Um ateísmo cristão? Uma análise da espiritualidade ateísta humanista (A Christian Atheism? An analysis of the atheistic humanist spirituality)

May 30, 2017 | Autor: Jonathan Menezes | Categoria: Secular Humanism, Atheism, Spirituality, Secularization
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Comunicação de trabalho apresentada no IV Seminário Internacional Práticas Religiosas no Mundo Contemporâneo (LEER-UEL), 21 de set. 2016

UM ATEÍSMO CRISTÃO? UMA ANÁLISE DA ESPIRITUALIDADE ATEÍSTA HUMANISTA Jonathan Menezes Doutorando em História pela UNESP, Campus de Assis-SP Professor da Faculdade Teológica Sul Americana, Londrina-PR

RESUMO A palavra espiritualidade tem se tornado cada vez mais polissêmica e pluralista. Segundo Harvey Cox, essa pluralização da espiritualidade se deve: (a) porque ainda é uma forma de protesto, representando uma moção que cresce por todos os lugares contra as pressões e abusos da “religião”; (b) porque representa uma tentativa de muitos em dar voz à reverência e maravilhamento diante da complexidade da natureza; (c) porque reconhece as cada vez mais finas camadas de separação entre as diferentes tradições, e se fixa mais no presente e no futuro que no passado. Logo, é possível falar de vários discursos e práticas de espiritualidade. Meu interesse nesse ensaio é fazer uma análise da espiritualidade do que aqui chamo de ateísmo humanista, que Michael Onfray chamou de “Ateísmo Cristão”, e Alain de Botton, por sua vez,o cunhou como “Ateísmo 2.0”. Uma das marcas desse ateísmo é seu apreço pela vida, pela humanidade, pelo natural, e a possibilidade de viver uma espiritualidade a partir desse plano mais horizontal e secular, uma “espiritualidade sem Deus”. Porém, ao mesmo tempo em que afirmam a descrença em Deus, esses ateístas não querem perder de vista valores éticos, humanistas, bem como a riqueza cultural do ocidente cristão. Em que medida ele se aproxima e em que medida quer se emancipar do cristianismo? Essa é a questão principal desse ensaio.

PALAVRAS-CHAVE Espiritualidade; Ateísmo; Humanização; Religião; Cultura.

Introdução Que seria o ocidente sem o cristianismo? Que seria o mundo sem seus deuses? Ser ateu não é razão para ser amnésico. A humanidade é uma: a religião faz parte dela, a religião também, e nem uma nem outra são suficientes. (Comte-Sponville, 2007, p. 10)

“A era do Espírito”, é como Harvey Cox (2009) chama o tempo ou a época em que atualmente vivemos na era cristã, fazendo frente a duas épocas anteriores: a primeira, a “Era da fé”, que remonta ao tempo de Jesus e dos primeiros discípulos e, a segunda, a “Era da crença”, quando os líderes da igreja passaram a formular programas de orientação aos neófitos, substituindo a fé em Jesus pelas crenças ou doutrinas a seu 1

respeito. Essa era, na visão de Cox, dominou aquilo que chamamos de cristandade por quase vinte séculos, ainda que durante esse tempo muitas pessoas tenham vivido a fé no sentido da primitiva era1. E a razão pela qual ele denomina o momento vivido em boa parte do século XX como sendo do “Espírito”, deve-se a, pelo menos, dois motivos: o processo de renovação do cristianismo através de movimentos de protesto que surgiram possivelmente de um cansaço em relação à religião (racionalista) dos dogmas, celebrando, em contrapartida, essa volátil e misteriosa expressão do divino que é a ação do Espírito Santo – sendo o movimento pentecostal e seus inúmeros derivados ainda talvez o mais conspícuo exemplo; e um movimento, paralelo a este, de pessoas que também não se identificam com esta religião institucionalizada, mas que querem se denominar como “espirituais”. Torna-se cada vez mais comum ouvir por aí pessoas dizendo coisas como “não sou religioso, mas me considero uma pessoa espiritual”, ou “detesto a religião e a igreja, mas continuo gostando de Jesus”, de Buda, de Confúcio, e assim por diante. “Espiritualidade”, nesse contexto, torna-se um termo cada vez mais polissêmico, uma vez que abriga cada vez mais concepções ou práticas diferentes e que não se reduzem mais ao universo cristão ou religioso. Cox explica que, para ele, existem três razões pelas quais este termo passou a ser bastante usado: (a) porque ainda é uma forma de protesto, representando uma moção que cresce por todos os lugares contra as pressões e abusos da “religião”; (b) porque representa uma tentativa de muitos em dar voz à reverência e maravilhamento diante da complexidade da natureza; (c) porque reconhece as cada vez mais finas camadas de separação entre as diferentes tradições, e se fixa mais no presente e no futuro que no passado (COX, 2009, pp. 13-14). Como consequência, a espiritualidade não só passa a designar um amplo espectro de práticas que denotam uma busca pelo transcendente, mas também foi absorvida por grupos de pessoas que não querem mais (ou apenas) uma espiritualidade da transcendência, mas também da imanência, uma espiritualidade que invade e é sorvida 1

