Um baritono nos trópicos. versão em português para palestras

June 14, 2017 | Autor: Alessandra Vannucci | Categoria: Emigration Research, Migraciones Internacionales, Migrazioni
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O delírio lírico
O Brasil, como a Argentina e o Uruguai, desde o início do século XX, havia acolhido navegantes, missionários, artistas e muitos exilados italianos: da Toscana, do Piemonte, de Vêneto e de Gênova – para todos, porto de partida – fugiram patriotas ilustres (como Garibaldi) que desenvolveram pela América Latina a sua missão de apoio aos movimentos revolucionários. O breve Reino da Itália, instituído por Napoleão, reforçava nos patriotas a aspiração à Independência; a declaração repentina da Independência do Brasil, proclamada a 7 de setembro de 1822 por D. Pedro I, demonstrava a possível realização do sonho frustrado em pátria. Enquanto o século avançava, as centenas de viajantes se tornavam milhares de emigrantes, por vezes instruídos, mas, em sua maioria, analfabetas levados a atravessar o oceano pela miragem de uma nova vida num país jovem, independente e lançado numa corrida febril em direção ao progresso. Muito antes da América do Norte, o Sul se tornou (também) uma miragem publicitária graças à qual os empresários das companhias de navegação, que controlavam a rota, lucravam com o gigantesco mercado negro dos êxodos causados pela fome. A partir da metade do século XIX, com a inauguração das linhas a vapor saindo de Gênova em direção aos principais portos latino-americanos, a viagem transatlântica em primeira classe se destacou nos jornais como produto de luxo; agentes espalhados em todo o norte da Itália recrutavam trabalhadores sob contrato, garantindo condições ideais, porém no outro hemisfério. A viagem podia durar 40 dias e não era desprovida de riscos; no entanto, nem as condições de extremo desconforto da travessia nem a incerteza do futuro em um "outro" tão distante quanto desconhecido pareciam desencorajar quem estava pagando por um quinquênio de péssimas colheitas, de taxas crescentes e de insurreições contínuas, reprimidas por exércitos estrangeiros. A maior parte dos fugitivos fugia do serviço militar, mas uma espécie de fanatismo migratório contagiava também comerciantes e camponeses. Ignorando as condições de escravidão às quais eram reduzidos os emigrantes, descrições bucólicas dos efeitos da "lei da terra", que em 1850 aboliu no Brasil as antigas sesmarias hereditárias, alimentavam o imaginário de terra prometida, onde juntamente com os lotes férteis se distribuíam vacas e farinha branca. E quem, podendo ficar rico do outro lado do oceano, ficaria no país a cair morto de fome, de cólera ou de guerra? Para as legiões de deslumbrados, o Eldorado estava nos trópicos.
Mesmo que declarassem no desembarque uma profissão que mal conheciam –sapateiro, vinhateiro, lutier – muito se arranjavam depois como charlatães, engraxates, sanfoneiros: artes ambulantes no limiar da mendicância. De modo que o emigrante italiano veio a ser considerado hábil a qualquer ofício manual e, por pressuposto, dotado de vocação artística, especialmente para o canto. A música os dignificava. Já em 1843, o casamento do Imperador D. Pedro II com a princesa napolitana Teresa Cristina Maria havia contribuído a propagar a admiração pelas artes italianas como moda dominante; isso facilitava a inserção de imigrantes. Se o francês era língua indispensável nas conversas elegantes, o italiano era obrigatório na formação musical das moças. Com o intuito de lançar talentos na arte do belcanto, o Imperador havia subsidiado a fundação, em 1841, do Conservatório Dramático e Musical Brasileiro e, em 1857, da Academia Imperial de Música e Ópera, que manteve pessoalmente até 1863. O governo financiava as temporadas líricas mediante loterias ou sociedades de amadores, porque "além do deleite público e de um orgulho nacional bem fundado, também a tranquilidade, a moral e a paz, os bons costumes, tudo reclama a proteção do governo em favor de uma Companhia italiana" (Relatório de 22/07/1835 do Ministério do Império). O governo fez fronte com insólita diligência à sequela de incêndios que derrubaram, três vezes em dez anos (1851, 1856 e 1859), o único palco de Corte adaptado à ópera: o Teatro S. Pedro de Alcântara. A primeira vez, remediou construindo em três meses um palco provisório, dito, de fato, Teatro Provisório, inaugurado com quatro bailes públicos no Carnaval de 1852, a tempo para que não se perdesse a abertura da temporada da Companhia Lyrica Fluminense. O teatro, que devia servir por 3 anos, durou por 23, até que foi substituído pelo Imperial Teatro Pedro II, uma gigantesca construção em tijolos subsidiada por três loterias.
