Um comentário sobre a escravidão no Brasil colonial sob a visão de Caio Prado Júnior e Alberto Torres

June 7, 2017 | Autor: J. Fleck | Categoria: escravidão no Brasil, Caio Prado Jr., Brasil Contemporâneo, Alberto Torres
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universidade tecnológica federal do paraná

ANA PAULA GOMES
ESTELITA SANDRA DE MATIAS
JOÃO CRISTIANO FLECK
MARCELA ADRIANA ALISKE

UM COMENTÁRIO SOBRE A ESCRAVIDÃO NO BRASIL COLONIAL
SOB A VISÃO DE CAIO PRADO JÚNIOR E ALBERTO TORRES

CURITIBA
AGOSTO 2012
ANA PAULA GOMES
ESTELITA SANDRA DE MATIAS
JOÃO CRISTIANO FLECK
MARCELA ADRIANA ALISKE

UM COMENTÁRIO SOBRE A ESCRAVIDÃO NO BRASIL COLONIAL
SOB A VISÃO DE CAIO PRADO JÚNIOR E ALBERTO TORRES

TRABALHO APRESENTADO AO CURSO DE
ESPECIALIZAÇÃO EM LITERATURA BRASILEIRA
E HISTÓRIA NACIONAL, DEPARTAMENTO DE
COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO, DISCIPLINA
"FORMAÇÃO DO PENSAMENTO POLÍTICO
BRASILEIRO", UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA
FEDERAL DO PARANÁ

Orientador: Prof. Dr. Rafael Augustus Sega

Curitiba
agosto 2012
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 4
1 NOTA SOBRE O MÉTODO TORREANO: O MISTER DE ALBERTO TORRES 8
1.1 ROÇA E RAÇA: ANTIRRACISMO E ESCRAVIDÃO EM ALBERTO TORRES 11
2 CAIO PRADO E O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO 18
CONSIDERAÇÕES FINAIS 27
REFERÊNCIAS 29