É obvio que estas designações podem ser problemáticas se as pensarmos como eras estanques ou fechadas. Não me parece ser esta a intenção de Cox, que, ao contrário, está pensando mais em termos de que tipos de mudanças ou tendências o cristianismo passou ao longo de sua história. Mas, para sermos justos, precisamos considerar que, embora seja possível de fato localizar historicamente as características identificadas por Cox e que, supostamente, fariam jus a tais ou quais conceituações, elas no fundo se interpenetram, uma vez que não estamos apenas falando de uma religião institucionalizada e que detém o monopólio do sagrado, mas da vida e de fé de pessoas. Portanto, estas “eras” fazem mais sentido se compreendidas desde o prisma de sua dinamicidade, o que quer dizer: ainda hoje devem existir pessoas que vivem em uma ou mais dessas eras ao mesmo tempo.

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pelo secular, pelo natural e pelo comum da vida, que cruza as fronteiras entre o sagrado e o profano e tem a ver, sobretudo, com a busca humana pelo seu próprio florescimento e felicidade. Isto é o bastante para justificar o interesse neste tema pelo grupo que aqui chamarei de ateístas humanistas, e que Alain de Botton (2011b) chamou de “ateísmo 2.0” – retornarei a ele adiante. Entretanto, meu interesse aqui reside não no ateísmo em si, mas no que eles têm dito a respeito de espiritualidade,e suas possíveis relações com o escopo anterior em que essa palavra aparece (e aqui me refiro principalmente ao escopo cristão do ocidente). O Deus que Nietzsche disse estar morto, morreu mesmo? Quando se pensa em ateísmo, por exemplo, logo pode vir à mente a figura de Nietzsche, que não foi o primeiro, mas talvez o mais contundente e decisivo ateu que a modernidade do século XIX e quem sabe do XX conheceu. Também é corriqueira a lembrança de sua famosa declaração, que aparece em pelo menos dois de seus livros – A gaia ciência e Assim falava Zaratustra – de que “Deus está morto”. A passagem exata no primeiro livro diz assim: “Os deuses também se decompõem. Deus morreu! Deus continua morto! E fomos nós que o matamos” (NIETZSCHE, 2008, p. 150). O sentido literal de uma passagem extraída de seu contexto não basta para entender que Deus é esse rejeitado por Nietzsche. Há algo que ele diz adiante nesse livro que pode ser esclarecedor nesse momento e para fins dessa discussão. Leiamos outra vez esse filósofo: Considerar a natureza como se fosse uma prova da bondade e da providência divinas; submeter a história ao crédito de uma razão divina, como testemunho constante de uma ordem moral do universo e de uma finalidade; interpretar nosso destino, como o fizeram durante tanto tempo os homens piedosos, vendo nele sempre a mão de Deus que dispensa e dispõe tudo em vista da salvação de nossa alma: aí estão as maneiras de pensar que hoje estão ultrapassadas, que têm contra elas a voz de nossa consciência que, no julgamento de toda consciência delicada, passam por inconvenientes, desonestas, por mentira, feminismo, covardia – e essa severidade, mais que qualquer outra coisa, faz de nós bons europeus, herdeiros da mais longa e da mais corajosa vitória sobre si mesma que a Europa já tenha conquistado (Ibid., p. 269, grifos meus).