O gosto do Imperador pela lírica no âmbito de uma refinada cultura humanista, corroborava seu projeto de refundar a identidade do jovem Estado, emancipando-o do passado colonial. Sua predileção pela Itália como berço das artes promovia no imaginário dos italianos e brasileiros uma espécie de consanguinidade eletiva, expressa pelo escritor José de Alencar, em 18 de março de 1855, com a lembrança de quanto a cultura brasileira era devedora da "boa terra da Itália", principalmente pelos "artistas que daí nos tem vindo, e das belas noites de teatro que devemos a sua escola e aos seus gênios musicais" e com o auspicio de que "os bons espetáculos, o exemplo e o ensino de artistas talentosos beneficiem o estudo da música italiana entre nós, contribuindo ao crescimento de talentos nacionais" (Correio Mercantil). A Imperatriz acatou literalmente a sugestão concedendo bolsas de estudo para brasileiros particularmente dotados, como o compositor Carlos Gomes que, graças a esse incentivo, fez uma carreira fulminante em Milão. Natural que os imigrantes mais em evidência, especialmente se metidos a intelectuais (como aqueles que se reuniam na livraria de Francisco de Paula Brito, no Largo do Rossio, atual Praça Tiradentes, onde passavam as tardes João Caetano, Gonçalves Dias, Machado de Assis e José de Alencar) se empenhassem nas campanhas para o financiamento das temporadas de ópera italiana e para a organização de festas de acolhimento aos artistas. A livraria funcionava também com tipografia e box-office: ali se imprimiam e vendiam bilhetes, livretos bilíngues para as obras em cartaz e folhetos com as árias mais conhecidas. Anunciando a publicação, por obra de Paula Brito, do livreto bilíngue dos Arabi nelle Gallie, com "novo sistema interlinear" de tradução, o Diário do Rio de Janeiro auspiciava "tornar o italiano uma língua familiar a todos no Brasil, pois é incontestável: para poder apreciar a ópera, é preciso saber italiano" (28/01/1855). Assim, entre outras modas cosmopolitas da Corte, a paixão pelo belcanto virou delírio lírico que a todos contagiava e atraía frotas de cantores, franceses, alemães e italianos. "Aqui não se canta se não árias de ópera até nas missas. Bellini e Donizetti estão nos púlpitos" brinca o pintor francês Charles Ribeyrolles, em seu diário de viagem Brésil pictoresque publicado em Paris, 1861. "O piano faz barulho em todas as salas, invadiu tudo, até os depósitos de bananas. Apesar do calor, os brasileiros amam a arte, como nós". Entre todos os teatros "o mais procurado, mais rico e melhor instalado é o grande teatro lírico italiano" cuja direção "generosamente subvencionada, faz concorrência às academias de música mais afamadas da Europa; se nem sempre apresenta vozes frescas, acontece-lhe contar celebridades em seu elenco franco-italiano". CORTE Eis o problema: apesar dos esforços pedagógicos do Imperador, faltavam "vozes frescas", nacionais; a ópera era monopólio franco-italiano que José de Alencar considera "prejudicial aos interesses do público". Propõe, em 1 de abril de 1855, autorizar e financiar a concorrência que garantiria "melhores artistas" e produziria "dentro de alguns anos uma grande economia". Foi assim que o Imperador financiou em 1857 a fundação da Ópera Nacional, com a condição de que pelo menos metade de seu elenco fosse constituído por brasileiros nativos (fez exceção o maestro italiano