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Recebido em 8 de fevereiro de 2012 Aprovado em 20 de fevereiro de 2012

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O mito de Orfeu no prefácio do livro II do De Raptu Proserpinae Livia Lindóia Paes Barreto UFF

RESUMO: No Prefácio do livro II do poema De Raptu Proserpinae, Claudiano insere, como tema introdutório ao rapto, o mito de Orfeu, músico e cantor por excelência. Tendo perdido para sempre a amada, Eurídice, no reino de Prosérpina, Orfeu abandona a lira e, consequentemente, deixa de cantar. A Natureza se ressentiu desse silêncio e, da mesma forma que se encantava ao som da lira, agora aparece mortificada pela ausência do canto: de cenário para o rapto ela passa a interagir com o uates, enquanto participante da sua dor. Este foi o momento do mito que Claudiano escolheu para introduzir o Livro II. Tomando algumas proposições da teoria da referenciação, este trabalho propõe apresentar as relações semânticas que se estabelecem no texto com vistas a compreender a inserção do mito de Orfeu no início do livro II. PALAVRAS-CHAVE: Poesia latina clássica. Claudiano – De Raptu Proserpinae. Teoria da referenciação. Mito de Orfeu. ABSTRACT: In the preface to the Book II of the De Raptu Proserpinae, Claudian inserts the myth of Orpheus, musician and singer par excellence, as the introductory theme of the kidnapping. Losing his beloved Eurydice forever to the kingdom of Proserpine, Orpheus abandons his lyre, and therefore stops singing. Nature resented that silence, and as it was enchanted by the sounds of the lyre, now it seems mortified by the absence of the chant. This is the scenario to the abduction which begins to interact with uates as a participant of its pain.

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This was the myth’s moment that Claudian had chosen to introduce the Book II. According to some prepositions of the reference theory, this work intent to present the semantic relations that are established in the text, with the proposal of understanding the inception of the myth of Orpheus at the beginning of Book II. KEYWORDS: Classical Latin Poetry. Claudian – De Raptu Proserpinae. Reference Theory. Myth of Orpheus.

Este trabalho busca apresentar uma reflexão, com base nos pressupostos teóricos da Linguística Textual desenvolvidos por Ingedore Koch (2009), sobre o topos Natura, na relação Natureza/Homem explicitada no mito de Orfeu, no Prefácio do livro II do De Raptu Proserpinae de Claudiano (séc. IV). Serão enfocadas aqui as relações semânticas estabelecidas entre os referentes e as estratégias discursivas utilizadas pelo poeta. Repleto de simbolismos, o mito caracteriza-se, em uma das suas vertentes mais conhecidas, – a descida às regiões infernais – pela expressão da dor maior ante a perda de um ente querido, aproximando-se da história de Prosérpina. Depois que perdeu, definitivamente, Eurídice, sua amada, nas regiões infernais, Orfeu abandonou a sua lira e, consequentemente, o canto. Seus versos tinham o poder mágico de comover não só os homens, mas também os animais selvagens; e as plantas e as árvores se inclinavam à sua passagem. Seu silêncio tem reflexos sobre a Natureza: de mero cenário ela passa a interagir com o Homem enquanto participante dos sentimentos do uates.

A lenda do rapto e o poema de Claudiano De acordo com Pierre Grimal (1969, p. 398), Prosérpina é, em Roma, a deusa das regiões infernais. Cedo ela foi associada à Perséfone grega, mas, originariamente era uma deusa agrária, que presidia à germinação. Seu culto foi introduzido junto com o de Dis Pater (assimilado a Hades) no século III a.C. Como a Perséfone grega, Prosérpina é a deusa dos

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infernos, companheira de Plutão, filha de Júpiter e Ceres, de acordo com a versão mais corrente. Sua lenda principal é a história do rapto por Plutão seu tio (a jovem era filha de Júpiter). Descontente por ter sido privado de uma esposa, Plutão se prepara para atacar os deuses do alto. Ante a iminência de um conflito entre as divindades, as Parcas, zelosas da ordem do mundo, interferem junto a Plutão pedindo que reivindicasse a Júpiter uma esposa. Plutão concorda e solicita que Mercúrio leve até Júpiter uma mensagem em que mostra a sua necessidade de uma esposa e uma descendência, ao mesmo tempo em que faz terríveis ameaças ao Pai dos deuses. Se, por acaso, este pedido não fosse atendido, as trevas do inferno recobririam a luz do céu. Júpiter, perplexo, lembra-se de Prosérpina, sua filha única com Ceres, que já atinge a idade de casar-se. Plutão se apaixona pela jovem e rouba-a no momento em que ela colhia flores, na companhia das ninfas. De acordo com a versão romana, a Sicília é o local escolhido para o rapto, possivelmente a região do Henna e as encostas do Etna. Entre os editores de Claudiano há diversidade de lições Henna(eus) e Aetna(eus), mas a tradição manuscrita e os outros dados do poema tornam a segunda opção a mais aceita pois está carregada de significado: o Etna surge quase como um personagem participante do rapto. Como divindade onisciente do destino ele adverte Prosérpina: ter conscia fati flebile terrificis gemuit mugitibus Aetna (I, 7-8)1 Por sua natureza, ele é, por excelência, o lugar da comunicação e de confronto entre o mundo de cima e o mundo subterrâneo. Pelos seus prados

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Três vezes o Etna sabedor do destino gemeu com terríveis estrondos.

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ensolarados ele participa do mundo da luz, mas pela larva borbulhante nas suas entranhas, ele pertence às trevas infernais (CHARLET, 2002, p. xxxvi).

O poema de Claudiano Até hoje temos poucas referências relativas ao autor do poema e o restante da sua obra. Por indicações contidas ao longo de toda ela, sabe-se que o poeta veio para Roma antes de 395; um outro dado diz respeito ao local do seu nascimento: Carm. Min. 19,3: nostro Nilo; 22,56: commune solum » são referências ao Egito que, no século IV (época provável em que viveu), se tornou um centro de cultura importante do Império. Quanto ao confronto da obra de Claudio Claudiano, ele compreende dois grupos: Carmina maiora – que englobam o poema mitológico De raptu Proserpinae e os poemas de assuntos políticos; Carmina minora – poemas de assuntos diversos: panegíricos, poemas de louvor aos feitos de Estilicão e injúrias contra os rivais do mesmo. Em virtude dos assuntos e das diversas referências a pessoas e fatos, os poemas políticos são datados sem maiores possibilidades de erro o que não ocorre com o poema mitológico, que ainda hoje está com a sua datação não bem determinada. Em relação ao assunto, o De raptu Proserpinae, ele se compõe de três livros, assim distribuídos: livro I – Prólogo, anúncio do assunto, o pedido de Plutão a Júpiter e os preliminares do rapto; livro II: Prólogo, cenário em que se dá o rapto, o rapto propriamente dito e o casamento; livro III: a revelação do rapto a Ceres e o início das buscas de Ceres. Há diversas discussões em torno dos Prólogos (livros I e II) inseridos no poema. A principal delas diz respeito ao Prólogo do livro II, considerado como deslocado, uma vez que evoca uma passagem do mito de Orfeu. Este Prólogo, na verdade, é um novo poema inserido em outro maior. A hipótese fundante dessa reflexão está focada nos argumentos da tradição manuscrita que coloca o referido Prólogo an-

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tecedendo o livro II em razão da identidade que existe entre o significado do mito e a lenda de Proserpinae. Como todos os Prefácios de Claudiano, o do livro II foi composto em dísticos elegíacos, e, de acordo com o editor, pág.29, agrupados de dois em dois por sua sintaxe e sua temática constituindo verdadeiros quartetos que, por sua vez, também se dividem em quatro grupos: a) Versos 1-4 e 5-8: formam os dois primeiros quartetos: tema da partida da mulher amada e a desolação do mundo após o silêncio de Orfeu: choros e prantos das ninfas e dos rios (v.1-4), a natureza animal e vegetal torna-se selvagem (v. 5-8). b) Os dois quartetos seguintes v. 9-12 e 13-16 apresentam a reação de Orfeu à vinda de Hércules que vem até a Trácia colocar um fim às crueldades de Diomedes (v.9-12); alegre, Orfeu retoma a lira para cantar (v.13-16). c) Os outros três quartetos (v. 17-20; 21-24 e 25-28) descrevem o efeito produzido pelo canto de Orfeu sobre os elementos naturais (ventos, rios, montanhas (v.17-20), sobre o mundo vegetal (choupo, pinheiro, carvalho e loureiro (v.21-24) e sobre o mundo animal (molossos e a lebre, a ovelhinha e o lobo, gamos e tigre, cervos e leões) (v.25-28). d) Os cinco seguintes desenvolvem o conteúdo do canto de Orfeu, isto é, os feitos de Hércules (v.20-49). O último quarteto (v. 4952) explica o significado simbólico dos doze quartetos precedentes.

Análise semântica do texto Tomando como suporte teórico alguns pressupostos da teoria da referenciação (constituída como atividade discursiva; as estratégias de referenciação como a ativação e a reativação) segue uma análise semântica dos versos em que se explicita a ação e a reação da Natureza diante da dor e da alegria de Orfeu e uma amostragem de como Claudiano categoriza o objeto de discurso a partir da proposta de sentido que pretende dar ao texto.

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De acordo com o que foi afirmado, a construção do texto do Prefácio se processa em uma soma progressiva de quatro partes: 1- o silêncio de Orfeu – o poeta tinha abandonado a sua lira e não mais cantava. A Natureza participa da sua dor; 2- a intervenção de Hércules e a paz. Orfeu retoma a sua lira; 3- a magia do canto de Orfeu sobre a Natureza; 4- a celebração dos feitos de Hércules. Hino de exaltação. Serão analisadas tão somente as três primeiras partes, onde se verifica a questão da Natureza em solidariedade com os sentimentos humanos. A análise da última parte não se justifica uma vez que o poema, a partir daí, está voltado para a exaltação dos feitos de Hércules, em agradecimento por sua ação benéfica à pátria de Orfeu e a questão da interação Natureza / Homem é deixada de lado.



1. O silêncio de Orfeu Otia sopitis ageret cum cantibus Orphaeus neglectum que diu deposuisset opus, lugebant ereepta sibi solacia Nymphae, quarebant dulces flumina maesta modos. Saeua feris natura redit metuensque leonem implorat citharae uacca tacentis opem; illius et duri lfeuere silentia montes siluaque Bistoniam saepe secuta chelym. (v. 1-8)2

Enquanto Orfeu entregava-se ao repouso com os seus cânticos adormecidos, arte que havia há muito tempo negligenciado, as ninfas choravam os confortos que lhes foram tirados, os rios tristes, reclamavam as doces consolações.

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A Natureza se tornou selvagem como os animais ferozes, e a vaca, temendo o leão, implora a arte da cítara; os duros montes choraram os seus silêncios e as florestas também procuraram a lira trácia. (v. 1-8)

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sopitis cantibus Orphaeus neglectum opus, illius silentia Bistoniam chelym. lugebant Nymphae, quarebant flumina maesta Saeua natura

} }

1º referente – Orfeu

2º referente – Natureza

Nos versos 1-2 o primeiro referente Orphaeus é ativado e encontra-se em lugar de destaque, ou seja, no último pé métrico. (v. 1) Vem categorizado pelos sintagmas sopitis cantibus e neglectum opus apontando traços do referente que levam o leitor a construir uma primeira imagem sua: homem sofredor e inconsolável. Com lugebant Nymphae e quaerebant flumina maesta é ativado um segundo referente – a Natureza que partilha da dor do poeta. O verbo lugeo indica estar de luto, chorar pela morte de alguém. Para as ninfas, seres maravilhosos habitantes da Natureza, –Nymphae- e os rios – flumina maesta – é como se Orpheus também estivesse morto. Note-se que tanto o verbo lugeo (lugebant) quanto o verbo quaero (quaerebant) encontram-se em posição de destaque no verso (primeiro pé métrico) ressaltando a concordância de sentimentos Natureza / Orfeu. Com as formas verbais lugebant e quaerebant o poeta reforça, na mente do leitor culto, a impressão de luto associada a elas. Assim o silêncio está também associado com a morte. No verso 5 o segundo referente (Natureza) é recategorizado com o adjetivo saeua e o primeiro referente (Orpheus) é reativado pelo sintagma metonímico illius silentia. No verso 8 o termo grego chelys, no sintagma Bistoniam chelym = tartaruga, equivale ao latim testudo e significa, por metonímia, a lira / cítara (v.6 e 14) feita com a carcaça da tartaruga. Bistonia era uma região da Trácia, por metonímia ela designa toda a Trácia, a propósito de Orphaeus. Segundo Koch (p. 64),

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Tem-se uma ativação “ancorada” sempre que um novo objeto de discurso é introduzido, sob o modo do dado, em virtude de algum tipo de associação com elementos presentes no co-texto ou no contexto sócio-cognitivo, passível de ser estabelecida por associação e/ou inferenciação. Estão entre esses casos as chamadas anáforas associativas e as anáforas indiretas de modo geral. A anáfora associativa explora relações metonímicas, ou seja, todas aquelas em que entra a noção de ingrediência. Incluem-se aqui todas aquelas relações em que um dos elementos pode ser considerado “ingrediente” do outro.



2. A intervenção de Hércules e a paz. Orfeu retoma a sua lira Sed postquam Inachiis Alcides missus ab Argis Thracia pacifero contigit arua pede diraque sanguinei uertit praesepia regis Et Diomedes gramine pauit equos, tunc patriae festo laetatus tempore uates desuetae repetit fila canora lyrae et resides leui modulatus pectine neruos police festiuo nobile duxit ebur. (v. 9-16)3

}

Alcides 3º referente – Hércules pacifero pede

Mas depois que Alcides, enviado pela Argos Inácia, tocou com o seu pacífico pé, os campos trácios e destruiu os terríveis altares do rei sanguinolento e alimentou com ervas os cavalos de Diomedes,

3

então, o poeta alegrado pelo tempo festivo da sua pátria retomou as cordas sonoras da lira esquecida e modulou as cordas inativas com o nobre plectro. (v. 9-16)

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Thracia arua laetatus uates desuetae fila canora lyrae

}

4º referente – Apolo

O texto progride em direção de um terceiro referente, Alcides/Hércules, e um segundo momento do poema: a intervenção de Hércules e a restauração da paz. Segundo Koch (p. 84), um importante mecanismo de progressão textual consiste no encadeamento de enunciados por justaposição, com ou sem articuladores explícitos, ou por conexão. O encadeamento por conexão ocorre quando do uso de conectores dos mais diversos tipos. Contemplam-se aqui não apenas as conjunções propriamente ditas mas também locuções conjuntivas, prepositivas e adverbiais que têm por função interconectar enunciados.

O início do verso 9, com duas conjunções, sed e postquam em posição de destaque (1º e 2º pé métrico) aponta para um encadeamento de enunciados por conexão numa relação lógico-semântica de temporalidade e para a ativação de um terceiro referente: Alcides categorizado pelo sintagma pacifero pede (v. 10). O adjetivo pacifer (no texto em ablativo singular) é formado a partir do substantivo pax, pacis, substantivo feminino que indica um nome de ação (ERNOUT-MEILLET, 1960, p. 473) mais o verbo fero = levar, transportar, daí o seu significado de “portador da paz”. O termo Alcides = descendente de Alceu designa tradicionalmente Hércules o portador da paz e que põe um fim aos monstros cruéis. Pacifero = o portador da paz é o epíteto de Hércules encontrado nas inscrições (C.I.L.X, 5385,9) e nos reversos das moedas. Observa-se aqui uma alusão ao 9º trabalho de Hércules, de acordo com a classificação

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de Ausonius. O poeta associa a Eristeu os cavalos do rei da Trácia, Diomedes, que os alimentava com carne humana. (v. 11 – diraque praesepia e sanguinei Regis). Os estábulos estavam ensanguentados por causa do sangue que escorria da carne humana aí ingerida e o rei, em virtude de tais práticas, é caracterizado, metonimicamente, como dirus. Nos versos 10 e 12 – pacifero pede e Diomedes equos – Claudianus segue a versão atestada em Dion Crisóstomo: Hércules comunica a Diomedes que ele tinha que nutrir os seus cavalos com grãos. Nos versos 13-16 o advérbio tunc introduz uma reativação onde o nódulo introduzido é outra vez ativado, numa atividade de continuidade do núcleo referencial – Orphaeus. – recategorizado pelo sintagma uates laetatus. A intervenção de Hércules na sua terra natal, trazendo a paz (v. 13 – festo tempore), devolve ao poeta a antiga alegria e ele retoma o seu canto (v. 14-15), recategorizado pelos sintagmas fila canora e desuetae lyrae, onde canora e desuetae funcionam como os modificadores dos núcleos fila e lyrae. Ocorre aqui uma remissão: Orfeu reaparece com a sua imagem tradicional: poeta e cantor cuja arte possui um poder mágico sobre a Natureza, introduzindo, assim, a terceira parte do poema.



3. A Natureza sob a magia do canto de Orphaeus

Outra vez a expressão adverbial vix em início de verso aponta para um novo encadeamento de enunciado por conexão, como acontecera no verso 9. É a terceira parte do poema: a magia do canto de Orphaeus sobre a Natureza. Vix auditus erat: uenti frenantur et undae, pigrior adstrictis torpuit Hebrus aquis, porrexit Rodope sitientes carmina rupes, excussit gelidas pronitor Ossa niues.

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ardua nudato descendit populus Haemo et comitem quercum pinus amica trahit, Cirrhaeasque dei quamuis despexerit artes, Orpheis laurus uocibus acta uenit. Securum blandi leporem fouere Molossi uicinumque lupo praebuit agna latus; concordes uaria ludunt cum tigride dammae, Massylam cerui non timuere iubam. (v. 17-28)4 uenti undae pigrior adstrictis Hebrus aquis Rodope sitientes rupes gelidas pronitor Ossa niues. ardua nudato populus comitem quercum pinus amica laurus acta uicinum latus concordes dammae Massylam iubam. Cirrhaeas

dei

2º referente – Natureza

artes

4º referente – Apolo

Imediatamente ele foi ouvido: os ventos foram contidos e as correntes das águas se acalmaram, o rio Hebro entorpecido pelas águas geladas tornou-se mais vagaroso, o Ródope se adiantou e estendeu os seus rochedos sedentos dos versos (cânticos), o Ossa se inclinou e sacudiu as suas neves geladas.

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O choupo desceu do Hemo desnudado e o pinheiro amigo arrasta o carvalho, seu companheiro, e o loureiro, embora tenha sido desprezado as artes do deus de Cirrha, é atraído pelos cânticos de Orfeu. Os molossos abrandados acariciaram a lebre segura e a ovelhinha aproximou seu flanco para junto do lobo; já as corças brincam em boa harmonia com o tigre de cores variadas e os cervos não mais temem a juba africana. (v. 17-28)

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O segundo referente – Natureza – (v. 5 natura) é reativado em forma de anáfora associativa (KOCH, p. 65) “explorando relações metonímicas com a noção de ingrediência, em que um dos elementos pode ser considerado ingrediente do outro” Os venti, undae, flumina montanhas (Hebrus, Rodope) são “ingredientes” da natureza. Assim, a ação de Orfeu se faz sentir, em primeiro lugar, sobre os rios e montanhas da Trácia, marcada pela forma passiva do verbo freno: venti frenantur et undae, pelo verbo torpeo (torpuit v. 18): o rio Hebro, tradicionalmente associado a Orphaeus, é categorizado nos sintagmas (Hebrus pigrior e adstrictis aquis) – e, como entorpecido pelo endurecimento das águas geladas, se transforma; (v. 19) o Rhodope (porrexit sitientes carmina rupes) se adianta e estende os seus rochedos sedentos de versos; v. 20 Ossa excussit pronior e gelidas niues, o Ossa se inclina e sacode as suas neves geladas. Em todo este quarteto há como que um “despertar” da Natureza entorpecida. Cabe aqui uma observação: o monte Ossa não fica na Trácia, mas na Tessália. Tal alusão é considerada como uma licença poética. No quarteto seguinte (v. 21-24) há uma nova reativação do referente Orphaeus que, com o seu canto e sua lira, agora exerce sua ação sobre outros “ingredientes” da Natureza: as árvores e florestas, como acontecera em relação aos outros elementos. Claudiano coloca em destaque as diversas variedades de árvores encantadas pela lira de Orphaeus que agora “despertam do torpor” e tudo retoma o antigo equilíbrio: o choupo, o pinheiro, o carvalho: cada uma delas de alguma forma relacionadas com o uates. O sintagma Cirrhaesque dei artes (v. 23) ativa um novo referente, Apolo. Cyrrha era o porto de Delfos onde ficava o santuário de Apolo e Cyrrhaeus por hipalage, está relacionado com Apolo, da mesma forma que o loureiro, árvore que nasceu da metamorfose da ninfa Daphne (Ov. Met. I, 500) e é a árvore consagrada a Apolo. Mas apesar disso, o loureiro não ficou alheio ao canto, tão forte era a magia que dele emanava.

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Por fim, uma última reativação do referente Natureza (v. 25-28): a introdução dos animais. O canto de Orfeu é capaz de amansar as bestas mais selvagens e as faz cohabitar pacificamente com os demais animais: Claudiano evoca, assim, o tema da Idade do Ouro (Verg. Buc. IV, 22: Nec magnos metuent armenta leones5, Ovid. Met. 15,99): com o seu canto Orfeu restabelece a harmonia primitiva do mundo. O autor tem a preocupação de fazer aproximarem-se os animais selvagens e os outros animais que outrora eram sua presa. Os molossos são cães de caça (viviam no Épiro e o adjetivo Massylus retoma, por metonímia, os leões da África. Note-se, nos versos 26: uicinum latum e 27: concordes dammae a colocação, em disjunção (primeiro e último pé métrico), dos sintagmas uicinum latum e concordes dammae realçando, exatamente, a transformação que estes animais sofreram. No sintagma concordes dammae é de se ressaltar ainda a carga semântica do adjetivo concors, —dis (modificador do substantivo damma, -ae) formado pela preposição cum mais o substantivo neutro cor, cordis que, etimologicamente, significa “unido pelo coração” (ERNOUT-MEILLET, 1960, p. 136), que entre os antigos, além do fígado, era uma das sedes dos sentimentos humanos. Como Claudiano, vários outros poetas anteriores ou posteriores a ele usaram da sua arte para expressar os efeitos da música divina, cada um de acordo com o seu momento de criação poética. Assim, a escolha da descida aos infernos no mito de Orfeu, dentre as múltiplas outras vertentes e cada uma delas com o seu simbolismo, encaixa-se perfeitamente bem em um poema, como o De Raptu Proserpina, em que o tema da harmonia do mundo é fundamental.

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Nem os rebanhos temem os grandes leões.

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As palavras do professor Jean-Louis Charlet (2002), tradutor do texto para as edições de Les Belles Lettres, fecham esta reflexão sobre a inserção de uma vertente do mito de Orfeu – a magia do seu canto sobre a Natureza – no poema de Claudiano: Este grego de Alexandria que vem para Roma no momento em que o mundo romano ferve com as invasões bárbaras e em que vai se quebrar pela divisão entre ocidente e oriente, expressa a obsessão de uma harmonia para preservar o equilíbrio hierárquico onde cada elemento permanece em seu lugar e onde cada um, como as divindades do concilium deorum no início do canto 3, tem o seu lugar. Claudiano mostra um universo arriscado a retornar ao caos se o mundo de baixo e o mundo de cima, o inferno e o céu, a sombra e a luz, a morte e a vida não permanecerem em seus lugares e entrarem em conflito. O sacrifício de Prosérpina é o preço a pagar pela salvaguarda dos foedera mundi, do pacto sobre o qual repousa a ordem do mundo, como os sofrimentos impostos à sua mãe deixada na inquietude são a condição da felicidade da humanidade. Finalmente, o mundo guardará sua harmonia e o homem poderá começar uma nova vida pelo dom dos cereais: Júpiter ou de preferência a Natureza, mãe providencial vela por isso.

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Referências CHARLET, Jean-Louis. Introduction. In: CLAUDIEN. Le Raptu de Proserpine. Texte établi et traduit par Jean-Louis Charlet. Paris: Les Belles Lettres, 2002. t. I. CLAUDIEN. Le Raptu de Proserpine. Texte établi et traduit par Jean-Louis Charlet. Paris: Les Belles Lettres, 2002. t. I. ERNOUT, A.; MEILLET, A. Dictionnaire Etymologique de la Langue Latine. Histoire des mots. 4. éd. Paris: Klincksseck, 1960. GRIMAL, Pierre. Dictionnaire de la mythologie grecque et romaine. 4. éd. Paris: Presses Universitaires de France (PUF), 1969. KOCH, Ingedore G. Villaça. Introdução à Linguística Textual: trajetória e grandes temas. São Paulo: Martins Fontes, 2009. KOCH, Ingedore G. Villaça. Desvendando os segredos do texto. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2009. VERGILE. Bucoliques. Texte établi et traduit par E. de Saint-Denis. Paris: Les Belles Lettres, 1970.

Recebido em 7 de dezembro de 2011 Aprovado em 19 de dezembro de 2011

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Caramurus da Bahia: a tópica natio e procedimentos descritivos na composição de retratos satíricos do corpus poético atribuído a Gregório de Matos e Guerra Marcello Moreira UESB

Para Luzinha Paraguaçu, Reine Ubu Ubu Ubu

RESUMO: Objetiva-se demonstrar o emprego da tópica natio na composição de retratos poéticos satíricos atribuídos a Gregório de Matos e Guerra. A pesquisa, fortemente filológica, visa a rastrear as fontes textuais cujos referenciais discursivos a sátira mimetiza, oriundos de tratados descritivos, cartas jesuíticas, catecismos, tratados de teologia moral, dentre outros, para além da elucidação da apropriação poética de preceitos concernentes à pintura de retratos propriamente pictóricos, efetuada pelo poeta. PALAVRAS-CHAVE: Gregório de Matos e Guerra. Tópica Natio. Retrato prosopográfico. Retrato satírico poético. ABSTRACT: The aim of this paper is to demonstrate the use of the Natio topic in the composition of poetic satirical poems attributed to Gregório de Matos e Guerra. The research, strongly philological, intends to recuperate the textual sources whose discursive references are mimicked by the satires. These textual sources are descriptive treatises, Jesuitical letters, catechisms, theological treatises,

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amongst many others, beyond the poetical appropriation of precepts related to the composition of pictorial portraits, as those extracted from the writings of Vasari and Lomazzo. KEYWORDS: Gregório de Matos e Guerra. Natio Topic. Prosopography. Satirical Poetic Portraits.

Apresentação da proposta Propõe-se aqui uma análise de três sonetos componentes do corpus poético colonial seiscentista e setecentista atribuído a Gregório de Matos e Guerra, os conhecidos sonetos à nobreza da terra. No artigo que ora se lhes apresenta, em primeiro lugar consideraremos como a matéria dos poemas é tratada segundo o procedimento de composição do retrato prosopográfico, gênero a que se vincula, em nosso estudo, os três sonetos. A composição dos retratos dos Caramurus da Bahia articula lugares-comuns discursivos oriundos de vários campos, como direito, história, epistolografia jesuítica, teologia, entre outros, e se vale ao mesmo tempo de procedimentos próprios da descriptio, de que depende o “retrato”, enquanto gênero, e da sátira, na medida em que o retrato apresenta uma imagem derrisória do retratado. Como se tentará demonstrar, a composição dos retratos aos Caramurus atualizará basicamente lugares-comuns discursivos ligados à tópica natio ou gens. Relacionaremos também os poemas com questões de ordenamento jurídico, teológico e político próprias da sociedade portuguesa dos séculos XVI e XVII. A análise aqui levada a termo não se propõe exaustiva, pois não visa a tornar evidente o sentido dos três poemas selecionados do primeiro ao último de seus versos, mas sim compreender como se opera a composição de retratos poéticos de tipo satírico, tentando recuperar por meio de uma análise estratigráfica e, portanto, filológica, as várias “camadas” de discurso, que, na verdade, mais do que sobrepostas, deveriam apresentar-se aos leitores

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dos séculos XVI e XVII – desse gênero –, como copresentes no ato de leitura. É essa possibilidade de recuperação das condições históricas de legibilidade dos três sonetos escolhidos por nós o que se objetiva aqui demonstrar. O estudo importa mais como forma de refletir sobre as condições históricas contemporâneas de recuperação filológica de categorias de interpretação empregadas nos séculos XVI e XVII, do que como uma interpretação totalizadora do objeto. A primeira seção objetiva a exposição do procedimento da notação no “retrato” e também patentear a importância da moldura da didascália; a segunda visa a evidenciar o entrecruzamento de campos discursivos quando da composição do “retrato”, e a terceira sumaria as duas anteriores, em que acrescento alguns dados informativos complementares.