Aqui se pode notar um Nietzsche bastante orgulhoso do serviço que ele, como “bom europeu”, acreditava prestar à Europa – já no final do século XIX – ao constatar a “morte de Deus”. Considerava isso um ato de bravura e coragem que viria salvar a Europa da pusilanimidade dos “homens piedosos”. Então, voltemos à pergunta anterior: que Deus é esse que ele declara como “morto”? Pela primeira parte da passagem pode3

se inferir que é ao “Deus moral”, aquele que servia como fundamento e justificativa para todas as ações dos religiosos, inclusive as más ações, e que, além de ter criado o universo, deveria levar o crédito também por colocar sua mão em todas as coisas e determinar o destino da humanidade. Na perspectiva de Harvey Cox (1970, p. 10), “Nietzsche percebeu corretamente que um Deus vampiro que não permita ao homem ser um criador deve ser morto, e de bom grado realizou ele mesmo o deicídio”. Fica claro que, segundo essa interpretação, pelo menos em tese Nietzsche não briga com oDeus em si (e nem poderia, afinal ele não acreditava em sua existência), mas briga com uma ideia de Deus sustentada pelo teísmo, ou seja, com uma teologia – até por isso ele se refere a “maneiras de pensar” ultrapassadas. Esse parece ser um mal congênito da teologia em tom metafísico (essencialista): fala-se de Deus tendo-se a ilusão de poder expressar o original. Quando fala de um atributo de Deus, por exemplo: “Ele é Todo-Poderoso”, é como se aquele atributo, isto é, aquela linguagem, nos conduzisse diretamente a essência do eterno. Além de tudo, toda linguagem que tenta aprisionar, dar conta ou falar em termos absolutos sobre algo, é uma linguagem exclusiva: não admite outras interpretações, leituras ou experiências. Apenas aquela (a sua) expressa, de fato, quem Deus é, o que diz em numa escritura sagrada, e qual é a sua vontade para a humanidade. Ao que parece, o que a assunção filosófico-teológica da morte de Deus – da parte de autores como Gianni Vattimo e John Caputo, por exemplo – quer fazer é precisamente denunciar essa pretensiosidade de se estabelecer uma fala normativa e única sobre Deus, e liberar uma nova experiência e um novo falar, não em termos metafísicos, mas metafóricos.Como explica Alessandro Rocha (2010, p. 52), “Nietzsche não declara a morte de Deus; ele constata sua morte”. A morte de Deus, nesse sentido, é a morte do fundamento, a morte da metafísica, a constatação de morte de tudo o que, sendo relativo, coloca-se diante de nós, ou pior ainda, por nós mesmos, na condição de absoluto: a lei, a física, a gramática, os dogmas, a verdade. De acordo com John Caputo (2005, p. 80), “a declaração da „morte de Deus‟ tem como finalidade decapitar tudo aquilo que se atreva a se colocar a si mesmo em Maiúsculas, o que incluía não apenas a fumaça e o incenso dos mistérios cristãos, como qualquer coisa que reivindique ser a Palavra Final”. E hoje, como ainda ressalta Caputo (Ibid., p. 94), o pluralismo religioso e a proliferação das mais estranhas e quase inomináveis crenças de todo tipo, não serve para rechaçar, mas para confirmar a “morte de Deus” no sentido nietzschiano. Isso passa inclusive pela tese defendida por Gianni 4

Vattimo (2004, p. 12), de que, à luz do que ele chama de situação pós-moderna, com a morte deste “Deus fundamento último”, torna-se possível reencontrar com mais vigor a fé cristã. Isto, pois, segundo ele, “Se Deus morreu, ou seja, se a filosofia tomou consciência de não poder postular, com absoluta certeza, um fundamento definitivo, então, também não existe mais a „necessidade‟ de um ateísmo filosófico”. O que o ateísmo filosófico (ou contra-filosófico) de Michael Onfray questiona, por outro lado, é precisamente a eficácia que essa declaração nietzschiana da “morte de Deus” teve/tem sobre a realidade histórica dos séculos XX e XXI. Assim, ele inicia o primeiro capítulo de seu Tratado de ateologia (2014) perguntando: “Deus está morto? Ainda é preciso ver... Uma tal boa notícia continua produzindo efeitos solares dos quais continuamos esperando, e em vão, a menor prova” (ONFRAY, 2014, p. 3). Onfray parece acertar em seu questionamento de que, enquanto as trombetas do apocalipse ateísta e pós-cristão anunciaram a morte de Deus, as evidências conseguintes parecem ter sido contrárias: renasceram com mais vigoro sagrado, o divino, o religioso e, mais recentemente, a espiritualidade. Um exemplo dessa virada pode ser encontrado no próprio cenário da morte de Deus nos anos 1960. Em 8 de abril de 1966, a revista norte-americana Time, uma das mais conhecidas e lidas do mundo, trazia na capa a pergunta: “Deus morreu?” (Is God dead?). John T. Elson assinou o artigo da capa, que ele levou cerca de um ano para terminar, tempo que passou entrevistando líderes religiosos e teólogos. Depois de publicado, esse número “se tornou símbolo da tumultuosa década de 1960” (MOHLER, 2009). Causou um rebuliço somente equalizado pela afirmação de John Lennon, anos depois, de que os Beatles eram mais populares que Jesus. O editor da revista recebeu mais de 3.500 cartas de leitores (sacerdotes e religiosos em sua maioria) furiosos pelo conteúdo do artigo, e aquele número acabou se tornando recorde de vendas da revista em mais de vinte anos, provando que o tema “Deus” ainda causava espécie mesmo entre aqueles que anunciavam sua morte – bem, se não causasse, não haveria razão de ser para tal anúncio. Em 2008, a Los Angeles Times nomeou a “Is God dead?” como uma entre as dez capas de revista que mais chocaram o mundo. Sobre o que tratava o artigo? Gostaria de começar citando um trecho: Deus está morto? Essas três palavras representam uma intimação para uma reflexão sobre o sentido da existência. Não mais se trata de uma questão de zombaria dos céticos para os quais a descrença é o teste da sabedoria e Nietzsche é o profeta que ofereceu a resposta correta há um século. Dentro do