Giannini, radicado no Rio de Janeiro há muitas décadas e professor no Conservatório Dramático, encarregado nada menos que da direção). E concorrência houve – o ápice se deu na metade de outubro, quando duas Normas estrearam ao mesmo tempo: uma no suntuoso Teatro S. Pedro, recém reconstruído depois do segundo incêndio, para sediar a Ópera Nacional; a outra no precário Teatro Provisório, sede da cia. Lyrica Fluminense – mas não durou duas temporadas. Após um terceiro incêndio do S. Pedro e a morte de Giannini, a Ópera Nacional foi extinta. O Provisório era um barracão com a plateia arredondada para hospedar também espetáculos circenses, com quatro ordens e 124 balcões, mais a galeria, tudo em cor rosa de gosto duvidoso. Vale dizer que, mesmo feio como era, possuía uma boa acústica, o que fez com que os empresários fizessem dele o templo dos diletantes. No mercado carioca que vinha se consolidando, nada, na década de 50, parecia capaz de concorrer com a lobby lírica franco-italiana. No projeto de construção da identidade nacional, o imperativo cosmopolita paradoxalmente acabava desqualificando as potenciais qualidades autóctones. A abertura dos portos havia acelerado o processo de internacionalização dos mercados de consumo. Da Europa se importavam vinhos e águas minerais, especiarias, perfumes, doces, tecidos, chapéus, bengalas, joias, modistas e modas de "primeiro mundo", assim como prostitutas mais refinadas e cantoras mais dotadas do que as locais. O perfume de lavanda francesa parecia incomparável: e os nobres mandavam as camisas para lavanderias em Paris. Um classificado de 1858 no Jornal do Commercio mostra o delírio xenófilo que contagiava o respeitável público da Corte: em uma cidade imersa na floresta, oferecia-se a amadores "uma grande porção de canários, melros, cochichos, rouxinóis e outros pássaros, todos bons cantores, com grande sortimento de gaiolas do mais apurado gosto e preços cômodos, tudo importado da Europa". Grandes obras imperiais, como "o encanamento do rio Maracanã, o telégrafo elétrico, a iluminação à gás, estrada-de-ferro deixaram de ocupar a atenção pública ante o fulgor de Madame Stoltz" (Jornal do Commercio, 25/06/1852). M.me Stoltz, a meio-soprano francesa que havia acabado de desembarcar. FIM DO CORTE Na ausência de campos esportivos e de um parlamento democrático, os diletantes (em grande parte estudantes, artistas e intelectuais) frequentavam os teatros na torcida por sua diva, fresca de sucesso nas capitais europeias. A paixão por M.me Stoltz, M.me La Grua ou por Augusta Candiani provocava verdadeiras batalhas campais a base de arremesso de legumes, desafios poéticos e estalinhos. Eram os tempos homéricos do teatro lírico, como os descreve Machado de Assis em seu folhetim mundano A mão e a luva: "Uma noite a ação travou-se entre a legião lagruísta e a falange chartonista, com tal violência, que parecia uma página da Ilíada. Desta vez, a Vênus saiu ferida do combate; um estalo rebentara no rosto da Charton-Demeur. O furor, o delírio, a confusão, foram indescritíveis". O extravagante fanatismo provocava reações distorcidas "tanto nos elogios como na censura: não é raro o caso de ver passar os espectadores de um partido a outro sem razão ou, melhor, por instigação daqueles que agem à surdina" insinua um cronista italiano (La Fama, 24/03/1856). Mas quem poderia desejar agir "à surdina" e porquê?
