Um caso de dupla intertextualidade: A Cantiga de Santa Maria 304.

June 8, 2017 | Autor: Rui Araújo | Categoria: Medieval Music
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Um caso de dupla intertextualidade: a Cantiga de Santa Maria 304.






As Cantigas de Santa Maria de Alfonso X, o Sábio (1221-1284) têm suscitado ultimamente alguns estudos sugestivos; um destes estudos explora a possibilidade da existência de uma relação de intertextualidade entre uma sequência do Codex de Las Huelgas e a CSM 413 (IIIª Festa de Santa Maria do códice E, existente num conjunto de peças com festas dedicadas a Santa Maria antes do corpo principal do códice).
Esta publicação não é a primeira tentativa de encontrar relações entre as CSM e o repertório sacro-litúrgico. Aliás, já Higini Anglès, na sua edição das CSM, tinha referido que a melodia da CSM 421 (XIª festa de Santa Maria no mesmo conjunto de peças da CSM 413), tinha sido retirada da versão tropada do Ofertório Recordare do Codex de Las Huelgas (peça número 12 da edição de Anglès do Codex de Las Huelgas, f. 8v no manuscrito). Manuel Pedro Ferreira faz uma síntese da influência do canto litúrgico num artigo, referindo em pormenor qual o estado da questão à altura, também Antoni Rossell se debruçou sobre as relações entre os modelos musicais litúrgicos e as CSM. Mais recentemente foram publicados vários trabalhos sobre relações entre as CSM e o Codex de Las Huelgas. Colantuono seguindo as ideias propostas por Gruber, expõe os aspectos em que poderão existir relações intertextuais entre as duas fontes, seja através de um repertório lexical (mot), da continuação de esquemas métricos e melódicos (so) ou de conteúdos conceptuais (razó). No fundo, as interacções textuais e melódicas não têm que ser uma repetição literal ou uma cópia, podendo existir diferenças e contrastes derivados de questões fonéticas e expressivas do texto.
Assim, passando de novo para o artigo sobre a CSM 413 e a sequência Novis cedunt vetera, os autores centram-se na identificação e na análise da relação entre estas peças, expondo a ideia de que embora não se tratando de um contrafactum, as relações texto-musicais revelam a presença, na sua opinião, de uma proximidade que está para além de uma mera coincidência e pode assim ser considerada intrinsecamente intertextual.
O mosteiro de Santa Maria La Real, mais conhecido como Las Huelgas, é um mosteiro cisterciense feminino nas proximidades de Burgos, cuja ligação com a família real castelhana está presente desde a sua fundação. Afonso VIII de Castela e a sua esposa Leonor, filha de Henrique II de Inglaterra, fundaram o mosteiro em 1187, que obteve filiação a Cister em 1199. Este mosteiro foi utilizado diversas vezes como local de repouso de membros da família real e nele também se realizaram cerimónias oficiais. As abadessas do mosteiro eram normalmente provenientes de famílias reais. Aliás em 1294 foi feita senhora do mosteiro (ou mesmo abadessa) Dona Branca de Portugal, filha de Afonso III de Portugal e de D. Beatriz, filha ilegítima de Afonso X. D. Beatriz foi para Sevilha em 1283 devido a conflitos com o seu filho, D. Dinis, provavelmente acompanhada pela sua filha, e viveu perto de Afonso X acompanhando-o no último ano da vida do rei castelhano, durante um dos períodos mais difíceis da sua vida, com crescente deterioramento físico e a perca do poder político devido ao conflito com o seu filho, o futuro Sancho IV. O mosteiro de Las Huelgas era então um dos mosteiros mais ricos e importantes do reino de Castela.
O mosteiro de Las Huelgas é referido diversas vezes nas CSM, e quase sempre tendo como protagonistas na narrativa a família real, sendo óbvia a ligação pessoal na CSM 122, onde é descrito um milagre com a infanta Berenguela, irmã de Afonso X, que se tornou freira no mesmo mosteiro.
O Codex de Las Huelgas é um manuscrito em pergaminho, com 170 fólios, com sinais evidentes de ter sido utilizado frequentemente. No manuscrito existem também referências a pessoas ligadas ao mosteiro (um planctus dedicado a uma abadessa) e a túmulos do seu panteão real, que indicam de forma incontestável a relação do manuscrito com o mosteiro. O repertório do manuscrito é composto por peças polifónicas (140) e monódicas (45), em latim e de carácter sacro. É um dos mais importantes manuscritos com música polifónica em Espanha, escrito em inícios do séc. XIV. Entre as diversas peças existem vinte prosas ou sequências monódicas. É neste grupo que está a sequência Novis cedunt vetera.










Imagem 1 - Sequência Novis cedunt vetera, Hu-56 ff. 40-40v (primeiras 2 frases melódicas).