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próprio cristianismo, agora confidentemente se renovando tanto na forma quanto no espírito, um pequeno grupo de teólogos radicais argumentaram que devemos aceitar o fato de que Deus está morto e seguir a vida sem ele. Como essa questão se diferencia da antiga afirmação de que Deus não existe e nunca existiu? A tese de Nietzsche era de que homens autocentrados e batalhadores mataram Deus e estabeleceram isso. A atual turma da morte de Deus acredita que, de fato, Deus está absolutamente morto, mas propõe esposar e escrever uma teologia sem theos, sem Deus. Pensadores cristãos menos radicais sustentam que pelo menos o Deus moldado segundo a imagem do homem, o Deus sentado no céu, está morto e que – como tarefa central da religião hoje – eles buscam imaginar e definir um Deus que possa tocar as emoções e envolver as mentes humanas (ELSON apud. MOHLER, 2009, tradução minha).

O artigo sinalizava mudanças significativas que vinham ocorrendo na Europa e nos Estados Unidos nessa época, e revelou ao grande público um movimento teológico que estava crescendo e que ficou conhecido como teologia radical ou da morte de Deus, que tinha como alguns de seus representantes os teólogos Thomas J. Altizer e William Hamilton, que juntos escreveram o livro A morte de Deus (1967). Afirma que, nesse caso, não eram ateístas ou céticos que encabeçavam o movimento, mas teólogos, que constatavam a morte de Deus, na cultura e na religião, e postulavam uma teologia desintoxicada das imagens e ideias de Deus provenientes do teísmo e da prática cristã tradicional, que falasse de Deus em outros termos, de uma maneira nova, menos transcendente e mais imanente, e que pudesse aproximar esse Deus teísta – o Deus da providência, que de longe governa o mundo e dita como as coisas são e têm que ser aqui embaixo – das mentes e corações de homens e mulheres vivendo em uma situação secular. Não se tratava, obviamente, de mudar quem Deus é, mas de transfigurar sua imagem de modo que fizesse sentido a esse ser humano secular. A teologia da morte de Deus causou grande burburinho no meio teológico e algum impacto na cultura, bastante difícil de mensurar na verdade, mas até o final dos anos 1960 já havia perdido muito de seu vigor original, graças ao surgimento de novos movimentos de espiritualidade pós-modernas ao estilo “nova era”, mostrando que Deus até podia estar morto para alguns acadêmicos, teólogos e filósofos, mas dificilmente morreria na experiência religiosa de pessoas comuns. Tanto que, em 1969, a Time, seguindo as tendências do momento (afinal, o objetivo é vender revista tanto quanto, ou menos que, formar opinião), lançou um número cujo título de capa era “Is God coming back to life?” (Deus está voltando à vida?). O editor à época fez referência ao sucesso da capa de 1966 sobre a morte de Deus, mas que, naquele instante, ela se encontrava em declínio uma vez que os teólogos da morte de Deus caíram em silêncio, enquanto ministros de todas as denominações embarcavam em novas e dinâmicas maneiras, 6