(I) No Códice Asensio-Cunha encontram-se copiados três sonetos que têm como matéria a nobreza da terra. Esses sonetos apresentam didascálias que sumariam a matéria dos poemas e que os inter-relacionam. O primeiro soneto a ser transcrito no códice Asensio-Cunha tem o seguinte incipit: “Há coisa como ver um paiaiá”. A didascália lê “Aos Principais da Bahia chamados os Caramurus”. O soneto seguinte, “Um calção de pindoba, a meia porra,” apresenta como didascália um segmento textual que reitera a didascália do soneto anterior “Ao mesmo assunto”. O terceiro soneto, copiado logo após os dois anteriormente referidos, “Um Rolim de Monai, Bonzo, Bramá,” tem como didascália o que segue “A Cosme de Moura Rolim, insigne mordaz contra os filhos de Portugal”. Os três sonetos, quando copiados em um mesmo códice, são normalmente sequenciados, pois tratam todos eles dos principais da Bahia, embora possa dar-se o caso de que apenas um deles seja copiado em uma recolha, como se dá no códice Lamego, em que comparece como a segunda composição a

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ser transcrita no volume “Um Rolim de Monai, Mouro, Bramá”, com importante variante adiáfora já presente no primeiro verso. Quando lemos a primeira didascália, é preciso atentar para o seu caráter ao mesmo tempo conativo “Aos Principais da Bahia” e também referencial “chamados os Caramurus”, evidente na aposição, ou seja, nela discriminam-se os destinatários como matéria dos poemas. Mas esses a quem a didascália se remete, cumprindo a função de sobrescrito – para que se não enganem aqueles que, por acaso, possam vir a pôr as mãos no poema, que não se lhes destina principalmente, quanto aos seus efetivos destinatários –, ao reconhecerem-se como os endereçados, descobrirão que o poema, logo no primeiro verso, produz deles uma visibilidade que se tornará programática no segundo soneto, em que nos é apresentado um retrato ecfrástico1. O desejo de produzir a crença no visto, procedimento de notação a ser discutido ulteriormente neste artigo, leva ao emprego, no primeiro soneto, do verbo “ver” para referir o paiaiá (“Há coisa como ver um paiaiá”) cujo retrato nos

Define-se ecfrase aqui a partir dos resultados de pesquisa de João Adolfo Hansen: “No caso, a ekphrasis é definida como antigraphai ten graphein, contrafazer do pintado ou emulação verbal que compete com a pintura, descrevendo quadros inexistentes com enargeia” (HANSEN, 2006, p. 86). A contrafação do pintado pode visar à produção de prosopografias, que é o caso com que ora deparamos. A definição proposta por Hansen, no entanto, é apenas uma das muitas possíveis, mas recupera, cremos nós, doutrinas da prática de descrever no âmbito dos retores da Segunda Sofística, recicladas nos séculos XVI e XVII, o que para nosso artigo é condição de seu uso. Outros estudiosos da ecfrase, no entanto, conhecidos por pesquisas alentadas nesse campo, definem-na de forma distinta, conquanto ao mesmo tempo se proponham resgatar práticas letradas hoje em dia dessuetas e próprias de gregos, romanos ou de poetas e escritores dos séculos XVI e XVII. James Heffernam, por exemplo, em seu conhecido Museum of Words, define ecfrase como “a representação literária de uma obra visual” (1993, p. 1), e insiste que a ecfrase, para ser definida como tal, tem de emular uma obra de arte de fato existente: “What ekphrasis represents in words, therefore, must itself be representational” (p. 4). Por essa razão exclui de seu estudo outros procedimentos artísticos que estudiosos da literatura e das artes visuais definem como ecfrásticos. Entre os procedimentos excluídos está aquele que se qualifica como a inserção de textos no interior de outros textos, ou de qualquer obra de arte no interior de uma outra (veja-se, para uma definição de ecfrase como inclusão de obras no interior de outras obras, Mack L. Smith, Figures in the Carpet: The Ekphrastic Tradition in the Realistic Novel (1981).

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será apresentado somente no segundo poema da série. O “paiaiá” cuja visibilidade é produzida pelo segundo poema (“Um calção de pindoba, a meia porra,”) sinonimiza, no primeiro verso do primeiro soneto, o destinatário da didascália: “Aos Principais da Bahia, chamados os Caramurus” (“Caramuru” é sinônimo de “paiaiá”). Pode-se pensar que os poemas encimados pela mesma didascália formam, com o terceiro, apesar de este último possuir uma didascália distinta, mas correlata, porque trata de um dos principais da Bahia, na verdade um tríptico. Na medida em que o segundo poema já se torna um retrato prosopográfico desde o primeiro verso, por que começa a descrição dos “Caramurus”, a didascália, intitulação de poema, transforma-se em intitulação para um “quadro”, fala dele ao tempo em que o destina àqueles que nele estão retratados: “Aos Principais da Bahia chamados os Caramurus”, “nome próprio do quadro ao qual dá título e constitui em sua pura singularidade” (MARIN, 1996, p. 120). É de pensar que o quadro de um Caramuru deva ser entregue ao retratado, mas esse quadro, encimado por seu nome próprio, o do destinatário, modelo do pintado, como se verá mais adiante, não é retrato de Diogo Álvares, o Caramuru por antonomásia, nem de nenhum de seus descendentes especificamente. No título do poema, que passa a ser título de um retrato prosopográfico, o poeta diverte-se com a metonímia. Mas, se o título metonimicamente refere pelo pai sua prole, veremos que é justamente o elo entre Diogo Álvares e os índios, sua mudança de nome com tudo o que ela implica em âmbito tribal, que permite aos filhos serem apodados os Caramurus da Bahia, ou seja, eles o são, “caramurus”, na medida em que herdam do pai justamente aquilo que ele, por seu turno, recebera dos índios, engenhosíssima forma de gerar derrisão por parte da musa satírica (“Há coisa como ver um paiaiá,/ Mui prezado de ser Caramuru”). Pode-se supor em um primeiro momento que o retrato aos Caramurus da Bahia não poderia

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ser, enquanto retrato, também aquele de Diogo Álvares, pois ele não estaria sujeito, a priori, a ser nomeado paiaiá, pois não tinha sangue indígena, mas, como veremos, a sátira rearticulará as notícias brasílicas, reciclando-as, para produzir em seu discurso a verossimilhança da representação de Diogo Álvares como o Adão do massapé, ao lado de sua Eva, Paraguaçu. O retrato atribuído a Gregório de Matos e Guerra não é nem aquele de Diogo Álvares nem o de nenhum de seus descendentes em particular, mas de todos os existentes e possíveis, de todos os Caramurus que ainda estão por nascer – esforço ingente do poeta que pinta em breves quatorze versos vezes três toda uma genealogia, que torna três sonetos a galeria completa de toda uma linhagem: um único quadro que produz um efeito de visão válido para todos os que trazem nas veias o mesmo sangue, como se demonstrará mais à frente. Agora é preciso perguntar-se como é possível que se produza um retrato que prime justamente por sua falta de individualidade quando sabemos que o retrato era o gênero por excelência da individualização do representado? Já dizia Alberti em seu tratado Da pintura que: Contém em si a pintura – tanto quanto se diz da amizade – a força divina de fazer presentes os ausentes; mais ainda, de fazer dos mortos, depois de muitos séculos, seres quase vivos, reconhecidos com grande prazer e admiração para com os artífices. Diz Plutarco que Cassandro, um dos generais de Alexandre, tremeu com todo o corpo ao ver a imagem de seu rei. Agesilau, o lacedemônio, jamais permitiu que alguém o pintasse ou esculpisse, pois não lhe agradavam as próprias feições e não desejava ser ele um dia conhecido por quem viesse depois dele. Assim a fisionomia de quem já está morto vive pela pintura longa vida (ALBERTI, 1992, p. 95).

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Cabe propor, neste início de reflexão sobre três poemas atribuídos ao poeta seiscentista Gregório de Matos e Guerra, uma outra questão a ser apresentada a partir de um conjunto de enunciações prévias: se a arte do retrato tinha como função, como o declarou Lomazzo em seu tratado de pintura, fazer as imagens dos grandes homens como ídolos na terra (LOMAZZO, 1585); se seu caráter é laudatório; se torna um ausente presente por meio da imagem que dele apresenta; se multiplicadas imagens de um mesmo homem podem torná-lo presente em mais de um lugar constituindo, desse modo, uma sua ubiquidade (CASTELNUOVO, 2006, p. 15)2; se o representante icônico pode, mais do que significar, equivaler sub iure à presença do representado, como no caso dos quadros do rei3; como relacionar essas enunciações com o retrato dos “Caramurus da Bahia”? Não pretendemos neste artigo responder a todas elas, embora sejam fundamentais para a compreensão do gênero retrato na poesia. Pode-se dizer desde já, no entanto, que o retrato dos Caramurus não equivale a um estudo fisio-

(Para os juízes instrutores de Felipe, o Belo, os retratos de Bonifácio [...] substituem o modelo, afirmam e multiplicam em toda parte sua presença, especialmente nos lugares sagrados e importantes, as igrejas, as portas de acesso à cidade; são elementos substitutivos que possuem uma função mágica, como os antigos ídolos. [CASTELNUOVO, 2006, p. 15]). Mas as imagens de Bonifácio VIII dispostas nos lugares acima mencionados carecem – contrariamente às máscaras mortuárias que lhes são contemporâneas, moldadas diretamente sobre o rosto do defunto e que servem ao propósito de resguardar as particularidades físicas do homem limitado e contingente – de individuação, o que não impede que exerçam sua função de simulacros dotados de um valor simbólico e de um poder mágico, de forte significação política [p. 20]. Para uma apresentação de como a multiplicação de retratos servia a propósitos políticos de tornar ubíqua a figura do retratado nos séculos XV e XVI, ver Joanna Woods-Marsden, “’Ritratto al Naturale’: Questions of Realism and Idealism in Early Renaissance Portraits” (1987, p. 213-214). Ver abaixo a remissão à bibliografia sobre a ubiquidade das imagens reais, ao tempo de Luís XIV, em que a individuação é condição de tornar a imagem do ausente um seu sucedâneo.

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Para uma apresentação do problema da representação do rei como forma de tornar ubíqua sua presença, representação e presença ligadas ao problema da individuação, ver Peter Burke, A fabricação do rei. A construção da imagem pública de Luís XIV (1994).

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nômico, a não ser que compreendamos esse estudo como aquele de um ethos linhagístico que se evidencia por meio do conjunto de atributos reunidos na figuração. Pintar o ethos familiar, peculiar pela falta de virtudes e pelo excesso de vícios. A pintura do ethos linhagístico por meio da adoção prévia do mesmo conjunto de predicados aplicado a todos os descendentes do sangue de tatu de Catarina Paraguaçu é procedimento retórico que se respalda em referenciais discursivos outros, políticos e teológicos, como se verá. Pode-se, no entanto, dizer do tríptico que, assim como na pintura a parte central é a mais importante, assim também o segundo soneto é aquele por meio do qual se articulam os topoi constitutivos da imagem derrisória da nobreza da terra dividida nos três poemas. Pode-se hipotetizar que é a “desumanidade” dos índios e de seus descendentes ou ao menos uma certa carência em sua humanidade que possibilita ao poeta pintá-los todos em um único retrato, já que, destituídos de razão, próximos dos animais, seriam como todas as bestas indistintos à individualização4, lugar-comum oratório presente

André Thevet, por exemplo, ao discorrer sobre os habitantes da América, assim fala deles: «Elle (Amérique) à esté & est habitée pour le iour’huy, outre les Chrestiens, qui depuis Americ Vespuce l’habitent, de gens merueilleusement estranges, & sauuages, san foy, sans loy, sans religion, sans ciuilité aucune, mais viuans comme bestes irraisonables, ainsi que nature les à produits, mangeants racines, demeurants toujours nuds tant hommes que femmes [...]» (1557, p. 51v). No entanto, essa representação negativa dos índios em Thevet não pode ser ajuizada única e congruente, pois, como nos diz Frank Lestringant, a América do autor francês é apenas «a suma de traços particulares e circunstanciais, isto é, condensa nela mesma um catálogo de ‘singularidades’ irredutíveis e contraditórias. Cruel e pervertido, virtuoso e hospitaleiro, homem honrado e ‘grão ladro’, os qualificativos que lhe são aplicados alternada ou simultaneamente surgem regulados por um código constantemente móvel que se modela, a cada detalhe, sobre a particularidade realçada a cada momento» (LESTRINGANT, 2009, p. 110). Mas se é possível encontrar em André Thevet sequências elogiosas concernentes aos índios que ombreiam com outras, de caráter vituperante, a sátira, por sua especificidade genérica, se apropriará somente das seções de discurso que autorizem seu fim, ou seja, ignora, por exemplo, o elogio de Cunhambebe, e atualiza epítetos como «selvagem» e «bestial» em engenhosas variantes elocutivas.

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em discursos da mais variada natureza a despeito do que os padres da Companhia possam ter dito dos índios5. Parece ser essa uma das propostas contidas no tríptico atribuído a Gregório de Matos e Guerra, tríptico esse que, para caber na mesma moldura, apresenta, nas partes que o compõem, as mesmas dimensões, podendo-se dizer que a moldura, na medida em que circunscreve o objeto do olhar, incrementando o foco da visão, a concentração da atenção, é não apenas a intitulação redundante dos dois primeiros sonetos, que se juntam ao terceiro por ele tratar também do que os dois anteriores objetivam representar, ou seja, os principais da Bahia, eficaz protocolo de leitura, mas também o gênero poético comum adotado para a composição do tríptico: três sonetos (dois quartetos e dois tercetos em cada poema, com o mesmo número de versos, com a mesma isorritimia, que trazem para a poesia as ideias de número, medida, ritmo e cadência, entre outras). A moldura da didascália é de fundamental importância para que o leitor compreenda os poemas não como mera sátira a todos os mestiços com sangue de tatu, mas como vitupério a um grupo específico de mestiços, os Caramurus: “Desde que o olho do pintor é substituído pelo olhar do espectador, uma

5 João Adolfo Hansen, em estudo sobre a língua dos índios, afirma que “Uma vez que os jesuítas defendem a tese tridentina de que o gentio tem alma, não classificam a língua geral como total ausência da luz do bem, pois isso implicaria a heresia de afirmar que o índio não é gente” (2005, p. 18). Nos sonetos atribuídos a Gregório de Matos e Guerra, no entanto, é justamente a carência irreparável de bem que caracterizaria a língua dos índios o que respalda as condições da verdade do vitupério quando ele se enuncia como algaravia, ou seja, língua tão bárbara que só se articula com sentido quando o português lhe dá uma certa ordem, que não é a sua natural desordem, evidente, por exemplo, na fragmentação de que os sonetos são objeto em várias de suas versões. Nesse sentido, há mais do que um endoxon na mesma duração. Falar, portanto, da irracional algaravia dos índios é contraditar doutrinas tridentinas e postular ao mesmo tempo a heresia de que o índio não é gente, evidente na língua manca a ponto de já não o ser, paradoxo que junge a crença de que o índio e seus descendentes têm alma, a ponto de poder demonstrar-se, por meio da sátira, suas carências aos mesmos Caramurus, entre elas sua desrazão, o que tornaria vã a própria tentativa de doutriná-los, como se demonstrará adiante.

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moldura é necessária, porque o artefato considerado no processo de sua produção é substituído pelo quadro no processo de sua apresentação, de sua exibição, de sua espetacularização” (MARIN, 1996, p. 124). Como o tríptico pintado por Gregório de Matos e Guerra é passível de reprodução pelo agenciamento da mão, todos aqueles que tiverem uma cópia poderão ajuizar a relação de adequação entre o notado e o anotado (HANSEN, 1985, p. 145) de acordo com o gênero praticado, procedimento de composição balizado por um paradigma “que orienta e interpreta a seleção” (HANSEN, 1985, p. 145) dos traços caracteriais. A moldura da didascália reproduz aquela primeira, oriunda do olho e da razão, que vasculham a cidade e captam os tipos a serem representados conforme uma ótica e um juízo cujas lentes de interposição entre o olho e a cena são retóricas, políticas e teológicas, articuladas em sobreposição perfeita para a produção de determinados efeitos de sentido, como se, partícipes de uma realização prismática, a luz, entrada pela retina através das lentes referidas, saísse projetada como fantasia poética, refratada pelo juízo, que substancia as cores do prisma em unidade da razão6. Em seu estudo primoroso sobre a figuração do procedimento notacional adotado pelo satirista quando esquadrinha a cidade, João Adolfo Hansen afirma que o vitupério só se efetua como anatomia e medicina das almas porque o discurso do olho inventa-lhes corpos, define-os como culpados de uma falta para cuja correção receita o remédio do seu dogma. Distribuindo os corpos de linguagem pelos múltiplos espaços efetua-

6 “Corpos e ações ordenados pela proporção racional do olho se multiplicam, cruzam-se em inversões e misturas monstruosas, deformadas todas pelo recurso das lentes interpostas. As misturas são desprezíveis, obscenas e divertidas, porque desproporção, e, convergindo todas no olho, que as irradia e absorve, tornam-se graves, prudentes, proporcionadas: ensinam divertindo, castigam rindo, movem rebaixando” (HANSEN, 1985, p. 146-147).

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dos da Cidade, o olho os retalha e detalha públicos, segundo ordenação jurídica, sendo o avalista deles e do seu próprio regime de crenças, que articula como instrumento político. Dois princípios complementares modulam a visada: a exclusão dos corpos que o olho constitui, remetidos para os modos negativos da ausência de Bem – falha, falta, erro, pecado –, e a sua inclusão, que os traduz poeticamente como ridículos, moralmente como viciosos, politicamente como culpados na luz da sua verdade (HANSEN, 1985, p. 144).

João Adolfo Hansen também assevera que as lentes amplificam certas porções de um corpo ao tempo em que podem deixar de amplificar outras, sendo as partes amplificadas as que parecem estar deformadas por aqueles que as vêem. A deformação do visto através das lentes metaforiza pelo feio o desonesto pela lente, o olho perspectiva tipos hiperbólicos em sua mania, desproporcionais na unicidade de uma paixão que os escraviza e desfigura, frade e luxúria, mercador e usura, fidalgo e hipocrisia, mulato e presunção, judeu e heresia, puta e comércio etc. (HANSEN, 1985, p. 146).

E os vícios, desse modo, são amplificados “como excesso exemplar”, ao tempo em que o olho, pelas lentes, os ordena como tipos: É pelo olho que os pontos focalizados assumem a identidade genérica de tipos reconhecíveis nas imagens deformadas das lentes: chim, brâmane, judeu, negro, mulato, índio, mameluco, mazombo, turco, muçulmano, fidalgo, luterano, freira, padre, soldado, puta, dama, marido corno, sodomita etc. (HANSEN, 1985, p. 147).

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Como já se disse acima, a didascália é de fundamental importância para que se possa emoldurar os retratos ou os poemas que compõem o corpus atribuído a Gregório de Matos e Guerra, pois nelas podem fazer-se presentes tanto “a semelhança positiva da estilização, reconhecível no referencial local de discursos – ‘Braço de Prata’, ‘palácio’, ‘bengala na mão esquerda’, ‘entrada do Mar a Santo Inácio’ etc. –” (HANSEN, 1985, p. 155), quanto “a semelhança negativa das deformações da fantasia” (p. 155). Mas pode dar-se o caso da condensação das duas semelhanças, porque a semelhança positiva da estilização, reconhecível no referencial local de discursos, é já semelhança negativa das deformações da fantasia. João Adolfo Hansen, ao falar da importância do referencial local de discursos para que se entenda a utilidade da sátira no âmbito da recepção, assevera: Como opera com traços estilizados que individualizam, compõe o destinatário como capacitado para estabelecer analogia entre a imagem deformada e o evento referido pela deformação e, ainda, como capaz de preencher a ausência efetuada pela voz virtuosa quando identifica a imagem e o evento. A sátira atinge seu fim, que é o de fazer com que a imagem apenas verossímil seja tida como dada, quando o destinatário adere ao lugar da enunciação e assume a ponderação como critério avaliativo e corretivo do mal (HANSEN, 1985, p. 161).

Mas, poder-se-ia supor que a imagem deformada não remeta a nenhum “evento referido” pela deformação, que o “evento referido” seja apenas um vício, suposto no vitupério, de que parte o poeta para a composição do seu “excesso exemplar” “particularizado” pela aposição, na didascália e no corpo do poema, de um nome próprio ao vício a ser escarmentado. Invectiva pelo desejo de invectivar: suporia

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nas práticas letradas uma nem sempre atendida correlação entre escritura e honestidade, entendendo esta, a partir de Cícero, como “a disposição de honrar a palavra dada e tratar sempre a todos com respeito” (SKINNER, 2010, p. 52). Força de derrisão a ser controlada ou excesso verbal, essa possibilidade explicaria a razão para se proibir, nas Ordenações afonsinas, manuelinas e filipinas, a escrita e difusão de cartas de maldizer (MOREIRA, 2008). Parece-nos que é esse caráter de simples invectiva do vitupério, que pode produzir “uma imagem amplificada da corrupção de um tipo decaído” pela justaposição de um nome e tópicas, justaposição essa que gera o efeito da “semelhança positiva da estilização, reconhecível no referencial local de discursos”, que as Ordenações desejam combater. É claro que essa é apenas uma possibilidade de interpretação do vitupério, a par da outra, já referida, de que não iremos tratar aqui. João Adolfo Hansen, analisando poemas do corpus gregoriano, diz que a doutrina afirma ser a sátira má quando nada ensina, “atacando indiscriminadamente a todos em função da fama individual do satirista, que se exalta com a desonra alheia” (HANSEN, 1989, p. 177), mas, ao mesmo tempo, logo a seguir, em outra seção de seu estudo, afirma que “é a mesma instauração do princípio ordenador do Bem pela enunciação satírica que torna verossímeis os desvios”, que podem ou não ser caso, portanto, a que o poema faria remissão.

(II) Como principia o retrato dos Caramurus da Bahia? “Um calção de pindoba, a meia porra, Camisa de urucu, mantéu de arara, Em lugar de cotó, arco e taquara, penacho de guará, em vez de gorra”, eis o primeiro verso do segundo soneto. Entre os fios do “calção” rústico, sem costura, feito de folhas de uma palmeira americana, a pindoba, podese entrever a primeira parte do corpo dos Caramurus por que principia sua descrição: a meia porra (pênis representado por meio da aplicação

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da tópica natio ao gênero baixo, em que se retoma o lugar-comum do tamanho do falo: o negro o tem grande, o branco o tem mediano e o índio o tem pequeno). A primeira proposta de interpretação dessa tópica, ocorrente no soneto gregoriano, encontra-se no livro de João Adolfo Hansen, tantas vezes citado (HANSEN, 1989, p. 317-318), de que aqui partimos. O retrato dos Caramurus abre por uma subversão da doutrina que prescreve o começo da pintura pela cabeça7, alteração que perspectiva o móvel da ação do índio, desprovido de razão, mas provido de gosto, como se diz em um dos sonetos em discussão (“sem mais leis que as do gosto, quando erra”). Ponto de convergência do olhar quando de sua primeira visada ao retrato, é espécie de centro. Pode-se supor que a subversão da prescrição da composição de retratos a partir da cabeça patenteia o lugar-comum do índio como ser irracional, em que a parte do corpo figurada como primeira o é porque já se autonomizou (o que produz na audiência o delectare, pelo risivo da subversão), e, ao mesmo tempo, evidencia o perigo de subversões correlatas, como aquela ocorrente no Estado, caso um membro qualquer desejasse se tornar ou se tornasse mais importante do que a cabeça da monarquia (o que implica o docere pelo emprego do juízo analógico). Perspectivar tomando o falo como centro é produzir o ridículo da figuração em que a cabeça perdeu sua natural primazia, mas, no caso dos Caramurus, o que se quer dizer é que a natural preeminência da cabeça não se lhes aplica8, o que, escandalosamente, impede-os de se encenar como

7 Em seu estudo sobre a ecfrase, João Adolfo Hansen afirma que Geoffroi de Vinsauf, em seção da Poetria nova, prescrevia “a composição de retratos femininos segundo eixo vertical imaginário que vai da cabeça aos pés [...]” (2006, p. 95). 8 O lugar-comum da desonestidade dos índios, movidos pelos sentidos, mas não pela razão, encontra-se em numerosos relatos quinhentistas, como o de Pero de Magalhães Gandavo: “Sam muy deshonestos & dados à sensualidade, & assi se entregam aos vícios como se nelles nam ouuera rezam de homens” (GANDAVO, 1576, p. 33v).

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principais9. O que sobressai na subversão da prescrição da composição de retratos a partir da cabeça é o mover as paixões, incitando o auditório à virtude e à evitação do vício por meio de um modus flectendi que põe diante dos olhos a desordem do Estado pela evidência da desordem do corpo dos que se chamam a si mesmos principais. Como os três sonetos aos Caramurus encontram-se no primeiro volume do Códice Asensio-Cunha, aquele intitulado “Que contem a vida do Dor/Gregorio de Mattos Guerra,/Poezias sacras, e obsequiosas/a Principes, Prelados, Persona-/gens, e outras de distinção,/com a mescla/de algumas satyras/ aos mesmos”, sua leitura articula-se com a de outros poemas inseridos no mesmo volume, em que em geral se louvam os grandes do Reino, e, desse modo, pela mescla de virtude exaltada e de vício escarmentado, a voz enunciativa dos elogios e dos vitupérios encena-se a si própria como mestra da comunidade política ao articular os valores por que ela tem de pautar-se. Os vícios dos Caramurus ganham uma enormidade que não teriam caso os poemas em que se os castiga não estivessem justapostos a outros, em que se encomiam alguns pelo seu constante

Cícero, no Orator (xxi, 71: “Non enim omnis fortuna non omnis honos non omnis auctoritas non omnis aetas nec vero locus aut tempus aut auditor omnis eodem aut verborum genere tractandus est ut sententiarum, semperque in omni parte orationibus ut vitae quid deceat est considerandum”), já dizia que o mesmo estilo e os mesmos pensamentos não se deveriam empregar quando se encenassem caracteres diferentes, mas que se deveria prestar atenção à diferente fortuna, honra, posição, idade etc., considerando-se ao mesmo tempo as diferenças de lugar, tempo e auditório em que e diante de que se falava, o que concorre para complementar a prescrição aristotélica presente na Poética e neste artigo citada em nota. Nesse sentido, a figuração dos Caramurus encena lugares-comuns retóricos (endoxa), como os de sua irracionalidade (“Alarve sem razão, bruto sem fé,/ sem mais leis que as do gosto quando erra,”), programaticamente prevista na sátira como o corpo de ponta-cabeça. A centralização do falo como metáfora de irracionalidade parece estar prevista nos tratados de pintura, quando se fala da correlação entre partes e entre todo e partes, considerando-se, para a produção de uma imagem dotada de “propriedade” de acordo com o decus do gênero praticado, lugares-comuns retóricos como idade, sexo, condição e função, o que permite relacionar a figuração com a expressão de paixões e de caracteres. Em Alberti, como o assevera John R. Spencer, a feiúra física indicia aquela moral: “His painter (Alberti’s) must create a

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relation of plane to members, to bodies, to the whole composition in which the whole and its parts are considered from the point of view of appropriateness to age, sex, condition and function. […] ‘If in a painting, the head should be very large and the breast small, the hand ample and the foot swollen, and the body puffed up, this composition would certainly be ugly to see. […] It would be absurd if the hands of Helen or of Iphigenia were old and gnarled’” (SPENCER, 1957, p. 40). Deixar entrever-se o falo, no soneto atribuído a Gregório de Matos e Guerra, poderia considerar-se como um “gesto afetivo”, tal como definido por Alberti (SPENCER, 1957, p. 41). Cabe ainda dizer que a sátira atribuída ao poeta baiano parece remeter a passagens localizáveis de livros de história sobre a América portuguesa dos séculos XVI e XVII. Em leitura atenta dos chamados “tratados descritivos” do Brasil, produzidos nos Quinhentos e Seiscentos, em língua portuguesa, deparamo-nos com duas ocorrências da palavra “alarve” para por meio dela se referir o índio com óbvio sentido despicativo. A primeira passagem em que se encontra o referido vocábulo está em capítulo do livro de Pero de Magalhães Gandavo em que se vitupera a irracionalidade dos aimorés, antropófagos adversos a qualquer tentativa de catequização ou de integração ao mundo português em formação, descrevendo-se esses índios com uma explícita referência a textos antigos, como os de Cícero e Lucrécio, em que se falava do estado bestial em que viviam os homens antes que se tornassem civis por meio da palavra de um orador: “Viuem todos antre os matos como brutos animaes, sem terem pouoações nem casas em que se recolham. São muy forçosos em extremo, & trazem hũs arcos muy compridos & grossos cõformes a suas forças, & as frechas da mesma maneira. Estes Alarves tem feito muito dãno nestas capitanias depois que deceram a esta costa, & mortos algũs Portugueses & escravos, por que sam muy barbaros, & toda a gente da terra lhes he odiosa” (GANDAVO, 1576, p. 43v). Em parágrafo posterior, para tornar evidente a bestialidade dos índios, fala de seu gosto de tirar pedaços das vítimas enquanto ainda estão vivas, assando-os diante dos olhos delas, comendo-as, portanto, aos bocados: “& tanto, que muitas vezes estando a pessoa viua, lhe cortam a carne, & lha estam assando & comendo à vista de seus olhos” (GANDAVO, 1576, p. 44r). A outra ocorrência da palavra se encontra em livro de Gabriel Soares de Sousa, apresentado em primeiro de março de 1587 a Dom Cristóvão de Moura solicitando-lhe patrocínio e proteção. Como o texto de Pero de Magalhães Gandavo é coetâneo daquele de Gabriel Soares de Sousa, é difícil saber se um autor conhecia a obra do outro e, melhor ainda, mais difícil é saber qual tem precedência, pois um livro podia circular manuscritamente por muito tempo antes de ir ao prelo e podia muita vez ser publicado apenas em forma manuscrita sem nunca ver prelo, como se deu, aliás, com a obra de Gabriel Soares de Sousa. O que importa é que neste autor a palavra “alarve” também se encontra na seção que descreve os aimorés, o que parece estabelecer uma relação de nomeação exclusiva entre esta etnia e o predicado que se lhe associa em ambos os livros de que ora falamos. Em Gabriel Soares de Sousa fala-se que os aimorés são julgados bárbaros pelos outros bárbaros, que, de certa maneira, portanto, se lhes opõem, e, ao mesmo tempo, demonstra-se que sua polícia é nula, pois desconhecem a fabricação inclusive de moradia, vivendo sob árvores e cobrindo-se de folhas (SOUSA, 1879, p. 48), como no-lo relata, por exemplo, Lucrécio. Nada sabem da agricultura, vivendo como coletores e caçadores, e, embora conheçam o fogo, comem os alimentos em geral crus, o que os opõem aos outros índios. Desse modo, nomear os Caramurus “alarve” é predicá-los por referência aos aimorés, o que amplifica sua bestialidade, selvageria e desrazão, manifesta, sobretudo, na linguagem aimoré, que, como no-lo diz Gabriel Soares de Sousa, é um conjunto de ruídos impossível de verter para a escrita, pois conjunto de sons inumanos e inarticulados semelhantes aos sons produzidos pelos animais. Além disso, comem carne humana para provimento, mas não por desejo de vingar-se, ou seja, por gosto, mas não movidos por nenhuma paixão: “Não costumam estes alarves fazer roças, nem plantar alguns mantimentos; mantem-se dos fructos silvestres e da caça que matam, a qual comem crua ou mal assada, quando tem fogo” (p. 48); “Comem estes selvagens carne humana por mantimento, o que não tem o outro gentio que a não come senão por vingança de suas brigas e antiguidade de seus odios” (p. 48); “e são estes Aymorés tão selvagens que dos outros barbaros são havidos por mais que barbaros” (p. 47). Para todas as citações nesta nota, ver Gabriel Soares de Sousa, Tratado descriptivo do Brasil em 1587 (1879).

