Um caso de infestação de orofaringe por cochiliomya hominovorax

May 31, 2017 | Autor: Arnaldo Ganc | Categoria: Einstein
Share Embed


Descrição do Produto

170

Pasternak J, Joo SH, Ganc AJ, Durão Junior MS, Morsh RD, Pinto TH

relato de caso

Um caso de infestação de orofaringe por Cochliomyia hominovorax A case of throat Cochliomyia hominovorax infestation Jacyr Pasternak1, Sung Ho Joo2, Arnaldo José Ganc3, Marcelino de Souza Durão Junior4, Rafaela Decza Morsh5, Thais Helena Pinto6

RESUMO As características epidemiológicas das miíases ainda não estão bem definidas. Tem sido descrita em pessoas que lidam com animais que habitualmente atraem moscas, ou em indivíduos de baixa classe socioeconômica, com comprometimento de seu estado de saúde. No Brasil as miíases têm sido descritas com características epidemiológicas semelhantes a essas. Assim,   os autores  foram levados a apresentar um caso de miíase em um paciente previamente sadio, de bom nível socioeconômico, e a discutir seu tratamento. Descritores: Infecção por Cochliomyia hominivorax; Miíase/terapia;  Orofaringe/patologia; Relatos de casos [Tipo de publicação]

ABSTRACT  The epidemiological characteristics of myiases are not well defined. It has been described in persons having close contact with animals that usually atract flies, or in individuals of low socioeconomic level, in a poor health condition. In Brazil myiasis have also been described with similar epidemiological characteristics. The authors describe a case of myiasis in a previously healthy patient of good socioeconomic standing and to discuss its treatment. Keywords: Screw worm infection; Myiasis/therapy; Oropharynx / pathology; Case reports [Publicaton type]

INTRODUÇÃO Miíases são infestações de humanos por larvas de mosca. Podem ocorrer em três situações: larvas em tecido necrótico, infestações acidentais quando moscas que geralmente só põem ovos em matéria em decomposição os colocam em passagens urinárias ou gastrointestinais contaminadas, e larvas em tecidos vivos. Todos os seres humanos, exceto os mumificados ou cremados, serão comidos por larvas depois de mortos, mas ser comido 1

vivo por essa larva pode ser comparado a ser enterrado vivo, o pior pesadelo que se pode ter. Este medo faz parte do ótimo mistério policial em que Oliver Wendell Holmes, Henry W. Longfellow, James Russell Lowe e outros ricos cidadãos, que viviam em Boston, em 1865, são detetives que investigam uma série de assassinatos. No primeiro deles, a vítima é comida viva por centenas de larvas da mosca da bicheira, a Cochliomyia hominivorax(1). Existem algumas lendas sobre figuras históricas que tiveram esse mesmo destino: Herodes, o Grande(2) e talvez Jó(3). Hoje, a miíase pode ser encontrada em indigentes muito expostos a moscas(4) ou em bebês pequenos abandonados em latas de lixo(5). A miíase oral também pode ocorrer em pessoas com pouca higiene oral, em pessoas que respiram pela boca e naquelas que chupam o dedo(6). Pode-se pegar miíase em viagens a países em desenvolvimento(7). Obviamente os nativos também são afetados, mas esses casos muitas vezes não são relatados. A infestação é mais freqüente em pessoas com contato próximo de animais, que, em geral, são o alvo das moscas(8). Uma recente revisão em lesões por miíase, nos Estados Unidos, publicada em 2000, encontrou 137 casos relatados de miíase adquirida nos Estados Unidos continental durante o período de 1960 a 1995(9); o autor coletou outros 41 casos em 20 centros, em que a espécie que mais causou infestação foi a Phaenicia sericata. Esta espécie foi responsável por uma infestação hospitalar incomum descrita por Beckendorf et al.(10): como o hospital estava infestado por camundongos, foram usadas inúmeras iscas envenenadas, e muitos camundongos morreram. Por conseqüência, as carcaças dos camundongos ficaram altamente colonizadas por ovos e larvas de Phaenicia sericata, e as moscas oriundas dessas larvas puseram seus ovos em feridas de pacientes comatosos na Unidade de Terapia Intensiva.

Chefe da Equipe de Infectologia, Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo, São Paulo (SP), Brasil.

2

 Otorrinolaringologista, Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP), Brasil.

3

 Gastroenterologista Endoscopista, Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP), Brasil.

4

 Intensivista, Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP), Brasil.

5

 Médica Residente UTI Adultos, Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP), Brasil.