trazendo o divino de volta à arena pública. Se aqueles teólogos estavam silentes, afirmam Robbins e Crockett (2015, p. 2), o pastor e evangelista Billy Graham estava em alta e sua notoriedade na América do Norte e no mundo todo só crescia, ao passo que ele se tornou conselheiro espiritual de uma sucessão de presidentes por cerca de 50 anos, começando com Dwight Eisenhower até George W. Bush. A morte de Deus, nesse sentido, parece ter sido abafada por um “reavivamento” pelo qual passou o cristianismo, bem como com o surgimento de novas expressões de religiosidade pós-modernas. Onfray (2014, p. 4) então completa sua ideia dizendo que “Deus não está morto nem moribundo – ao contrário do que pensam Nietzsche e Heine”. Não está morto, segundo ele, porque “uma ficção não morre, uma ilusão não expira nunca, não se refuta um conto infantil” (Ibid.). Levada às últimas consequências, o evento da morte de Deus só poderia acontecer através do evento da morte do homem, de modo que: “O último Deus desaparecerá com o último dos homens” (ONFRAY, 2014, p. 5). Conquanto a vida cotidiana dos homens ainda for possibilitada por essa “ficção útil”, como a entende Onfray, os postulantes da morte de Deus continuarão rufando seus tambores sem sucesso, enquanto Deus ou os deuses continuarão a ser forjados.Nos dizeres de Leron Shults (2014, p. 1), “The gods are born – and we have borne them” (Os deuses são nascidos – e nós demos à luz a eles).Pois, como explica Onfray (2014, p. 6), “a geração do divino coincide com o sentimento angustiado diante de uma vida que termina”. Não obstante, esse também parece ser um cenário oportuno para um ateísmo filosófico que quer se recriar ou mudar de tom, como veremos adiante. Um ateísmo humanista ou “2.0” Na última década ou mais, graças à popularização de obras como Deus, um delírio (2006), de Richard Dawkins, um ateísmo de tom militante passou a ocupar o cenário do debate público sobre ciência e religião. À semelhança do que fazem os fundamentalistas no campo da religião (tentando provar que “os outros” estão errados e só eles possuem “a verdade”), o ateísmo militante surge com o propósito de evidenciar ao mundo que a religião é um mal desnecessário, pois, além de os religiosos, sobretudo os cristãos, não terem conseguido provar que Deus existe, ainda têm causado enormes males à humanidade – vide as cruzadas, inquisição, guerras santas, perseguições religiosas e terrorismos. Além de Dawkins, podemos incluir nesse bojo a crítica de ateístas como Lawrence Krauss, Sam Harris, Christopher Hitchens, dentre outros– que declaradamente não são objetos de minha preocupação aqui. 7

O curioso é que o apologeta cristão, e um dos adversários de Dawkins nesse debate, Alister McGrath coloca esses nomes acima citados como representantes do “novo ateísmo”, percepção da qual não compartilho por várias razões, e a que mais me interessa aqui foi apontada pelo próprio McGrath (2012, p. 169-174), quando ele diz que esses ateístas se anunciam como propositores de um “novo iluminismo”, marcado por um “humanismo secular”, e um tremendo apreço pelo modelo racional e científico, que, por sua vez, deram origem ao velho ateísmo moderno. Em suma, esse ateísmo militante e divulgador da ciência nada tem de “novo” no sentido de que repete e varia os tons da velha canção ateísta de Freud, por exemplo, que além de ateísta, era um firm believer na emancipação que a ciência poderia trazer à humanidade, provocando o propalado “fim da religião”. Lendo, porém, filósofos também declaradamente ateus como André ComteSponville (2007), Luc Ferry (2010), Robert C. Solomon (2003) e Alain de Botton (2011), percebi que o ateísmo filosófico tem assumido outras facetas ou características, cujas marcas, para mim, são o pluralismo, o interesse em espiritualidade, uma paixão pela vida, e uma profunda reverência aos mistérios da existência e do universo. 2 Estas são distinções não apenas da filosofia ateísta destes autores, mas de sua espiritualidade. Uma marca desses novos ateus é precisamente a combinação de sua descrença em Deus (ou no transcendente) e sua paixão ou interesse pela vida e espiritualidade “puramente” humanas – e por isso escolhi dialogar com eles aqui, particularmente intrigado por seu rechaço de Deus (ênfase negativa), aliado a um forte anseio pela espiritualidade e seus derivados (ênfase afirmativa ou positiva) (Cf. PORTUGAL; COSTA, 2010, p. 133). Que tipo de espiritualidade é esta que se delineia nos escritos destes ateístas humanistas? O que me chama atenção nessa espiritualidade ateísta, em primeiro lugar, é sua concepção de que a vida é tanto dom quanto mistério, e que não se confina em espaço, pensamento, doutrina ou religião alguma. Comte-Sponville em O espírito do ateísmo (2007) defende que crer ou não em Deus não altera a essência de nosso devir ou moral, tampouco o respeito à vida que precisamos nutrir. Segundo ele: Quer você tenha ou não uma religião, isso não o dispensa de respeitar o outro, sua vida, sua liberdade, sua dignidade; isso não anula a superioridade 2