Era proibido ao público se exceder nos aplausos, proibido aos artistas atender repetidas chamadas à ribalta (em caso, a polícia poderia intervir e executar a prisão) porém a compra do ingresso dava o direito inalienável de patear, ou seja, bater os pés sobre o assoalho caso desaprovasse a execução, que, assim, era prejudicada e até interrompida. A ingenuidade dos diletantes acabava oferecendo um excelente álibi aos empresários, que executavam demissões sumárias por justa causa da pouca qualidade do artista pateado. Não surpreende que as cantoras menos amadas pelo público oferecessem bailes de máscara para promover seus partidos de torcedores, como o baile ocorrido no carnaval de 1855, no Teatro S. Januário, por uma (não sabemos quem) soprano italiana. Mas desventura semelhante aconteceu à diva Charton-Demeur, escriturada pelo empresário José Manoel de Araújo (lembrem este nome) em 1855 pela fabulosa quantia de 120.000 francos para uma única temporada. Poucos dias depois de sua chegada, porém, a diva já "fazia pirraça" (nos dizeres do empresário) enquanto pateada durante a Semiramide. Em seguida, para evitar confrontos com a segunda voz feminina (contralto Annetta Casaloni) Madame Charton se declarou doente de febre nos brônquios e cancelou três apresentações, provocando a ira dos assinantes. Ao retornar, Madame foi novamente pateada, mas dessa vez (segundo o Diário do Rio de Janeiro, 30/01/1855) sob o comando do empresário, já que a execução não dava motivo para tanto rigor; o espetáculo que acabou em tumulto. Os jornais começaram a debater sobre os limites de urbanidade que deveriam ser observados em um teatro que "se antigamente se frequentava para rir e fazer barulho, hoje é um lugar sério, sobremaneira o Lyrico, onde vamos para ouvir o canto e gozar do espetáculo do convívio de tanta gente distinta e belas mulheres, em um grande salão iluminado; tais emoções são próprias de uma seleta sociedade, enquanto a confusão criada nas galerias é inconveniente, ainda mais em presença de Suas Majestades Imperiais". Em março, a cantora deu novamente forfait bem na estreia do Trovatore, título que gozava da preferência dos diletantes e para assistir o qual foi preciso esperar o dia 7 de setembro, comemoração da Independência, enquanto no Campo da Aclamação, em frente ao teatro, havia torneio com cavalos, saltos mortais, charretes e até um balão aerostático. Humilhada pelo tratamento, no final do ano Madame regressou à França e seu nome foi substituído, nos cartazes da temporada, pelos de Emilia La Grua (meio-soprano) e de Anna de la Grange (soprano). No crédito de tenores, Camolli, Devoto, Gentili e Ballestra-Galli, todos nomes novos à prova de que o empresário não parava de perambular pela Europa à procura de talentos disponíveis a fazer sucesso do outro lado do oceano. Oferecia condições desvantajosas em relação ao modelo de escritura vigente na Itália (ver ROSSELLI, 1985): pagamentos mais baixos, descanso não retribuído, obrigação de aceitar novos papéis e retribuição por noite cantada. Além disso, uma vez desembarcados, caso o empresário não respeitasse as promessas, aos artistas ocorria não ter alternativas já que não havia outro palco para a ópera na Corte – fora o pequeno teatro S. Teresa de Niterói, dirigido pelo mesmo empresário. Passaram-se assim duas temporadas, até que um leitor, assinando-se "indignado", zombou do empresário Araújo que de Paris anunciava um programa "de primeiro mundo": "se nada temos de notável para mostrar aos estrangeiros, lhe mostraremos na cena lírica as suas celebridades, isso contratando um assombro de europeus que percebem ordenados fabulosos sem cantar" (Jornal do Commercio, 07/11/1858). Dois dias depois, Araújo defendia-se na Marmota Fluminense: "Achei aqui desacreditadíssimo o nosso Teatro Lyrico. Avaliei bem a força dos meus inimigos, que inundaram a Europa de cartas dirigidas a jornalistas e artistas e entrei no desempenho de minha missão. Escriturei para 1859 os melhores artistas da Europa, não tive de escolher entre aqueles que queriam vir ou não, porque nenhum me recusou escritura. Em 1959, o nosso Theatro Lyrico será o primeiro do mundo". Paula Brito, deu respaldo ao empresário, que também era seu amigo, garantindo aos leitores da Marmota que os jornais internacionais admiravam o Brasil e seu Teatro Lírico, oficialmente representado por Araújo. No número sucessivo (17/12/1858) publicou entrevista com M.me Charton de Paris, em que ela declarava que jamais havia sofrido, em sua temporada carioca, nem de febre, nem de incompreensões com o empresário, nem por ter sido pateada. E defendia o direito do público a fazê-lo, caso o cantor não o agradasse!