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reto proceder. Nesse sentido, os usos da retórica demonstrativa para a promoção da instrução pública não difere muito dos seus correlatos antigos10, o que supõe uma duração longuíssima da instituição retórica e de seus usos civis. A parte visada quando do primeiro relancear de olhos ao retrato remete, obviamente, aos discursos em que se louvava o mérito da pintura de nus, em que se detêm tratadistas como Vasari e Lomazzo e artistas como Michelangelo. Vasari, em uma das suas edições das vite, assim definia a excelência da pintura de nus frente aos demais gêneros pictóricos: Ma sopra tutto il meglio è, gl’ignudi degli huomini viui, & femine, & da quelli hauere preso in memoria per lo continuo vso, i muscoli del’torso, delle schiene, delle gãbe, delle braccia, delle ginochia, & l’ossa di sotto, & poi hauere sicurtà per lo tanto studio, che senza hauere i naturali inanzi, si possa formare di fantasia [...] (VASARI, 1550).

Sabemos que Alberti prescrevia o nu como etapa prévia para a pintura de figuras vestidas e paramentadas, conquanto essa etapa prévia não queira dizer que o nu não fosse considerado um gênero autônomo, mas que as roupas deveriam recair sobre o corpo tornando evidente o conhecimento da natureza do humano por parte do pintor:

10 Gerard A. Hauser, ao estudar os usos do gênero demonstrativo ao tempo de Aristóteles, assevera que “epideictic occupies a unique place in celebrating the deeds of exemplars who set the tone for civic community and the encomiast serves an equally unique role as a teacher of civic virtue” (1999, p. 14).

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Mas como, para vestir uma pessoa, primeiro a desenhamos nua e depois a envolvemos de pano, da mesma forma, ao pintar um nu, primeiro colocamos os ossos e os músculos, que depois cobrimos com as carnes, de tal modo que não é difícil perceber onde se encontra cada músculo (ALBERTI, 1992, p. 108).

O “nu”, em Gregório de Matos e Guerra, torna-se a figuração do índio, não em sua nudez ostensivamente presente nas descrições de cronistas do século XVI, mas parcialmente coberto por “simulacros” de roupa (calção de pindoba, mantéu de arara, penacho de guará) ou por tatuagens que faziam as vezes de vestimenta e que subtraíam do corpo sua dignidade (camisa de urucu, por exemplo). Não nos esqueçamos do sentido das escarificações e tintura do corpo entre as tribos da costa da América portuguesa no século XVI (havia marcas adquiridas somente após a matança de um homem, condição necessária inclusive para que um jovem mudasse de nome e pudesse casar-se) (HOLANDA, 1985, p. 77). Sabemos que europeus integrados à vida tribal tiveram de submeter-se regularmente a principais, “que funcionavam como seus hospedeiros (mussucás)”, e a integração definitiva à família grande do mussucá dava-se por meio do matrimônio com suas “irmã” ou “filha”, o que obrigava o integrado, por seu turno, a adotar “atitudes e valores considerados como degradantes pelos europeus, como a participação dos sacrifícios humanos e do repasto antropofágico” (HOLANDA, 1985, p. 82). Pode-se pensar que o vocábulo “paiaiá” aplicado aos Caramurus no primeiro verso do primeiro soneto derive de Diogo Álvares, não necessariamente de sua mulher, na medida em que, tornado Caramuru por sua integração tribal, tenha sido rebatizado, segundo notícia reciclada na sátira, por aderir aos costumes bestiais dos nativos, consequência de seu casamento com Paraguaçu ou

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quiçá condição para que se desse esse casamento. Desse modo, a antonomásia por que se denomina Diogo Álvares não seria, como o faz supor notícia reciclada já no século XVIII por Santa Rita Durão em seu poema épico11, um epíteto que lhe teria sido dado por um feito excepcional aos olhos dos índios – o disparo de uma arma de fogo com a consequente morte de um animal –, mas sim derivado de sua integração tribal. Muitas são as interpretações do vocábulo “Caramuru”, mas, em Santa Rita, a antonomásia12 por que era conhecido Diogo Álavares é de tipo ab actu; mas pode-se supor que, na medida em que ações derivam do caráter, como afirmava Aristóteles na Poética, toda antonomásia13 desse tipo deixaria normalmente entrever o caráter de

Santa Rita Durão, para explicar a origem da antonomásia por que Diogo Álvares veio a ser conhecido, escreveu, em “Reflexões Prévias e Argumento”: “com huma espingarda matou elle caçando certa ave, de que espantados os Barbaros o acclamárão Filho do Trovão, e Caramuru, isto he, Dragão do Mar” (1781, p. 2). A antonomásia, desse modo, relacionar-se-ia ao emprego de tecnologia europeia desconhecida dos índios, que produz, miraculosamente para eles, a morte de certo animal. Na mesma seção do livro, contudo, fala-se das guerras em que Diogo Álvares teria se engajado antes da chegada do Governo Geral em 1549, pois o argumento é apresentado em seções narrativas temporalmente ordenadas, o que supõe sua integração tribal (“Combatendo com os Gentios do Sertão, venceo-os, e fez-se dar obediencia daquellas Nações barbaras”), e, após referência à sua participação nas guerras dos gentios, menciona-se o desejo dos principais do Brasil, ou seja, índios, darem suas filhas por mulheres, estando ambos os elementos narrativos, guerra e casamento, inter-relacionados: “Offerecêrão-lhe os Principaes do Brazil as suas filhas por mulheres, mas de todas escolheo Paraguaçú, que depois conduzio comsigo á França” (DURÃO, 1781, p. 3).

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12 Aristóteles, na Poética, ao correlacionar ação e caráter, assim discorre: “É, pois, a tragédia imitação de uma acção de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante actores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções (ARISTÓTELES, 1986, p. 110).

No Rhetorica ad Herennium define-se antonomásia como epíteto (cognomen) e afirma-se que serve para que possamos nos expressar com elegância, no louvor e no vitupério de alguém, sem recurso ao seu nome próprio, mas por meio de palavra substitutiva baseada em um atributo físico, em uma qualidade sobressalente ou em circunstâncias externas (para uma especificação dessas últimas, ver Ad Herennium III, VI, 10). A seção concernente à antonomásia no Ad Herennium é a que segue: “Hoc pacto non inornate poterimus, et in laudando et in laedendo, in corpore aut animo aut extraneis rebus dicere sic uti cognomen quod pro certo nomine collocemus” (IV, XXXI, 42, p. 334). A tradução do excerto é como segue: “Desse modo poderemos, de forma não desornada, tanto no louvor quanto no vitupério, por referência a atributos físicos, ao caráter e a circunstâncias externas nos expressar pelo epíteto, colocado no lugar do nome próprio”.

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que deriva a predicação por que se apela, conquanto a antonomásia em si remeta à ação e não ao caráter14. De qualquer modo, o que teria sido um epíteto por necessidade elogioso aos olhos dos índios, pois evidenciava o pertencimento à tribo pela participação na guerra, na captura de inimigos e no repasto antropofágico, torna-se, por aquilo que revela da adesão de Diogo Álvares aos costumes indígenas, vitupério aos seus descendentes. A antonomásia, de qualquer maneira, reforça o que no primeiro soneto se fala da língua dos Caramurus, ou seja, é “cobé pá”, “língua de índio, sim”, e, por essa razão, a necessidade de logo na didascália se lhes referir em sua própria língua, nomeando-os por meio dela. A mudança de nome e a aquisição de marcas tribais por escarificação e tintura da carne são matéria recorrente em cartas e tratados descritivos. No Diálogo sobre a conversão do gentil, o padre Manuel da Nóbrega, ao comparar os brasis com um filósofo romano com o fito de demonstrar que seria mais dificultoso converter este último do que aqueles, fala do seguinte modo dos índios: “Contai-me o mal de hum destes e ho mal de hum philosopho romano. Hum destes, muito bestial, sua bem-aventurança hé matar e ter nomes, e esta hé sua gloria por que mais fazem” (NÓBREGA, 1954, p. 344). A mesma notícia se encontra em passagens dos tratados de Fernão Cardim, em que se

Em estudo dedicado à correlação entre caráter e epíteto (cognomen), Katharina M. Wilson afirma que as antonomásias de tipo ab animo são muito mais numerosas em escritos teológicos e também na poesia produzida por religiosos, na medida em que cada antonomásia evidenciaria uma qualidade por que o encomiado se destacaria dentre a comunidade de fiéis. O mesmo se daria com as antonomásias que objetivam o vitupério pela ausência de virtudes e pela enunciação de vícios tornados evidentes pelo epíteto, conquanto antonomásias desse tipo não sejam preponderantes no caso da sátira atribuída a Gregório de Matos e Guerra, em que parecem sobressair as antonomásias vituperantes do tipo a corpore, que, ao final, acabam por remeter de um certo modo ao ânimo (WILSON, 1984, p. 45-53).

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explicita a relação existente entre o matar o inimigo para que se dê o repasto antropofágico, o receber escarificações no corpo feitas por dentes de animais e a aposição ao matador de um novo nome: D’ali a certos dias lhe dão (ao matador) o habito, não no peito do pellote, que elle não tem, senão na própria pelle, sarrafaçando-o por todo o corpo com um dente de cutia que se parece com dente de coelho, o qual, assim por sua pouca subtileza, como por elles terem a pelle dura, parece que rasgão algum pergaminho, e se elles são animosos não lhe dão as riscas direitas, senão cruzadas, de maneira que ficão uns lavores muito primos, e alguns gemen e gritão com as dores. Acabado isto, tem carvão moido e sumo de erva moura com que ellles esfregão as riscas ao travez, fazendo-as arreganhar e inchar, que é ainda maior tormento, e em quanto lhe sarão as feridas que durão alguns dias, está elle deitado na rede sem falar nem pedir nada, e para não quebrar o silencio tem a par de si agua e farinha e certa fructa como amendoas, que chamão mendobis, porque não prova peixe nem carne aquelles dias. Depois de sarar, passados muitos dias ou mezes, se fazem grandes vinhos para elle tirar o dó e fazer o cabello, que até alli não fez, e então, se tinge de preto, e dali por diante fica habilitado para matar sem fazerem a elle cerimonia que seja trabalhosa, e elle se mostra tambem nisso honrado ou ufano, e com um certo desdem, como quem já tem honra, e não a ganha de novo, e assim não faz mais que dar ao outro um par de pancadas, ainda que a cabeça fique inteira e elle bulindo, vai-se para casa, e a este acodem logo a lhe cortar a cabeça, e as mães com os meninos ao collo lhe dão os

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parabens, estream-os para a guerra tingindo-lhes os braços com aquelle sangue: estas são as façanhas, honras, valentias, em que estes gentios tomão nomes de que se prezão muito, e ficão dali por diante Abaetés, Murubixaba, Moçacara, que são titulos e nomes de cavaleiros; e estas são as infelizes festas, em que estes tristes antes de terem conhecimento de seu Creador põem sua felicidade e glória (CARDIM, 1980, p. 100-101).

A sátira, na medida em que recicla outros discursos concernentes à “vestimenta” dos índios, atualizando-os, o faz com o intuito de lembrar aos principais da Bahia que os trajes que envergavam no dia a dia não lhes eram apropriados, apresentado-lhes os que lhes seriam mais useiros. A sátira, ao mesmo tempo, faz ecoar em sua enunciação notícias antigas, que reportavam os selvagens vestidos de roupas feitas de tecidos finos ou parcialmente encobertos por cortes de tais tecidos, próprios de cortesãos, hábito tornado difuso na Bahia do século XVII entre a descendência de sangue de tatu, tornando patente o ridículo da mistura entre o índio ainda tribalizado (ou seus descendentes de sangue sujo) e sem polícia e as roupas próprias dos grandes do reino: Tanto que o padre visitador chegou a Pernambuco logo o sobredito Mitaguaya visitou por vezes o padre, vestido com damasco com passamanes d’ouro, e sua espada na cinta, pedindo-lhe com grande instancia quizesse ir á sua aldeia e dar-lhe padres, que se queria baptisar com todos os seus (CARDIM, 1980, p. 162-163).

No mesmo tratado de Cardim faz-se menção ao luxo ostensivo das gentes principais de Pernambuco, que se vestiam, dentre outros tecido

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finos, com o mesmo damasco usado por Mitaguaya, uso também ele impróprio, porque “excessivo” às gentes que se lhe acostumaram15. Não nos esqueçamos de que, mais do que o damasco, a seda era tecido vedado à confecção de muitas peças de roupa, inclusive para gentes principais que frequentavam o paço, havendo legislação publicada concernente ao seu uso em dois diferentes anos da década de sessenta do século XVI. Segundo lei de 156016, todos os adereços feitos de tecido, como debrum, barra, alamar, fita, trança e passamane, não poderiam ser de seda e estavam vedados a pessoas de quaisquer condições, com exceção daquelas expressamente nomeadas como tal pelo rei, havendo na mesma lei penas previstas para quem a infringisse por uma única vez ou por mais de uma vez. Já em lei de 1566, vedava-se o uso das calças ditas “imperiais” a quaisquer varões do reino e não se permitia que fossem confeccionadas por alfaiates, ou reformadas, no caso das já costuradas antes da promulgação da lei17. No caso das roupas de seda, a lei previa as várias vestimentas que poderiam ser cosidas com esse tecido, as pessoas que as envergariam e os adereços do mesmo tecido que as acompanhariam: E assi ey por bem que as ditas donzelas da Raynha & Iffantes, em quanto andarem no paço possam trazer todos os vestidos & roupas de qualquer seda que quiserem com hũa soo barra direyta de largura de dous dedos em traues & com hũ debrũu direyto

15 Tome-se como exemplo o seguinte fragmento: “Vestem-se, e as mulheres e filhos de toda sorte de veludos, damascos e outras sedas, e nisto têm grandes excessos. As mulheres são muito senhoras, e não muito devotas, nem frequentam as missas, pregações, confissões, etc.: os homens são tão briosos que compram ginetes de 200 e 300 cruzados, e alguns têm três, quatro cavallos de preço” (CARDIM, 1980, p. 164). 16

Ley sobre os vestidos de seda, & feytios delles. E das pessoas que os podem trazer. 1560.

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Ley das calças, Agora noua mente impressas/ oje XXIV de Março de 1566.

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de seda da cor dos taes vestidos ou roupas ou dous debrũus direytos della sem barra18.

Ainda nos detendo na vestimenta dos Caramurus, não nos esqueçamos de que Alberti prescrevia que se observasse na pintura a relação decorosa entre a figura representada e sua vestimenta: É preciso, pois, que todas as coisas tenham curso de acordo com a dignidade própria. Não seria conveniente vestir Vênus ou Minerva com um grosseiro manto de lã, como igualdade não o seria vestir Marte ou Júpiter com roupa de mulher (ALBERTI, 1992, p. 111)19.

Seguindo a prescrição pictórica, que opera com lugares-comuns retóricos, o poeta pinta os Caramurus ornando-os com as vestes que são próprias de sua indignidade. A vestimenta era parte constitutiva do caractere, o que se pode depreender da leitura das preceptivas retóricas mais antigas e podia-se inseri-la no abrangente grupo dos bens externos. A analogia entre decoro retórico e decoro vestuário

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Ley sobre os vestidos de seda, & feytios delles. E das pessoas que os podem trazer. 1560.

O preceito albertiano obviamente deriva da preceituação presente em Aristóteles e na tradição retórica grega e latina respeitante à caracterização dos homens: “Let us now describe the nature of the characters of men according to their emotions, habits, ages, and fortunes. By the emotions I mean anger, desire, and the like, of which we have already spoken; by habits virtues and vices, of which also we have previously spoken, as well as the kind of things men individually and deliberately choose and practice. The ages are youth, the prime of life, and the old age. By fortune I mean noble birth, wealth, power, and their contraries, and, in general, good or bad fortune” (ARISTOTLE, 1994, p. 247). 19

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encontra-se claramente expressa, por exemplo, na Poética de Scalígero20. Sabemos que os vestidos eram de importância fundamental para a constituição do aptum dos vários gêneros de pintura, e pintores como Van Dick, no século XVII, ao tornar informais as vestimentas representadas em seus retratos da grande nobreza inglesa, nada mais fazia do que aplicar ao retrato o conceito de sprezzatura oriundo de Baldassare Castiglione21, assim como a representação de hábitos antigos ou exóticos era parte constitutiva do gênero histórico: While antique or exotic costume might be expected to appear in a history painting, where it could contribute to the setting and narrative, it was also introduced into portraiture in the seventeenth century. In fact, the power of clothing to speak emerges most clearly in portraits that present the sitter in fantastic or antiquated dress. This occurs in pastoral portraits, allegorical portraits, and portraits historiés (portraits that depict actual people who play a role as historical or mythological personages) (GORDENKER, 1999, p. 89).

Na tradução de F. M. Padelford da seção em que se estabelece a analogia entre estilo oratório e vestimentas, lê-se: “Then the usefulness and effectiveness of language were increased by rules governing construction, dimensions, as it were, being given to a rude and formless body. Thus arose the established laws of speech. Later, language adorned and embellished as with raiments, and then it appeared illustrious both in form and in spirit. To speak figuratively, such cultivation afforded the soldier his necessary armor, the senator his useful toga, or the more elegant citizen his richer pleasure-robe” (PADELFORD, 1905, p. 1).

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21 Alcir Pécora, ao discorrer sobre a ideia de sprezzatura em Castiglione, assim afirma: “a disposição para o belo gesto, afetado como natural a ponto de assemelhar-se a certa negligência ou altivez descuidada, não se esgota nela mesma, o que redundaria em má afetação ou impostação vulgar. A ação do cortesão deve tender para a virtude afetiva, moral, espiritual que incorpora a ambição estóica da imperturbabilidade, do domínio de si face aos altos e baixos da vida mundana. Ademais, em qualquer caso, importa sobretudo que a razão concilie-se com a elegância” (PÉCORA, 2001, p. 73).

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Emilie E. S. Gordenker, em seu artigo já citado, visa a relacionar a representação do ethos com o vestuário, e, para tanto, declara um princípio, logo na primeira página, a ser longamente demonstrado nas páginas subsequentes por meio da análise de uma dúzia de pinturas: “references to costume in seventeenth-century art theory reveal that dress was highly prescribed, and was expected to conform to the nature and subject of the image as well as to the particular character or quality of the figure represented” (GORDENKER, 1999, p. 87). A prescrição pictórica que opera a seleção do vestuário nos vários gêneros de pintura seleciona não apenas os modelos de vestimenta de acordo com lugares-comuns ou tópicas, por exemplo, “sexo”, “idade”, “nação”, “fortuna” etc., mas também e por necessidade os tecidos de que cada modelo poderia ou deveria ser feito segundo expectativas socialmente partilhadas e tornadas explícitas em leis suntuárias, como as acima citadas promulgadas em Portugal. Se Alberti nos diz que não se deve vestir “Marte ou Júpiter com roupa de mulher”, ele o faz não apenas por pensar em termos de decoro retórico, mas também por pensar no decoro vestuário fundado no direito, respaldado por um conjunto de obrigações e interdições, ou seja, pintura e poesia encenam referenciais discursivos oriundos de outros campos, como o direito, por exemplo, e, ao fazê-lo, reforçam-no. Em Portugal, entre tantas leis que regulavam o vestuário e o uso de adornos, há aquela que visa a salvaguardar a distinção fundamental entre os sexos, vedando qualquer forma de travestimento, o que, obviamente, era uma possibilidade, sem o que, não haveria a promulgação de uma lei que se lhe opusesse: Defendemos, que ninhuũ homem se vista, nem ande em trajos de molher, nem molher em trajos de homem. Nem isso mesmo andem com mascaras, saluo se for pêra algũas festas, ou jogos; e quem o

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contrairo de cada huũa das ditas cousas fezer, se for piam seja açoutado pubricamente, e se for Escudeiro, e di pêra cima, será degradado dous annos pera Alem, e mais cada huũ, a que cada hũa das ditas cousas for prouado, paguará dous mil reaes pêra quem o acusar (ORDENAÇÕES Manuelinas, MDCCLXXXXVII, Título XXXI, p. 90).

Mas esse interdito “primário” presente no código legislativo português, evidente como prescrição em Alberti, desdobra-se em interditos multiplicados, e da oposição inicial homem x mulher passa-se a novas oposições como nobre x plebeu, português x índio etc. Eis a primeira estrofe do segundo soneto aos Caramurus: Um calção de pindoba, a meia porra, Camisa de urucu, mantéu de arara, Em lugar de cotó, arco e taquara, Penacho de guarás, em vez de gorra (CÓDICE Asensio-Cunha, v. I, p. 317).22

Os elementos do vestuário listados no primeiro quarteto desdobram-se em dois grupos, aqueles que são próprios dos índios, como “calção de pindoba23”, “camisa de urucu24”, “mantéu de arara25”,

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Para facilitar a leitura, modernizamos a ortografia e a pontuação.

Palmeira nativa do Brasil, pertencente ao gênero Attalea, representado na Bahia por várias espécies, sendo as mais comuns com esse nome popular as que seguem: Attalea burretiana, Attalea humilis, Attalea pindobassu, Attalea salvadorensis (em livro de Harri Lorenzi, Palmeiras brasileiras e exóticas cultivadas, podem-se ver fotos de todas as espécies de Attalea já descritas em nosso país (LORENZI, 2004, p. 56-73).

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24 O urucum, Bixa orelana, é espécie ocorrente da Amazônia à Bahia, de cujas sementes se extraía a tintura empregada pelos índios (em livro de Harri Lorenzi, Árvores brasileiras, podem-se ver fotos de Bixa orelana (2002, p. 74). 25 Aves psitaciformes psitacídeas pertencentes a vários gêneros como Anadorhynchus, Ara e Cyanopsitta.

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“arco e taquara”, e “penacho de guarás26”, e aqueloutros próprios dos portugueses como “cotó”, “mantéu” e “gorra”; o soneto, nesse sentido, atualiza a prescrição da encenação de caracteres, ornando-os com o que lhes é próprio. O conjunto de vocábulos empregados pelo poeta para retratar os Caramurus, a sua vestimenta, é, por necessidade, oriundo das línguas brasílicas, já que é, como se disse, um retrato prosopográfico e também aquele de seu ethos linhagístico oriundo de seu sangue de tatu, destinado aos retratados e que os pinta com as tintas de sua própria língua. Os sonetos atribuídos a Gregório de Matos e Guerra mimetizam o procedimento de catequização empregado pelos jesuítas e tornam-se eles próprios línguas, intérpretes sem cuja presença a proposta doutrinária da poesia não se pode realizar27. Mas é preciso atentar para um procedimento, na poesia, não apenas análogo àquele condicionante da catequese jesuítica, mas que vai além dele. Os jesuítas, para catequizarem os índios, gramaticaram sua língua e, ao fazê-lo, na verdade constituíram-na, porque a língua objeto de reflexão e de estruturação em Anchieta28, por exemplo, não equivale

Ave ciconiiforme, de coloração vermelho-viva, cientificamente denominada Guara rubra, outrora comum na região do Recôncavo.

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27 Para uma reflexão pertinente sobre a relação entre a gramaticalização da “lingoa do Brasil”, a catequização dos índios e a formação, entre estes, de uma consciência de unidade de pessoa e de identidade a partir de critérios como “coerência, consistência e não-contradição que então definem o ‘humano’” (DAHER, 2004, p. 17-29).

O padre José de Anchieta, em seu Arte de Grammatica da lingoa mais vsada na costa do Brasil (1595), ao gramaticar o que ele denomina ‘lingoa do Brasil”, o faz reconhecendo as diferenças que há entre os vários falares das etnias pertencentes ao tronco tupi, o que se pode constatar em várias passagens de seu livro. Contrapondo, por exemplo, o falar dos tamoios àquele dos índios de São Vicente, no que respeita à pronunciação de consoantes em posição final de verbos conjugados no presente do indicativo, diz desses últimos: “Os tupis de Sam Vicente, que são alem dos Tamoyos do Rio de Janeiro, nunqua pronuncião a vltima consoante no verbo affirmatiuo, vt pro Apâb, dizem, Apâ, pro Acêm, & Apên, Acê, Apê, pronunciando o til somente, pro Aiúr, Aiú (p. 1v.). O processo de gramaticalização vai prescrevendo a adoção do que se denomina “o mais vniversal vso” (p. 2r.), produzindo por meio da planificação o que conhecemos por língua geral.

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a nenhuma das línguas indígenas faladas ao tempo do achamento do Brasil. No caso da poesia atribuída a Gregório de Matos e Guerra, a língua dos Caramurus é apropriada por um código poético que lhe dá uma certa ordem a que essa língua não estaria supostamente afeita, a da gramática do português sob cujas regras a poesia é escrita, mas, caso prestemos atenção aos poemas, são as justaposições de vocábulos que neles apresentam relevante frequência, como se tratasse de uma gramática simplificada para tornar pelo simples acúmulo de palavras os sonetos mais inteligíveis; nesse sentido, supõe-se uma intensificação da claritas, necessária aos destinatários, pela tentativa de simplificação da sintaxe. Vejamos: Um calção de pindoba, a meia porra, Camisa de urucu, mantéu de arara, Em lugar de cotó, arco e taquara, Penacho de guarás, em vez de gorra (II, 1). A linha feminina é carimá, Moqueca, pititinga, caruru, Mingau de puba, vinho de caju Pisado num pilão de piraguá. (I, 2)

Cabe ainda dizer que essa aparente simplificação da sintaxe atende ao mesmo tempo aos preceitos descritivos que prevêem a combinação dos traços notados e sua simultaneidade. A poesia atribuída a Gregório de Matos e Guerra recicla notícias presentes na epistolografia jesuítica, sobretudo aquelas passagens em que se fala da necessidade de línguas para que se produza com eficácia a catequese e, ao mesmo tempo, retoma queixas recorrentes nessa correspondência, que respeita à falta de entendimento dos índios. Se se questiona, entre os jesuítas, a impossibilidade de cristianizar os silvícolas sem que se saibam suas línguas:

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Porque até agora não tem os Indios visto essa diferença antre os Padres e os outros christãos. Seja logo esta a concruzão, que quando Santiago, com correr toda Espanha e falar mui bem a lingoa, e ter grande charidade, e fazer muitos milagres, não comverteo mais que nove disipulos; e vós quereis e os Padres, sem fazer milagres, sem saber sua limgoa, nem entender-se com elles, com terdes presumssão de apostolo e pouca confiança e fee em Deus, e pouca charidade, que sejão logo bons christãos? (NÓBREGA, p. 340).

A sátira, atendendo a essa necessidade declarada pelos padres, fala como índio aos índios, doutrina mimetizando autoridades oratórias e teológicas objetivando o bem daqueles que ainda vivem sem fé, lei e rei, mas que se encenam em posições que rompem a ordem e o decoro; a sátira, desse modo, para reordenar o desordenado, encena os principais da Bahia como se ainda fossem seus costados, o Adão e a Eva do massapé de que todos provieram, encenação evidente pelo recurso risível da lexis. A poesia, ao tempo em que visa ao máximo de clareza sintagmática, elude essa mesma clareza caso o leitor não seja um Caramuru ou um letrado afeito aos “costumes brasílicos”, pois, para um letrado recém-chegado do Reino, sem conhecimento prévio das línguas faladas na costa do Brasil pertencentes ao tronco tupi, uma parte significativa dos vocábulos passaria desentendida, o que, contrariamente ao que possamos hoje em dia pensar, era justamente o efeito de sentido visado pela sátira, pois ela encena a fala dos índios, ininteligível, por conseguinte, para os reinóis29. Não é

29 A retoricização epidítica comum à poesia e à pintura é o que permite a aplicação do preceito horaciano à composição do retrato prosopográfico e etopeico. Contudo, não nos parece cabível tentar encontrar uma correspondência elemento a elemento entre pintura e poesia, por exemplo, entre fonemas e cores, ou entre fonemas e linha, ou, ainda, entre palavras e elementos propriamente

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a espessura da voz o que se visa a fazer soar por meio do bilinguismo de muitos poemas satíricos do século XVII, voz essa, “selvagem”, que, no caso da América portuguesa, presentifica o negro da terra, a nobreza da terra e sua algaravia ininteligível, o que intensifica, mais do que qualquer sentido objetivo possível, o efeito do risível próprio da sátira pela evidência da falta de humanidade evidente na algaravia? E como descrer, diante dos sonetos gregorianos, que uma forma como o soneto pudesse, em pleno século XVII, ser parasitada pela voz?: “A linha feminina é carimá,/muqueca, pititinga, caruru,/ mingau de puba, vinho de caju/ pisado num pilão de piraguá.” Não é o sentido poético profundo, que o som desses vocábulos faz reverberar, o que levou tantos ouvintes, fossem eles mais ou menos letrados, a intervir nessa massa sonora e a modulá-la segundo um gosto fundado no ouvido, para além de qualquer atenção prestada ao rigor semântico que para nós é tão importante nos dias de hoje? Não foi esse gosto pela modulação sonora que gerou tantas variantes, constituídas de elementos textuais que mudam de lugar, que migram no interior de versos, de estrofes, de poemas e entre poemas? E não é o apreço pela oralidade o que faz com que se valha do bilinguismo de certos poemas como uma estratégia expressiva em que predominam a adição e a agregação de termos, por seus valores étnico-fônicos, em detrimento de uma preocupação lógico-sintagmática, como é o caso de Há coisa como ver um paiaiá ou ainda Um rolim de Monai,

“iconográficos”, adotando-se a definição de “iconográfico” de Erwin Panofsky presente em seu conhecido O significado nas artes visuais (1979). Se palavras equivalem a elementos iconográficos, como relacionar cada elemento iconográfico com as classes de palavra, tais como substantivo, adjetivo, advérbio, verbo, conjunção, preposição etc.? Não cremos, portanto, que a proposta de Stanley Meltzoff de encontrar tais correspondências tenha qualquer pertinência, pois se cores, por exemplo, são fonemas, a linha, na medida em que não pode ser subsumida na mesma classe fonêmica de cor, já seria um elemento desordenador do sistema, a não ser que cor equivalesse à vogal e linha, à consoante, mas haveria então uma única consoante em todo o sistema proposto por Meltzoff? (MELTZOFF, 1970, p. 33-34).