Não estou, em momento algum, querendo inferir que eles fazem parte de uma mesma corrente filosófica, tampouco que o ateísmo humanista aqui referido seria uma corrente filosófica. Nesse caso, é apenas um rótulo que encontrei pois ele endereça uma concepção que todos eles compartilham: a descrença em Deus associada à crença no homem e na vida, nos valores, na ética e no legado que as religiões nos deixaram, sem que tenham de subscrever às suas doutrinas.

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do amor sobre o ódio, da generosidade sobre o egoísmo, da justiça sobre a injustiça. O fato de as religiões terem nos ajudado a compreender isso faz parte de sua contribuição histórica, que foi grande. Isso não significa que elas bastem para compreendê-lo ou detenham o monopólio desta compreensão. Bayle, desde o fim do século XVII, havia salientado vigorosamente: um ateu pode ser virtuoso, tanto quanto um crente pode não sê-lo (COMTESPONVILLE, 2007, p. 49).

Além disso, de acordo com a leitura de Portugal e Costa (2010, p. 134), ComteSponville procura demonstrar que, de fato, a religião historicamente assumiu a responsabilidade de “forjar unidade social em torno de valores e regras morais e culturais”, o que contribuiu para que o ser humano se tornasse o que ele é (eis uma afirmação positiva); ao mesmo tempo, ele declara que “é possível a comunhão social e a fidelidade a valores e normas morais e culturais sem a referência a ditas realidades transcendentes, particularmente, sem referência a um Deus pessoal”. Em outras palavras, podemos aprender e aprendemos com os valores apregoados pelos monoteísmos, mas isso não significa que devemos seguir suas orientações estritas, tampouco atribuir honra a Deus pelo bem que fazemos. A responsabilidade reside inteiramente no ser humano. A essa busca por uma vida virtuosa ou bondosa – no panorama contemporâneo em que a palavra de ordem, entre os humanistas, políticos, ateístas e alguns teólogos, tem sido “laicidade” – Luc Ferry decidiu chamar de “Divinização do humano” em seu livro com título sugestivo: O homem Deus ou o sentido da vida (2006). De modo semelhante a Comte-Sponville, ele afirma que a mensagem da ética e da dignidade humanas são certamente herdadas do cristianismo, mas questiona o dito de que é preciso ser cristão para afirmá-la. Segundo ele, “o respeito pela pessoa humana, a preocupação com o outro, com sua dignidade ou com seu sofrimento não são mais princípios monopolizados pelo cristianismo” (FERRY, 2006, p. 65). Para Ferry, o papel do humanismo não é o de servir como cemitério de espiritualidades, mas sim o de criar uma espiritualidade autêntica. Em suas palavras: Pode ocorrer, no exato oposto desses lugares-comuns ordinários das ideologias antimodernas, que o humanismo, em vez de abolir a espiritualidade, mesmo que em benefício da ética, nos dê acesso, pelo contrário e pela primeira vez na história, a uma espiritualidade autêntica, livre de seus ouropéis teológicos, enraizada no homem e não em uma representação dogmática da divindade. O que é novo no humanismo não são os valores que ele promove... O que é novo, em troca, é que sejam pensados a partir do homem, e não deduzidos de uma revelação que o precede e engloba. O que é novo, sem dúvida, é a transcendência indefinível que esses valores testemunham se 9

descobre, por sua vez, no coração do ser humano e que ela possa, desse modo, se acordar ao princípio dos princípios constitutivos do humanismo moderno: o da rejeição dos argumentos de autoridade. (FERRY, 2006, p. 38).