introdução

O PRESENTE TRABALHO VISA A ESTUDAR AS OBRAS A ORGANIZAÇÃO NACIONAL,
DE ALBERTO TORRES, E FORMAÇÃO DO BRASIL CONTEMPORÂNEO, DE CAIO PRADO JR., E
LITERATURA EVENTUALMENTE ASSOCIADA TANTO ÀS PRODUÇÕES QUANTO AOS AUTORES.
TRATA-SE DE APRESENTAR OS CONTEÚDOS E DE LER OS VOLUMES EM CONJUNTO
BUSCANDO SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS, CONCORDÂNCIAS E NEGATIVAS, INICIALMENTE
SOBRE UM PANORAMA MAIS GERAL, MAS TENDO COMO PONTO PRINCIPAL, OU FOCO DE
CONVERGÊNCIA, O FATO DA HISTÓRIA NACIONAL QUE REPRESENTOU A ESCRAVATURA.
Embora abordemos tal assunto mais adiante, convém desde pronto
destacar que o fato de se tratarem de escritores assim relativamente
apartados no tempo cronológico de vida e de publicação das obras, como
também distintos em suas opções de atuação – um é político e, o outro,
historiador –, não só a essência do enfoque factual (Brasil e escravidão)
os aproxima, senão também que ambos recebem, de críticos estudados ao longo
do curso, o atributo de elementos fundadores do pensamento social nacional,
e a curiosa menção de se utilizarem de conhecimentos científicos dos mais
variados e eventualmente correntes filosóficas (positivismo e marxismo) sem
necessariamente tomá-los como um fim em si.
Alberto Torres reiteradamente tratará de denegar valor ao que chama
de "modelos abstratos", buscando um proceder que Teotônio Simões (2002)
chega a intitular "método torreano", enquanto, como diz Bernardo Ricupero
(2011): "Prado Jr. enxerga o marxismo principalmente como um método para
interpretar e transformar a realidade, e não como um conjunto de fórmulas
com pretensa validade universal".
Assim, dadas essas aproximações de meio, partimos à análise dos
produtos finais destes, dir-se-ia, fundadores do pensamento histórico,
político e social do Brasil.
Cabe, neste ponto, uma breve biografia dos autores em pauta.
Alberto de Seixas Martins Torres nasceu em 26 de novembro de 1865, em
Porto de Caxias, Rio de Janeiro. Tendo completado os estudos secundários,
cursa Medicina e, pouco depois, faz o curso de Direito, primeiramente em
São Paulo e, no ano de 1885, no Recife.
Trabalha como advogado no Rio de Janeiro, atuando também como
político e jornalista, tendo sido deputado à Assembleia Constituinte do
Estado do Rio de Janeiro (1892), deputado federal, ministro da Justiça e
Negócios Interiores, presidente do Estado do Rio de Janeiro e ministro do
Supremo Tribunal Federal, onde se aposentou, em 1909, por razões de saúde.
Torres foi abolicionista e republicano convicto desde a juventude.
Mais tarde seus ideais concentram-se no pacifismo internacional,
direcionando-se, por fim, para uma concepção nacionalista da história,
advinda durante sua segunda legislatura federal, quando da discussão de
projetos sobre seguros e remessa de lucros para o exterior. Suas obras mais
conhecidas, A organização nacional e O problema nacional, nasceram de
artigos publicados na imprensa, para a qual sempre escreveu.
Preocupado com a realidade brasileira, propõe a reforma da
Constituição de 1891, em que sugeria um legislativo que também
representasse as classes profissionais e a criação de um Poder Coordenador,
algo como um Poder Moderador e Conselho de Estado republicanos.
Em As fontes da vida no Brasil, sua última obra, o autor reafirma a
defesa do nacionalismo étnico-social.
Alberto Torres, cuja obra tem sua relevância para se pensar a
construção do pensamento social e político nacional, morreu em 29 de março
de 1917, no Rio de Janeiro.
Caio da Silva Prado Jr. nasceu em São Paulo no dia 11 de fevereiro de
1907, filho de Caio da Silva Prado e Antonieta Penteado da Silva Prado
(adaptado de Nota sobre o autor, de PRADO JR., 2011, p.431-433). Sua
família pertencia à mais alta aristocracia cafeeira local, tendo rendido
muitos políticos na República Velha. Caio Prado cursou a Faculdade de
Direito do Largo de São Francisco, onde começou sua atuação política.
Filiou-se em 1928 ao Partido Democrático, no qual foi figura atuante. Nas
eleições presidenciais de 1930, seu partido apoiou Getúlio Vargas contra
Júlio Prestes, e Caio Prado envolveu-se com afinco na campanha. Eleito
Prestes, teve papel importante na coordenação das forças revolucionárias em