Em fins de novembro, o tenor Carlo Balestra-Galli foi pateado durante o 2° Ato da Traviata e por vingança, saltou a célebre cavatina. Houve baixaria e prisão para seis espectadores. Por ter dado um soco em um corista e brigado com o maestro em italiano, Galli foi demitido (Jornal do Commercio, 20/11/1858) mas acusou a administração de não ter sido pago durante os últimos dois meses. O administrador reagiu, pedindo devolução do salário antecipado de seis meses; Balestra-Galli alegou ter tido despesas para a rescisão de contrato com o Teatro San Carlo, de Nápoles, em muito superiores à antecipação recebida e exigiu saldo ou denunciaria aos jornais europeus a falência do teatro, comprometendo a missão do empresário Araújo ainda na Europa (Jornal do Commercio, 21/11/1858) e até o "bom nome desta nação de cavalheiros" (30/12/1858). Se instalou um processo; enquanto o juiz decidia o que fazer, o Jornal do Commercio (16/12/1858) publicou uma carta postada em Milão pelo crítico da Gazzetta dei Teatri (G. B. Lampugnani) na qual denunciava que Araújo teria lhe oferecido uma propina de 200 francos para que "não publicasse uma linha contra os artistas do Teatro do Rio" e outras "baixas manobras para comprar o jornalismo europeu". Ampliava o contencioso contratual a polêmica transcultural:
O senhor, que do longínquo Brasil se rebaixou a atravessar o oceano para vir, como mensageiro de civilização, a dar lições de urbanidade a nós, filhos degenerados desta velha Europa, finque bem em mente que nos contratos jamais se encontra expressa a cláusula que o artista deve ser de agrado ao público; é um problema do empresário se não sabe escolher artistas adequados ao seu palco. O que será uma subvenção, mesmo imperial, diante dos fabulosos cachês que o senhor promete aos artistas? Esgotada a subvenção, quem garante meios para um artista que já se encontra no Rio? Ninguém! Portanto, eis aqui a sua estratégia: boa bilheteria, paga-se; bilheteria ruim, suspendem-se os pagamentos e despede-se o artista.

A próxima vítima foi M.me de la Grange que voltou para Itália no final de 1859 com uma broncopneumonia e pobre, por causa, choramingou ela, das confusões da administração. "Quanto esforço – comentou um anônimo – para fazê-la desistir de ir para a horrorosa capital do Brasil: inútil! Que aprendesse antes o português! Porque [uma vez lá] serão obrigados a assinar uma infinidade de papéis e os dólares, de brilhantes, se tornarão carvão". A tosse de M.me de la Grange, tão fanaticamente aplaudida pelo público brasileiro na Traviata (que provavelmente achou que fosse um preciosismo de interpretação) provoca a suspeita de que o empresário Araújo tivesse concebido "o projeto infernal de escriturar os artistas europeus mais celebres para atraí-los ao seu funeral, prometendo cachês de fábula para, por fim, exterminá-los".

O baú do viajante

Esta citação, anônima e tirada de um recorte de jornal sem referência, surgiu do arquivo de Giuseppe Banfi, pedreiro nascido em 1830, que com 24 anos de idade partiu da Itália, sem razão aparente de miséria nem de fuga. Na mala trazia uma pistola e duas roupas boas. Desembarcado no Rio, Banfi se empregou como corista do Teatro Lyrico e pouco depois começou a cantar como barítono nas Igrejas – quanto à suas reais competências canoras apenas sabemos que matriculou na aula de solfejo do Conservatório Musical. Um italiano, por natureza ou patrimônio nacional, não podia certamente ser desafinado. Nos cartazes da Companhia Lírica Italiana da época, consta o nome de Giannini como maestro, de Marietta Baderna como primeira bailarina, de Giuseppina Zecchini como primeira-dama, de Anselmo Brondi e Caterina Castelli como chefes do coro e do fatídico José Manoel de Araújo como empresário e diretor de cena. Não consta o nome de Banfi o qual, entretanto, teve um papel nos acontecimentos até aqui narrados. Entre as anotações presentes em um caderno datado "Rio de Janeiro, 15/01/1856" e conservado em seu arquivo, há uma detalhada lista com título "Óperas feitas no Teatro Lyrico do Rio de Janeiro desde 1855" que permite verificar que Banfi cantou todas as ópera desta temporada, no Coro do Lyrico, inclusive na Semiramide quando Mme. Charton, pateada, fez pirraça e se recusou continuar. De sua segunda temporada carioca, Banfi registra grande