No trabalho de Disalvo e Rossi, identificam-se uma correspondência entre esta sequência e a CSM 413. Esta cantiga tem duas versões, quase semelhantes, tendo uma ligeira diferença no início. A primeira versão faz parte do anexo de cantigas com festas dedicadas a Santa Maria, anexo esse colocado após o corpo principal do códice de Toledo, que foi elaborado numa primeira fase do projecto de recolha das CSM. A segunda versão, que é a analisada pelos autores, pertence a um primeiro grupo de cantigas de louvor existentes no códice E, antes do corpo principal do manuscrito.
Quanto à correspondência melódica, como é afirmado por Disalvo e Rossi, existem algumas semelhanças no contorno melódico, embora não de forma a denunciar claramente um contrafactum.

Figura 1 - Quadro sinóptico sequência Novis cedunt vetera – CSM 413




Este aspecto não seria suficiente para considerar alguma relação especial entre estas duas peças, mas o elemento em falta é fornecido pelo texto.
Apesar de a sequência ser em latim e a CSM em galego-português, a ligação está no conceito poético elaborado na sequência, conceito aliás já existente nas sequências atribuídas a Adão de Saint-Victor em Paris. As sequências desse clérigo tiveram uma circulação e influência relevantes. O elemento da luz, como símbolo da pureza divina da Virgem é uma ideia recorrente no repertório poético-musical devocional mariano, e é sobre este elemento que Disalvo e Rossi aprofundam as relações entre estas duas peças.
Neste contexto decidi investigar se haveria mais alguma CSM que tivesse relação com a sequência Novis cedunt vetera. Para tal fiz diversas pesquisas na base de dados das CSM (Lisbon CSM Database) e obtive vários resultados, que depois de uma análise mais próxima, reduzi a três peças: CSM 120, 140 e 304. As primeiras duas cantigas são cantigas de louvor que, à semelhança da 413, têm um carácter mais lírico e que poderiam portanto oferecer mais probabilidades de ligação textual, mas tal não acontece. Para minha surpresa isso aconteceu com a CSM 304. Esta cantiga é uma cantiga de milagre, ou seja, descreve um milagre atribuído a Santa Maria. A história incide sobre uma igreja pertencente a um antigo mosteiro beneditino, perto de Pontevedra, na localidade de Ribela, onde haviam cinco capelas. Numa das capelas existia uma lamparina perto de uma figura da Virgem, onde a população local colocava sempre azeite como combustível. Quando a população decidiu cortar nos custos e utilizar um óleo de qualidade inferior, a lamparina não se conseguia acender, facto que a população considerou um sinal de que Santa Maria não estava agradada com tal facto. A população decidiu então abrir os cordões à bolsa e voltar a utilizar azeite, para não perder os bons favores da Virgem.
Temos então aqui dois elementos que poderão permitir colocar em relevo uma ligação com a CSM 413 e a sequência Novis cedunt vetera, o elemento da pureza e da luz. O milagre centra-se na contaminação pela impureza de um objecto que era utilizado para a devoção mariana, contaminação essa que impediu a criação da luz, sendo a luz o elemento associado neste contexto ao símbolo da Virgem.
Passando para a análise musical, se compararmos as duas cantigas, a CSM 304 e a 413, reparamos que o material melódico utilizado na CSM 304 corresponde à 1ª e 2ª frases do refrão da cantiga de louvor, que por sua vez correspondem de forma lata, às primeiras duas frases da sequência de Las Huelgas. Alerto para o facto de que a numeração moderna da cantiga não indicar necessariamente uma sequência cronológica. A CSM 413, por já estar presente no códice de Toledo, é anterior à 304, que existe apenas no códice E.



Figura 2 - Estrutura CSM 413




Figura 3 - Estrutura CSM 304



Figura 4 - Quadro sinóptico: Sequência Novis cedunt vetera, CSM 413, CSM 304





Como explicar tal ocorrência? Duas hipóteses podem ser desde já descartadas. Uma seria a hipotética relação directa com o codex de Las Huelgas. Este manuscrito não pode ser a fonte para a melodia da cantiga, pois lhe é bastante posterior. De facto, a sequência aparece atestada sobretudo em fontes litúrgicas de Sevilha; a liturgia cisterciense não admite sequências, pelo que a sequência Novis cedunt vetera tem origem no exterior do mosteiro. A sua ligação com a família real e, portanto, com Sevilha no tempo de Afonso X, torna provável que a catedral desta cidade esteja na origem da melodia. A segunda hipótese é que a CSM 413 seja a fonte para a cantiga posterior, elaborada numa fase tardia do projecto alfonsino. Mas esta dependência é contestada pelo facto de o início do refrão da CSM 304 estar mais próximo da primeira frase da sequência do que a CSM 413. Uma terceira possibilidade seria a existência de intertextualidade e translatio entre a sequência sevilhana e ambas as cantigas.
Esta parece ser a hipótese mais provável, visto que este tipo de reaproveitamento interno de material poético e melódico ocorre diversas vezes, como entre a CSM 227 e 325, 316 e 379, 53 e 35, 293 e 297. O que é diferente no caso aqui apresentado, é que não se mantém a estrutura poética. Apesar de as cantigas terem a mesma estrutura melódica e conceito poético, a métrica é diferente.