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bonzo, bramá, na tradição de Gregório de Matos e Guerra? Não se trataria aqui do que Paul Zumthor denominou mouvance30? E não seria essa mesma algaravia, em sua funcionalidade poética – matéria por metonímia de muitos poemas –, pronunciada alegremente por aqueles que desejavam vergastar os brios da nobreza da terra, o que induz os que recitam os poemas, no calor da récita, a torná-la ainda mais ininteligível? – o que reduz muita vez o texto que nos chegou a uma massa sonora disjunta e que revela o predomínio do significante pelo império da enunciação performativa, ou seja, uma motivação sinestésica somente bem acabada por meio de uma “encenação”? Não há como descrer que, no caso da América portuguesa do século XVII, poemas pudessem também ser lidos, não apenas em voz alta, mas silenciosamente, no espaço privado, embora por uma minoria, o que torna complexa a situação de partilha social da poesia nos Seiscentos, em que, a par de uma comunicação mediatizada pelo intérprete, há aquela diferida pela leitura. E se à ordem que a persona satírica

30 Paul Zumthor, em uma bibliografia ampla demais para ser comentada aqui, tentou definir o que seriam a oralidade e a vocalidade da poesia medieval. Afirmou que todo texto literário medieval destinava-se à comunicação em voz alta, fosse diante de um auditório, como no caso da performance das canções de gesta, fosse a leitura de romances realizada em solidão pela prática da manducação da palavra. Abandonou, de qualquer forma, as pesquisas genéticas próprias da filologia oitocentista, e, em suas pesquisas sobre a relação entre oralidade, vocalidade e variação textual afirmou: “The question of ‘orality’ in the chansons de geste or in any other poetic genre can therefore be raised only in terms of performance, not of origin” (ZUMTHOR, 1984, p. 67). A mouvance, concebida como procedimento constitutivo da poética medieval, implica o caráter multifário dos textos, que demandaria do filólogo instrumentos outros de interpretação que não suas tradicionais ferramentas restitutivas do texto genuíno, que objetivam a redução desse caráter multímodo. Segundo Paul Zumthor, ao investigar tradições textuais que nos chegaram do passado longínquo, caberia ao filólogo a tarefa de escrutinar o que estaria sob a superfície dos textos, tornando patente a espessura da voz a despeito da textualização por que passaram os poemas: “to try to see the other side of the mirror, or at least to scratch away the silvering a little. There behind it, beyond the evidence of our present and the rationalities of our methods, lies that remnant – that multiple, without a unifying origin or a globalizing end, that ‘noise’ referred to by Michel Serres, any understanding of which resides in our sense of hearing rather than sight” (ZUMTHOR, 1984, p. 72). Nos poemas atribuídos a Gregório de Matos e Guerra, a espessura da voz evidencia a modalização dos versos por meio de categorias outras que não aquelas que regram a escritura.

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buscou dar à algaravia dos índios – ela própria, enquanto ordem, desordem, pelo acúmulo de verba peregrina, redundando em forte obscuritas –, se opõe o desejo de devolver a essa não-língua, o cobé pá, a sua natural desordem mimetizada pelo fracionamento vocabular e versífico, pode-se pensar que aqui a voz enunciativa ridiculariza as tentativas jesuíticas de ordenar o que não pode ser ordenado, ou seja, empreende-se uma crítica risível da gramaticalização da língua do Brasil, que, contrariamente à língua portuguesa, não é passível de gramaticalização. Basta pensarmos no que representam as gramáticas e os diálogos da língua nos séculos XVI e XVII, não apenas para portugueses, mas também para espanhóis, franceses e italianos para que tenhamos ideia de como os sonetos atribuídos a Gregório de Matos e Guerra referem campos discursivos múltiplos com o objetivo de legitimar algumas posições e deslegitimar outras ajuizadas pela musa satírica como não pertinentes. Fernão de Oliveira afirma que a língua serve para que a alma racional possa comunicar-se com outras almas racionais, mas, como todos os seres e coisas pertinentes ao mundo sublunar, é preciso atentar para o fato de que os falantes apresentam algumas “qualidades” derivadas do predomínio de um dado humor (seco ou úmido), o que pode gerar, por exemplo, as falas ciciosas de alguns povos, ou, ainda, falas em que faltam elementos fonêmicos (“Esta lingoa do Brasil não há f. l. s. z. rr. dobrado nem muta com liquida, vt cra, pra &c.” (ANCHIETA, p. 1); “Carece de tres letras, conuem a saber, nam se acha nella, f, nem, l, nem, R, cousa digna despanto, por que assi nam tem Fé, nem Ley, nem Rey: & desta maneyra viuem desordenadamente sem terem alem disto conta, nem peso, nem medido” [GANDAVO, p. 33v.]); e, também, “feições” (como, por exemplo, “dentes grandes”), que, também derivadas do “céu e da terra”, interferem na dicção. A conjunção de “qualidades” e “feições” redunda em serem algumas línguas mais bem acabadas do

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que outras, mais bem sonantes, menos ásperas e mais inteligíveis, plenas de predicados positivos, como o é a língua portuguesa: E o mais de culpar este defeyto das calidades serem diuersas: nas quaes tem dominio as condições do çeo e da terra em que viuem os homens com que hũas gentes formam suas vozes mays no papo como caldeus & arabigos & outras nações cortão vozes apressandose mays em seu falar: mas nos falamos com grande repouso como homens assentados (OLIVEIRA, 1536, p. 2v-3r).

Fernão de Oliveira ainda diz que as palavras derivam do caráter, de que derivam também as ações: “Cada um fala como quem e: os bos falão virtudes e os maliciosos maldades: os religiosos pregão desprezos do mũdo & os cavaleiros blasonão suas façanhas” (OLIVEIRA, 1536, p. 2v). Para o primeiro gramático português, a língua, quando ilustrada pelos homens que se valem dela, é condição de produção de uma memória duradoura dos povos que a falam, como foi o caso de Roma, pois por meio dela se louvam os feitos grandiosos, se inscreve a boa doutrina para a conduta humana e estende-se o império pelo seu ensino ou imposição. Fernão de Oliveira, referindo a amplitude do uso do latim ao tempo do Império romano, afirma que, caso Portugal deseje ser também um império, é preciso que ensine a Guiné (OLIVEIRA, 1536, p. 4r). A correlação da expansão imperial e linguística é mais uma vez referida em interessante passagem, em que se afirma gostarem as gentes da África, da Índia e do Brasil somente daqueles portugueses que, lá nascidos, acabam por falar as línguas locais em detrimento do português, ou seja, integram a si os portugueses que por nascimento e assimilação cultural e linguística deixaram de ser

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forâneos, integração essa criticada por Fernão de Oliveira como costumeira no âmbito do Império português (a ponto de no século XVIII o Marquês de Pombal ter de promulgar lei para impedir o uso da língua geral no Estado do Brasil, pois em muitas províncias, como era o caso de São Vicente, falava-se, sobretudo, língua de índios): & com tudo apliquemos nosso trabalho a nossa lingua & gente & ficara com mayor eternidade a memoria delle: & nam trabalhemos em lingua estrangeira mas apuremos tanto a nossa com bõas doutrinas que a possamos ensinar a muytas outras gentes & sempre seremos dellas louvados & amados porque a semelhança e causa do amor & mays em as linguas. E o contrayro vemos em Africa, Guine, Brasil & India não amarem muyto os Portugueses que antrelles naçem so polla diferença da lingua: & os de la naçidos querem bem aos seus portugueses & chamanlhes seus porque falão assim como elles (OLIVEIRA, 1536, p. 5r).

A sátira, quando ataca os principais da Bahia pelo seu suposto uso do “cobé pá”, não o faz apenas por que os Caramurus descendem de índios, mas porque, apropriando-se de notícias que deviam circular amplamente sobre o uso da língua geral em outras capitanias, como São Vicente, onde as gentes principais descendiam em muito maior número de índios e falavam efetivamente como índios, delibera serem todos os principais do Brasil falantes de línguas bárbaras, de que Diogo Álvares seria um mero epônimo para as gentes da Bahia, amplificando-se assim o alcance da antonomásia. Assim, lendo a sátira a partir da primeira seção da didascália, ou seja, “Aos Principais da Bahia”, podem os outros falsos fidalgos da terra ver-se no lugar dos falsos fidalgos baianos, pois, como muitos descendem de índios, não seria difícil verem a si

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mesmos como Caramurus. O falar línguas bárbaras impediria que as boas doutrinas de que o português era o instrumento de transmissão fossem úteis para os conquistados, razão para que se promovesse, como o desejava Fernão de Oliveira, sua paulatina erradicação. A intromissão de vocábulos indígenas na língua portuguesa, resultado do processo de colonização, que fazia o português falado no Brasil soar diferentemente, ou barbaramente, não contribuía para a ilustração da língua, pois essa se dava por meio da crescente e buscada latinização da língua portuguesa, em que um sem número de verba peregrina de origem, sobretudo, latina, mas também grega, ingressaram desde o século XV. Pero de Magalhães Gandavo, em dois de seus escritos, afirma que a ortografia da língua portuguesa deveria considerar sempre a etimologia das palavras31 e, quanto mais chegadas às palavras latinas fossem as portuguesas, tanto melhor: porque quãto mais chegarmos ao latim estes & outros vocabulos Latinos, que corruptamente vsamos guardando lhes fielmente sua orthographia, tato sera nossa lingua mais polida, & ficarà nesta parte mais singular & appurada que as outras (REGRAS, 1590, p. 14)32.

31 REGRAS que ensinam/ a maneira de escrever a/ orthographia da lingoa/ portuguesa, com hum dialogo que adelante se segue/ em defensão da mesma lingua./ autor/ Pero de Maga-/ lhães de Gandauo./ impressas com/ licença: em Lisboa por Bel-/ chior Rodriguez. (1590, p. 8).

Em Gandavo a latinização do português é condição de sua crescente autoridade como língua imperial, sobrepondo-se inclusive à língua castelhana por ser mais chegada ao latim do que esta: “Ora naquelles (vocábulos) em que seguimos o latim, não há que reprehender, pois claramente vê que quanto mais a elle nos chegarmos, tanto melhor parecem & mais authorizada fica nossa linguagem” (Ver Pero de Magalhães Gandavo, Seguese hum dialogo em/ defensam da lingua portuguesa sobre/a qual tem disputa hum Portugues com hum Castelhano,/ onde por se tratar desta materia vsa cada hum de/ sua lingoagem na maneyra seguinte. Em uma língua que se legitima na medida em que, como língua de cultura, se aproxima mais e mais do latim não apenas pela importação maciça de palavras, mas também pela crescente presença de barbarismos sintagmáticos como a anástrofe, o hipérbato e a mixtura verborum, os vocábulos indígenas só poderiam se apresentar como próprios para a produção de vitupérios aos que se entregavam à fala das línguas selvagens da América.

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Para concluir a análise do primeiro quarteto do segundo soneto, prestemos atenção agora à relação que se estabelece na recepção entre as vestimentas e o aspecto profundamente sinestésico da cor que se lhe associa. Refere-se o “calção de pindoba”, a “camisa de urucu”, o “mantéu de arara”, o “arco e taquara” e, por fim, o “penacho de guarás”. Recuperemos, pela leitura de notícias sobre o Brasil, o que se entendia e “via” quando se empregavam esses nomes de origem tupi. 1) “camisa de urucu”: Descreve-se e desenha-se o urucum, no século XVII, no belíssimo manuscrito do História dos Animais e das Árvores do Maranhão, de Frei Christovão de Lisboa, que “chegou ao Maranhão em Maio de 1624, sabendo-se, de certeza, que ainda ali residia em fins de 1627” (IRIA, 1967, p. v). A descrição do urucum assim como a de seu emprego como tintura pelos índios encontra-se à página 114 (Fol. 134 e fol. 180): oroquu he aruere tamanha de des ou doze palmos daltor e a fruta he como castanha e quoamdo ele he maduro abre se e he de cor pardo e não tem mais que gramis de dentro vermelhos que serue a fazer o uermilham aos Saluaguemis eles a estimam tãoto como as molheres de portugal estimão o uermilhão e os negros tamto faz os maxos como as femias umtão os olhos e a boqua quoamdo uam beber uinho [...].

Vê-se que o aspecto cosmético do urucum e sua coloração intensa, escarlate, grã, é o que sobressai na informação de Frei Cristóvão de Lisboa e o que deveria vir à cabeça dos leitores e ouvintes dos sonetos atribuídos a Gregório de Matos e Guerra. A camisa de urucu, portanto, nada mais era do que a tintura feita sobre a parte superior e inferior do tronco do indígena, intensamente escarlate, em dias de beber vinho, o que normalmente se dava quando se matavam inimigos, ou seja, a pintura é índice do repasto antropofágico (a referência

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ao urucum, embora não se o nomeie, já se faz presente em Caminha (“Estava tinto de tintura vermelha pelos peitos e costas e pelos quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria côr” [ARROYO, 1971, p. 52]33); 2) “mantéu de arara”: No História dos animais e das árvores do Maranhão, descrevem-se várias espécies vulgarmente chamadas de araras, mas também outras aves psitaciformes cujas penas eram utilizadas pelos indígenas na produção de adornos (descrição da “araruna”, p. 150; descrição do “canindé”, p. 151). Eis a descrição da arara: Arara hete (sic) he tamanha como o canide e tem o biquo e os peis como papaguaio e tem o rabo de dous palmos de comprido ele o lomguo do biquo e dos olhos não tem pena he cor de carne o pesquozo e a barigua uermelho as azas e o rabo uermelho pimtadas damarelo e azul e uerde e uermelho e os olhos não se emfadam de os olhar e os saluaguemis as estimão muito pelas cores de suas penas de que eles fazem brasaletes e capasetes ettta que fazem seus folguedos e com que eles gornecem as espadas da guera [...] (LISBOA, 1967, p. 152).

Há muitas descrições, nos séculos XVI e XVII, da arara e do uso de suas penas para a produção de ornamentos e indumentárias indígenas.

Um outro relato quinhentista sobre a pintura corporal dos índios do Brasil faz-se presente em André Thevet, que discorre longamente sobre a extração da tinta do genipapo, antes de se deter, em várias seções, sobre o lavor que as mulheres fabricam sobre a pele dos homens, como a que segue: “Les femmes accoustrent les hommes, leur faisans mille gentilleses, comme figures, ondes, & autres choses semblables, dechiquetées si menu qu’il n’est possible de plus”. Ver, para maiores detalhes, Les/singulari-/ tez de la Fran-/ ce antarctique, au-/ trement nommée Amerique. & de/ plusieurs Terres & Isles de-/ couuertes de nostre/ temps./ Par F. André Theuet, natif d’Angouleme/ Chez les heritiers de Maurice de la Porte, au Clos/ Bruneau, à l’enseigne S. Claude./ (1557).

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Fernão Cardim, assim como Frei Cristóvão de Lisboa, descreve várias espécies de aves psitaciformes e os usos que delas faziam os índios: Estes papagaios são os que por outro nome se chamão Macaos: he passaro grande, e são raros, e pela fralda do mar não se achão; he huma formosa ave em cores, os peitos têm vermelhos como grãa; do meio para o rabo alguns são amarellos, outros verdes, outros azues, e por todo o corpo têm algumas pennas espargidas, verdes, amarellas, azues, e de ordinário cada penna tem tres, quatro cores, e o rabo he muito comprido. Estes não põem mais de dois ovos, crião nas tocas das arvores, e em rochas de pedras. Os índios os estimão muito, e de suas pennas fazem suas galantarias, e empennaduras para suas espadas; he passaro bem estreado, faz-se muito domestico, e manso, e fallão muito bem, se os ensinão (CARDIM, 1980, p. 32).34

Novamente, enfatiza-se na descrição da plumagem seu intenso colorido e cremos que esse elemento sobressaia nas descrições. Ao vermelho do urucu e das penas de arara35 vem somar-se aquele próprio

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Fernão Cardim ainda descreve os papagaios e as ararunas à página 32.

Entre as descrições quinhentistas da arara e dos usos das penas pelo índios, encontra-se aquela de André Thevet, em que muitos dos elementos presentes no soneto atribuído a Gregório de Matos e Guerra comparecem. Fala-se, como em outros autores, do colorido da plumagem para, em seguida, mencionar-se o mantéu de araras (robes) e o penacho (bonnets) usado na cabeça pelos índios. Em primeiro lugar, transcrevemos o excerto sobre a arara: “Entre ce nombre d’oyseaux tous differēs à ceux de nostre hemisphere, s’en trouue vn qu’ils nõment em leur langue Arat qui est vn vray heron quant à corpulence hors-mis que son plumage est rouge cõmme sang de dragon” (p. 47v). No reto da mesma página, Thevet nos fala do que se fabrica com as penas, sendo que o mantéu (robes) é feito com as penas da arara: “Et de ces plumes les Sauuages du païs font pennaches de plusieurs sortes, desquelles se couurent, ou pour ornement, ou pour beauté, quand ils vont en guerre, ou qu’ils font quelque massacre de leurs ennemis: les autres en font robes & bonnets à leurs mode [...]” (p. 47r). Em outra página, fala especificamente do penacho de penas: «& autour de leurs testes portent de grands pennaches beaux à merueilles» (p. 60r). 35

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das penas de guará; 3) “penacho de guarás”: No História dos animais e das árvores do Maranhão, descreve-se essa espécie à página 141 como segue: guoara he pasoro tamanho como hũa gualinha uermelho como gram por todo o corpo os peis uermelhos como sangue e o biquo cor de carne e as pomtas das penas e as azas pretas eles fazem seus filhos como as garsas e fazem quoatro e simquo filhos e os ouos sam bramquos pimtados de pardo e o seu natural he serem pretos de primeiro e depois pardos e uermelhos e bramquos e depois de sererem (sic) de quatorze ou quinze mezes se tornão todos uermelhos cor de gram [...] (LISBOA, 1967, p. 141).

O guará também é descrito por Fernão Cardim em um de seus escritos: Este passaro he do tamanho de huma Pega, tem o bico muito comprido com a ponta revolta, e os pés de comprimento de hum grande palmo; quando nasce he preto, e depois se faz pardo; quando já avôa faz-se todo branco mais que huma pomba, depois faz-se vermelho claro, et tandem torna-se vermelho mais que a mesma grã, e nesta cor permanece até a morte; são muitos em quantidade, mas não têm mais que esta especie; crião-se bem em casa, o seu comer he peixe, carne, e outras cousas, e sempre hão de ter o de comer dentro n’agua; a penna destes he muito estimada dos Indios, e dellas fazem diademas, franjas, com que cobrem as espadas com que matão; e fazem braceletes que trazem nos braços e põem-nas nos cabellos como botões de rosas, e estas suas joias e cadêas de douro com que se

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ornão em suas festas, e estimão-nas tanto que, com serem muito amigos de comerem carne humana, dão muitas vezes os contrarios que têm para comer em troco das ditas penas: andão em bando estes passaros, e se lhe dá o sol nas praias, ou indo pelo ar he cousa formosa de ver (CARDIM, p. 54)36.

Se a cor vermelha predomina, a visualização totalizante do silvícola americano não deveria ser tarefa dificultosa ao se ler cada poema, pois já se faziam presentes, no século XVII, imagens da América, pintada como índia, nos tratados de pintura, emblemas e divisas, assim como também em baralhos produzidos nesse século, em que cada naipe correspondia a um continente – Ásia, Europa, África e América. Antes de nos determos nas prescrições para a pintura da América presentes em tratados de iconologia e de pintura, é preciso atentar para o sentido da cor predominante na figuração dos Caramurus no soneto atribuído a Gregório de Matos e Guerra. Como já se demonstrou, o vermelho predomina, pois se faz presente na “camisa de urucu”, no “mantéu de arara” e no “penacho de guarás”. Sabemos que os Caramurus da Bahia são as gentes principais, como se afirma não apenas nas didascálias, mas também em um dos sonetos do tríptico: “de paiaiá tornou-se abaeté”; as cores das vestes, nos séculos XVI e XVII, tanto no âmbito do uso da corte quanto na representação pictórica portavam significação prevista em tratados de civilidade e tratados de pintura. Serenella Baggio (1986, p. 91-92) afirma, citando, dentre outros, Lomazzo, que os tons de vermelho, carmesim e púrpura estavam destinados às gentes

Descrições do guará já comparecem em tratados descritivos do Brasil desde o século XVI, como se pode ver em passagem do livro de Pero de Magalhães Gandavo, em que se descreve esse pássaro com os mesmos lugares-comuns que se encontram nos dois autores antes citados (GANDAVO, p.27r).

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principais da igreja e também a monarcas, devendo-se, segundo ela, prestar atenção à aplicação dessas cores na arte do retrato, notícia que, na sátira, rearticula-se para a figuração da nobreza selvagem dos melhores da Bahia, de seus optimates, associando-se essa paleta cromática com qualidades pictóricas da imagem que traduzem ou evidenciam seu ethos monstruoso, o que redunda também em ridículo e riso, ou seja, o soneto encena a majestade bárbara dos povos do Novo Mundo. Leiamos o excerto de Lomazzo: Adunque per fuggire queste inconvenienze e sapere le ragioni del compartire i colori secondo i gradi delle figure che si rappresentano, debbiamo sapere in generale che i colori che tendono allo scuro e sono privi di quella vivacità chiara, si appartengono a vecchi, filosofi, poveri, melancolici e genti gravi, ai quali se si facessero vesti vaghe et allegre di colori vari, non si converrebbono. I bianchi, pavonazzi, rossi e simili spettano a pontefici, monarchi e Cardinali (BAROCCHI, 1973, v. II, p. 2119-2343, apud BAGGIO, 1986, p. 91).

O entrecruzamento de prescrições pictóricas e retóricas e poéticas não se deve apenas ao reconhecimento da analogia entre procedimentos artísticos e de sua emulação; refletindo também a partir de proposições de Erwin Panofsky e de Robert Klein que problematizam o fato de que “a significação pode ser veiculada ao mesmo tempo [...] pela forma representativa e pelo objeto representado” (KLEIN, 1998, p. 352), propôs-se no caso em questão hipotetizar que a voz enunciativa, ao articular os elementos do retrato prosopográfico, simultaneamente os ordenava em um análogo do que em pintura seria a “forma representativa”. Deriva dessa hipótese o esforço para promover a síntese, na interpretatio, entre os elementos “iconológicos”, tais como

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definidos por Cesare Ripa, dentre outros, e a “coloração”, também ela prevista, porque prescrita, fundamental para a constituição da “forma representativa”, já que ela acresceria às significações veiculadas em chave nominal (“calção de pindoba”, “camisa de urucu”, “mantéu de arara”) aquela ao mesmo tempo complementar e fundamental de certa grandeza metafórico-cromática, que seria, segundo Bernehimer, uma metáfora visual. Quanto às prescrições para a figuração da América, embora não haja descrição dela na edição italiana do Iconologia37, de Cesare Ripa, de 1593, aquela que Mario Praz designa como a primeira edição dessa obra, pudemos, no entanto, encontrar uma prescrição para a representação das quatro partes do mundo em edição de 162538, em italiano. Em edições posteriores que apresentam uma tradução do texto italiano, às vezes se encontra a prescrição para a representação das quatro partes do mundo, às vezes não, como ocorre, por exemplo, com a Iconologie39, de Jean Baudoin, datado de 1643; encontramos, contudo, uma descrição da América em uma

37 Iconologia o vero descrittione dell’imagini universali cavate dall’antichita et da altri luoghi da Cesare Ripa Perugino. Opera non meno utile che necessaria à poeti, pittori & scultori, per rappresentare uirtù, uitij, affetti, & passioni humane (1593). 38 Della novissima iconologia de Cesare Ripa Pervgino cavalier de SS. Mauritio & Lazzaro. Parte Prima. Nella quale se descrivono diverse imagini di virtù, vitij, affetti, passioni humane, arti, discipline, humori, elementi, corpi celesti, prouincie d’Italia, fiumi tutte le parti del mondo, & altre infinite materie. Opera utile ad oratori, predicatori, poeti, pittori, scultori, disegnatori, & ad’ogni studiosi per divisare qual si voglia apparato notiale, funerale, trionfale, per rappresentar poemi drammatici, e per figurare co suoi proprij simboli ciò, che può cadere in pensiero humano. Ampliata in quest’ultima editione non solo dello stesso auttore di Trecento, e cinquantadue imagini, com molti discorsi pieni di varia eruditione, & con molti Indici copiosi, ma ancora arrichita d’altre imagini, discorsi, & esquisita corretione dal Sig. Gio. Zaratino Castellini Romano (1625). 39 Iconologie ov les principales choses qui peuuent tomber dans la pensee touchant les vices et les vertus, sont representees soubs diuerses figues, grauées en cuivre par Iaques de Bie et moralement expliquees (1643).

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tradução francesa do Iconologia40 de Cesare Ripa datada de 1698, publicada em Amsterdam. Citaremos, por sua importância para o desenvolvimento de nossa análise, quase toda a prescrição de Ripa para a figuração da “América”. Como se verá, nosso continente será composto de atributos que em seu conjunto o significarão na poesia, na pintura, na arquitetura e na escultura e, o mais importante, os atributos elencados por Ripa são os mesmos que são atualizados no segundo soneto atribuído a Gregório de Matos e Guerra, o que faz crer que a prescrição estava largamente difusa em ambientes letrados europeus desde fins do século XVI. Cabe dizer que Cesare Ripa seleciona para a figuração do mundo americano, dentre lugares-comuns presentes em textos diversos, como cosmografias e a epistolografia jesuítica41, por exemplo, alguns que depois dele passarão a representar a América como os seus atributos. Transcreveremos a seguir fragmento da edição italiana de 1625 e, logo depois, em nota, apresentaremos o texto correspondente da tradução francesa de 1698, que já patenteia uma estrutura textual resumida e simplificada, mantendo-se, contudo, como se verá, o essencial da prescrição. Vejamos o que Cesare Ripa prescreve: AMERICA Donna ignuda, di carnagione fosca, di giallo color misto, di volto terribile, & che vn vello rigato di più

Iconologie ou la science des emblemes devises, &C. qui apprend à les expliquer dessiner et inventer. Ouvrage tres utiles aux orateurs, poëtes, peintres, sculpteurs, graveurs, & generalement à toutes sortes de Curieux des beaux arts et des sciences. Enrichie & augmentée d’un grand nombre de figures avec des moralités, tirées la pluspart de Cesare Ripa (1698).

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41 Como diz João Adolfo Hansen: “Porque é mimética, a ekphrasis pressupõe os modos retóricos da imitação de topoi oratórios (endoxa) e poéticos (eikona). Os modos são aplicáveis em artes distintas, como a oratória, a poesia e a pintura, observando-se a continuidade ou homologia do procedimento mimético entre as artes e, simultaneamente, a competição delas (HANSEN, 2006, p.88).

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colori calandole da uma spalla à trauerso al corpo, le copri le parti vergognose. Le chiome saranno sparse, & a torno al corpo sia vn vago, & artificioso ornamento di penne di varij colore. Tenga con la sinistra mano un’arco, con la destra mano una frezza, & al fianco la faretra parimente piena di frezze, sotto un piede, una testa humana passata da una frezza, & per terra da una parte sarà una lucertola, overo un liguro di smisurata grandezza. Per esser novellamente scoperta questa parte del Mondo gli Antichi Scrittori non possono haverne scritto cosa alcuna, però mi è stato mestieri veder quello che i migliori Historici moderni ne hanno referti, cioè, il Padre Girolamo Giglui, Ferrente Gonzales, il Botero, i Padri Giesuiti […]. Si depinge senza habito, per essere usanza di quei popoli d’andar ignudi, è ben vero, che cuoprono le parti vergognose con diuersi veli di bambace, ò d’altra cosa. La ghirlanda di varie penne, è ornamento, che eglino sogliono usare; anzi di più sogliono impennare il corpo in certo tempo, secondo che vien riferito da sopradetti auttori. L’arco & le frezze sono proprie armi, che adoperano continuamente, si gl’huomini, comme anco le donne in assai Prouincie (RIPA, 1625, p. 492-493).

Cesare Ripa elenca os seguintes atributos que se podem correlacionar com os elementos descritivos presentes no soneto gregoriano: «torno al corpo [...] ornamento di penne» e «mantéu de arara»; «arco e frezze» e «arco e taquara»; «guirlanda di varie penne» e «penacho de guarás»; «veli di bambace» e «calção de pindoba». O que há de diferente entre Ripa e o soneto são a ausência naquele de referência às pintura corporais, presentes em quase

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todos os textos que descrevem os índios nos séculos XVI e XVII42; a presença, em Ripa, mas ausente no soneto, de referência à aljava: “faretra”; a prescrição em Ripa de que se deveria apresentar parte de corpo humano despedaçado nas figurações da América para tornar evidente o canibalismo dos seus habitantes, o que, de certa forma, dá-se no tríptico gregoriano, pois o terceiro soneto do tríptico trata especificamente da antropofagia dos avoengos dos principais da Bahia (“Que é fidalgo, cremos nós,/ Que nisto consistia o mor brasão/ Daqueles que comiam seus avós,”)43; a presença, em Ripa, da prescrição da representação de um animal, o jacaré (lucertola/liguro), nas figurações da América, o que, nos sonetos de Gregório de Matos e Guerra, transforma-se em outro animal que se tornará, por seu turno, atributo das partes do Brasil, ou seja, o tatu, presente, por exemplo, na empresa que abre o História da Guerra Brasílica de Brito Freire44. São

42 Fernão Cardim não apenas descreve em várias seções de cada um dos seus tratados as pinturas corporais dos índios do Brasil, mas produz uma belíssima ficção poética de sua suposta origem: “Manima – Esta cobra anda sempre n’agua, he ainda maior que a sobredita (Sucurijuba), e muito pintada, e de suas pinturas tomarão os gentios deste Brasil pintarem-se; têm-se por bemaventurado o Indio a quem ella se amostra, dizendo que hão de viver muito tempo, pois a Manima se lhes mostrou.” (CARDIM, p. 55).

