Um breve reflexão sobre a canção religiosa

June 4, 2017 | Autor: Theógenes Figueiredo | Categoria: Liturgia, Musica Sacra, Canção religiosa, Cultura gospel
Share Embed


Descrição do Produto

A R T I G O

Uma breve reflexão sobre a canção religiosa

Theógenes Eugênio Figueiredo(*)

RESUMO: Afirma-se que todas as culturas utilizam o canto em sua prática religiosa. Propõe-se que o objeto do canto nas culturas religiosas seja denominado de canção religiosa. Discorre-se sobre os conteúdos e as funções das canções em geral e da canção religiosa em particular. Afirma-se que as canções são o maior receptáculo teológico de uma comunidade religiosa e que os textos das canções são polissêmicos, por isso necessitam de interpretação. Constata-se que a canção religiosa extrapolou as fronteiras do seu contexto, configurando-se como um comportamento presente na “cultura gospel”. Discorre-se sobre o conceito “cultura gospel”.

T

Toda cultura tem associada à sua prática religiosa o uso da música, principalmente a música cantada. Pesquisas etnomusicológicas confirmam a utilização do canto em todos os rituais das diversas culturas religiosas.

O canto existente nos diversos rituais materializam-se em canções que se apresentam nas mais variadas formas e formatos. As canções, por suas peculiaridades e pela sua conexão com a linguagem, “dão liberdade para

expressar pensamentos, ideias e comentários que não podem ser declarados diretamente em uma situação normal de comunicação”. Uma canção é uma expressão que foi elaborada individual ou coletivamente com o propósito de

LOUVOR 15 LOUVOR 4T15 - Para acertos no Indesign em 12-07-15.indd o.indd 15

14/07/2015 15:54:09

comunicar algo às pessoas. Uma canção não pode ser considerada sem significação, por mais simples que possa parecer. Na canção intencionalmente destinada a ser cantada pela sociedade de massa efetiva-se o encontro de um lugar ideal no qual o canto exerce seu domínio de tangenciar a fala. Esse tangenciamento da fala pelo canto tornou-se uma das principais características das canções populares e estas, além de serem utilizadas como mercadoria pelas gravadoras, foram usadas como veículo de comunicação por possuir uma oralidade básica e propiciarem um campo privilegiado para se “falar” dos problemas que afligem a sociedade. Muitas ideias, talvez seja melhor dizer, todas as ideias são transmissíveis por seu intermédio. Uma canção é considerada uma poesia cantada, carregando em si uma propriedade “inerente e efetiva da poesia” que é a “capacidade de reiteração, imediata ou retardada, a reificação de uma mensagem poética [e/ou religiosa] e de seus constituintes, [e] a conversão de uma mensagem em algo duradouro”. Os termos mais utilizados para nomear a música cantada nos rituais é uma “festa de conceitos”. Isto é, muitos nomes para nomeála, mas nenhum contempla os aspectos peculiares do texto (poema) musicado com finalidade litúrgica. Os termos utilizados são: cântico litúrgico, cantos litúrgicos, salmo, cântico bíblico, hino evangelístico ou canção evangelística, cânticos, corinho e, mais recentemente, louvor. Nenhum desses nomes é tão abrangente que abarque a realidade existente no universo

16

da música religiosa nos dias de hoje. Propõe-se que o objeto do canto comunitário eclesiástico seja chamado simplesmente de canção religiosa, conceituando-a como “uma composição musical [com texto religioso] planejada ou adaptada para o canto”. Os estudiosos do assunto afirmam que os textos das canções são receptáculos de características das culturas religiosas e ao mesmo tempo emissores de sinais simbólicos da religiosidade de um grupo/comunidade. Em outras palavras, os textos das canções são descrições de informações características das religiosidades e ao mesmo tempo prescrições de tais características, configurandose em uma fonte rica de dados sobre a cultura, e particularmente, sobre a cultura religiosa de um determinado grupo/comunidade. No meio evangélico se considera que o “hinário é o mais eficiente manual de teologia da comunidade cristã e [...] a teologia que mais se imprime no coração do povo é a que se canta e não a que fica encerrada nos textos eruditos”. As letras das canções religiosas são apontadas como um fator “muito mais importante que os discursos religioso, doutrinário, ou teológico”. O sociólogo Antonio Gouvêa Mendonça afirma que “o melhor material para um levantamento da teologia [...] é a hinódia [...], que está inteiramente à nossa disposição”. As canções são modos de expressão (falas) sobre a relação entre o indivíduo que as produz e a cultura religiosa. Isto acontece porque as canções são modos de expressão da relação entre as experiências religiosas individual e comunitária. Isto