São Paulo. Vitorioso o movimento que levou Vargas ao poder, Caio Prado
trabalhou em comitês de inquérito no interior do estado, para apurar
desvios cometidos nos governos anteriores. Logo desiludido com o regime
varguista, e em período de radicalização de suas ideias políticas, filiou-
se, em 1931, ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), que ainda contava com
pouca expressão no cenário político nacional. No novo partido, dedicou-se
ao trabalho de organização do proletariado. Militando na esquerda,
posicionou-se contrariamente à Revolução Constitucionalista de 1932, em
clara oposição à sua classe, a alta burguesia local, que aderira
maciçamente ao movimento. Marxista, fez uma espécie de nacionalização do
marxismo, aplicando o materialismo histórico à realidade brasileira. Nessa
época escreveu o breve ensaio Evolução Política do Brasil (1932), talvez a
primeira análise materialista da história brasileira, que rompia com a
historiografia descritiva até então praticada. A partir desse momento
iniciou-se seu dissenso com a agenda do PCB, que preconizava a existência
do feudalismo no Brasil colonial, tese combatida por Caio Prado Jr. (esta
posição seria aprofundada em Formação do Brasil Contemporâneo). Em 1933
viajou à União Soviética, advindo daí, em 1934, a sua obra URSS, um novo
mundo, apreendida pela polícia em sua segunda edição. No início dos anos
1930 participou do movimento que culminaria na criação da Aliança Nacional
Libertadora (ANL), presidida por Luís Carlos Prestes, e estudou história e
geografia na recém-fundada Universidade de São Paulo. Como vice-presidente
da ANL em São Paulo e com o recrudescimento da repressão depois da
tentativa de levante armado que a entidade organizou no Nordeste – a
chamada Intentona Comunista –, foi preso em 1935. Conseguiu dois anos
depois a libertação e se exilou na Europa. Lá se juntou aos grupos que
trabalhavam na fronteira entre França e Espanha, promovendo a passagem de
voluntários que queriam participar da luta antifascista. Depois de um
período em Mégève, nos Alpes franceses, voltou ao Brasil, em 1939. Num
ambiente político mais arejado, propiciado pela adesão brasileira ao
esforço de guerra dos Aliados, lançou Formação do Brasil Contemporâneo, em
1942. No ano de 1943, fundou a livraria e editora Brasiliense e a gráfica
Urupês. Em 1945 publicou História econômica do Brasil. Com a queda de
Vargas neste mesmo ano, o PCB voltou à legalidade e, dois anos depois, CPJ
elegeu-se deputado estadual por São Paulo. Sua passagem na Assembleia
Legislativa foi curta, pois em 1948 o PCB voltou a ser proscrito. Nos
próximos anos dedicou-se à edição da Revista Brasiliense, ao lado do primo
Elias Chave Neto. Nesse periódico se concentraria grande parte de sua
produção intelectual no período. Em 1954 concorreu à cátedra de economia
política da Faculdade de Direito da USP. Para o concurso escreveu a tese
Diretrizes para uma política econômica brasileira. Não foi integrado ao
corpo docente, em virtude do perfil então conservador da instituição, mas
recebeu o título de livre-docente, que lhe foi cassado em 1968. Desde 1964
voltou a visitar as prisões, mas, já afastado da militância cotidiana,
ganhou por fim a liberdade. Com a aposentadoria de Sérgio Buarque de
Holanda da cátedra de história do Brasil da USP apresentou-se para
concorrer ao posto, ocasião para a qual escreveu História e
desenvolvimento, mas no ambiente fortemente repressor de então o concurso
não chegou a ser realizado. Casou-se em primeiras núpcias, em 1929, com
Hermínia Ferreira Cerquinho, com quem teve dois filhos: Yolanda e Caio
Graco. Em 1942 casou-se com Maria Helena Nioac, com quem teve o filho
Roberto. Casou-se uma terceira vez, com Maria Cecília Naclério Homem.
Publicou Dialética do conhecimento (1952), Esboço dos Fundamentos da Teoria
Econômica (1957), Introdução à lógica dialética (1959), O mundo do
socialismo (1962), A revolução brasileira (1966), Estruturalismo de Lévi-
Strauss – O marxismo de Louis Althusser (1971), A questão agrária no Brasil
(1979), O que é Liberdade (1980), O que é Filosofia (1981) e A cidade de
São Paulo (1983). Faleceu em São Paulo em 1990.
1 NOTA SOBRE O MÉTODO TORREANO: O MISTER DE ALBERTO TORRES