Pero de Magalhães Gandavo, ao discorrer sobre a selvageria dos índios, associa sua barbárie e falta de racionalidade ao hábito de vingar-se de forma inumana dos seus contrários e ao repasto antropofágico, manifestações incontestes daquelas, já que matam os cativos justamente quando a paixão que poderia justificar seus atos já se desvaneceu: “Hva das cousas em que estes Indios mais repugnam o ser da natureza humana, & em que totalmente parece que se extremam dos outros homens, he nas grãndes & excessivas crueldades que executam em qualquer pessoa que podem aver ás mãos, como nam seja do seu rebanho. Porque nã tam sómente lhe dão cruel morte em tempo que mais livres & desimpedidos estã de toda a paixam: mas ainda depois disso, por se acabarem de satisfazer lhe comem todos a carne, vsando nesta parte de cruezas tam diabolicas, que ainda nellas excedem aos brutos animaes que nam tem vso de rezam, nem forão nacidos pera obrar clemencia” (GANDAVO, p.40v).

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Nova Lusitania, Historia da guerra brasilica a purissima alma e savdosa memoria do serenissimo principe dom Theodosio Principe de Portugal, e Principe do Brasil. Por Francisco de Brito Freyre. Decada primeira (1675). Na empresa que serve de página de rosto ao livro de Brito Freire, o Brasil se faz representar pelo abacaxi, pela pacova, pela cana-de-açúcar, pelo coco e pelo tatu, elementos que eram tópicas para a representação do mundo brasílico no século XVII e que se fazem largamente presentes não apenas na poesia, mas também em todo um conjunto de discursos de caráter descritivo.

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esses mesmos atributos que se fazem presentes na tradução francesa de 1698, como se pode ver na nota seguinte45. O portar em mãos arco e flecha é apenas uma retomada de lugarcomum descritivo, presente como atributo dos índios desde a Carta de Pero Vaz de Caminha (ARROYO, 1971)46 e recorrente, no século XVI, em autores de língua portuguesa como Gabriel Soares de Sousa47 e Pero de Magalhães Gândavo48, assim como em autores franceses

O excerto repete de forma abreviada a prescrição contida na edição italiana de 1625: «Cette femme qui a le teint olivastre, le visage effroyable à voir, & un voile de plusieurs couleurs qui luy couvre le Corps à demy, represente l’Amérique; outre qu’une echarpe de plumes trés agréables, artistement jointes ensemble, la fait particulièrement remarquer par ce bisarre ornement. Elle porte en une main une fleche, & en l’autre un Arc, & un carquois à sés costez. A quoy l’on peu goûter qu’elle a sur la teste une guirlande de plusieurs plumes étranges, & à sés pieds une espéce de Lézard ressemblant à peu prés un Crocodile; comme encore une teste humaine arrachée de son Corps, & traversée d’un Dard. Cette derniere partie du Monde nouvellement découverte par Americ Vespuce Florentin, dont elle a pris son nom est dépeinte presque toute nue, parce que ses Habitants ont accoutumé d’aller touts nuds, si ce n’est qu’ils se couvrent les parties honteuses d’une ceinture faite de plume & de coton, en forme de frange. La guirlande de plumes est un ornement dont ils ce parent d’ordinaire; outre qu’en certes temps de l’année ils en portent un habillement qu’ils font eux-mesmes avec beaucoup d’art pour des Sauvages, comme le remarquent les meilleurs Auteurs qui ont écrit de ce pays-là. L’Arc & fleches sont les Armes, dont non-seulement les Hommes, mais encore les femmes ont aucoûtumé de se servir en allant combattre leurs ennemis» (RIPA, 1698, p. 275-276).

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Na primeira referência à visão dos índios, mencionam-se arcos e flechas (“Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas” [p. 45]), menção essa que se repetirá vezes inúmeras ao longo de toda a Carta, inclusive quando se dá o primeiro contato entre portugueses e índios (“Um deles trazia um arco, e seis ou sete setas. E na praia andavam muito com seus arcos e setas” [p. 46]).

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Gabriel Soares de Sousa, em seu livro, refere por vezes incontáveis o arco e flecha como sendo armas por excelência dos índios do Brasil, independentemente de sua etnia. As menções de arcos e flechas encontram-se nos capítulos em que o autor descreve os índios pelo seu pertencimento a uma dada nação, como tupinambá, tupiniquim, aimoré etc. (SOUSA, 1879).

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48 Pero de Magalhães Gandavo afirma que as coisas escritas em seu livro foram por ele vistas, e aduz o elemento testemunhal como argumento para o incremento da fides de seu discurso: “& eu a escrever como testemunho de vista” (Prologo ao Lector). Ao discorrer sobre as armas empregadas pelos índios em suas guerras, declara: “As armas cõ que pelejam, sam arcos e frechas, nas quaes andam tã exercitados que de marauilla erram a cousa que apõtem por difficil que seja dacertar” (GANDAVO, p. 37r).

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como Jean de Léry49 e André Thevet50. A prescrição de Ripa assim como o segundo soneto aos Caramurus da Bahia nada mais fazem do que atualizar o preceito fundamental sobre a verossimilhança compreendida como “uma relação de semelhança entre discursos”, que, na ecfrase, “decorre da relação da imagem fictícia da pintura, [que é] descrita com discursos do costume antigo, [a fornecerem] causas e explicações do que é narrado sobre ela, [tornado] semelhante àquilo que se considera habitual e natural” (HANSEN, 2006, p. 86).

(III) No princípio da figuração dos Caramurus, a visada à meia porra adere aos preceitos da sátira, tornando a pintura ainda mais derrisória. Como já se disse, o procedimento satírico prevê, entre outras coisas, a Jean de Léry em seu livro nos apresenta uma das primeiras descrições do índio da costa da América portuguesa, em que já se fazem presentes muitos dos lugares-comuns por que ele seria representado na poesia e na pintura nos séculos XVI e XVII. A par da notação poética, há a representação pictórica por meio de xilogravura, apresentada aos leitores pelo próprio Léry como um análogo da descrição. O arco e a flecha são traços por que se anota o notado, a par de elementos que se tornarão emblemáticos do Brasil, como o ananás (já presente, no entanto, no livro de Thevet de 1557), inserido por Léry na xilogravura como representação sinedóquica da América, sinédoque de grande fortuna nas letras luso-brasileiras e que provavelmente não depende do texto francês: “Ainsi deduit bien amplement tout ce qui se peut dire concernant l’exterieur du corps tãt des hommes, que des enfans masles Ameriquains, si maintenant en premier lieu, suyuant ceste description, vous-vous voulez representer vn Sauuage, imaginant en vostre entendement vn homme nud bien formé, & proportiõné de ses membres, ayant tout le poil qui croist sur luy arraché, les cheveux tondus, de la façon que i’ay dit, les leures & iouens fendues & de os pointus, ou pierres vertes comme enchassees dedans, les oreilles percees auec de pendãs en icelles, le corps peinturé, les cuisses & iambes noircies de la teinture qu’ils font de ce fruit Genipat sus mentionnné, des colliers composez d’une infinité de petites pieces de ceste grosse coquille de mer que ils appelent Vignol, tels que ie vous les ay deschiffrez, pendus au col: vous les verrez comme il est ordinairement en son pays, & tel quant au naturel, que vous le voyez pourtrait en la page suyuãte ayãt seulement son croissant d’os bien poli sur sa poitrine, sa pierre au trou de la levre: & pour contenance son arc desbandé, & ses flesches aux mains. [...] Semblablement la figure du fruit qu’ils nomment Anana, lequel ainsi que ie le descriray ci apres, est des meilleurs que produise ceste terre du Bresil” (LÉRY, 1578, p. 199-120).

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50 Quando se refere à evitação, por parte dos índios, de portarem vestimentas propriamente europeias, André Thevet afirma que não gostam de usá-las porque elas os impedem de mover-se livremente, sobretudo durante os combates, quando costumam tirá-las, caso as portem, antes de tomar em mãos o arco e a flecha, armas índias por excelência: “s’ils sont vestuz de quelque chemise legere, laquele ils auront gagnée à grand trauail, quand ils se rencõtrent auec leurs ennemis, ils la despouilleront incontinent, auant que mettre la main aux armes, qui son l’arc & la fleche” (THEVET, p. 54r).

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autonomização de membros do corpo por que se pratica o pecado ou ato censurável, amplificados pela lente do poeta que, desse modo, torna patente a enormidade do desvio moral pela enormidade da parte do corpo autonomizada. Mas, no caso do segundo soneto “Aos Caramurus da Bahia”, o móvel dos Caramurus, ou seja, o gosto, ao invés de ser autonomizado e amplificado pela figuração de uma metáfora maravilhosa (nariz de tucano, por exemplo), reduz-se a uma meia porra, pequena, e, portanto, espantosamente potente para reduzir os descendentes de Diogo Álvares à sua desrazão. Em uma de suas novelle, Da Vinci, ao metaforizar a alma racional animada de virtudes, compara-a a um espelho em que se reflete uma rainha, que, sem ela, se tornaria vil: “Lo specchio si groria forte tenendo dentro a sé specchiata la regina e, partita quella, lo specchio riman vile” (DA VINCI, 1993, p. 42). Assim seriam os Caramurus, espelhos vis, em que, se há rainha, está destronada por necessidade, e, se a rainha encontra-se subserviente ao seu necessário súdito, o corpo que anima, não é de espantar que a cabeça esteja sujeita ao falo; como poderia um espelho, no caso dos Caramurus, refletir algo além do conjunto de vícios que a pathognomia poética de Gregório de Matos e Guerra visa a constituir? A figuração dos vícios na pintura51, assim como na poesia, tem a finalidade de admoestar contra

Alberti, no De pictura, associa a origem da arte, cujos preceitos apresenta em seu escrito, à figura de Narciso, declarando: “Por isso costumo dizer entre os meus amigos que aquele Narciso que, de acordo com os poetas, transformou-se em flor, foi o inventor da pintura. Como a pintura é a flor de toda arte, a ela se aplica bem toda a história de Narciso” (ALBERTI, 1992, p. 97). Sigamos o raciocínio de Alberti no excerto que refere a origem da pintura por meio de uma prévia leitura da passagem das Metamorfoses em que o mito de Narciso é referido por Ovídio: “fons erat inlimis, nitidis argenteus undis,/ quem neque pastores neque pastae monte capellae/ contigerant aliudve pecus, quem nulla volucris/ nec fera turbarat nec lapsus ab arbore ramus;/ gramen erat circa, quod proximus umor alebat,/ silvaque sole locum passura tapescere nullo./ hic puer et studio venandi lassus et aestu/ procubuit faciemque loci fontemque secutus,/ dumque sitim sedare cupit, sitis altera crevit,/ dumque bibit, visae correptus imagine formae/ spem sine corpore amat, corpus putat esse, quod umbra est./ adstupet ipse sibi vultuque inmotus eodem/ haeret, ut e Pario formatum marmore signum;/ spectat humi positus geminum, sua lumina, sidus/ et dignos Baccho, dignos et Apolline crines/ inpubesque genas et eburnea colla decusque/ oris et in niveo mixtum candore ruborem,/ cunctaque miratur, quibus est mirabilis ipse:/ se cupit inprudens et, qui probat, ipse probatur,/

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dumque petit, petitur, pariterque accendit et ardet./ inrita fallaci quotiens dedit oscula fonti,/ in medias quotiens visum captantia collum/ bracchia mersit aquas nec se deprendit in illis!/ quid videat, nescit; sed quod videt, uritur illo,/ atque oculos idem, qui decipit, incitat error./ credule, quid frustra simulacra fugacia captas?/ quod petis, est numquam; quod amas, avertere, perdes!/ ista repercussae, quam cernis, imaginis umbra est:/ nil habet ista sui; tecum venitque manetque;/ tecum discedet, si tu discedere possis!” (A tradução da passagem é a que segue: “There was a clear pool with silvery bright water, to which no sheperds ever came, or she-goats feeding on the mountainside, or any other cattle; whose smooth surface neither bird nor beast nor falling bough ever ruffled. Grass grew all around its edge, fed by the water near, and a coppice that would never suffer the sun to warm the spot. Here the youth, worn by the chase and the heat, lies down, attracted thither by the appearance of the place and by the spring. While he seeks to slake his thirst another thirst springs up, and while he drinks he is smitten by the sight of the beautiful form he sees. He loves an unsubstantial hope and thinks that substance which is only shadow. He looks in speechless wonder at himself and hangs there motionless in the same expression, like a statue carved from Parian marble. Prone on the ground, he gazes at his eyes, twin stars, and his locks, worthy of Bacchus, worthy of Apollo; on his smooth cheeks, his ivory neck, the glorious beauty of his face, the blush mingled with snowy white: all things, in short, he admires for which he is himself admired. Unwittingly he desires himself; he praises, and is himself what he praises; and while he seeks, is sought; equally he kindles love and burns with love. How often did he offer vain kisses on the elusive pool? How often did he plunge his arms into the water seeking to clasp the neck he sees there, but did not clasp himself in them! What he sees he knows not; but that which he sees he burns for, and the same delusion mocks and allures his eyes. O fondly foolish boy, why vainly seek to clasp a fleeting image? What you seek is nowhere; but turn yourself away, and the object of your love will be no more. That which you behold is but the shadow of a reflected form and has no substance of its own. With you it comes, with you it stays, and it will go with you – if you can go” (NASO, 1960, III, 407-437, p. 152-155). Inicia-se o fragmento pela descrição da superfície da água, que irá capturar o reflexo de Narciso. Trata-se obviamente da aplicação do procedimento retórico da illustratio, tal como definido em Cícero, Quintiliano e em todas as preceptivas retóricas quinhentistas e seiscentistas que se ocuparam da técnica da descriptio. A fonte era argêntea: adjetivo que remete ao substantivo de que deriva; a associação de fons e argenteus faz com que pensemos a superfície líquida como um plano metálico e polido, peculiarizado por sua luminescência reflexiva; a água (unda) é límpida (illimis), como o são todas as boas superfícies refletoras, e, também, brilhante, polida (nitidus). Os três adjetivos presentes no primeiro verso do extrato acentuam a clareza da superfície em que Narciso se refletirá, “evidenciam” para o leitor a imagem do efebo, fazendo com que vejamos o que se descreve a seguir como se tivéssemos Narciso sob os olhos. A descrição do corpo de Narciso apenas amplifica a illustratio, que se intensifica e culmina com a vã tentativa do rapaz tentar apanhar-se em seu próprio reflexo. Mary E. Hazard, em belo artigo sobre “liveliness” na pintura e na poesia dos Quinhentos e Seiscentos, afirma que o vocábulo tem vários sentidos, passíveis de sobreposição, o que geralmente sucede, e, entre eles, sobressai “the sense of verisimilitude or life-likeness”; sendo os outros sentidos possíveis, segundo, por exemplo, Leonardo da Vinci: “the sense of capturing motion”, “the sense of reflecting the inner life of the mind of the subject”, e “the sense of giving life to the artist’s conception through the medium” (HAZARD, 1975, p. 410). A illustratio presente nos versos que tratam do enlevamento de Narciso por si próprio produzem com grande vividez o sentido de “sense of verisimilitude or life-likeness”, pois a expressão significa, como o demonstra Mary E. Hazard, não apenas o que comumente chamamos de naturalismo da representação pictórica mas também a capacidade do poeta de pôr sob os olhos do leitor ou ouvinte a imagem ou conjunto de imagens que descreve/narra (essa dimensão da illustratio de vividez e de pôr sob os olhos é o que levou provavelmente Alberti a tomar a cena ovidiana como arché para a arte da pintura, pois nela há sub modo poetico o procedimento de imitação e ilusão levados ao seu extremo). É esse efeito de ilusão e vividez, de “livelisness”, da pintura, que William Shakespeare refere em um de seus poemas, e que “duplica”, poeticamente; na verdade, Shakespeare produz a pintura pela poesia, ao descrever um suposto quadro em que Aquiles está figurado, ou seja, fala de “liveliness” na pintura por meio de um poema,

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o que torna a poesia superior no paragone entre as artes e, nesse sentido, ecoa Alberti e toda uma tradição de reflexão sobre o ut pictura poesis horaciano. O procedimento descritivo estava prescrito em numerosas retóricas inglesas dos séculos XVI e XVII e nelas as analogias entre poesia e pintura são abundantes. Seguiremos a partir daqui as indicações bibliográficas de Mary E. Hazard concernentes a retóricas inglesas dos séculos XVI e XVII em que se trata da descriptio, extratando das mesmas fontes trechos por ela usados em seu artigo, outros não, para demonstrar que a vividez poética da descrição é termo de comparação para o efeito de “liveliness” da pintura, e vice-versa, e como o paragone entre poesia e pintura se apresenta em poema de Shakespeare. O poema de Shakespeare a ser analisado é ao mesmo tempo prescrição descritiva, prosopográfica, que nos interessa, pois traz prescrito o modus operando já visto nos sonetos sobre os Caramurus da Bahia. George Puttenham, em seu The Arte of English Poesie, ao definir o poeta como um imitador, reciclando A Poética, qualifica positivamente a descrição por sua enargeia, em passagens de seu livro, tais como: “And neverthelesse without any repugnancie at all, a Poet may in some sort be said a follower or imitator, because he can expresse the true and liuely of every thing is set before him, and which he taketh in hand to describe” (PUTTENHAM, 1589, p. 6). Os efeitos produzidos pela descrição são, para Puttenham, o “verdadeiro” (true) e o “vívido” (liuely), palavras que recuperam em língua inglesa, no âmbito das retóricas quinhentistas e seiscentistas, termos latinos como evidentia e illustratio. A mesma definição de descrição como a técnica de pôr algo sob os olhos do leitor ou ouvinte faz-se presente na retórica de Thomas Wilson, predecessor de George Puttenham: “This figure is called a description, or an euident declaratiõ of a thing, as though we sawe it euen now doen” (WILSON, 1553, fol. 95r). Em Wilson, define-se a descrição como “declaração evidente”, expressão que retoma o termo latino evidentia, efeito próprio da descriptio, que nos ilude a ponto de pensarmos que as coisas representadas estão ocorrendo na medida em que são postas sob nossos olhos pela poesia. O gerúndio presente na seção do texto de Thomas Wilson parecer acentuar o caráter de ação do que se representa, remetendo por necessidade ao procedimento da pragmatografia (we sawe it euen now doen). Wilson, ao discorrer sobre a descrição, valer-se-á de léxico derivado do campo da pintura, o que acentua o efeito de “evidência” que se deve buscar: “And not onely are matters set out by description, but men are painted out in their colours, yea buildynges are set forth, Kyngdomes, and Realmes are portured, places ans tymes are described” (WILSON, 1553, fol. 95r). Mas é um contemporâneo de George Puttenham, Henry Peacham, quem, invertendo o procedimento de Alberti, que parte da poesia para criar a fictio da arché da pintura, vai ajuizar a acuidade da descrição e sua vividez por meio de sua comparação com a pintura, que a descriptio deveria emular. Ao falar da descrição de ações ou pragmatographia, declara: “a description of thinges, wherby we do as plainly describe any thing by gathering togeather all the circumstaunces belonging vnto it, as if it were moste liuely paynted out in colloures, and set forth to be seene” (apud HAZARD, 1975, p. 408). William Shakespeare, em um de seus poemas, ao descrever a vividez de um quadro, a produz pela poesia; na verdade, como se disse, produz o quadro suposto, e, ao mesmo tempo, prescreve que a descrição de uma pessoa, ou prosopografia/etopeia, deve ocultar elementos a serem recuperados, por conseguinte, pela imaginação do leitor ou ouvinte, ou seja, a prosopografia/ etopeia, para engajar a atenção e a imaginação da recepção, não deve ser totalizadora, o mesmo procedimento que encontramos no soneto de Gregório de Matos e Guerra aos Caramurus: “For much imaginary work was there,/ Conceit deceitful, so compact, so kind,/ That for Achilles’ image stood his spear/ Gripp’d in an armed hand; himself behind/ Was left unseen, save to the eye of mind:/ A hand, a foot, a face, a leg, a head/ Stood for the whole to be imagined” (SHAKESPEARE, 1960, p. 131). A totalização da descrição, nesse caso, implica a recuperação do conjunto de referências letradas ao herói grego, ou seja, outros referenciais discursivos que preenchem as “lacunas” deixadas pela técnica descritiva e implica a reverberação, na descrição a ser lida, de um conjunto de obras a que se vincula inter-textualmente. No caso das descrições prosopográficas, é preciso ainda pensar que sua figuração vincula-se a etopeias e a prescrições fisiognomônicas, que tornam evidente o ethos. Nesse sentido, a pintura, por meio de procedimento mimético que lhe era específico, também tornava operantes os mesmos preceitos que regravam a composição de retratos poéticos, podendo-se considerá-los como elogiosos ou vituperantes, em suma, epidíticos.

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sua prática e, desse modo, propõe-se útil aos cidadãos: “La infamia sottosopra figurare si debbe, perché tutte sue operazioni son contrarie a Dio e inverso l’inferni si dirizzano” (DA VINCI, 1993, p. 36). A arte do retrato poético assim como do pictórico era fortemente epidítica na Itália, Espanha e Portugal, e, nesse sentido, não cabe contrapor, como se fossem expedientes mutuamente exclusivos, o ritratto al naturale e o pensar a pintura sub modo rhetorico. Joanna Woods-Marsden, no entanto, em seu estudo sobre o ritratto al naturale, afirma que o desejo de produção de una vera effigie, declarado em várias vite, só era aceitável pelos comitentes “when presented under an idealized guise” (WOODSMARSDEN, 1987, p. 209), como se o procedimento de composição pictórica não se pensasse retoricamente, como se a retórica fosse uma forma de falseamento da representação. Em um parágrafo de seu artigo, Joanna Woods-Marsden afirma que o retrato de Federico da Montefeltro (1422-1482), pintado por Piero della Francesca, seria – por meio da aplicação de expedientes de retoricização, ou seja, de falseamento de uma efetiva parecença – uma imagem cujo sentido visado pelo artista era o de tornar “real” (regalis) a figura do duque, o que se pode ver, por exemplo, em seu nariz aquilino, na medida em que esse tipo de perfil era propriamente de reis, como no-lo informa, dentre outros, Pomponius Gauricus (WOODS-MARSDEN, 1987, p. 211). Há falseamento da imagem, segundo a referida autora, porque outros retratos de Federico da Montefeltro, produzidos por outros artistas durante o decênio em que o retrato de Piero della Francesca foi pintado52, no-lo mostram bem distinto, pensa-se que “ao natural”, de modo objetivo, sem que se estude, no entanto, os efeitos outros de sentido que as outras imagens

Os outros retratos seriam de autoria de Joos van Ghent, guardado hoje em dia na Gallerie Nazionale delle Marche, e o outro, anônimo, também flemish, encontra-se em Hampton Court Palace. Para reproduções desses retratos, cf. Joanna Woods-Marsden (1987, p. 211-212).

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visavam a produzir, ou seja, não há imagem neutra, objetiva, al naturale, pois o naturale já é aplicação de preceitos epidíticos. A expressão “idealized guise” empregada por Joanna Woods-Marsden parecer ecoar em outro estudo sobre a relação entre retórica e representação de caracteres, quando se afirma que Aristóteles dissociou a retórica da ética ao declarar que o caráter do orador é causa de produzir-se a persuasão, mas que não é absolutamente necessário que ele, o orador, seja um “homem de caráter”, bastando-lhe parecer que o seja. Desse modo, o mesmo “idealized guise” de que se pode investir uma personagem é atribuível ao orador, que se representaria como uma persona diversa de si (RAMSEY, 1981, p. 85-87): Ethos is cognate with “idol” or “image” (eidolon) and is consistently linked with “appearance” or “to give the appearance of”. In short, Aristotle uses the term ethos in discussions of rhetoric to signify the “appearance” the rhetor can take in order to attain his end. One might say that he was not concerned about the ethics of ethos (RAMSEY, 1981, p. 86).

Iniciar a figuração dos Caramurus por sua meia porra produz uma engenhosíssima substituição da cabeça pelo falo e o que, no âmbito da filosofia política, representaria uma subversão da ordem da sociedade civil, no caso dos índios explica serem eles desprovidos de rei e lei, porque desprovidos de razão. A figuração dos Caramurus pela meia porra pode ser lida, nos Seiscentos, de dois modos, não excludentes, mas complementares. A primeira delas dar-se-ia pelo reconhecimento da aplicação da tópica natio ao gênero baixo, o que tornaria a meia porra evidentia da adesão do anotado ao notado, reforço de um endoxon – recorrente em inúmeras notícias sobre os silvícolas –, de que se apropria, no entanto, a sátira, para a produção de sua

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verossimilhança53; a segunda implicaria relacionar a figuração dos Caramurus a toda uma tradição de representação do corpo humano, na pintura, na escultura e nas letras, que o prevê proporcionado para que se possa dele auferir beleza: A seguir falaremos dos membros. Convém sobretudo empenhar-se para que todos os membros se convenham bem. Serão convenientes quando o tamanho, o ofício, a espécie, a cor e outras coisas semelhantes corresponderem a uma beleza. Se numa pintura a cabeça fosse muito grande, o peito, pequeno, a mão, ampla, e o pé, inchado, e o corpo, túrgido, certamente essa composição seria feia à vista. Por isso, convém manter certa razão sobre o tamanho dos membros (ALBERTI, 1992, p. 108).

A fealdade da falta de proporção, evidente na figuração do falo e do que se lhe segue, é motivo de amplificação do riso, pois a pintura foca o olhar do espectador justamente em uma parte que, para além de não poder ser o centro da figuração do corpo humano em representações de nus, apresenta-se-nos minuta em relação ao resto do corpo. Sobre esse falo pequeno parece incidir o que, em perspectiva, se chamaria de raio cêntrico54, a ordenar toda uma visada que torna

João Adolfo Hansen, em seu estudo sobre a ecfrase, assim define o procedimento: “A descrição é uma exposição da coisa por meio da opinião sobre a coisa” (HANSEN, 2006, p. 87).

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54 Leon Kossovitch, em seu estudo introdutório ao Da pintura, de Alberti, ao falar do raio cêntrico, define sua importância ao entrecruzar a teoria albertiana da construção do espaço pictórico e a produção cenográfica nos séculos XVI e XVII: “Enquanto os extrínsecos (raios) ligam o vértice (olho) e a orla da superfície, a esta medindo, e os médios enchem a pirâmide toda, carregando luzes e cores, o cêntrico é o único perpendicular à mesma superfície e, direto, denomina-se ‘príncipe dos raios’ (não se deve ao acaso que a cenografia ulterior reserve o centro, sítio de visibilidade ótima na representação teatral, ao príncipe; neste sentido, ainda, Vitrúvio atribui a Agatarco a invenção de cenários como o estabelecimento de um centro que constrói a cena trágica regradamente, com o aumento e a diminuição dos edifícios, à semelhança dos efeitos da visão)” (KOSSOVITCH, 1992, p. 14).

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o vício central na medida em que o falo (luxúria) é primeiramente figurado por uma sua metáfora visual, e, ao mesmo tempo, por uma espécie de paradoxo, figura-se-o por um falo diminuto, embora potente, monstro da natureza. A centralidade da cabeça, quando se pensa o corpo humano em termos teológicos, políticos e artísticos é tão indiscutível nos séculos XVI e XVII, que Alberti, no De Pictura, ao falar da proporcionalidade dos membros, assevera, em substituição da proposta vitruviana de proporcionar os membros pelo pé: O arquiteto Vitrúvio media a altura dos homens pelos pés. Quanto a mim, parece-me coisa mais digna que os outros membros tenham referência com a cabeça, embora tenha notado ser praticamente comum em todos os homens que a medida do pé seja a mesma que vai do queixo ao cocuruto da cabeça (ALBERTI, 1992, p. 109).

Nos sonetos atribuídos a Gregório de Matos e Guerra, de forma engenhosíssima, o homem é medido, não pela cabeça, muito menos pelo pé vitruviano, mas por uma outra medida, própria para mensurar o índio e os seus descendentes de sangue sujo.

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RHETORICA ad Herennium. Translation by Harry Caplan. Cambridge: Harvard University, 1989. RIPA, Cesare. Iconologia o vero descrittione dell’imagini universali cavate dall’antichita et da altri luoghi da Cesare Ripa Perugino. Opera non meno utile che necessaria à poeti, pittori, & scultori, per rappresentare uirtù, uitij, affetti, & passioni humane. Roma: Heredi di Gio. Gigliotti, 1593. RIPA, Cesare. Della novissima iconologia de Cesare Ripa Pervgino Cavalier de SS. Mauritio & Lazzaro. Parte Prima. Nella quale se descrivono diverse imagini di virtù, vitij, affetti, passioni humane, arti, discipline, humori, elementi, corpi celesti, prouincie d’Italia, fiumi tutte le parti del mondo, & altre infinite materie. Opera utile ad oratori, predicatori, poeti, pittori, scultori, disegnatori, & ad’ogni studiosi. Per divisare qual si voglia apparato notiale, funerale, trionfale, per rappresentar poemi drammatici, e per figurare co suoi proprij simboli ciò, che può cadere in pensiero humano. Ampliata in quest’ultima editione non solo dello stesso auttore di Trecento, e cinquantadue imagini, com molti discorsi pieni di varia eruditione, & con molti indici copiosi, ma ancora arrichita d’altre imagini, discorsi, & esquisita corretione dal Sig. Gio. Zaratino Castellini Romano. Padova: Pietro Paolo Tozzi, 1625. RIPA, Cesare. Iconologie ou la science des emblemes devises, &c. qui apprend à les expliquer dessiner et inventer. Ouvrage tres utiles aux orateurs, poëtes, peintres, sculpteurs, graveurs, & generalement à toutes sortes de curieux des beaux arts et des sciences. Enrichie & augmentée d’un grand nombre de figures avec des moralités, tirées la pluspart de Cesare Ripa par J. B. de l’Academie Françoise. Tome second. Amsterdam: Adrian Braakman, 1698. SHAKESPEARE, William. The Poems. Cambridge: Cambridge University, 1960. SKINNER, Quentin. Maquiavel. Porto Alegre: L&PM, 2010. SMITH JR., Mack L. Figures in the Carpet: The Ekphrastic Tradition in the Realistic Novel. Thesis (Doctor of Philosophy) – Rice University, Houston, 1981. SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descriptivo do Brasil em 1587. Obra de Gabriel Soares de Sousa. Segunda Edição mais correcta e accrescentada com um additamento. Rio de Janeiro: João Ignacio da Silva, 1879. SPENCER, John R. Ut Rhetorica Pictura: A Study in Quattocento Theory of Painting. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, v. 20, ½, p. 26-44, 1957. THEVET, André. Les singularitez de la France antarctique, autrement nommée Amerique. & de plusieurs terres & isles decouuertes de nostre temps. Par F. André Theuet, natif d’Angouleme. Paris: Maurice de la Porte, 1557. VASARI, Giorgio. Le vite de piu eccellenti architetti, pittori, et scultori italiani, da Cimabue insino a tempi nostri: descritte in lingua toscana, da Giorgio Vasari pittore aretino. Con una sua utile & necessaria introduzione a le arti loro. Firenze: Lorenzo Torrentino, 1550.