lista de trabalhos em igrejas, nas funções de Páscoa, Novena, Libera me, Te Deum e também como "solo" e "duo", a prova do que afirmava Ribeyrolles: "Rossini e Donizetti nos púlpitos!" Acumulada uma pequena fortuna da qual nada sabemos a não ser que lhe foi roubada no dia 7 de abril de 1857, às 14h. O furto teve consequências traumáticas – Banfi abandonou o Lyrico e a cidade, partindo com um amigo e um burro rumo a Antonina no Estado do Paraná, há poucos anos separado do Estado de São Paulo. Atravessou florestas, navegou rios, escalou montanhas e picos e voltou ao Rio de Janeiro três meses e meio mais tarde. Conseguiu o velho emprego no Teatro Lyrico bem no mês em que o escândalo do empresário Araújo explodia nos jornais. Já não esperava grande coisa do retorno à Corte – sabia que a cidade não valia o sonho americano com que seduzia os emigrantes, sabia que que correria, mais uma vez, o risco de ver "os dólares transformar-se em carvão". Mas precisava de dinheiro para uma terceira viagem, rumo a Nova York onde esperava encontra a verdadeira América. Não sabemos como conseguiu ganhar a soma em tão breve tempo; só que "em novembro – anota em seu caderno – ganhei 920 mil reis e foi um grande alívio, pois no mesmo dia resolvi partir do Brasil". Só sabemos, pelos jornais, que Banfi demitido juntamente com Balestra-Galli, entrou na briga entre a lobby franco-italiana e o administrador transformando-a em uma espécie de contencioso sindical que, de alguma forma, o remunerou. Vejamos. Do ponto de vista do administrador, sua demissão havia sido justificada pelo fato de "criar problemas e reclamações em termos pouco respeitosos" (23/11/1858, Jornal do Commercio) confundindo salário com gratificação, devida (deixa claro o Administrador) somente caso o artista cante mais de dez vezes por mês. No dia seguinte Banfi acusa o administrador de "estar disposto a demitir todos aqueles que queiram imitar o meu comportamento" ou seja, que ousem reclamar o dinheiro que pertence a eles "por direito e não como gratificação". A reivindicação diz respeito aos termos do contrato: os artistas eram obrigados a efetuar réplicas no Teatro Santa Teresa de Niterói, não contratadas e, portanto, devidas à parte, com um saldo que o Administrador não pagava. Afetado, dia seguinte, o administrador se desculpou pelo "atraso" no pagamento – Banfi porém, era "um principiante" e merecia um cachê "baixíssimo" (25/11). Mesmo baixíssimo, era o suficiente para comprar a passagem. Em NY, Banfi arranjou-se fazendo comércio e cantando em teatros e igrejas, no crédito de baixo-barítono, por três anos, antes de regressar, em 1861, com o suficiente para construir sua casa perto de Gênova e casar com uma jovem do lugar. Tornou-se charcuteiro; nasceram-lhes dois filhos; mesmo assim, periodicamente, voltava a embarcar para novas temporadas americanas, seja de comércio como líricas. Como milhares de outros emigrantes, Banfi havia encontrado nos Estados Unidos aquele "recurso integrativo" que o Brasil lhe havia negado: um lugar do outro lado do mundo onde tentar a sorte, buscar ocasiões, investir seu talento e "fazer a Merica", ou seja, ter uma segunda vida, além de sua vida cotidiana. No caso de Banfi, o sonho americano significava, também, a possibilidade de levar uma vida completamente diferente: uma vida de artista. FIM

Trata-se para ele de uma nova viagem: um ainda mais arrojado sonho de América – no qual, ao contrário, descobre um Eldorado selvagem. Se, por um lado, a aventura entre matas gigantescas, chuvas torrenciais, bosques cheios de neblinas e infernais vales pantanosos o seduz e o apavora; a história de sua viagem humana, por outro, em contato com brasileiros veementes, índios apáticos, mulheres insolentes e italianos malandros, o faz refletir. O encontro entre culturas, no isolamento da viagem no coração das trevas, produz uma bagagem de equívocos, desconfianças recíprocas, gratas surpresas e invenções que seriam desperdiçadas se o viajante não se tornasse um narrador delas. De volta à Itália, Banfi transcreve seu diário numa crônica romanesca e mística, um pouco ao estilo de romance de formação ou da dantesca Vita Nuova – que, além do mais, dificilmente teria lido, visto que desprovido de certificado de escola elementar. Em relação aos diários da mesma década, de