Estrutura métrica CSM 413:

Estrofe: 11' 11' 11' 11' Refrão: 11' 11'
Nº estrofes: 6

Rima: AA " bbba


Estrutura métrica CSM 304:

Estrofe: 7' 7' 7' 7' 7' 7' 7' 7' Refrão: 7' 7' 7' 7'
Nº estrofes: 5

Rima: AA " bbba



Para concluir, podemos ter então aqui um exemplo de como um dos meios principais de transmissão de repertório no período medieval, a memória entretecida com a oralidade, poderia servir no caso das CSM como uma ferramenta de política cultural, ao reutilizar material melódico e poético pertencente a um contexto litúrgico-formal, colocando-o num contexto de devoção pessoal e, possivelmente (ao menos no plano da intenção) de devoção popular.





























Abreviatura de Cantigas de Santa Maria, seguida da numeração das cantigas realizada por Mettmann na sua edição das Cantigas, Walter Mettmann, Cantigas de Santa Maria, Castalia, Madrid, 3 vols., 1986.
Germán Rossi, Aníbal Santiago Disalvo, «La cantiga IIIa de las Fiestas de Santa María ("Tod ' aqueste mund ' a loar deveria") y la secuencia Novis cedunt vetera: Filiaciones textuales y musicales entre las Cantigas de Santa María y el Códice de Las Huelgas», Olivar, nº 11, 2008, pp. 13-26.
Higini Anglès, La música de las Cantigas de Santa María de Don Alfonso el Sabio, Biblioteca Central, Barcelona, 3 vols. (1943, 1958, 1963).
Higini Anglès, El Codex Musical de Las Huelgas: Musica a veus dels segles XIII-XIV, Institut d' Estudis Catalans-Biblioteca de Catalunya, Barcelona, 3 vols. [I - Introducció; II - Facsímil; III - Transcripció], 1931. Uma análise detalhada deste contrafactum encontra-se em Manuel Pedro Ferreira, «Paródia e 'contrafactum': em torno das cantigas de Afonso X, o Sábio» in Cantigas Trovadorescas da Idade Média aos nossos dias, IEM – Instituto de Estudos Medievais, Lisboa, Colecção Estudos, 2014, pp. 19-43.
Manuel Pedro Ferreira, «The Influence of Chant on the 'Cantigas de Santa Maria'», Bulletin of the Cantigueiros de Santa Maria, XI-XII, 1999-2000, pp. 29-40. Tradução portuguesa em id., Aspectos da Música Medieval no Ocidente Peninsular, vol. I: Música palaciana, Imprensa Nacional/Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2009, pp. 258-67.
Antoni Rossell [Mayo], «Las Cantigas de Santa María (CSM) y sus modelos musicales litúrgicos, una imitación intertextual e intermelódica», in Literatura y cristiandad. Homenaje al profesor Jesús Montoya Martínez (eds.: Manuel José Alonso García, María Luisa Dañobeitia Fernández e Antonio Rafael Rubio Flores), Granada, Universidad de Granada, 2001, pp. 403-12.
Jeorn Gruber, Die Dialektik des Trobar: Untersuchungen zur Struktur und Entwicklung des Occitanischen und Französischen Minnesangs des 12. Jahrhunderts, Tübingen, Max Niemeyer, 1983.
Maria Incoronata Colantuono, «Reminiscenze melodiche e filiazioni tematiche tra le Cantigas de Santa Maria e le Prosae de Santa Maria del codice di Las Huelgas», Cognitive Philology, nº 7, 2014, [http://www.jmes.uniroma1.it/index.php/cogphil/article/view/12923].
Manuel García Fernández, «La política internacional de Portugal y Castilla en el contexto peninsular del tratado de Alcañices: 1267-1297. Relaciones diplomáticas y dinásticas.», Revista da Faculdade de Letras, vol. XV-2, 1998, p. 909 n. 19, p. 910.
Higini Anglès, El Codex Musical de Las Huelgas (...), vol. I [Introducció].; Maricarmen Gomez Muntané, La música medieval en España, Kassel, Reichenberger, 2001, pp. 128-31.
Rossi & Disalvo, «La cantiga IIIa (...)», p. 18.
Esta base de dados já foi referida no capítulo introdutório.
Analecta Hymnica Medii Aevi, XXXVII: Sequentiae Ineditae. Liturgische Prosen des Mittelalters aus Handschriften und Frühdrucken, ed. Clemens Blume, Leipzig, O. R. Reinsland, 1901, pp. 81-82.
Manuel Pedro Ferreira, «The Stemma of the Marian Cantigas: Philological and Musical Evidence», Bulletin of the Cantigueiros de Santa Maria, VI, 1994, pp. 58-98.
Maria Incoronata Colantuono, «L'intento intertestuale della 'Translatio' melodica nelle 'Cantigas de Santa María'», Medievalia, 2013, pp. 81-90.



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