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WILSON, Katherina M. Antonomasia as a Means of Character: Definition in the Works of Hrotsvit of Gandersheim. Rhetorica, v. 2, n. 1, p. 45-53, 1984. WILSON, Thomas. The Arte of Rhetorique, for the use of all suche as are studious of Eloquence, sette forth in English, by Thomas Wilson. London: [s. Ed.], 1553. WOODS-MARSDEN, Joanna. “Ritratto al Naturale”: Questions of Realism and Idealism in Early Renaissance Portraits. Art Journal, v. 46, n. 3, p. 209-216, 1987. ZUMTHOR, Paul. The Text and the Voice. New Literary History, v. 16, n. 1, p. 6792, 1984.

Recebido em 16 de dezembro de 2011 Aprovado em 9 de janeiro de 2012

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Anexos

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CLIPE

Um amor feliz que nasce no género feminino Ana Isabel Correia Martins Nair de Nazaré Castro Soares Universidade de Coimbra

RESUMO: David Mourão Ferreira caminha sob a matriz ovidiana dos Amores, dos seus (des)encontros furtivos e adúlteros. Nesta antecâmara, tece-se um enredo tão sedutor quanto enigmático, sustentado por jogos, expedientes e enganos. O fio condutor é uma mulher, envolta num manto de secretismo, aparentemente oculta, gramaticalmente comum, enganosamente anónima, a Y. A sigla, convertida em nome de mulher e graficamente erótica, tudo precipita e inicia, é a metáfora colectiva das amantes comuns, o nome de uma mulher muito própria. Centramo-nos numa multidão labiríntica de palavras com género feminino, entre a resistência e cedência, perdição e sedução. Os amores felizes não têm tempo, apenas um presente escorregadio, incontrolável e fugidio, que subsiste na ânsia de ser agarrado: pela mão de Clown é tentado, pela mão da Y (lhe) é negado. Y converteu-se na incógnita da vida do artista plástico quando Arte, Amor e Mulher tecem a fórmula de Um amor (quase) feliz. PALAVRAS-CHAVE: Narrativa portuguesa contemporânea. David Mourão Ferreira – Um amor feliz. Amores ovidianos. ABSTRACT: David Mourão Ferreira follows the Ovidian’s matrix and his romance Um Amor Feliz is a gathering place of a stealthy and an underhanded love. This classical anteroom weaves an alluring thread full with games, gamblings and misunderstandings. The plotline is developed along a strange woman, apparently misterious, grammatically common, misleadingly anonymous, Y. The acronym, converted in a woman’s name, ecphrastic and erotic, embodies the romance’s

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structure and means a colective metaphor of mistress, between perdition and glamour. The happy lovers have no time, just a slippery and uncontrollable present, that subsists just with the anxiety to be dominated. Y is the unkown puzzle of Clown’s life when Art, Love and Woman build Um amor feliz. KEYWORDS: Contemporaneous Portuguese Narrative. David Mourão Ferreira – Um amor feliz. Ovidian Lover.

Elle flotte, elle hésite, en un mot elle est femme. Jean Racine

Algumas considerações introdutórias: o nome O uso do nome é tão antigo como o próprio homem, por este sentir, desde início, necessidade de identificar e designar os indivíduos (ENCICLOPÉDIA, 1998-2003, v. 14, p. 194). Na verdade, desde Platão que o interesse pela verbalização clara e sistemática do logos está vivo e desassombrado, através da diferenciação do nome (ónoma) e do verbo (rhéma). Na senda desta concepção, coube ao gramático alexandrino Dionísio da Trácia (séc. II a.C) discernir os adjectivos dos rhémata, binarizando, assim, a classe dos nomes: substantivo e adjectivo (JESPERSEN, 1971, p. 85-97). Neste olhar histórico sobre a filosofia da linguagem, somos conduzidos pela doutrina do nominalismo, que se afina sob o pórtico do seguinte problema universal: como explicar que objectos diferentes tenham a mesma designação? Tudo radica num arquétipo, inexistente no real, um conceito do qual os objectos partilham, em certa forma, de traços e características comuns e que lhe outorgam, por isso, propriedade denominativa, na partilha de uma mesma designação. O realismo platónico – universalia ante res – posiciona este arquétipo numa dimensão marginal às coordenadas do espaço e tempo, antes num domínio conceptual das ideias. Já o realismo aristotélico – universalia in rebus – reconhece-o

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no próprio objecto enquanto causa formal. O nominalismo manifesta-se nos augúrios da filosofia grega e é uma tendência expressiva na doutrina de Heraclito, mas a sua formulação teórica surge, mais tarde, com a filosofia medieval. A Idade Média fortifica princípios seminais com um “protoconceptualismo” de Agostinho, que preconiza a inclusão dos universais ou conceitos no intelecto divino. No século XIV, Guilherme Ockham volta a dar novo curso à questão mas é com os humanistas do Renascimento que a conciliação da res et verba se converte numa promissora simbiose argumentativa e num poderoso instrumento de teorização retórica. A longa e consistente tradição aristotélica sobre o signo linguístico – a indissociabilidade do significante e do significado – é legada pelos estóicos, chega à modernidade através da escolástica e é proclamada por Saussure, que preconiza a sua convencionalidade e arbitrariedade. O pensamento ocidental coloca no seio das suas indagações linguísticas – mas não só – os conceitos e processos de conhecimento e representação. Nesta reflexão crítica do problema, Wittgenstein e os seus padrões neokantinos1 consistem num forte contributo. Wittgenstein, no seu Tratactus, pressupõe que a linguagem representa o mundo e que a partir da sua depuração e refinamento de equívocos é, pois, possível aceder, de forma transparente, à realidade. Esta linha de pensamento assume que não há problemas filosóficos apenas problemas de linguagem. Contudo e numa fase posterior, pretere esta concepção pictorial e especular da linguagem para enfatizar de forma mais madura, no seu Tratado Lógico Filosófico, as possibilidades e limites da linguagem, convertida, agora, num jogo de sentidos pragmáticos. Interessa-nos

Fundamentos filosóficos enfaticamente demarcados na obra do autor Tratactus logico-philosophicus.

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pois tomar como ponto de partida esta premissa: a identidade do mundo cognoscível apresenta-se e revela-se nas potencialiadades e contingências da linguagem. A questão da semântica linguística, tal como Wittgenstein a coloca, torna-se, particularmente, problemática quando envolve o nome de um objecto e a sua designação “se por um lado, nomear algo é como colocar um rótulo a uma coisa, por outro lado, há também um jogo de linguagem, pelo qual é possível inventar um novo nome para qualquer coisa” (VASCONCELOS, 1997, p. 207). Este pensamento wittgensteiniano, transposto para a escrita literária, constrói jogos de metalinguagem, “the meaning of a word is its use in the language […] it is important to understand that organized language is the product of the free activity of human beings. The identification of meaning with use in the language is applied to words, symbols, phases, expressions and sentences”2. Foucault tem, igualmente, uma palavra a dizer sobre a ruptura epistemológica, que converteu a cultura clássica numa cultura moderna, nos finais do século XVIII: “tout l’organisme vivant manifeste sa conhérence par les fonctions qui le mantiennent en vie, le langage, et dans toute l’architecture de sa grammaire, rend visible la volonté fondamentale, qui mantient un peuple en vie et lui donne le pouvoir de parler un language n’appartennant qu’à lui” (FOUCAULT, 1966, p. 303).

Y: O nome que nasce comummente e com grande propriedade O nome é, sem dúvida, uma classe tão fecunda quanto sedutora neste processo de interpretatio da res literária. Sob o mote da presença

2 Vide ensaio sobre o desenvolvimento da teoria construtivista do significado (RICHARDSON, 1976).

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e importância do Nome na Literatura, propomos aqui uma leitura do romance de David Mourão Ferreira, Um Amor Feliz3. A pertinência da sugestão prende-se, primeiramente, com o facto de a obra revelar à contraluz o estilo, o enredo, a matriz e as técnicas amorosas de Ovídio (43 a.C – 18 d.C). Há uma verdade incontroversa em relação ao escritor português, a relação que tece com outros textos é sempre um lugar de encontros e referências internas, que se (entre)cruzam na variedade genológica de escritor/poeta/ensaísta/professor. O caudal davidiano é a memória estética e uma memória temática da Antiguidade, recuperando em todas as suas produções uma tradição clássica4, força motriz da sua poeticidade. Aduz-se a este critério de inspiração ovidiana um outro, igualmente nodal: o nome próprio da co-protagonista, que se revela num manto de enigmatismo, aparentemente oculto, gramaticalmente comum, enganosamente anónimo, a Y. O nosso intuito visa, a par de uma análise breve e circunscrita do romance, à luz da mundividência

3 O único romance do autor foi reconhecido e aplaudido com vários prémios, entre os quais o Prémio da Narrativa do Pen Clube Português, Prémio D. Dinis da Fundação da Casa de Mateus, Prémio de Ficção Município de Lisboa, Grande Prémio de Romance da Associação Portuguesa de Escritores. A produção literária do autor é vasta, diversificada e multifacetada acolhendo, de forma indelével, o legado clássico. Estes ecos repercutem um mundo greco-romano e revelam a confiança de David Mourão Ferreira na vitalidade e perenidade do legado, um apologista fervoroso da máxima In memoriam memoriae. A propósito ainda da polifonia da sua obra, dedicou-se a vários géneros literários e confessa numa entrevista a José Carlos de Vasconcelos, no Jornal de Letras n. 295 em 1988 o seguinte: “Para mim, cada género literário sempre constitui um diferente ritmo de respiração. Assim, se umas vezes preciso de respirar em ritmo de poesia, outras, pelo contrário, impõe-se-me o ritmo da narrativa, do ensaio… E é por fases, por ciclos, que isso me acontece. Penso que nenhum deles está encerrado; e que cada um a seu tempo retornará. Não os elejo, não os hierarquizo. Eles é que escolhem as alturas próprias. Trato apenas de os aguentar – e de a eles me submeter”.

“A tradição supõe, em primeiro lugar, o sentido histórico, que, se assim se pode dizer, é quase indispensável para quem quiser continuar poeta; e o sentido histórico implica a percepção, não apenas do carácter passado do passado mas do seu carácter presente; o sentido histórico obriga um homem a escrever não só com a sua geração nas fibras do ser, mas com o sentimento de que toda a literatura europeia desde Homero, e nela englobada toda a literatura do seu país, coexistem numa duração única e compõem uma ordem única” (BLOOM, 1991, p. 276).

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clássica, apresentar os principais traços da protagonista na construção da trama amorosa. Concomitantemente, temos como horizonte de expectativa desnudar o significado do nome, ele que se converte no pivot catalisador, de coerência e coesão de toda a obra. O romance apresenta uma estrutura de quarenta e sete capítulos, parcialmente desconexos, isolados, destemporalizados e tece-se de forma vibrante e apaixonada, muito ao gosto ovidiano, nas suas várias cambiantes e teias de erotismo e sedução5. As múltiplas leituras que a obra suscita deixa o leitor inebriado e rendido a um universo amoroso cambiante, instável e indecifrável, num jogo permanente e dialéctico de luz e sombra, consentimento e infracção, enigma e revelação. O fio condutor é, claramente, a infidelidade6 e a relação adúltera dos protagonistas, um artista plástico e uma mulher envolta em mistério quanto à sua identidade, a Y. A sigla converte-se em mulher, graficamente erótica com que tudo se precipita e inicia, a simbologia de um cromossoma diferenciador do sexo masculino (dominante da relação?), a metáfora colectiva das mulheres amantes, comuns e anónimas, uma mulher em particular e muito própria, a do artista plástico Clown. A intensa e arrebatadora história de paixão entre os dois amantes tem como pano de fundo uma Lisboa eclética e frívola, as suas movimentações sociais e festivas, nos esgares titubeantes de uma elite diplomática. O cenário é também ele, inquestionavelmente, decalcado e recuperado de uma

5 “O que nos parece ser justamente original em David Mourão Ferreira é a adjunção de um tratamento discursivo específico, que raramente opta pela terceira pessoa puramente tradicional ou pela primeira pessoa meramente interveniente para, acentuando o acto enunciativo (e, por conseguinte, a dimensão temporal e pragmática que ele implica, e a acentuação do momento que o funda), implicar uma relação espaço-tempo complexa e imbricada onde os ambientes são sempre fulcrais […], os tempos sobrepostos ou enovelados […] e o sujeito rigorosamente afirmado num sistema de valores em processo de reflexão ou de constituição” (MARTINS, 2008, p. 18). 6

“que semelhança existe entre adulto e adultério?” (FERREIRA, 2002, p. 20).

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Roma ovidiana exuberante, cuja frivolidade e fausto começam por ser as condições sine quibus non e o humus perfeito para a fertilidade de determinados hábitos e para uma plêiade de subterfúgios amorosos. Diz-nos Maria Helena Mira Mateus que os nomes próprios têm um comportamento semântico e morfo-sintáctico diferente dos comuns por serem designadores de um único objecto identificado, pertencente à classe dos objectos do universo de referência relativa a um dado discurso […] designadores cujo referente é fixo (MATEUS, 2003, p. 213).

Colocamos, inevitavelmente, a questão: qual é o comportamento semântico-gramatical deste nome, que não correspondendo, prototipicamente, à classe dos nomes próprios também não tem os traços necessários para assumir um comportamento de nome comum? Otto Jespersen, na esteira do sistema lógico de J. S. Mill, recupera uma tese que incide mais no valor lexical do que no valor pragmático: Les noms propres, selon lui, ne remplissent les individus désignés, mais ils n’impliquent et n’indiquent rien de ces individus; ils servent à designer ce dont on parle, mais pas à dire quoi que ce soit. Au contraire, un nom comme homme denote bien Pierre, Jacques, Jean, et une foule d’autres individus, mais connote en même temps certaines propriétés de l’être désigné: la possession d’un corps, l’a vie animale, la raison et une forme externe donnée que nous appelons forme humaine. L’information que transmettent les noms des objets c’est-à-dire leur sens connotation. Seuls les noms propres n’ont pas de connotation, et, au sens strict du terme, ils n’ont pas de signification (apud JESPERSEN, 1971, p. 76).

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Contudo, esta explicação é-nos precária e insuficiente por não justificar o nome da Y, que assumindo, incontestavelmente um comportamento denominativo não deixa de ter uma significação muito própria e um sentido conotativo. Vejamos o que o autor adianta acerca da sua convicção quanto ao véritable sens des noms propres, propondo, assim, uma possível chave de leitura: Pour moi, l’essentiel est la manière dont on emploie effectivement les noms propres quand on parle, et la façon dont on les entend. Dans une situation réelle, quand quelqu’un emploie un nom propre, il ne denote par là qu’un seul individu bien déterminé, tant pour celui qui parle que pour celui qui l’écoute. […] Je pourrais emprunter à Mill sa terminologie, mais certes pas ses vues, et dire que les noms propres, tels qu’on les emploie effectivement, «connotent» un plus grand nombre de propriétés. La première fois que l’on entend le nom de quelqu’un ou qu’on le lit dans un journal, ce n’est là qu’un nom et rien d’autres; mais plus on en entend parler et plus ce nom se charge de signification. […] La théorie que nous avons défendue ici nous permet d’expliquer l’emploi de noms propres au pluriel. Au sens strict, un nom propre ne peut avoir de pluriel; il n’y a qu’un seul je, comme il n’y a qu’un seul John et qu’une seule Rome, si nous entendons par là la personne ou la ville dont nous parlons. De même le mot John prend un sens différent chaque fois qu’il est employé, et seul le contexte permet de le découvrir (JESPERSEN, 1971, p. 76-83).

Otto Jespersen coloca agora a ênfase no uso pragmático, pois se os nomes próprios não carregassem consigo propriedades conotativas,

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fruto dos contextos de utilização, nós não saberíamos como compreender ou ainda menos como explicar o uso que se faz recorrentemente de um nome próprio como comum. O mesmo é dizer que a imagem desta femme fatale de David Mourão Ferreira é pluralizável e extensível às muitas Y’s da literatura que com ela comunguem de traços e se indentifiquem.

Na antecâmara de Ovídio: as cenas de Um amor feliz À luz da matriz ovidiana, David Mourão Ferreira apresenta um receituário minucioso de expedientes ardilosos, na conquista deste Amor (quase) Feliz. A importância do ambiente, a escolha do espaço e a simbologia dos acessórios ganham ênfase e são uma presença constante em toda a obra. Os objectos compõem e tornam-se cúmplices de o cenário pintado de traição, pelas palavras do próprio Clown: “ah, como os objectos nos condicionam! Principalmente quando consentimos que se vão inflamando de valores simbólicos” (FERREIRA, 2002, p. 168): O xaile branco: adereço infalível no íntimo ritual dos dias de Inverno, nunca se esquece de o trazer, dobrado no fundo do saco da Hèrmes. […] Frequentemente me em dito que nunca costuma usá-lo em casa; e que nem o marido nem a filha lá em casa sabem sequer da existência deste xaile (FERREIRA, 2002, p. 12)7.

Descrito da primeira à última palavra com uma elegância e requinte notáveis, este enredo veste ainda uma roupagem de peripécias, qui pro quo, imprevistos e todas as características de uma relação furtiva

Ou ainda outro exemplo: “mas não queria aparecer, não podia aparecer sem trazer esta camisa de noite” (FERREIRA, 2002, p. 120).

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bem concretizada. O universo feminino é bastante forte e intenso, insinuante e sinuoso, bem como “a feminina multidão das palavras: as que se entregam, as que se esquivam, as que é preciso perseguir, seduzir, ludibriar, as que por fim se deixam capturar, palpar, despir, assim proporcionando, antes de se evaporarem, as horas supremas de um amor feliz” (FERREIRA, 2002, p. 229). É por esta multidão labiríntica de palavras com género, que nos centramos, entre a resistência e a cedência, na fugacidade dos momentos de perdição e sedução. Porque Fuga também nasce feminina, é aqui que começamos, na intermitência e na incerteza, no ritmo descompassado e em contratempo, ao som da gargalhada da Y e do eco suspirante de Clown. Assim se abrem as primeiras páginas: “Deitada de través em cima do largo divã, os seus braços tomam de súbito a postura de dois ramos oblíquos, na quase pânica expectativa de sentir-se adorada. Devagar os vai depois estreitando, até que ficam inteiramente estirados para trás; mas as pernas entretanto começaram a reproduzir, em posição inversa, o grafismo da mesma letra” (FERREIRA, 2002, p. 230). O visualismo, quase ecfrástico, do nome é, reiterada e constantemente, citado ao longo da obra e chegamos mesmo a encontrá-lo várias vezes na mesma página. Se o leitor se quer convencer que o nome vem, simplesmente, no seguimento descritivo dos movimentos e da sensualidade femininos, rapidamente o amante-narrador dilata a nossa percepção: Digamos para simplificar, que se chama Y. Além de não querer nem poder dizer o seu nome, o nome é o que menos interessa; ou o que menos deveria interessar-nos. Mas só o facto de lhe chamar Y já a torna diferente de quem ela é, de quem eu julgo que ela seja. Com esta sigla de empréstimo, ei-la desde logo um pouco embuçada, ligeiramente en-

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coberta ou menos tangível, como se o resto e os cabelos lhe ficassem também em boa parte velados, estranhamente semiocultos (FERREIRA, 2002, p. 11, destaques nossos).

Esta é uma das citações mais enfáticas e expressivas não só para a explicação do nome mas também por nos oferecer uma interpretação literária fértil de vários aspectos. O nome mais do que um processo de simplificação ou de manutenção do secretismo assume a possibilidade de evasão da realidade, a metamorfose da mulher numa figura espectral, esfumada e pouco nítida, escondida e distante dos outros, distanciada do próprio amante, que (propositadamente) a projecta, idealiza e universaliza. Como fundo sonoro de tudo isto: o volume, o timbre, a altura da sua voz, toda ela em tons sépias, com aquele irresistível pendor para o sussurro, o murmúrio, o segredo, a confidência, situando-se muitas vezes na fronteira indecisa entre o silêncio e a palavra (FERREIRA, 2002, p. 41).

Por outro lado e paradoxalmente, é através desta sigla de empréstimo que Clown a dá a conhecer semioculta, ele que parece, fatalmente, atraído por esta inacessibilidade e fetichizado pela indeterminação do nome8. A presença de outras mulheres, todas elas com nomes expressivos e bem demarcados, têm uma existência irrelevante e elementar o que adensa um efeito de intensificação e amplificatio da Y.

“e foram precisamente os olhos, por me parecerem de todo inacessíveis, por a tornarem de todo inacessível, que me deram nessa noite a coragem de a olhar de frente” (FERREIRA, 2002, p. 2).

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Tu Ana Dora Q. na minha memória olfativa… tu Elvira, tu existias…tu Isabelinha, tu Octaviana T., … tu Ursula von W. […] foi de propósito que assim vos alinhei, como símbolos menos remotos de algumas ou de outras, por esta ordem elementar de sucessão das vogais – A, E, I, O, U (FERREIRA, 2002, p. 87).

Este desejo e necessidade de secretismo – pois se ao mesmo tempo não quer, também não pode pronunciar o nome da Y – é instigado por uma variável ovidiana importante: o triângulo com o marido. O casamento não mais é do que um contrato estabelecido entre partes porque o amor não subsiste dentro do casal, só à margem e na clandestinidade se pode concretizar e consumar, numa escolha livre e apaixonada. O facto de Clown se saber sem exclusividade na posse desta mulher é em si mesmo um expediente estimulante, “a confusão entre o por e o para nunca deixou de se mostrar constante nas hesitações idiomáticas da Y (FERREIRA, 2002, p. 44)”. Esta premissa é reforçada, formalizada em conselho, pela cúmplice, que é peça fundamental na orientação do amante pelas suas peripécias. Se nos Amores9 é uma alcoviteira, n’Um amor feliz é a empregada, Floripes. O lugar da conselheira na aprendizagem da traição é em ambas as obras alguém que numa curiosa encenação de voyeurismo não deixa de estar presente e fazer-se participante, vejamos: O Mestre desculpe, eu não tenho nada a ver com a sua vida, sei muito bem o que são artistas mas há muito tempo que ando para lhe dar uma palavrinha. Só quero é que o Mestre não me leve a mal, olhe que é para o seu bem, o Mestre já não é nenhuma

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Elegia 1.8.

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criança, a gente às vezes faz das fraquezas forças, julga que a mocidade dura sempre […] ninguém sabe melhor do que eu, isto não é para me gabar, o corropio de madamas que tem sido sempre este ateliê. Ah Mestre, se esse divã falasse…Mas de há uns meses a esta parte sei muito bem que tem sido sempre a mesma senhora, que o meu nariz nestas coisas nunca se engana. Mas que o Mestre anda a dar cabo da sua rica saúde lá isso anda, e olhe que elas não matam mas moem…É claro que eu não tenho nada a ver com o que o Mestre faz, sei muito bem o que são artistas […] E me confiou a fórmula de certas circunstâncias indispensáveis à existência de um amor feliz: uma pessoa casada, repetiu você, só com outra pessoa casada. E que de preferência uma elas seja mais velha. De preferência o homem. De preferência mesmo um tanto mais velho, pouco disposto a cair na tentação de embarcar em mais outro outboard conjugal (FERREIRA, 2002, p. 17).

É nesta tecitura de Um amor feliz que se promove a criação de subterfúgios e de uma densa rede de enganos, de traições, ciladas nas quais o homem e a mulher se enredam, se divertem com o perigo, nas teias da sedução, e se detêm a aprender, ludicamente, a arte de amar. É neste momento que “a infidelidade deixa de ser uma questão essencial; o importante é a capacidade de a simular” (ANDRÉ, 2006, p. 20). Na trama influi ainda uma outra variável, um cenário social, um lugar exposto, onde o jogo de sedução se possa articular e possa ser fruído publicamente escondido10. Vejamos:

A primeira elegia do tema (1.4) descreve o banquete onde se juntam ele, poeta-amante, a sua amada e o rival, o marida dela. Ali se encena o jogo de sedução e traição, fingimento e engano, no jogo de que mais importante do que se revela é o que se denuncia.

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a) “Tratava-se do primeiro grande jantar oferecido por um desses casais diplomatas latino-americanos […] quando por fim, chegou aquele casal de estrangeiros relativamente aportuguesados, a mulher, essa, não poderia ali comparecer senão como perfeita imagem da Beleza” (FERREIRA, 2002, p. 22). b) “Na segunda parte do espectáculo, vocês e eu, novamente acondicionados na zona mais obscura do camarote, mantivemo-nos quase sempre de mãos unidas, palma contra palma, sem no entanto apertarmos os dedos, sem irmos além desse contacto vagamente mediúmnico” (FERREIRA, 2002, p. 57).

Tudo quanto possa ser dito sobre o conceito de amor ovidiano/ davidiano é sinuoso e iludido. Carlos Ascenso André afirma que o amor em Ovídio parece ser, antes de mais, divertimento, ou melhor, divertimento poético. Mas é, também, erotismo, sensualidade, sexo, encontro de corpos, fulgurações dos sentidos. E é, por isso mesmo, busca incessante de prazer, sem o qual o amor não logra alcançar a sua verdadeira dimensão, o seu verdadeiro significado, não deixado de ser manifestação de emoções, afectos, sentimentos (2006, p. 1).

Na verdade, é certo que na fronteira ténue, se não osmósica entre amor e prazer, quando tudo se reduz ao segundo, a mulher não será mais que o objecto, instrumentalizado ao serviço da satisfação dos desejos masculinos. Contudo, quando o amor se tece de emoções e afectos, a mulher parece elevar-se a um estatuto bem mais digno e sublime, como revela o romance davidiano:

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Do seu poema, deve ser da mistura das palavras «lágrimas», «estátua», «Beleza» ou então o contraditório confronto entre o «sempre» e o «nunca», apenas sei uma coisa: de cada vez que o lia, deixava de pensar no seu corpo. Só ficava a pensar nos olhos da Y (FERREIRA, 2002, p. 31) […] nenhuma outra mulher antes de eu conhecer a Y, se me afigurou simultaneamente tão bela e tão simples, nem tão sensível na sua inteligência, nem tão inteligente na sua sensualidade. E a sua alma bem formada, nada propensa a qualquer intenção ou tentação de maledicêncicia. E a sua inata, luminosa gentileza (FERREIRA, 2002, p. 41).

David Mourão Ferreira adoptou e adaptou o molde do erotismo dos Amores em particular das elegias ovidianas 1.5 e 2.15. Na primeira, Ovídio descreve, eufórico, uma tarde de prazer junto da sua amada e evoca enlevado a sua nudez esplendorosa consciente de que o prazer só o é, verdadeiramente, se for mútuo e que apenas na reciprocidade se pode consumar e fundir o amor e o prazer. O poeta parece por isso manifestar respeito pelo prazer da mulher, posição que não é consonante com a secundarização, de que por via de regra, a mulher era alvo no seu tempo. Estas são exactamente as mesmas coordenadas de Um Amor Feliz, a Y é sublimada bem como toda a sua envolvência é também divinizada. Vejamos a analogia nas seguintes passagens: Havia em mim o desejo, sem dúvida, e aceitei-a; e de certeza fui por ela aceite11.

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Amores 3.7.47

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Sobretudo por ter sido ela quem… como hei-de dizer? Por ter sido ela quem veio ao meu encontro, quem afinal espontaneamente me escolheu. E de maneira menos hipócrita. Da maneira mais simples, espantosamente mais directa (FERREIRA, 2002, p. 14).

Por esse facto, assiste-se à supremacia da mulher que dita o ritmo do compasso e (des)manda e imprime os seus desígnios de vontade como condições de verdade da relação. Assim, Clown vibra com a ansiedade de todos os momentos de espera: “o meu verdadeiro futuro era a próxima sexta-feira; aguardar a Y, ao meio-dia em ponto; recebê-la nos braços com o deslumbramento de sempre” (FERREIRA, 2002, p. 200). A ansiedade da espera e do tempo é um novo expediente estimulante e fortificante da relação adúltera, dessa forma afirma o narrador “fazer de conta que hoje não é domingo. Fazer de conta que não terei de esperar até amanha para me encontrar com a Y” (FERREIRA, 2002, p. 110)12.

Em tom de conclusão: quando o para sempre se encerra no agora tudo de bom me tem chegado tarde e ainda por cima para acabar depressa (FERREIRA, 2002, p. 125).

A escrita de David Mourão Ferreira exibe temas e motivos que ilustram uma prosa ensaística e ficcional, na senda de “uma ilusão de espelhos paralelos, cujos objectos repetidos, entre o imaginário, o simbólico e o referencial infinito, criam um rasto metafórico obsidiante, que circula e se reflecte obliquamente entre o lirismo, o ensaio e a prosa de ficção. Uma espécie de respeito (sem respeito) por um ethos

Passagens destas sucedem-se revelando uma postura sempre expectante e passiva do artista, para quem o tempo psicológico é tão martirizador quanto estimulante.

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de modernidade, no interior de uma condição pós-moderna que não deixa de se interrogar sobre a arte e a beleza, o amor e o tédio – interrogação que encontramos plenamente representada em Um Amor Feliz” (MARTINS, 2008, p. 20). O romance/ensaio é marcado por zonas oníricas e operadores simbólicos, que funcionam como interpretante nebuloso, marcador difuso do percurso romanesco (FERREIRA, 2002, p. 125). O autor explica na entrevista de 1993 que “foi essa talvez a razão porque escrevi o romance, para poder dar vazão, dar voz a tudo aquilo que havia de mais radicalmente antiinstitucional em mim” (FERREIRA, 1997, p. 61-62). Os amores felizes não têm história (FERREIRA, 2002, p. 53) por não se fundamentarem numa relação duradoura, sólida, estável e segura, assente na promessa de permanência e durabilidade do sempre. Um amor feliz é antes de mais um amor mnemónico, revivido pela lembrança daquelas horas sorvidas de prazer. Os amores felizes também não têm tempo, apenas um presente escorregadio, incontrolável, intravável, que subsiste na ânsia e pretensão de ser agarrado e possuído. Pela mão do artista é dado, pela mão da Y é tirado. Y converteu-se, assim, na incógnita da vida do artista plástico, que imbrica Arte, Amor e Mulher numa tríade perfeita: “Como se pode interpretar de outro modo esse velho lugarcomum de ter um filho, plantar uma árvore, escrever um livro? Só se em todos os casos se tratar de grandes e inevitáveis actos de amor: com a Mulher, com a Terra, com a Língua (FERREIRA, 2002, p. 229). Esta mulher, a Y, foi cambiando, metamorfoseando-se, adensando-se mas manteve sempre o seu estatuto intocável e a idiossincrasia erótica e ecfrástica do seu nome: que importava o facto de ter a Y descido uns degraus do altar em que eu a colocara? Vendo bem, era um deslize que só a tornava mais humana, a hipótese de amar uma deusa, para que já fosse altura de vislum-

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brar, em lugar dela, a existência de uma simples mulher, cujas fraquezas subitamente me desapontavam e enterneciam (FERREIRA, 2002, p. 230).