também acontece porque, como afirmou o antropólogo social e etnomusicólogo John Blacking, a “música é um produto do comportamento de grupos humanos, quer formal ou informal: a música é o som humanamente organizado”, ou, como afirmou o musicólogo Jean-Jacques Nattiez, “a ‘música’ é um fato sonoro construído, organizado, ou pensado por uma cultura.” Portanto, a música “é uma síntese do processo cognitivo que está presente na cultura e no indivíduo: as formas que a música assume e os efeitos que ela tem sobre as pessoas, são gerados pelas experiências sociais dos indivíduos em diferentes contextos culturais. [... A música] expressa aspectos da experiência dos indivíduos na sociedade.” Logo, os textos das canções de um grupo religioso devem conter em sua expressão direta (estrutura intencional de primeiro grau) ou metafórica (estrutura intencional de segundo grau) o modo de ser dessa comunidade. Um exemplo de pesquisa realizada nos textos das canções foi a apresentada por Mendonça no livro O celeste porvir. Na pesquisa, Mendonça analisou os textos das canções do hinário Salmos e Hinos e constatou que os temas tratados distribuíam-se em quatro assuntos: pietismo, peregrinação, “guerra santa” e o milenarismo. Outro exemplo de pesquisa nos textos das canções foi a realizada pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro sobre o povo indígena Araweté da Amazônia oriental que buscou nas letras das “canções de guerra araweté” o apoio etnográfico imediato para entender o ritual do canibalismo praticado por aquele povo.

LOUVOR

LOUVOR 4T15 - Para acertos no Indesign em 12-07-15.indd o.indd 16

14/07/2015 15:54:10

Na análise dos textos das canções verificou-se que esses são polissêmicos, isto é, contêm em si vários significados, e assim o são por serem resultados de um amálgama de um texto poético, na maioria das vezes, e por isso de alto teor simbólico, mais o conteúdo temático religioso, que conduz a temas metafísico, mais o componente musical, que conduz à subjetividades. Além desse amálgama, e por possuírem seus textos pertencentes ao universo das obras literárias, as canções religiosas necessitam de interpretação. Uma interpretação busca encontrar a “estrutura intencional de segundo grau” de um discurso que tem algo claramente definido em seu primeiro sentido, mas que “remete a outra coisa visada”. Além do que revela o discurso explícito, esse “segundo sentido” pode revelar elementos do substrato religioso que se encontra oculto nos textos das canções por suas construções simbólicas. Uma das canções necessitosas de interpretação, por sua polissemia, é a canção Restitui. Dela é possível significar como “segundo sentido” a atitude de dar ordens à divindade, atitude essa totalmente incabível na relação divindade/indivíduo. A letra da canção é a seguinte: Os planos que foram embora/ O sonho que se perdeu/ O que era festa e agora/ É luto do que já morreu/ Não podes pensar que este é o teu fim/ Não é o que Deus planejou/ Levante-se do chão!/ Erga um clamor!/ [REFRÃO]/ Restitui!/ Eu quero de volta o que é meu/ Sara-me!/ E põe Teu azeite em minha dor/ Restitui!/ E levame às águas tranquilas/ Lava-me!/ E refrigera a minh’alma/ Restitui.../

Ouça no nosso clamor./ [FINAL DO REFRÃO, repete o primeiro verso e o refrão,/ E o tempo que roubado foi/ Não poderá se comparar/ A tudo aquilo que o Senhor/ Tem preparado ao que clamar/ Creia porque o poder de um clamor/ Pode ressuscitar... Na análise interpretativa realizada no texto dessa canção, verificouse haver uma aproximação não explícita a dois episódios bíblicos do Antigo Testamento. São as histórias narradas em 2 Reis 1-6 e 2 Reis 4.8-37, nas quais os personagens são uma mulher sunamita (da cidade de Suném), o profeta Eliseu e seu servo Geazi, e o rei daquela cidade. O episódio do clamor da sunamita ao rei no sentido de que seus bens fossem devolvidos é ressaltado na canção. Mas, o autor da canção não apresenta esse contexto histórico do fato bíblico e utiliza o ato de clamar como “fórmula” para a obtenção de benesses divinas. Essa utilização possibilita um significado diferente do emanado no texto bíblico, que deveria ser a primeira significação, significado diferente esse que corrobora, intencionalmente(?), a ideologia religiosa praticada pelos neopentecostais. Nos dias atuais tem-se observado

o fenômeno da apropriação generalizada de canções religiosas pelo povo, extrapolando as fronteiras do universo religioso, como demonstra a experiência com a canção Faz um milagre em mim. No dia 21 de maio de 2009, no Shopping Grande Rio (São João de Meriti – RJ), na praça da alimentação havia um show do cantor Marco Vivan. Após a apresentação de um repertório variado de música popular brasileira, o cantor avisa que a próxima música será a última da noite e inicia o canto, a música de título Faz um milagre em mim, que foi cantada pela maioria das pessoas presentes juntamente com o cantor. Como o propósito de conhecer a intenção do cantor com a inserção dessa música no repertório daquele show, logo após o evento um dos instrumentistas que o acompanhava foi questionado se foi com intuito religioso que o cantor executou aquela música. A resposta foi negativa. Passado alguns minutos, o próprio cantor foi questionado se havia uma motivação religiosa para que aquela música fosse cantada naquela noite. Ele respondeu que sim, em oposição à resposta do instrumentista, pois é católico praticante e tinha estudado em