Alain de Botton, em Religião para ateus (2011a),demonstra uma intencionalidade ainda maior que a que se pode notar nas falas de Comte-Sponville e Ferry, ao não apenas reconhecer a contribuição das religiões à humanidade, mas também defender que deve ser possível que um ateu resoluto mantenha-se firme em suas convicções e, ao mesmo tempo, “considere as religiões úteis, interessantes e reconfortantes – e ter alguma curiosidade quanto às possibilidades de trazer algumas de suas reflexões e práticas para o campo secular” (BOTTON, 2011a, p. 12). A isso ele resolveu denominar, em uma palestra para o TED Talks, “Ateísmo 2.0”, que ele entende como uma forma de lidar com as religiões ao mesmo tempo respeitosamente e impiedosamente: respeitosamente por acreditar que há uma herança e um legado que as religiões nos deixaram que precisam ser valorizados e ressaltados em prol da vida secular; impiedosamente, pois o objetivo não é fortalecer as religiões em si, e sim de “roubar” o que nelas há de valioso a fim de construir uma sociedade melhor e uma vida melhor, sem ter de abraçar uma doutrina qualquer ou afirmar a existência de Deus. Em suas palavras, If you don't believe in a religion, there's nothing wrong with picking and mixing, withtaking out the best sides of religion. And for me, atheism 2.0 is about both, as I say, a respectful and an impious way of going through religions and saying, “What here could we use?”.(BOTTON, 2011b)

Ora, é precisamente isto que diferencia os ateus humanistas de muitos do moderno ateísmo e até mesmo de muitos intelectuais do moderno cristianismo: a honestidade de reconhecer que, primeiro, o fato de não acreditarem na existência de Deus não lhes dá o direito ou capacidade nem de provar que Deus não existe, tampouco de achincalhar a fé de quem nele crê; segundo, o fato de afirmarem com todas as forças a secularidade não significa ignorar, mas respeitar as conquistas que religiões como o cristianismo promoveram no mundo, não enfatizando apenas, como fazem os ateus militantes, os evidentes “males” que também provocaram. E mais: querem afirmar sua espiritualidade a despeito de sua irreligião, pois, para eles, espiritualidade e religião não são a mesma coisa, tampouco religiosidade e religião.

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Embora, normalmente, sejam termos que se confundam, eles são sim diferentes. Religião tem a ver com a busca pelo fundamento último, mas normalmente se retém em uma busca organizada, institucionalizada e dogmatizada. E ainda que o “sentimento religioso” ou a religiosidade possam estar presentes dentro das religiões, não se confinam nelas. Nesse sentido, uma pessoa pode ser não religiosa ou mesmo ateísta e, ainda assim, não matar a religiosidade, que pode ser descrita como esse anseio inerente ao humano pelo transcendente e/ou, no caso dos ateus, esse assombro e reverência diante do mistério da vida, que conflui para o desejo de que o espírito humano se desenvolva e floresça cada vez mais, com ou sem Deus. Nisto se resume a espiritualidade desse ateísmo humanista. Por isso, eles parecem professar uma crença semelhante a de Hermann Hesse (1971, p. 103) em seu livro Minha fé, onde ele declarou: “A religiosidade é-me sempre simpática, enquanto não suporto as teologias autoritárias com a reivindicação que cada uma faz de ser a única válida”. Outra coisa que me chama atenção na espiritualidade ateísta é seu apelo ou desejo pelo natural, pelo humano, pela vida. Por que isso me chama atenção especificamente, já que não há muito de original no apelo em si? Ora, porque no próprio cristianismo sempre houve uma tendência a um apego excessivo ao transcendente e, como corolário, de certo desprezo para com o imanente. Nietzsche disse que o cristianismo é um platonismo para o povo – e não penso que esta alegação seja justa para com o escopo bíblico da tradição judaico-cristã, cuja premissa básica é a de que a fé implica em uma opção incondicional pela vida e o reflexo disso no dia a dia, na vida concreta de pessoas concretas. No entanto, é manifesto que nem todos os religiosos dessa tradição a compreendem assim. Então, é sintomático que isto apareça precisamente do lado ateísta, pois estes ateus almejam uma espiritualidade naturalista, enraizada no mundo, desembocando no cotidiano, uma vez que, como declara Robert Solomon (2003, p. 39, grifo no original), para eles “o mundo espiritual não está em parte alguma senão aqui, seja o que for que esse „aqui‟ designe”. Desse modo, sua definição de espiritualidade requer reflexão, reflexividade e paixão pelo aqui da vida, de modo que ele resume a espiritualidade naturalizada numa única expressão, ela é: “o amor reflexivo à vida” (SOLOMON, 2003, p. 33). Há não apenas uma afirmação, mas também um protesto nesta declaração. Primeiro em dizer que espiritualidade não é ausência da reflexividade e do pensar, mas, pelo contrário, tanto atrai quanto se alimenta de uma postura reflexiva no enfrentamento aos problemas 11