E Clown continua a alimentar as suas lembranças e partilha com o leitor as suas inconfidências: Ao mesmo tempo ia pensando que o meu corpo sempre teve curta memória. Dos outros corpos, desde que ausentes, recorda mais as perfídias que as perfeições, mais os segundos de explosão que as horas de plenitude. Mas, em relação à Y, estava tudo a passar-se de maneira diferente: o que me sufocava era a lembrança dos seus gestos espontâneos mas executados como que au relenti (FERREIRA, 2002, p. 188). […] com a Y é que foi tudo perfeito. Ao menos durante um Inverno e uma Primavera, a seu lado vivi, de facto, um amor feliz. Quando a Y voltar, se voltar, nem tudo será idêntico. Mas talvez eu possa, embora de outro modo, tornar então a dizer, de mim para mim, que nada se iguala, tudo se equivale (FERREIRA, 2002, p. 252).

Assim se vão entrelaçando os pensamentos e monólogos do artista, ora em tom de confissão e hesitante, com o seu barómetro interior, ora com a consciência segura de que nunca a esquecerá, palpitante entre o desejo e receio de a esquecer e a certeza de ambas. Certo dia, já nas últimas páginas, chega uma carta da Y: A carta era efectivamente da Y. nem me atrevia a abri-la, embora parecesse tranquilizador o simples aspecto do sobrescrito, num excelente papel

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Wathman e com caligrafia muito mais segura que a das duas anteriores mensagens. Trazia ao alto, no remetente, apenas as iniciais, seguidas de um endereço em Saint Moritz. O carimbo também era de Saint Moritz. Sentei-me à beira do divã, todo invadido por um inefável bem-estar, só ao contacto, entre os dedos, daquele papel finamente rugoso. O prolongado contacto com o papel do sobrescrito dava-me agora a certeza de que voltaria. E talvez muito em breve: chegar, deitar-se…Certeza? Que certezas podia eu ter? Tanto era possível que estivesse ali dentro a promessa de um recomeço como o adeus de uma definitiva ruptura. Nem eu chegava a saber o que seria melhor para manter viva a ilusão de um amor feliz. Fiquei ainda uns bons minutos com a carta fechada entre as mãos (FERREIRA, 2002, p. 209).

O romance encerra-se, assim, de forma inconclusa, circular, aberta e intemporal, pois que certeza é preciso ter se é na intermitência de duas possibilidades que se abre o espaço para a vontade e para a ilusão de Um amor feliz? Clown, em tom jocoso e com esta capacidade de se desconstruir a si próprio, apanágio do seu nome, afirma: quanto mais guarda se faz ao corpo, mais adúltera é a alma, a mulher só é verdadeiramente fiel quando tem a liberdade de o não ser” (ANDRÉ, 2006, p. 20). Se esta mulher foi fiel a este amor, se Y terá amado, reciprocamente, o amante ou se terá tido ainda a consciência de que não se vive um amor de forma incólume fica em suspenso e na percepção do leitor; certo apenas o facto de que Um amor feliz nasce no feminino.

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Recebido em 29 de novembro de 2011 Aprovado em 15 de dezembro de 2011

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A estrutura narrativa e o contexto de produção do romance Pedro Páramo, de Juan Rulfo Ana Paula Cantarelli UFSM Rosani Úrsula Ketzer Umbach UFSM

RESUMO: Este trabalho propõe uma análise do romance Pedro Páramo, de Juan Rulfo, destacando sua estrutura narrativa e seu contexto de produção. Para tanto, busca-se aporte teórico nos estudos de Walter Benjamin sobre o autor, e de Ángel Rama sobre o processo de transculturação. PALAVRAS-CHAVE: Narrativa mexicana moderna. Juan Rulfo – Pedro Páramo. Pedro Páramo – Crítica e interpretação. ABSTRACT: This paper proposes an analysis of the novel Pedro Paramo, of Juan Rulfo, emphasizing its narrative structure and its context of production. Therefore, we seek theoretical support in the studies of Walter Benjamin about the author and Angel Rama on the process of transculturation. KEYWORDS: Modern Mexican Narrative. Juan Rulfo – Pedro Páramo. Pedro Páramo – Critic and Interpretation.

Vine a Comala porque me dijeron que acá vivía mi padre, un tal Pedro Páramo. Mi madre me lo dijo. Y yo prometí que vendría a verlo en cuanto ella muriera. Juan Rulfo

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Introdução Já decorreram décadas e décadas desde que a primeira edição de Pedro Páramo, de Juan Rulfo, foi publicada. Entretanto, esse romance segue com aspectos ainda não explorados, com pontos a serem desvendados. Neste trabalho, propomo-nos a fazer uma leitura desse romance, dentre as muitas possíveis, enfatizando o autor e o contexto em que foi produzido, sem desconsiderar a estrutura da narrativa. A partir das considerações presentes no texto “O autor como produtor”, de Walter Benjamin, e no texto “Os processos de transculturação na narrativa latino-americana”, de Ángel Rama, tentaremos alinhavar esses dois planos (estrutura narrativa e contexto de produção), em busca da construção de uma possibilidade de compreensão da obra que crie uma ponte entre eles, relacionando-os, permitindo que um elucide o outro. Organização do romance: estrutura da narrativa Pedro Páramo foi o único romance escrito pelo mexicano Juan Rulfo. Publicado pela primeira vez em 1955, Pedro Páramo tem a maioria de suas ações ambientadas na cidade ficcional de Comala. O romance inicia com o relato, em primeira pessoa, de Juan Preciado que foi para Comala como cumprimento de uma promessa feita a sua mãe, Dolores Preciado. Em seu leito de morte, Dolores fez com que Juan lhe prometesse que procuraria por seu pai, Pedro Páramo, e reclamaria tudo o que, por direito, lhe era devido. Dolores, quando viva, descrevia Comala para seu filho como uma espécie de paraíso para onde sempre almejou voltar. Juan confessa que não tinha, inicialmente, a intenção de cumprir a promessa, até que começou a ter visões de Comala e de seu pai que o levaram a principiar a viagem: “não pensei em cumprir minha promessa. Até agora há pouco, quando comecei a encher-me de sonhos, a dar asas

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às ilusões”1 (RULFO, 1980, p. 7, tradução nossa). A narração de Juan Preciado, desde o início do texto, encontra-se fragmentada, sendo constantemente interrompida por trechos de seus diálogos com sua mãe e por trechos de uma linha narrativa em primeira pessoa que podem ser atribuídos a Pedro Páramo. Em sua viagem de ida para Comala, Juan conta com Abundio – que também é filho de Pedro e, portanto, irmão de Juan – para orientá-lo pelo caminho como um guia. Em Comala, Preciado encontra-se com muitas pessoas que fizeram parte do passado de sua mãe, Dolores, e de seu pai, Pedro: Eduviges Dyada, Abundio Martínez, Susana San Juan, Damiana Cisneros, etc. Contudo, em determinado momento, Juan percebe que seus interlocutores estão todos mortos. Presos à cidade de Comala, esses habitantes surgem como sombras, como vultos que vão ganhando voz e aparência à medida que a busca empreendida por Juan os “invoca”, convidando-os a realizarem seus relatos, a contarem suas histórias e, por conseguinte, auxiliarem na composição da história de Pedro Páramo e de Comala. A cidade, ao longo da narração de Juan, é assim caracterizada: “povoado sem ruídos”2 (RULFO, 1980, p. 11); “casas vazias, portas quebradas, invadidas por ervas”3 (RULFO, 1980, p. 11); “o ar era escasso”4 (RULFO, 1980, p. 12); “um povoado solitário”5 (RULFO, 1980, p. 12). Somada a essas características, há ainda a presença de vultos e a ausência de crianças, delineando um ambiente em ruínas,

1 “no pensé en cumplir mi promesa. Hasta ahora pronto que comencé a llenarme de sueños, a darle vuelo a las ilusiones”. 2

“pueblo sin ruidos”.

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“casas vacías, puertas desportilladas, invadidas de yerba”.

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“el aire era escaso”.

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“un pueblo solitário”.

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triste e silencioso, mostrando-se contrária à perspectiva de paraíso delineada por Dolores em suas conversas com o filho. Ao findar a primeira parte do romance, a narração de Juan é interrompida com sua morte causada pelo excessivo calor e pela falta de ar das noites de Comala: “Não havia ar. Tive que sorver o mesmo ar que saia da minha boca, detendo-o com as mãos antes que escapasse. Senti-o ir e vir, cada vez menos; até que se tornou tão fino que vazou entre os meus dedos para sempre”6 (RULFO, 1980, p. 56). O filho de Dolores morre quando estava decidido a partir, no dia seguinte, da cidade, uma vez que sua busca pelo pai mostrou-se infrutífera, pois o pai buscado está morto e o paraíso descrito pela mãe assemelha-se a uma espécie de purgatório com almas pecadoras, presas a uma cidade vazia e deteriorada. A cidade e seus habitantes impedem que Juan vá embora, convertendo-o em mais um dos seus; afinal fora em Comala que ele nascera e para Comala que voltara para morrer. Começa, então, uma narração em terceira pessoa, onisciente, que retorna ao passado, quando Pedro ainda estava vivo. A maioria das personagens da narração feita por Juan está presente também na segunda. Essas duas narrações apresentam visões diferentes de Comala: a de Juan é de uma cidade árida, quente, sem vida, repleta de vultos e sombras; enquanto a outra apresenta uma cidade ainda viva, mas dominada pelos desmandos de Pedro Páramo. Somente na narração onisciente temos acesso às descrições de Pedro, o pai que Juan está buscando. Apresentado como um homem astuto, mas cruel, Pedro é também mostrado como um homem que nutria carinho por Miguel Páramo, um filho nascido fora do casamento, mas criado por Pedro – o único

“No había aire. Tuve de sorber el mismo aire que salía de mi boca, deteniéndolo con las manos antes que se fuera. Lo sentí ir y venir, cada vez menos; hasta que se hizo tan delgado que se filtró entre mis dedos para siempre”.

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que recebeu o sobrenome do pai. Miguel é morto pelo cavalo que tanto gostava, deixando uma lacuna no coração de Pedro. Além de Miguel, Susana San Juan também recebe o carinho de Pedro. Apaixonado por essa mulher, Pedro não é correspondido. Susana, depois da morte de seu marido e com os constantes assédios de Pedro, principia a enlouquecer. Vivendo em meio aos delírios, Susana vai enfraquecendo até o momento de sua morte. Pedro, sozinho, ameaçado por guerrilheiros que querem o seu dinheiro para manter os constantes ataques ao governo, acaba sendo morto pelo próprio filho Abundio, que havia conduzido Juan a Comala no início do romance. Abundio fora à casa do pai pedir-lhe dinheiro para sepultar a esposa que havia morrido. Atordoado, sem saber ao certo o que fazia, Abundio ataca o pai: “Deu uma batida seca contra a terra e foi desmoronando-se como se fosse um monte de pedras”7 (RULFO, 1980, p. 118). A significação do nome “Pedro Páramo” nos dá indícios do comportamento dessa personagem ao longo da narrativa: Pedro (pedra) e Páramo (deserto) simbolizam a morte e a deterioração que suscita o poder. Essa significação delineia-se na morte de tudo aquilo que está próximo a Pedro: Miguel, seu filho mais amado, é morto pelo cavalo dado por Pedro; o amor que sente por Susana faz com que ela enlouqueça; o domínio do povoado no qual vive conduz à gradual aniquilação do lugar; o capataz que lhe é mais fiel é assassinado por trabalhar para Pedro; até que o próprio Pedro desmorona como uma pilha de pedras ao final do romance. Essa proximidade com a morte manifestada principalmente por essa personagem reforça o caráter de vazio esboçado pelas descrições da cidade feitas por Juan Preciado, criando uma atmosfera de abandono e de solidão que se intensifica ao longo do romance.

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“Dio um golpe seco contra la tierra y se fue desmoronando como si fuera um montón de piedras”.

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A estrutura narrativa de Pedro Páramo contempla o que poderíamos chamar de duas histórias centrais: a primeira é a narração de Juan Preciado que vai a Comala em busca do pai e a segunda é a narração em terceira pessoa que conta a história de Pedro Páramo. Assim, pai e filho ocupam o primeiro plano da narração. O segundo plano é ocupado por uma série de histórias menores que apresentam relação com as duas histórias principais, como, por exemplo, a história de Miguel Páramo; a relação de Eduviges Dyada com Dolores Preciado; a morte da esposa de Abundio; a história de Damiana Cisneros; a história de Susana San Juan; entre outras. As histórias menores foram dispostas em lugares pontuais das histórias centrais, ajudando a compô-las à medida que avançamos na leitura. A mudança de narrador, de foco narrativo e de personagens converte-se em uma constante ao longo da leitura até que o narrador em terceira pessoa assuma, após a morte de Juan, o centro da narração. A soma das histórias menores às histórias maiores permite que se componha a história de Comala antes de Juan Preciado ter lá chegado: a maneira como Pedro Páramo subjugou através da força e da violência o pequeno povoado; como ele casou-se com Dolores; como principiou a guerra de guerrilhas; enfim, acontecimentos que permitiram que Comala ficasse da forma como Juan a encontrou: uma cidade vazia, destruída pela ambição de Pedro. A composição dessas histórias, ao longo do romance, contribui para a fragmentação da narrativa, uma vez que as histórias menores surgem em meio às maiores, rompendo com a linearidade destas. Fragmentos de falas das personagens, frases proferidas por alguém que, vivo ou morto, está relacionado à Comala implicam um maior esforço do leitor para conseguir compor a trama narrativa e lograr atribuir sentido e coerência ao romance lido. Além disso, a fragmentação desse texto permite que diferentes dimensões de leitura sejam possíveis, ampliando a significação desse texto.

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O autor e o contexto de produção Walter Benjamin, em uma conferência pronunciada em 1934, afirmou que “a tendência de uma obra literária só pode ser correta do ponto de vista político quando for também correta do ponto de vista literário” (BENJAMIN, 1994, p. 121). O que há por trás dessa afirmação contempla uma discussão estabelecida por críticos literários ao longo dos anos: afinal a qualidade da obra está em seu aspecto genuinamente literário, ou seja, em sua estrutura, na organização dos elementos que a compõem ou em sua vinculação com o social, em sua capacidade de denúncia e de crítica à sociedade? Benjamin resolve magistralmente essa questão ao afirmar que as duas coisas (forma e conteúdo) estão interligadas: “é a tendência literária e nenhuma outra, contida implícita ou explicitamente em toda tendência política correta, que determina a qualidade da obra. Portanto, a tendência política correta de uma obra inclui sua qualidade literária, porque inclui sua tendência literária” (BENJAMIN, 1994, p. 121). Benjamin opta por uma forma dialética de abordar a obra literária, vendo-a não como um reflexo do contexto de produção ou como uma mera organização de elementos em busca da construção de uma estrutura, mas sim como um ato da produção humana, vinculado a um contexto social vivo, sendo a obra percebida, então, como um elemento constituinte da realidade. O autor, assim, é visto como um sujeito localizado em um contexto social, mas que não é definido apenas por esse contexto e pela sua posição no processo produtivo e sim, também, pelas suas opiniões, convicções e disposições, ou seja, pela maneira como é capaz de atuar no meio do qual faz parte. A partir das considerações tecidas por Benjamin, surge a pergunta: Como Pedro Páramo constitui-se em um ato de produção humana vinculado a um contexto social? Para responder a essa interrogação será preciso primeiro voltar nosso olhar para o autor Juan Rulfo. Nascido em 16 de maio de 1917, em Jalisco, no México, Rulfo tornou-se

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órfão de pai (1923) e de mãe (1927) muito cedo, o que levou seus familiares a colocarem-no em um internato em Guadalajara, capital do estado de Jalisco, onde viveu entre 1928 e 1932. Pertencente a uma família de proprietários de terra que ficou arruinada pela Revolução Mexicana, Rulfo perdeu seu pai e seus tios na época da Guerra de Cristero. Após 1932, frequentou um seminário por um breve período e mudou-se para a Cidade do México, a fim de estudar Direito. Não pôde terminar os estudos e durante os vinte anos seguintes trabalhou: primeiro como agente de imigração por todo o México e logo como agente da empresa Goodrich-Euzkadi. Em 1944, fundou a revista literária Pan. Durante a década de 1950, Rulfo publicou El llano en llamas e Pedro Páramo. Apesar de ter abandonado a escrita de livros depois dessas publicações, continuou ativo na cena literária mexicana, colaborando com outros escritores em roteiros, escrevendo para a televisão e dedicando-se à fotografia. De 1962 até sua morte, Rulfo foi diretor do departamento de publicações do Instituto Nacional Indígena do México. Foi membro da Academia de Letras Mexicana e recebeu vários prêmios literários em vida. Faleceu de câncer em oito de janeiro de 1986, na Cidade do México, no México. Ao longo de sua vida, Rulfo publicou apenas dois livros: o livro de contos El llano en llamas (1953) e o romance Pedro Páramo (1955), que foram traduzidos para vários idiomas. Contudo, sua influência em outros escritores se fez notar, principalmente nos pertencentes ao boom literário. Rulfo é considerado o principal precursor do chamado Realismo Mágico latino-americano, um movimento que contou com integrantes como García Márquez, Jorge Luís Borges e Julio Cortázar, todos confessos admiradores do autor de Pedro Páramo. Sua pequena e breve obra, de acordo com Ruffinelli (1977), basta para considerá-lo um dos grandes escritores da língua espanhola: a maestria dos seus contos e a temível beleza do mundo fantasmagórico de Pedro Páramo

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têm atraído a atenção durante décadas, induzindo, a cada nova leitura, a descoberta de diferentes dimensões, estilísticas e significativas, de sua narrativa. As considerações tecidas por Ruffinelli (1977) auxiliam na composição de parte da resposta de nossa pergunta. A estrutura narrativa de Pedro Páramo deve muito de sua significação à fragmentação nela presente. As várias histórias reunidas compõem uma espécie de quebra-cabeças que delineia a cidade de Comala. No entanto, à medida que nos centramos em uma história de cada vez, percebemos multiplicidades de significações e de associações possíveis que somente são aceitáveis devido à pluralidade propiciada pela fragmentação do romance. Assim, a estrutura da narrativa ganha valor, sendo reconhecida sua qualidade literária ou, nas palavras de Benjamin (1994), sua tendência literária, uma vez que sua estrutura permite que a significação seja construída mesmo com o passar do tempo, propiciando a produção de novas leituras. Ainda no que diz respeito à estrutura do romance, devemos destacar a presença do Realismo Mágico que se converte ao mesmo tempo em elemento estrutural e vínculo com o contexto social de produção do romance analisado. O Realismo Mágico apresentou-se na América Latina como uma forma de preservar aspectos regionalistas das diversas sociedades submetidas ao caráter universalizante que predominava nas metrópoles ao redor do mundo. Nesse aspecto, aponta Rama (2001, p. 212-213): No variado panorama aculturante atual, testemunho da dinâmica das sociedades latino-americanas contemporâneas, um extenso capítulo é ocupado pelos conflitos das sociedades regionais que se deparam com a modernização incorporada por intermédio de cidades e portos, proclamada transmissora do progresso e que as elites urbanas dominantes instrumentam. Como foi possível comprovar em inúmeros

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exemplos, esse processo de aculturação não responde a um mero intercâmbio civilizado entre culturas, mas é a única opção que se impõe para poder solucionar um choque de forças culturais muito díspares, uma das quais viria a ser previsivelmente destruída no confronto, sendo simplesmente vencida em termos de um pacto. Os regionalistas respondem a esse conflito: tentarão evitar a ruptura, que se aproxima, entre os diferentes setores internos que compõem a cultura latino-americana, devido à desigual evolução experimentada e aos diversos ingredientes originários, enquanto assistem a uma aceleração modernizadora.

As afirmações feitas por Rama estão relacionadas, principalmente, às produções artísticas desenvolvidas antes da metade do século XX, contudo encontram fáceis ancoragens nas produções posteriores. Regionalismo e universalismos não travam batalhas novas. Seus conflitos são antigos. Enquanto o primeiro busca proteger-se das mudanças acarretadas pelo fenômeno globalizante e estimuladas pela sociedade capitalista em busca de uma particularidade que o diferencie do restante; o segundo tenta homogeneizar as sociedades ao redor do mundo, em nome uma conduta que tem como principal escudo o progresso e o desenvolvimento. Em busca da modernidade, quase sempre o primeiro é derrotado pelo segundo, ou então sofre alterações que o modificam radicalmente. Esse confronto conduz à assunção de posturas normalmente extremadas, que, em nenhuma hipótese, concedem um lugar confortável para os seus defensores, o que torna ainda mais conturbada a relação entre eles. Na América Latina, o regionalismo salientava as particularidades culturais alimentadas em áreas ou sociedades internas, o que destacava seu perfil diferencial. Também, estava propenso a conservar os elementos que, no passado, contribuíram para o processo de particularização,

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de singularização cultural, visando à transmissão futura como uma forma de preservação. De acordo com Rama (2001, p. 211), “o elemento tradição, incluído como um dos vários traços de toda definição de ‘cultura’, era realçado pelo regionalismo tanto no campo dos valores como no das expressões literárias”. O processo de universalização torna os valores e as expressões particulares inválidos. Respaldada em fontes externas, a universalização nega as pretensões regionalistas, desconsiderando-as, e, como consequência, transfere para o interior da nação um sistema de dominação, intensificando sua submissão. Em nome de uma modernização, de um reconhecimento mundial, eternamente aspirado pelos Estados-nação, o preço pago está na perda das individualidades, na subjugação dos valores locais, substituídos pelos denominadores universais. Contudo, como aponta Rama (2001, p. 213), apareceram na América Latina criadores literários capazes de construir as pontes indispensáveis para resgatar as culturas regionais. Manejando de um modo imprevisto e original as contribuições artísticas da modernidade. Mas, além disso, e o mais importante, é que revêem, à luz que ela projeta, os próprios conteúdos culturais regionais em busca de soluções artísticas que não sejam contraditórias com a herança que devem transmitir.

E Juan Rulfo certamente é um desses criadores. Considerado um dos grandes precursores do Realismo Mágico, o escritor conseguiu combinar aspectos universais e regionais em suas produções literárias, das quais Pedro Páramo apresenta-se como o melhor exemplo. Ao mesclar traços de um pequeno povoado ficcional localizado no México, com aspectos universais, Rulfo consegue equilibrar os dois pólos de oposição no romance aqui analisado. O plano do verossímil

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– retratado pela descrição das cidades abandonadas, pela dificuldade de sobrevivência, pelos desmandos de um ditador local – funciona paralelamente ao plano do fantástico, manifestado na presença dos mortos que são “invocados” pela presença de Juan Preciado. Como aponta Rama (2001, p. 235), o romance Pedro Páramo mostra-nos o conflito cultural mexicano, porque ali um setor majoritário da população, com predominantemente assentamento rural, passou por um processo de miscigenação que reuniu de forma contraditória elementos do ramo indígena e espanhol, porém forçosamente da perspectiva do trauma sofrido. Por intermédio da política agrária da revolução mexicana (Cárdenas), esse setor pôde realizar progressos relativos onde se afirmaram singularidades culturais novas, mas sua dependência e retraimento foram ampliados pela expansão industrial da burguesia urbana das últimas décadas.

A partir das considerações de Rama, podemos afirmar que Pedro Páramo ilustra os conflitos culturais em dois níveis: os vivenciados pelo autor no cenário mexicano e os vivenciados pela América Latina. Dos últimos já falamos aqui ao enfocarmos os conflitos entre regionalismo e universalismo. Quanto aos primeiros vale a pena retomarmos as informações fornecidas anteriormente sobre o autor. A composição da cidade de Comala, como aponta Ruffinelli (1977), não provém de uma imaginação caprichosa, que representa de forma abstrata a ideia da morte, mas sim da situação de erosão do solo de uma região de Altos, pertencente a Jalisco; provém da diáspora de campesinos para as cidades principais (Cidade do México, Guadalajara e Tijuana) onde se esperava conseguir uma vida melhor: “efeitos negativos de uma Revolução Mexicana que não alcançou verdadeiras reformas na es-

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trutura agrária8” (RUFFINELLI, 1977, p. xi). O cenário visto por Rulfo era de desolação. A cada ano, mais campesinos mudavam-se para outras cidades devido à carência econômica do campo, ao deficiente planejamento agropecuário, à falta de dinheiro para investir (falta de crédito), à insegurança com relação ao futuro. Essa mudança deixava tanto povoados como cidades praticamente desertos, sendo ocupados por uns poucos indivíduos que continuavam presos a sua terra sem condições de partirem para outras cidades, ainda acreditando em seu trabalho e na sua produção. Como afirma o próprio Rulfo, ao falar do que motivou a sua construção literária: Encontrei uma série de povoados fantasmas, onde não só não havia habitante, mas também nada vivia, e em minha obra atribuí esse abandono a um tirano, à tirania, que ainda persiste no México e que também obrigou os indivíduos a abandonarem seus lugares de origem. Isto foi o que me deu a chave9 (RULFO, 1997, p. 480).

A origem da violência muda, natural e espontânea de personagens como Pedro Páramo também pode ser relacionada à realidade mexicana durante o processo pós-revolucionário. Assim, podemos identificar entre as histórias pequenas, que entrecortam as narrativas maiores ao longo do romance, uma que encontra ancoragem na realidade mexicana – a Rebelião Cristera:

8 “efectos negativos de una Revolución Mexicana que no logró verdaderas reformas en el reparo agrario”.

“Me encontré con una serie de pueblos fantasmas, donde no sólo no había habitantes, sino que nada vivía, y en mi obra ese abandono lo achaqué a un cacique, el cacicazgo, que aún persiste en México y que también ha obligado a la gente a abandonar sus lugares de origen. Esto fue lo que me dio la clave”.

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Os anos de 1921 a 1924 tiveram como traço particular a “exaltação nacionalista”, como foi chamada por Monsiváis, e foram seguidos de um “Período de sepraração revolucionária” (1925-1934): assassinado Carranza em Tlaxcalantongo em 1920, o país entrou, com o general Obregón e pouco depois com Plutarco Elías Calles, em um caminho de afirmação e de institucionalização que não implicou, contudo, na imediata rendição de armas; ao contrário, foram múltiplos, sucessivos e sangrentos os levantes militares, e foi durante o período presidencial de Calles que surgiu a “rebelião cristera”. Esta se estendeu como um verdadeiro levante popular instigado pela igreja, cujos interesses haviam sido prejudicados pelo processo revolucionário e pela Constituição de 191710 (RUFFINELLI, 1977, p. xii-xiii, tradução nossa).

Pedro Páramo é o retrato de um proprietário de terras que dominou e subjugou um povoado através da força e da violência e que, em suas ações finais, conta com a incidência direta da Revolução Mexicana e com a Rebelião Cristera. Esse romance mostra como o período revolucionário passou sem produzir danos a muitos latifundiários de grande porte graças à astúcia com a qual o poder feudal conseguiu atuar a fim de usar em seu próprio proveito o movimento. Pedro decide que a melhor maneira de combater o perigo consiste em

“Los años de 1921 a 1924 tuvieron por rasgo mayor la “exaltación nacionalista”, como la ha llamado Monsiváis, y fueron seguidos de un “Período de decantación revolucionaria” (19251934): asesinado Carranza en Tlaxcalantongo en 1920, el país entró, con el general Obregón y poco después con Plutarco Elías Calles, en un sendero de afirmación e institucionalización que no implicó, sin embargo, la inmediata rendición de las armas; al contrario, fueron múltiples, sucesivos y sangrientos los levantamientos militares, y fue durante el período presidencial de Calles que tuvo lugar la ‘rebelión cristera’. Esta se extendió como un verdadero levantamiento popular instigado por la iglesia, cuyos intereses tan mal parados habían salido del proceso revolucionario y de la Constitución de 1917”.

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ajudar os revolucionários, prometendo dinheiro (que nunca será entregue) e homens para ampliar as tropas, utilizando, assim, a seu favor a força popular. Contudo, não podemos tomar esse romance como uma mera ilustração de conflitos regionais, pois seu autor trabalha com uma intenção fundamentalmente artística, embora não tenha deixado de contribuir ocasionalmente para propósitos políticos ou sociais reivindicatórios, o que responde à segunda parte de nossa pergunta.

Considerações Finais A partir das considerações tecidas ao longo deste trabalho, retomemos a pergunta que nos norteou: Como Pedro Páramo constitui-se em um ato de produção humana vinculado a um contexto social? Pedro Páramo enquanto ato de produção humana é uma obra literária e, portanto, possui uma estrutura particular que propicia a construção de uma significação. A fragmentação desse romance e a presença do Realismo Mágico são elementos que permitiram, ao longo de mais de cinco décadas desde a sua publicação, novas leituras e a atribuição de novos significados. Assim, podemos afirmar que essa obra de Rulfo possui o que Benjamin (1994) chama de “tendência literária”, ou seja, sua rica estrutura permite que significação e valor lhe sejam conferidos através do tempo. Enquanto ato de produção humana, Pedro Páramo está vinculado a um contexto específico de produção, e por isso assume “tendência política” (BENJAMIN, 1994). Nesse romance, podemos observar essa tendência em dois níveis. O primeiro diz respeito ao emprego do Realismo Mágico como uma solução para o confronto entre regionalismo e universalismo que era vivenciado por toda a América Latina, mesclando e aproximando os dois, encontrando um equilíbrio, sem permitir que o primeiro saísse prejudicado. O segundo nível diz respeito às vivências

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experienciadas pelo autor no contexto mexicano. A criação de Comala e das personagens a ela vinculadas encontram ancoragens na realidade mexicana vivenciada por Rulfo, no êxodo rural, na concentração de poder financeiro e de decisão nas mãos dos grandes proprietários de terra, na organização de guerrilhas que defendem a igreja posicionando-se contra o governo. Assim, a partir da figura do autor como um sujeito localizado em um contexto social que cria um romance enquanto um ato de produção humana, vemos em Rulfo as duas tendências associadas: a política e a literária criando uma obra ímpar, não apenas no contexto mexicano, mas em toda a América Latina. Percebemos Pedro Páramo como uma estrutura que permite muitas significações, mas também como uma contribuição para propósitos políticos ou sociais reivindicatórios, que segue à espera de novas leituras e de novas construções de sentido.