NA VERDADE, A ESSÊNCIA DA ABORDAGEM QUE NORTEIA OS ENSAIOS DE ALBERTO
TORRES PARECE SER BEM ASSIMILADA LOGO NA PRIMEIRA SENTENÇA DO TEXTO CRÍTICO
DE ROLF KUNTZ (2002, S.P.): "SOLUÇÕES POLÍTICAS NÃO SE INVENTAM: SÓ SE PODE
PRODUZI-LAS OBSERVANDO A TERRA E A GENTE, PARA IDENTIFICAR OS INTERESSES
GERAIS E PERMANENTES DO PAÍS", CORROBORADA TAMBÉM POR FRANCISCO IGLESIAS
(1978, P.27):

Não era um improvisador, mas alguém que atuava ou escrevia
como resultado de amplo esforço de análise. Como escritor
sua obra resulta da observação atenta de seu meio, bem
mais que de leituras, de absorção de idéias alheias sem a
necessária experiência pessoal.

Verificamos pela nota biográfica que, de forma muito coerente, o
nosso autor em tese vai de fato falar de coisas e cenários que não apenas
viveu intensamente intelectualmente, mas nos quais foi personagem e, dir-se-
ia mesmo: protagonista. Assim, embora isso seja bastante singular na
produção intelectual pátria (a prioridade à experiência, "observando" e
"identificando"), não surpreende que o que chamaríamos de um primeiro
inimigo nos ensaios sejam os modelos abstratos, teóricos. "À aplicação
direta das lições de filósofos e doutrinadores devem-se os maiores
desastres da política contemporânea", Torres ensina (1978a, p.46). É desta
feita que, a despeito de alguma crítica de pouco leitor, e já vinculando-o
a Caio Prado Jr., Alberto Torres descarta a aplicação estrita dos
princípios ideais marxistas à realidade brasileira. Em uma nação com
indústria insipiente ou mesmo inexistente, sem uma massa proletária de fato
ou pelo menos significativa, não caberia aplicar regimes importados, com
foco nos grandes centros urbanos europeus, pois "põe-se à margem o grande e
vital problema das populações rurais e urbanas que não são nem capitalistas
nem proletárias, e cujos interesses não se apresentam com aspecto de
conflitos entre o capital e o trabalho". E se poderia adiantar que não é só
uma questão de inadequação, senão o fato de que também o modelo de Marx não
abraçaria toda a gente, não servindo ao propósito totalizante de
organização nacional do autor fluminense. Seriam estes deixados de fora os
mesmos "desclassificados" de Caio Prado Jr.?
Torres ataca também o modelo liberal. No entanto, aqui o enfoque é
outro, pois a vítima da atuação desta forma política é o "Estado".
Considerando que a base do liberalismo é permitir a atuação dos entes
privados, os ensaios apontam um aproveitamento das funções do Estado, uma
usurpação, justo por esses grupos. E poderíamos logo vincular esta
interpretação – o ensaísta chega mesmo a dizer que "a democracia reduziu o
poder do Estado" (1978a, p.40) – ao momento histórico que se vivia; tempos
da república velha e da alternância no poder das oligarquias do sudeste. O
encorajamento das ambições, em detrimento de uma busca pelo comunitário,
deixava o Estado suscetível à manipulação exatamente por aqueles
interesses. Uma verdadeira formação de "Estados no Estado", representando a
dispersão da autoridade central, para o formato em que "associações de
apoio recíproco" rateavam esse significativo poder entre si. "Toda força
social tende a constituir seu jus imperii" (1978a, p.42), analisa, com
olhar de experiência e psicologia. Destarte, passava-se a promulgar leis, e
se utilizar outros poderes coercitivos privativos dos entes públicos, como
o policiamento, para proteger, e a máquina como um todo, para sustentar
esses grupos de interesses individualistas. Cabe já ressaltar que, mais
adiante na obra, esta questão do uso do Estado reflete obviamente na
"gente" brasileira: "a educação dada ao homem policiado habituou-o à
disciplina, sem lhe revelar a noção da ordem natural" (negrito nosso,
1978a, p.117).
É certo que abordamos apenas metonimicamente o combate dado aos
modelos abstratos citados. Tanto em O problema nacional brasileiro como em
A organização nacional a análise é bem ampla. Apenas que o objetivo maior
de organicidade defendido por Alberto Torres não se manifesta somente na
promoção desse princípio, mas na própria composição de seu texto. E
primando, ou buscando, também por uma originalidade – Kuntz (2002, s.p.)
diria: "uma solução brasileira" –, a tarefa de resumir o modelo Torreano,
ou mesmo de apresentar excertos (trazer órgãos do texto à dissecação) é
árdua e com facilidade tende a levar o organismo (a ordem textual) a uma
ausência de vitalidade. Neste passo, quando se diz que "nos países vastos e
despovoados, o homem tende para o individualismo como, nos de densa
população, tende para o socialismo" (idem, p.67), é fácil ver-se simplória
prepotência, em vez de fruto de "observação" da "experiência". E justifica-
se este parágrafo-parênteses porque a fórmula de Alberto Torres não nasce
como oposição aos citados modelos (aliás ele critica esse tipo de
concepção), mas do que o autor entende como (fruto) natural da terra, mesmo
que este estudo não o consiga transparecer. Pois:

[...] – vivemos numa contínua oscilação entre criações e
reformas que não nascem de sua própria célula germinal,
natural, oportuna, para desenvolverem-se de embrião em
organismo e de organismo em ser adulto, mas surgem, pelo
contrário, como por encanto, do consórcio da ambição,
quase sempre nobre, dos homens públicos com as teorias do
último livro lido ou da escola em voga –, para ruírem por
terra dentro em pouco, por inadaptáveis e inoportunas
(1978a, p.49).