existenciais, morais e sociais que o ser humano enfrenta dentro de um determinado contexto. O protesto também se revela pela insistência na afirmação da vida, de uma espiritualidade da vida, o que não me parece uma postura gratuita, mas se origina também da falha da espiritualidade cristã ocidental, mais fundada na negação. Considerações finais Ao que parece, a proposta desse novo ateísmo é, em parte, a realização (talvez inconsciente e apenas sintomática) do ideário dos velhos e novos ideólogos da morte de Deus, com a diferença de que os primeiros desejam fazer isso sem precisar recorrer a qualquer perspectiva sobre o divino, e os segundos pretendiam (e pretendem) fazê-lo desde uma perspectiva renovada do divino (mesmo que elegendo uma linguagem “naturalizada”). Além do que, essa espiritualidade ateísta se assemelha à espiritualidade fluída e pluralista de pessoas que acreditam em Deus, mas não reclamam exclusividade; não estão mais interessados em saber de um Deus que obrigue ninguém à fé sob a pena de arder no fogo do inferno, ou de viver eternamente sem bondade, sem beleza e sem vida. Ela se baseia, portanto, na afirmação do humano em detrimento do divino, ou do divino-homem, como parece indicar Luc Ferry. A dimensão valorativa por eles preconizada, como vimos, dificilmente poderá ser desassociada daquela historicamente defendida pelos cristãos, com base no que “Deus disse” em sua Escritura Sagrada. Por essa razão é que Michel Onfray chamou seus colegas ateístas, mais particularmente Comte-Sponville e Luc Ferry, de “ateístas transcendentais” ou “ateístas cristãos”. No caso deles, “a negação de Deus não é um fim, mas um meio para visar uma ética pós-cristã ou francamente laica”. Caracteriza-se, como prossegue ele, por uma negação de Deus “que afirma ao mesmo tempo a excelência dos valores cristãos e o caráter insuperável da moral evangélica” (ONFRAY, 2014, p. 42). E o que distingue o ateu cristão do cristão crente é “a escrita imanente do mundo”, isto é, que pretensamente exclui a transcendência de seu discurso. Entretanto, como expressa Onfray (Ibid., p. 43, grifos no original): (...) o humanismo transcendental de Luc Ferry exposto em L’HommeDieu [O homem-Deus], a ética cristã e as grandes virtudes de André Comte-Sponville movem-se num terreno comum: a caridade, a temperança, a compaixão, a misericórdia, a humildade, mas também o amor ao próximo e o perdão das ofensas, a outra face estendida quando se é golpeado uma vez, o desinteresse pelos bens deste mundo, a ascese ética que recusa o poder, as honras, as riquezas como

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tantos outros valores que desviam da sabedoria verdadeira. Essas são as opções teoricamente professadas...

Ao ateísmo humanista – por mais que seu relativismo e, como dizem os católicos, o espírito irênico que seus escritos transmitem deem a ele um tom original e provocativo –, parece difícil mesmo fugir dessa dupla incoerência de nem ser totalmente ateu, nem totalmente cristão ou religioso, mas uma espécie de mix das duas coisas funcionando no modo flex; uma forma de agradar os gregos sem arrumar briga com os troianos – e no fim acabará sendo criticado tanto por ateístas quanto por cristãos mais radicais. Além do que, a espiritualidade ateia ou o ateísmo místico que, por exemplo, Comte-Sponville propõe – que afirma o humano, como o humanismo e o iluminismo fizeram, no sentido de sua individualidade e autonomia –, parece entrar em choque com a sua própria proposta de um vínculo social mais amplo e uma atitude de “comunhão e fidelidade” a partir de sua vivência, como aponta a crítica de Portugal e Costa (2010, p. 142, 143). Em todo caso, num mundo cada vez mais eivado de pluralismos e, ao mesmo tempo, de intolerância, violência e fundamentalismos, o ateísmo humanista pode ser uma proposta que venha favorecer a possibilidade do diálogo e debate acadêmicos (ou não) entre ateístas e religiosos, até em função dos possíveis adeptos que ele vem conseguindo graças ao sucesso editorial de seus representantes perante o grande público (PORTUGAL; COSTA, 2010, p. 143).

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