Referências BENJAMIN, Walter. O autor como produtor (1934). In: ______. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 120-136. RAMA, Ángel. Os processos de transculturação na narrativa latino-americana. In: AGUIAR, Flávio; VASCONCELOS, Sandra Guardini T. (Org.). Ángel Rama: Literatura e cultura na América Latina. Tradução de Raquel la Corte dos Santos e Elza Gasparotto. São Paulo: Edusp, 2001. RUFFINELLI, Jorge. Prólogo. In: RULFO, Juan. Pedro Paramo & El llano en llamas. Caracas: Biblioteca Aycucho, 1977. p. ix-xxxvii. RULFO, Juan. Juan Rulfo: retrato de un exnovelista. Entrevista con Ernesto Parra. In: ______. Toda la obra. Edición crítica coordenada por Claude Fell. Madrid: ALLCA XX, 1997. p. 477-484. RULFO, Juan. Pedro Páramo y El llano en llamas. Barcelona: Planeta, 1980.

Recebido em 8 de fevereiro de 2012 Aprovado em 10 de fevereiro de 2012

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O real e o paradoxo em Auschwitz Jacques Fux UNICAMP Vitor Cei UFMG Daiane Carneiro UFMG

RESUMO: Este artigo tem o objetivo de mostrar o paradoxo da simultânea impossibilidade e necessidade de se testemunhar a Shoah. Enquanto Theodor Adorno apresentou a impossibilidade de se escrever poesia e a psicanálise mostrou a presença constante das lacunas em qualquer escrito de teor testemunhal, Primo Levi e Giorgio Agamben escreveram que o verdadeiro testemunho seria dado somente por alguém incapaz de testemunhar, um paradoxo. Aqui mostramos que não é só o muçulmano capaz de testemunhar, como conjecturaram de forma extrema Levi e Agamben. PALAVRAS-CHAVE: Primo Levi. Giorgio Agamben. Auschwitz – Testemunho. RÉSUMÉ: Cet article a l’intention de montrer le paradoxe de la simultané impossibilité et la nécessité de témoigner de la Shoah. Cependant Theodor Adorno a montré l’impossibilité d’écrire poésie et la psychanalyse a démontré la présence des lacunes n’importe dans quel écrit témoigné, Primo Levi et Giorgio Agamben ont écrit que le vrai témoignage serait fourni seulement par quelqu’un incapable de témoigner, un vrai paradoxe. Ici, nous montrons que ce n’est pas seulement le musulman qui est capable de témoigner, comme Levi et Agamben ont radicalement conjecturé. MOTS-CLÉS: Primo Levi. Giorgio Agamben. Auschwitz – Témoignage.

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Introdução O complexo de campos de concentração de Auschwitz-Birkenau, localizados nas cidades polonesas de Oświęcim (Auschwitz) e Brzezinka (Birkenau), “não representa somente um episódio dramático da história judaica ou da história alemã, mas é um marco essencial e pouco elaborado da história ocidental” (GAGNEBIN, 2006, p. 59). O nazismo se apropriou da tecnologia industrial de ponta e dos mais modernos meios de comunicação de massa de sua época, o rádio e o cinema, alcançando uma estetização da política de penetração social nunca antes vistas. O resultado foi uma das maiores catástrofes da história da humanidade, a Shoah – que, segundo Adorno e Agamben, é o paradigma por excelência de nossa modernidade esclarecida, o do campo de segregação. A problematização da Shoah começou a ser discutida na Alemanha logo após o fim da guerra, motivada pela famosa frase de Theodor Adorno: “A crítica cultural encontra-se diante do último estágio da dialética entre cultura e barbárie: escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas” (ADORNO, 1962, p. 29). Não é somente a beleza lírica que se transforma em injúria à memória dos mortos da Shoah, mas a própria cultura, na sua pretensão de formar uma esfera superior que exprima a nobreza humana, revela-se uma irracionalidade opressora e destrutiva. Escrevendo logo após o calor da hora, Adorno tinha em vista a crítica das experiências de violência dos regimes autoritários e a crítica política da cultura. O filósofo ressalta a urgência de um pensamento impiedosamente crítico, que não aceite a poesia como beletrismo ou a arte em geral como máquina de entretenimento e de esquecimento (esquecimento, sobretudo, do passado nazista recente na Alemanha em reconstrução).

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Contra o esforço conservador de desprezar a memória das vítimas do autoritarismo, Adorno alertava para a necessidade de elaborar o passado e criticar o presente prejudicado, eliminando no presente as causas da barbárie: “[...] a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão. É isto que apavora” (ADORNO, 2003, p. 119). Diante das dificuldades de mudar os pressupostos sociais e políticos que geram a barbárie, a arte deve assumir como principal meta a formação de indivíduos autônomos, autocríticos e com vínculos sociais, eliminando, no que têm de fundamental as condições que geram essa regressão. Assim se reduz a possibilidade de ocorrência de novas catástrofes: “[...] que Auschwitz não se repita” (ADORNO, 2003a, p. 119). Muito anos depois de Auschwitz, o israelense David Grossman, em “Um mundo cada vez mais estreito” vivendo, ele próprio, há anos “na realidade extrema e violenta de um conflito político, militar e religioso” (GROSSMAN, 2007), atenta para a ocorrência de conflitos para além do Oriente Médio, de modo que se configura na contemporaneidade um “apuro” generalizado, ou seja, um sentimento de que nossa existência e nossos valores estão ameaçados pela violência. Neste contexto beligerante, Grossman vê na escrita uma forma de não ficar paralisado pelo sofrimento, de não se transformar em seu escravo. Para ele, torna-se imperativo escrever “sobre o que não pode ser trazido de volta” e sobre as “coisas para as quais não há consolo” (GROSSMAN, 2007). A literatura é, pois, uma forma de testemunho da Shoah e da contemporaneidade. Escritores como Grossman endossam a observação de Beatriz Sarlo segundo a qual no século XX surgiram vários relatos de sobreviventes de campos de concentração, de guerras e de perseguições políticas, o que significa que “o sujeito não

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só tem experiências como pode comunicá-las” (SARLO, 2007, p. 39)1. Além disso, como argumentou Márcio Seligmann-Silva: “qualquer fato histórico mais intenso permite – e exige! – o registro testemunhal tanto no sentido jurídico como também no sentido de ‘sobrevivente’” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 9). Mas, conforme pretendemos demonstrar ao longo deste trabalho, essa “comunicação” não deixa de carregar em si a marca de sua própria impossibilidade e limitação e mobilizou, dada sua peculiaridade, uma nova abordagem do objeto literário, que passa a ser visto como testemunho. Mais especificamente, nosso enfoque recairá sobre os relatos dos sobreviventes dos campos de concentração nazistas, devido ao fato de eles terem se transformado no principal modelo de testemunho (Idem, p. 37) e terem promovido algumas mudanças na compreensão de noções caras à Literatura, como “realidade” e “representação”. Nosso objetivo geral é mostrar o duplo paradoxo da testemunha da Shoah: a impossibilidade de expressar por palavras um evento-limite, e o paradoxo da condição do sobrevivente, que testemunha, por aproximação, a experiência radical daqueles que não sobreviveram. Como veremos, entre a simultânea impossibilidade e necessidade de se testemunhar, dar testemunho é colocar-se nesta cisão entre o que é possível dizer e o que se diz.

1 Em certos momentos, falar de uma experiência traumática como a dos campos de concentração nazistas torna-se uma questão jurídica e histórica da qual o sujeito não consegue se livrar, por mais que só queira esquecer o que viveu. Essa obrigação em contar uma experiência aparece no livro Shoah, de Claude Lanzmann, – no qual estão transcritas as entrevistas que o cineasta francês fez tanto com sobreviventes de campos quanto com pessoas que ou trabalharam para a máquina nazista (SS, maquinista, etc.) ou que viviam próximas aos campos e que compõem o filme homônimo de Lanzmann – quando o sobrevivente Mordechai Podchlebnik, que testemunhou no célebre julgamento de Eichmann, diz que não acha bom falar sobre o que se passou com ele em Chelmno, mas que “agora é obrigado a falar” (LANZMANN, 1987, p. 22). Sobre o uso jurídico do testemunho, ver Arendt (1999).

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A possibilidade do Real O testemunho, de acordo com Márcio Seligmann-Silva, possui basicamente duas acepções, dentre as quais a segunda é a que mais nos interessa: 1) “no sentido jurídico e de testemunho histórico”; 2) “no sentido de ‘sobreviver’, de ter-se passado por um evento-limite, radical, passagem essa que foi também um ‘atravessar’ a ‘morte’, que problematiza a relação entre a linguagem e o ‘real’” (SELIGMANNSILVA, 2003, p. 8). Seligmann-Silva atenta ainda que esse “real” deve ser diferenciado da “realidade” dos romances realistas e ser entendido, na chave do trauma, como algo que resiste à representação (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 377). Entretanto, o testemunho não consegue eliminar certos elementos ficcionais e passa a ser um modo literário/discursivo “difuso” e implicado em todos os tipos de escrita (FELMAN, 2000, p. 20). Porém, uma crítica é importante ser feita: nem tudo é ficção. É necessário (e fundamental) separar o que de fato almeja alcançar o real daquilo que é concebido para ser ficção. Assim escreve Seligmann-Silva: Por outro lado, o conceito de testemunho surge também como uma espécie de contradiscurso daquela ladainha pós-moderna do “é tudo ficção”, uma banalização tremenda da chamada virada linguística do saber. Ao se falar de testemunho, procurou-se restabelecer a complexidade do discurso sobre a escrita, pensando este termo de modo bem amplo. O testemunho e seu discurso respondem também a uma sede de real. É como se estivéssemos sendo sugados pelo ralo do relativismo pós-histórico e o testemunho se apresentou como um conceito forte que permite articular um contradiscurso, que se opõe tanto ao relativismo como ao positivismo. Daí a resistência a esse discurso no Brasil, cuja

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academia em grande parte ainda é positivista, e a chegada relativamente tardia de sua teoria. Essa teoria desenvolve um forte diálogo com a psicanálise, que tenta pensar essa zona fantasmática do real em seu entrelaçamento com o simbólico e o imaginário. Eu em particular, desde o final dos anos 1990, prefiro falar não tanto em testemunho, mas sim em “teor testemunhal” da cultura. Acredito que o que aconteceu na teoria do testemunho foi uma revalorização desse nó entre o real e a linguagem (SELIGMANN-SILVA, 2011, p. 11).

Nos seguintes trechos de sobreviventes da Shoah – os dois primeiros de Primo Levi e o último de Simon Srebnik – fica evidente que a experiência dos campos de concentração, nos quais não havia nenhum elemento humano que os pudesse organizar minimamente, acaba por anular qualquer tentativa de simbolização: Já éramos velhos Häftlinge; nossa sabedoria estava em “não tentar compreender, não imaginar o futuro, não atormentar-se pensando como e quando tudo isso acabaria, não fazer perguntas nem aos outros nem a nós mesmos” (LEVI, 1988, p. 118). Todas essas fontes são concordes entre si; porém, é-nos difícil, quase impossível, construir uma representação de como esses homens [que trabalhavam nas câmaras de gás e nos fornos crematórios viviam dia após dia [...]” (LEVI, 1990, p. 26). Não se pode contar isso. Ninguém pode imaginar o que se passou aqui. Impossível. E ninguém pode compreender isso (LANZMANN, 1987, p. 20-21).

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Para além do processo de extermínio e da violência promovidos de forma inimaginável e que dispensam maiores comentários, o absurdo da situação é uma constante, podendo ser percebido em pequenos rituais obrigatórios: engraxar os tamancos e pregar os botões do casaco que se soltarem mesmo não recebendo material para tais tarefas; arrumar a cama impecavelmente todas as manhãs; cantar para os SS, uma tarefa peculiar cumprida por Simon Srebnik. Além disso, Levi ainda esbarra na dificuldade da língua comum para dimensionar o horror dos campos e sente a necessidade de uma nova linguagem para dar seu testemunho: Assim como nossa fome não é apenas a sensação de quem deixou de almoçar, nossa maneira de termos frio mereceria uma denominação específica. Dizemos “fome”, dizemos “cansaço”, “medo” e “dor”, dizemos “inverno”, mas trata-se de outras coisas. Aquelas são palavras livres, criadas, usadas por homens livres que viviam, entre alegrias e tristezas, em suas casas. Se os Campos de Extermínio tivessem durado mais tempo, teria nascido uma nova, áspera linguagem, e ela nos faz falta agora para explicar o que significa labutar o dia inteiro no vento, abaixo de zero, vestindo apenas camisa, cuecas, casaco e calças de brim e tendo dentro de si fraqueza, fome e a consciência da morte que chega (LEVI, 1988, p. 125-126).

Essa “realidade”, na qual fome, frio, medo, dor, cansaço alcançam proporções extremas, é um excesso, algo que barra o acesso verbal, e, assim, aproxima-se do conceito de “real” trabalhado pelo psicanalista Jacques Lacan, em cujo texto “Tiquê e autômaton” expõe-se que a apresentação do “real” se dá “na forma do que nele há de inassimilável – na forma do trauma” (LACAN, 1988, p. 57). Em termos gerais, o

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trauma ocorre justamente quando se vivencia um acontecimento de tal maneira excessivo que o sistema psíquico não o consegue traduzir, levando o sujeito a excluí-lo de suas representações. Nas palavras de Freud: Realmente, o termo “traumático” não tem outro sentido senão o sentido econômico. Aplicando-o a uma experiência que, em curto período de tempo, aporta à mente um acréscimo de estímulo excessivamente poderoso para ser manejado ou elaborado de maneira normal, e isto só pode resultar em perturbações permanentes da forma em que essa energia opera (FREUD, 1966b, p. 283).

Freud observa também que há “uma fixação no momento do acidente traumático”, a qual se expressa na repetição, em sonhos – e, pode-se acrescentar, na escrita memorialista –, da situação traumática, como se esta fosse uma tarefa ainda não realizada (FREUD, 1966b, p. 282-283). Na medida em que se apresenta na forma do trauma, o “real” é um “encontro faltoso”, que escapole e se opõe à assimilação, mas “ao qual somos sempre chamados” (LACAN, 1988, p. 55-56). Esse impasse do encontro com o “real” é perceptível no discurso proferido na ocasião do recebimento do Prêmio Nobel de Literatura em 2002 por Imre Kertész (sobrevivente da Shoah e que depois de liberto viveu sob a ditadura soviética na Hungria) quando o escritor, referindo-se à sua estupefação diante do fato de não se lembrar muito bem de sua experiência no campo nazista, comenta que aquilo de que se recorda aparece como uma erupção violenta. Mas por mais que perceba ter vislumbrado algo fulcral, Kertész não é capaz de descrever seu ganho: “So when I speak of a vision, I must mean something real that assumes a supernatural guise – the sudden, almost violent eruption of a

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slowly ripening thought within me. Something conveyed in the ancient cry, ‘Eureka!’ – ‘I’ve got it!’But what?” (KERTÉSZ, 2002)2. É como se o grito “Eureka!”3 transmitisse a satisfação de ter encontrado o “real”, de tê-lo alcançado, ainda que esse encontro seja perdido: “‘I’ve got it!’ But what?”. Assim esse encontro “pode ser pensado também em termos psicanalíticos se nos recordamos da pessoa traumatizada como alguém que porta uma recordação exata do momento do choque e é dominada por essas imagens que sempre reaparecem (e desaparecem) diante dela de modo mecânico, involuntário” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 85). Eureka, em grego, quer dizer descobri. Posteriormente, passou a ser usada como expressão de triunfo ao se solucionar um problema difícil (HOUAISS, 2002). Neste contexto aponta para uma descoberta de que, paradoxalmente, quase nada se sabe – também poderia ter sido empregada por Primo Levi quando ele se deparou com uma realidade cruamente “revelada”: “Pela primeira vez, então, nos damos conta de que a nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa, a aniquilação de um homem. Num instante, por intuição quase profética, a realidade nos foi revelada: chegamos ao fundo” (LEVI, 1988, p. 2425). Ao revelar-se, no sentido de “dar-se a conhecer verdadeiramente” (HOUAISS, 2002), a “aniquilação do homem” vivenciada por Levi continua pertencente a uma zona desconhecida e oculta, já que a língua não dispõe de meios para expressá-la. Sobre a pessoa que

2 “Então, quando eu falo de uma visão, quero dizer algo real que assume que uma roupagem sobrenatural – a súbita e quase violenta erupção de um pensamento lentamente amadurecendo dentro de mim. Algo transportado em um antigo grito: ‘Eureka!’ – ‘Eu tenho-o! Mas o quê’?”. Tradução nossa. 3 Tal interjeição foi usada originalmente por Arquimedes no momento em que teria descoberto o princípio fundamental da hidrostática, que lida com a força de empuxo exercida por um fluido sobre um corpo imerso total ou parcialmente no fluido.

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testemunha o evento singular que é a Shoah e sobre a impossibilidade de simbolizar o real, escreve Seligmann-Silva: “ela (a testemunha) é muitas vezes pensada na chave da noção freudiana de trauma ou dentro de abordagens lacanianas – quando se enfatiza a noção do real como algo que não pode ser simbolizado” (SELIGMANN, 2005, p. 84-86). Entretanto, mesmo parecendo impossível lidar com o “real” traumático, Levi e tantos outros sobreviventes de fatos históricos extremos são impelidos a narrar: há, no contexto psicanalítico, a necessidade de falar daquela situação de que não se pode esquecer por completo. O testemunho, dessa forma, está sim marcado pelo peso de uma “realidade”, que inclusive afigura negar a possibilidade de haver uma outra – “Parecia impossível que existisse realmente um mundo e um tempo, a não ser nosso mundo de lama e nosso tempo estéril e estagnado [...]” (SELIGMANN, 2005, p. 119) – e chega a ser tomada como possuidora de uma verdade – “É natural e óbvio que o material mais consistente para a reconstrução da verdade sobre os campos seja constituído pelas memórias dos sobreviventes” (LEVI, 1990, p. 4). Ele, porém, não se ocupa da imitação dessa “realidade”. É nesse sentido que Seligmann-Silva afirma que depois da pretensão realista e dos ideais de autorreferência, a literatura passa a ser vista a partir da sua relação e compromisso com o “real” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 377): Na literatura de testemunho não se trata mais de imitação da realidade, mas sim de uma espécie de “manifestação” do “real”. É evidente que não existe uma transposição imediata do “real” para a literatura: mas a passagem para o literário, o trabalho do estilo e com a delicada trama de som e sentido das palavras que constitui a literatura é marcada pelo “real” que resiste à simbolização (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 386-387).

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Já que o “real” resiste à simbolização, o texto que o “manifesta” constrói-se entre a necessidade e a impossibilidade de narrar, o que significa, conforme ressalta Giorgio Agamben, que a dificuldade faz parte da própria estrutura do testemunho, pois se o que aconteceu se apresenta aos sobreviventes como algo verdadeiro e inesquecível, por outro lado essa verdade não deixa de ser inimaginável: “Trata-se de fatos reais que, comparativamente, nada é mais verdadeiro; uma realidade que excede necessariamente os seus elementos factuais: é esta a aporia de Auschwitz” (AGAMBEN, 2008, p. 20). A dificuldade de que fala Agamben torna-se explícita nos momentos em que se duvida dos fatos apresentados: “Hoje – neste hoje verdadeiro, enquanto estou sentado frente a uma mesa, escrevendo – hoje eu mesmo não estou certo de que esses fatos tenham realmente acontecido”, ressalta Levi em É isto um homem? (1988, p.105). Apesar de admitir ao longo do texto que seu testemunho está povoado pela hesitação, no prefácio a este mesmo livro, Levi escreveu: “Acho desnecessário acrescentar que nenhum dos episódios foi fruto de imaginação” (AGAMBEN, 1988, p. 8). Ou seja, se por um lado ele defende a veracidade daquilo de que se lembra e que transpõe para o papel, por outro, em certos momentos, por mais que pretendesse fazê-lo, não houve como excluir a dúvida acerca da legitimidade de algumas recordações, que, de tão inverossímeis, parecem pertencer ao registro da imaginação. Há sobreviventes de eventos-limite que veem na ficção o caminho para escrever sobre o horror por eles experienciado – eles acreditam que “Apenas a passagem pela imaginação poderia dar conta daquilo que escapa ao conceito” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 384). O já mencionado David Grossman, por exemplo, quando seu filho Uri, que veio a falecer na guerra contra o Líbano, estava prestes a ingressar no Exército de Israel, não pôde mais deixar de escrever sobre o que ele chamou de “zonas de desastre”:

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Um senso de urgência e alarme se abateu sobre mim, deixando-me irrequieto. Comecei então a escrever um romance que trata diretamente da dura realidade na qual vivo. Um romance que conta como a violência externa e a crueldade da realidade geral política e militar penetram no delicado e vulnerável tecido de uma família e acabam por despedaçá-la (GROSSMAN, 2007).

Romances de escritores como Grossman não deixam de conter traços testemunhais (afinal, como não ver nessa descrição de Grossman sobre seu romance uma sombra do que se passou em sua vida familiar?), podemos concluir, portanto, concordando com as afirmações de Shoshana Felman de que o testemunho é “uma modalidade crucial de nossa relação com os acontecimentos de nosso tempo – com o trauma da história contemporânea” (FELMAN, 2000, p. 17), de forma que a “nossa era pode ser definida precisamente como a era do testemunho” (p. 18). Ademais, na visão de Seligmann-Silva (2003; 2005), poderíamos até mesmo falar de um teor testemunhal da literatura de um modo geral, o qual é sem dúvida mais visível em obras que tematizam catástrofes – daí sua teorização só aparecer no século XX, visto como a “era das catástrofes” por pensadores como Theodor Adorno, Shoshana Felman e Eric Hobsbawn. Aceito o prisma borgiano de relacionar textos e autores4, percebe-se que embora a literatura tivesse apresentado um teor testemunhal, a dimensão atingida por tal teor no

4 Fazemos referência aqui ao ensaio “Kafka e seus precursores” (BORGES, 1999), no qual Borges postula uma concepção de tradição desvinculada das ideias de linearidade, sequência e causalidade. Procedendo a um “exame dos precursores de Kakfa”, o escritor argentino conclui que a semelhança entre a obra de Kakfa e outras que a precederam cronologicamente é possível porque a obra de Kafka tornou visíveis certos aspectos das obras anteriores imperceptíveis antes de seu surgimento.

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século XX seria tão expressiva que iluminaria toda a tradição literária, fazendo-nos perceber o elemento testemunhal das obras que até então não teriam sido explicitados nem devidamente teorizados. Assim, a literatura de testemunho surgida no século XX mobilizar-nos-ia a modificar nossa concepção acerca do passado, e também do futuro.

O paradoxo em Agamben e Levi: considerações finais Sabemos, em relação à posição do leitor, que sua leitura determina o texto. Mas como resolver a complexa relação que existe entre Literatura e Realidade? O sobrevivente, aquele que passou por um evento e viu a sua morte e a morte de muitos de perto, e após tal evento resolver relatar, testemunhar, desperta uma modalidade de recepção nos leitores que é capaz de causar certa empatia e de desarmar a incredulidade. Porém, em relação a Auschwitz, o que percebemos é a existência de uma situação e de uma possibilidade de realidade tal complexa e inimaginável, que os primeiros escritos e documentos a respeito de tal acontecimento não foram recepcionados da forma que deveria ser. As atrocidades e a indústria da morte eram tão inimaginavelmente complexas e cruéis que o simples testemunho passou a ser discutido. Por isso, como mostrado na primeira parte deste artigo, Adorno pronunciou a célebre e famosa frase acerca da impossibilidade de se fazer poesia após evento de tamanho porte. Além disso, com o intuito de mostrar a singularidade da Shoah, Seligmann-Silva escreveu acerca desse evento: A Shoah aparece como o evento central da teoria do testemunho. Desde os anos de 1980 ele vem sendo cada vez mais caracterizado por sua radicalidade e consequência singularidade. Partindo dessa característica desenvolveu-se um dos topoi nas pesquisas sobre testemunho, a saber, o da singularidade e não possibilidade de comparação entre a Shoah e

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outras catástrofes, ou seja, afirmou-se a sua radical unicidade. (...) Devido à singularidade/unicidade a Shoah estaria “para além” de toda compreensão (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 84).

Os sobreviventes da Shoah, tomados por uma vontade de continuar vivendo e de contar ao mundo o que de fato aconteceu, começaram a testemunhar essas histórias. Porém, como mostrado neste artigo, existe a impossibilidade de se testemunhar diante de um grande trauma. Além disso, encontramos no testemunho, segundo Seligmann-Silva, a “literalização e fragmentação” do discurso e uma tensão entre “oralidade e escrita” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 84). Portanto, a existência de lacunas, de problemas e da própria não neutralidade do testemunho, torna a tarefa literária e história ainda mais complexa. Neste ponto podemos inserir as teorias de Agamben e de Levi em relação à impossibilidade de se testemunhar. Em Os afogados e os sobreviventes, Levi escreve: Repito, não somos nós, os sobreviventes, as autênticas testemunhas. Esta é uma noção incômoda, da qual tomei consciência pouca a pouco, lendo as memórias dos outros, relendo as minhas muitos anos depois. Nós, sobreviventes, somos uma minoria anômala, além de exígua: somos aqueles que, por prevaricação, habilidade ou sorte, não tocamos o fundo. Quem o fez, quem fitou a górgona, não voltou para contar, ou voltou mudo: mas são eles, os ‘muçulmanos’, os que submergiram – são eles as testemunhas integrais, cujo depoimento teria significado geral (LEVI, 1990, p. 47).

Seria somente o muçulmano capaz de testemunhar a Shoah? Ao final de seu livro, O que resta de Auschwitz, Agamben, corroborando

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com a tese de Levi acerca dos testemunhos integrais, ou seja, somente os muçulmanos é que seriam capazes de testemunhar apesar de sua impossibilidade, apresenta o testemunho dos tais muçulmanos, ou daqueles que um dia se consideraram como tal. Esses sobreviventes puderam testemunhar, relatar, escrever e contar, mas ao o fazerem, deixaram de possuir a característica inerente do próprio mulçumano, que é a impossibilidade de testemunhar. No momento que testemunham, tentam alcançar o real com seus problemas e limitantes; testemunham com a presença do seu próprio véu e de sua própria lacuna. Assim, com já foi dito neste artigo, ao dar esse testemunho colocam-se nesta cisão entre o que é possível dizer e o que se diz. Agamben, ao longo do seu livro, tenta fugir desse paradoxo. Ele tenta demonstrar que só o muçulmano é capaz de falar (como conjecturou Levi) apresentando a própria fala do muçulmano no fim de seu livro5. Porém, ao apresentar o testemunho de alguns sobreviventes, não trabalha com o verdadeiro muçulmano descrito por Levi. Assim escreve Agamben sobre a impossibilidade: Não enunciável, não arquivável é a língua na qual o autor consegue dar testemunho da sua incapacidade de falar. Nela coincide uma língua que sobrevive aos sujeitos que a falam com um falante que fica aquém da linguagem. É a ‘treva obscura’ que Levi sentia crescer nas páginas de Celan como um ‘ruído de fundo’; é a não-língua de Hurbinek (mass-klo), que não encontra lugar nas bibliotecas do dito, nem no arquivo dos enunciados (AGAMBEN, 2008, p. 161).

5 Como já haviam feito Z. Ryn e S. Klodzinski ao publicar o artigo “Na fronteira entre a vida e a morte: um estudo do fenômeno do muçulmano no campo de concentração”. O artigo apresenta 89 testemunhos, quase todos sobreviventes de Auschwitz, aos quais foram considerados em algum momento de sua passagem pelo campo, como muçulmanos.

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E assim apresenta Agamben o testemunho do intestemunhável que recai, a nosso ver, nas impossibilidades apresentadas em Adorno e na psicanálise, a cisão entre o que é possível dizer e o que se diz: Na expressão Eu era um muçulmano, o paradoxo de Levi alcança a sua formulação mais extrema. O muçulmano não é só a testemunha integral, mas ele agora fala e dá testemunho em primeira pessoa. Já deveria estar claro em que sentido esta reformulação extrema – Eu, alguém que fala, era um muçulmano, ou seja, alguém que, em nenhum caso, pode falar – não só contradiz o paradoxo, mas sim, pontualmente, o verifica. Permitamos, portanto, que sejam eles – os muçulmanos – a ter a última palavra (AGAMBEN, 2008, p. 165).

Acreditamos, portanto, que o paradoxo proposto por Levi, enquanto uma reflexão pessoal, é válido. Já a posição de Agamben, que corrobora a tese de que a literatura de testemunho seja paradoxal, extrema. É necessário e possível testemunhar e não somente os muçulmanos ou ex-muçulmanos são os únicos a testemunhar. Sim, eles fazem parte desse conjunto, mas outros são também testemunhos importantes, porém com presença indelével das marcas, das ficções e dessa impossibilidade possível. Ao rememorar Auschwitz e outros eventos-limite marcados pelo caráter traumático das experiências coletivas de violência extrema, Adorno, Levi e Agamben reelaboraram as heranças da nossa formação, com suas catástrofes, ruínas e cicatrizes. Nesse sentido, o sucesso da investigação implica que o fim deste artigo signifique um recomeço: o da tarefa de reelaborar o passado e pensar os paradoxos da nossa formação social em diálogo com os autores estudados. Esperamos que cada leitura conduza a outros desdobramentos possíveis, apontando para novos problemas e questões.

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Recebido em 1 de novembro de 2011 Aprovado em 13 de fevereiro de 2012

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