LOUVOR 17 LOUVOR 4T15 - Para acertos no Indesign em 12-07-15.indd o.indd 17

14/07/2015 15:54:10

colégio católico. Fica a dúvida quanto a motivação de um cantor que se diz católico de incluir no repertório uma música de origem evangélica. É bom relembrar que naquela época a música estava no auge de sua veiculação midiática e cantá-la significava estar atualizado em relação ao que estava acontecendo da mídia, bem como sintonizado com o “gosto” popular. O próprio intérprete da gravação original, Régis Danese, passou por uma experiência idêntica: “poucos dias antes do carnaval Régis Danese participou de um show em Salvador. Subiu ao palco a convite do cantor Belo e quando o amigo lhe avisou que ele participaria cantando ‘Faz um Milagre em Mim’, achou esquisito. ‘Disse ao Belo que não daria certo, que era quase carnaval e que ninguém ali sabia cantar a música, me surpreendi, o público cantou e eu fiquei emocionado, era Deus sendo louvado no meio do axé’”. Esse comportamento de apropriação de canções religiosas pelo povo é característico da “cultura gospel”, afirma a cientista da comunicação Magali do Nascimento Cunha. A “cultura gospel” tem suas raízes no movimento avivalista brasileiro ocorrido nas décadas de 1960 e 1970 e apogeu na década de 1980. A “cultura gospel” apropriou-se de todos os gêneros musicais populares para atingir a diversidade de “gostos” do mercado musical, mercado que é formado pela população/massa

religiosa/evangélica. Por outro lado, a cultura popular apropriouse também de canções religiosas divulgadas pela mídia. O conceito de gospel na “cultura gospel” não se refere a um gênero musical específico – aquele oriundo da música spirituals dos negros norte-americanos –, mas aponta para sua concepção brasileira, que significa qualquer gênero musical que possa ser utilizado pela mídia como música de consumo e entretenimento. Essa cultura incorporou ao repertório evangélico tradicional os gêneros populares associados a grupos marginalizados, isto é, o “rap, o funk, o hip-hop, o forró, o reggae”, bem como outros gêneros utilizados em festas profanas, principalmente “o samba, o pagode, o axé-music, a marcharancho e o frevo”, divulgando-os massivamente através da mídia. Cunha afirma que a “cultura gospel” é configurada pela tríade “música-consumoentretenimento”. O termo gospel encontra-se ligado a uma cultura consumista evangélica: bíblias nas diferentes “linguagens”, hinários, cancioneiros, roupas, bijuterias, livros, TVs, rádios, vídeos, CDs, DVDs etc. Cunha contextualiza o termo no seguinte comentário: “A cultura gospel lhes [aos evangélicos] permitiu inserirem elementos profanos, aqueles integrantes da cultura do mercado, como o consumo e o entretenimento, na forma de viver a fé e relacionar-se com o sagrado; ou seja, um processo de sacralização de elementos profanos que dá ao

duo consumo-entretenimento, mediado pelo confinamento em ambientes e redes sociais restritas, pelo consumo permanente de bens e pelo investimento no entretenimento”. Concluindo esta breve reflexão sobre a canção religiosa, a música é o som humanamente organizado, o que, pela diversidade cultural dos seres humanos, dá origem à diversidade musical. Em outras palavras, temos músicas e não somente uma forma musical, a música de tradição europeia. Dentre essas diversas formas musicais encontra-se a canção. A canção é uma forma de expressão humana, ela expressa a cultura individual e coletiva na qual o autor encontra-se inserido. Devese chamar de canção religiosa as músicas cantadas ocorrentes nos cultos. As canções religiosas são consideradas possuidoras de duas características. São, ao mesmo tempo, receptáculos da cultura religiosa e emissoras dessa cultura, ou, em outras palavras, as canções são, ao mesmo tempo, descrições de uma religiosidade e prescrições dessa religiosidade. Os textos das canções são considerados poesias e poesias carecem de interpretação. Deve-se buscar na interpretação os sentidos direto e metafórico. Deve-se ter cuidado com a “cultura gospel” quando se está trabalhando com o canto comunitários, pois essa cultura visa o consumo/entretenimento e não o suprimento das necessidades espirituais de uma comunidade religiosa. Notas

Theógenes Eugênio Figueiredo(*) Theógenes Eugênio Figueiredo é Ministro de Música e Professor do Curso de Música do Seminário do Sul. É mestre em etnomusicologia pela UNIRIO (Rio de Janeiro-RJ) e doutor em ciências da religião pela UFJF (Juiz de Fora-MG).

18

LOUVOR

LOUVOR 4T15 - Para acertos no Indesign em 12-07-15.indd o.indd 18

14/07/2015 15:54:11

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.