viajantes burgueses (como o Journal de Elizabeth Agassiz, ou as Lettres de V. Leontine, em que a representação de si e da própria cultura como modelo soberano de identidade e civilização tende a objetivar o outro e a cultura do outro, vista de um ponto de vista "superior"), o olhar "menor" de Banfi é capaz de oferecer uma forma específica de diálogo com aquela realidade. Invertendo a retórica etnocêntrica que defende o business migratório com a perspectiva de um sucesso garantido, este olhar de baixo ilumina a fratura entre o mito pós-colonial do sonho de América (uma nova Conquista) e o drama individual da emigração falida. Na narrativa de Banfi, o imaginário exótico do novo mundo é abalado pelo retrato de uma terra primitiva, mas de forma alguma virgem, já que ali prosperam vícios e misérias plantadas pela arrogância dos mais esfarrapados e famélicos conquistadores, chegados à margem extrema do mapa. Entre linhas, toma corpo um panfleto de tolerância em que o autor mostra o grotesco encontro entre os bárbaros europeus, aventureiros quase sempre brutais, e seus hóspedes, os gentis e civis, mas frequentemente ingênuos, indígenas. Assim, enquanto narra sobre o outro, o viajante representa si mesmo em mutação, como se se encontrasse diante de um espelho quebrado; enquanto descreve aquilo que o surpreende e o amedronta, também narra imperceptíveis, mas decisivas transformações de sua personalidade e de sua perspectiva cultural. Sua viagem é um rito de iniciação: vai muito longe, enfim, para descobrir algo de si. E no Brasil, o nosso Banfi, como bom italiano e migrante aculturado por força de uma espécie de "patriotismo artístico" que estimula a missão cosmopolita, mostra saber agir no espaço social amplo, tornando-se disponível à troca e a um percurso realmente singular diante do território, sem entender a nacionalidade como um lobby defensivo nem como preconceito de superioridade. "Imaginem – admite na primeira página do diário – que agora começa a obrigação de ter que se adaptar a tudo". O encontro com um italiano surdo, iracundo e supostamente doutor, desacreditado pelos péssimos resultados de suas curas, mostra a absurda pretensão de superioridade da assim chamada civilização na selva, onde seus valores são aviltados justamente por aqueles que deveriam exaltá-los. A narrativa ganha um ritmo de comédia:
Respondia [o doutor], desta matéria não sou muito cognitus in verus, eu ao ouvir este latim, começava a estar com vontade de rir, mas o intrépido Doutor dirigindo-se a mim dizia: e o senhor? eu, respondia, canto como Baixo Barítono. hã? hã? dizia com um riso muito estúpido, o senhor um Marítimo [?] é impossível [!] disto pois tenho entendimento, que o senhor não pode nunca ter sido marítimo. peço desculpas, ma eu não disse Marítimo; como? repetia o indomável Doutor pondo-se de pé, em minha Casa desmentir o que o senhor disse [?] e com quem o senhor crê que está falando [?], eu estava preste a lhe responder: com um imbecil, mas parei
O valor que mais o enraíza no território é a disponibilidade ao trabalho, como quando, no Rio de Janeiro, desembarcado aprendiz de pedreiro, se dispôs repentinamente a ser corista. Honesto, enquanto limitado pela consciência de suas competências reais, Banfi não por menos é adaptável e disposto ao compromisso: como no caso divertido do órgão quebrado, que antes recusa consertar porque "não é nossa profissão" e depois promete o contrário, para evitar consequências da ardente desilusão do proprietário:
como? respondeu enfurecido o dono, recusam-se [?] eu já sei que vocês Europeus sabem fazer tudo; dizendo isso mandou trazer o órgão que era daqueles que se tocam com a manivela e eu voltei a dizer para ele: è impossível. saiba que cada um de nós trabalha com uma profissão só, e, portanto, esta não é ofício para mim. E lhe digo para consertá-lo de algum modo; então, ao ver esse homem, cujos olhos começavam a esbugalhar da cabeça, eu disse: realmente, eu até poderia dar um jeito, mas não temos as ferramentas, faltam até mesmo algumas partes e parafusos, mas daqui a dois meses estaremos de volta e então iremos trazer tudo o que precisa para consertá-lo da melhor maneira possível; desta forma ele ficou satisfeito e nos disse: espero vocês sem falta.


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