6

 Parasitologista do Laboratório Clínico, Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP), Brasil.

Autor correspondente: Jacyr Pasternak – Av. Albert Einstein, 627 – consultório 1316 – 13º andar – Morumbi – CEP 05651-901 – São Paulo (SP), Brasil - Tel.: 11 3747-2430 – e-mail: [email protected] Data de submissão: 22/11/2006 – Data de aceite: 19/3/2007

einstein. 2007; 5(2):170-172

Um caso de infestação de orofaringe por Cochliomyia hominovorax

A maioria das larvas se alimenta somente de tecido necrosado e, por causa dessa preferência, são usadas em bioterapia larval de úlceras cutâneas infectadas, inclusive as profundas(11-12). No entanto, a Cochliomya hominivorax alimenta-se de tecidos normais e suas larvas podem migrar para o cérebro, pulmão e outros órgãos, nos quais a infestação por essa espécie pode causar óbito. No Brasil, algumas miíases são comuns, inclusive a tungíase, uma das causas mais freqüentes que levam os moradores de favelas de Fortaleza, no nordeste brasileiro, a procurar atendimento médico pediátrico(13). Ademais, no Brasil já se encontrou noma associado à miíase oral(14). Um caso de miíase ocular maciça causada por Cochlyomia hominivorax e enucleação do globo ocular em um homem de 80 anos de idade que foi abandonado pela família e estava morando sozinho na área rural foi recentemente relatado por oftalmologistas brasileiros(15).

Figura 1. Miíase de orofaringe

OBJETIVO Apresentar um caso de miíase com risco de morte em um paciente previamente  sadio, de bom nível socioeconômico e discutir seu tratamento. RELATO DE CASO Um homem saudável de 63 anos de idade, com nível socioeconômico muito bom, deu entrada no pronto-socorro apresentando tosse, dificuldade respiratória e escarro com sangue. O paciente mora em São Paulo, a maior cidade do Brasil, e não havia tido contato com animais de fazenda nem havia visitado áreas rurais, exceto por um churrasco uma semana antes de ir ao hospital, em um sítio onde não havia criação de gado. Lembra de ter dormido em uma

171

rede depois do almoço no sítio. Ele normalmente respira pela boca. Fez uma consulta ao otorrinolaringologista e seu escarro foi enviado ao laboratório clínico: na amostra de escarro foram encontradas muitas larvas de bom tamanho. Depois, foi encontrada a presença de larvas na boca. Foi realizada uma endoscopia e foram encontradas muitas larvas na faringe e esôfago. Ele desenvolveu dificuldade respiratória e recebeu ivermectina oral 200 µg/kg, pois não havia ivermectina IV disponível e, em seguida, foi enviado à sala cirúrgica. O cirurgião removeu cerca de 100 larvas ainda vivas do tecido do pescoço, enquanto algumas estavam chegando perto de sua vértebra. Após a cirurgia, ele recebeu mais uma dose de ivermectina. O paciente recuperou-se bem da cirurgia e recebeu alta do hospital depois de quatro dias sem apresentar seqüelas. As larvas foram identificadas como sendo de Cochliomya hominivorax, posteriormente confirmado pelo Departamento de Parasitologia do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo. Em virtude do tamanho das larvas, determinamos que os ovos foram postos na faringe do paciente de três a sete dias antes do desenvolvimento dos sintomas.

DISCUSSÃO Casos de miíase grave geralmente ocorrem em pacientes de baixo nível socioeconômico, freqüentemente associado a históricos concomitantes de abuso de álcool, isolamento social, e pobreza(16). Existem relatos da ocorrência de miíase em crianças(17) e adultos(18) com endoftalmite, também em pacientes muito pobres. No entanto, esse caso mostra que a miíase pode ocorrer em moradores urbanos de excelente nível socioeconômico. A Cochliomya hominivorax existe no Brasil e acarreta um risco de miíase humana afetando tecidos normais. Encontramos um relato de caso de miíase faríngea na cidade de São Paulo com pouquíssimos detalhes em uma revista brasileira não indexada de 1940(19). O diagnóstico, em nosso caso específico, não apresentou problemas e geralmente depende de demonstrar a existência de larvas, muitas vezes pelo próprio paciente(16). Com relação ao tratamento, esse paciente teve que ser submetido à remoção cirúrgica das larvas e recebeu ivermectina oral. A ivermectina é um antiparasitário de uma classe de compostos conhecida por avermectinas. É um endectocida macrolídeo com atividade contra endoparasitas e ectoparasitas(20). A ivermectina primeiro foi usada no tratamento de miíase em animais e seu sucesso levou ao uso em humanos no tratamento de várias doenças parasitárias(16), inclusive a infestação por Cochliomya hominivorax, como mostrado em um recente relato de caso brasileiro, assim como em outros casos citados na literatura(14-16,20), provando ser eficaz nesse caso. einstein. 2007; 5(2):170-172

172

Pasternak J, Joo SH, Ganc AJ, Durão Junior MS, Morsh RD, Pinto TH

Esta doença foi erradicada nos EUA por meio de medidas de saúde pública, pela liberação de machos estéreis para competir com machos nativos, pois as moscas acasalam apenas uma vez. O Brasil tem muitos problemas de saúde pública que provavelmente são mais importantes do que essa miíase, mas como uma solução perfeita para a prevenção dessa infestação é conhecida e está disponível, ela deveria ser adotada, uma vez que essa infestação pode levar ao óbito.

REFERÊNCIAS 1. Matthew Pearl. The Dante Club. New York: Random House; 2004. 2. Hirshman JV, Richardson P, Kraemer RS, Mackowiak PA. Death of an arabian jew. Arch Intern Med. 2004;164(8):833-9. 3. Simini B. Job’s dermatosis. Lancet. 1998;351(9119):185. 4. Hyun D, Cain M, Blue-Hnidy DE, Conway JH. Urinary myiasis associated with ureteral stent placements. Pediatr Infect Dis J. 2004;23(2):179-81. 5. Bapat S. Neonatal myiasis.  Pediatrics. 2000;106(1):e6.

9. Sherman RA. Wound myiasis in urban and suburban United States. Arch Intern Med. 2000;160(13):2004-14. 10. Beckendorf R, Klotz SA, Hinkle N, Bartholomew W. Nasal myiasis in an intensive care unit linked to hospital wide mouse infestation. Arch Intern Med. 2002;162(6):638-40. 11. Woff H, Hansson C. Larval therapy – an effective method of wound debridement. Clin Exp Dermatol. 2003;28(2):134-7. 12. Claxton M, Armstrong D, Short B, Jefferey R, Boulton JM. 5 questions and answers about maggot debridement therapy. Adv Skin Wound Care. 2003;16(2):99-102. 13. Heuklbagh J, van Haeff E, Rump B, Wilcke T, Moura RCS, Feldmeier H. Parasitic skin disease: health care seeking in a slum in north-east Brazil. Trop Med Int Health. 2003;8(4):368-73. 14. Aguiar AMM, Enwonwu CO, Pires FR. Noma (cancrum oris) associated with oral myiasis in an adult : a case report. Oral Dis. 2003;9(3):158-9. 15. Pierre-Filho PT, Minguini N, Pierre L, Pierre A. Use of ivermectin in the treatment of orbital myiasis caused by Cochliomyia hominivorax. Scand J Infect Dis. 2004;36(6-7):503-5. 16. Osorio J, Mancada L, Molano A, Valderrama S, Gualtero S, Franco-Paredes C. Role of invermectin in the treatment of severe orbital myiasis due to Cochliomyia hominivorax. Clin Infect Dis. 2006;43:e57-9.

6. Lata J, Kapila BK, Aggarwal P. Oral myiasis: a case report. Int J Oral Maxillofac Surg. 1996;25(6):455-6.

17. Gozum N, Kir N, Ovali T. Internal ophtalmomyiaisis presenting as endophtalmitis associated with an intraocular foreign body. Ophthal Surg Lasers Imaging. 2003;34(6):472-4.

7. Sweis IE, Griffith HB, Pensker J. Souvenirs from Belize: the botfly and the screwworm fly. Plast Reconstr Surg. 1997;99(3): 868-70.

18. Buettner H. Ophtalmomyiais interna. Arch Ophthalmol. 2002;120(10):1598-9.

8. Uriarte FJ, Ell SR. Doctors, there are maggots in my nose. J R Soc Med. 1997;90(11):634-5.

einstein. 2007; 5(2):170-172

19. Amaral ADF. Observações em torno de dois casos de miiase humana pela C. hominivorax. An Paul Med Cir. 1940;XXXIX (5):404-5. 20. Dourmishev AL, Dourmishev LA, Schwartz RA. Ivermectin: pharmacology and application in dermatology. Int J Dermatol. 2005;44(12):981-8. Review.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.