De qualquer forma, a citação apenas retoma a temática da nossa
enunciação inaugural ("observando a terra e a gente") e o negrito que
deixamos encerrando o parágrafo sobre o Liberalismo. "Tudo está em
distinguir as pequenas leis naturais da vida, a que deveríamos conformar o
proceder [...]", nos diz Alberto Torres (1978a, p.93). Coisa que faz
compreender quando analisamos que, mesmo sendo um jurista de formação, ele
prenuncia a existência de formas de construção orgânica mais apropriadas
que a aplicação de leis, agravada pela atuação daqueles grupos que citamos:

Esta posição criou a Moral judicial, antítese da Moral do
amor e da Moral da liberdade e do trabalho; e os
indivíduos passaram a agir sobre as próprias pessoas e
sobre as dos semelhantes [...]. À Moral judicial cumpre
substituir a Moral política, isto é, a Moral das soluções
(1978a, p.43).

Prosseguindo:

Nos problemas humanos e sociais, a que se reduzem, afinal,
todos os problemas da vida, a Moral é o gérmen da
atividade. Mas a Moral destina-se a ser realizada: não se
destina a ser imposta; [...].A preocupação da Moral e a
ação exclusiva da Moral não fazem Moral, porque a Moral é
uma abstração, a abstração não se realiza senão retomando
seu lugar na síntese concreta da vida: [...] (1978a, p.44-
5).

Tendo, então, apenas vislumbrado alguns dos valores em que Alberto
Torres busca a semente ("gérmen") do seu planejamento orgânico para o
Brasil (os negritos acima), antes de passarmos à próxima seção e
verificarmos e detalharmos tal, concluímos, em convergência até com a
biografia, que o mister, a área de atuação do nosso autor, ficam bem
descritos no seu excerto abaixo, em que fala das gentes, suas relações, e
revela a "Moral das soluções":

Não há problemas exclusivamente biológicos, psicológicos,
jurídicos, ou morais, na vida do homem; há problemas
humanos e problemas sociais; não há conflitos entre as
ciências e as artes do mundo: há erros, na síntese das
idéias especiais que se devem conglobar em conceitos
genéricos relativos à atividade humana, ou erros de
aplicação. Na vida social todos os ramos do espírito e do
caráter convergem, na prática, para uma arte geral: a
Política (1978a, p.45-46).


1.1 ROÇA E RAÇA: ANTIRRACISMO E ESCRAVIDÃO EM ALBERTO TORRES

SEGUINDO O PADRÃO DA SEÇÃO ANTERIOR, A PRIMEIRA PROBLEMÁTICA QUE SE
NOS IMPÕE ANALISAR NO TEXTO DO AUTOR EM TESE É TAMBÉM UM MODELO ABSTRATO.
DA CONSTRUÇÃO QUE TINHA OS ARES DE CIÊNCIA À ÉPOCA: A EXISTÊNCIA E
DETERMINAÇÃO DE RAÇAS NA HUMANIDADE. FRANCISCO IGLESIAS JÁ NOS ADIANTARIA A
CONCLUSÃO REVELANDO QUE:

O ensaio "Em prol das nossas raças" é afirmação de fé no
Brasil, com o estudo das teorias raciais, mestiçagem,
cruzamento, forças e fraquezas. O autor condena as idéias
de superioridade, como frutos de imaginação ou
racionalização do poder, em correta perspectiva (IGLESIAS,
1978, p.21).

Bem enraizado na observação da realidade, em leitura a O problema
nacional brasileiro e A organização nacional, podemos verificar o que se
poderia chamar sem erro de uma postura antirracista. Teremos menções, por
exemplo, de que a "nossa raça [brasileiros] é inseparável de um certo grau
de socialismo de Estado" (IGLESIAS, 1978, p.91), além da utilização de
termos como "raça etíope, de Blumenbach" (TORRES, 1978b, p.18), mas, estes,
sempre como elementos a serem contestados ou negados em detrimento da
realidade atual constatada, como veremos. E, anacronicamente, sabendo que
se formavam os movimentos totalitaristas nacionalistas, é possível até
mesmo inferir conclusões que desfavorecem verificar Alberto Torres como
encorajador de tais ideais.
É logo no início de O problema nacional brasileiro que o tema é
abordado:

A idéia de "raça" é uma das mais abusivamente empregadas
entre nós. A raça é um tipo biológico, e, particularmente,
morfológico, da espécie humana. Para que se possa
determinar distinção étnica, é mister que se encontrem
caracteres físicos e psíquicos, distintamente marcados, de
identidade entre grande massa de indivíduos, e de
divergência destes com outros grupo (TORRES, 1978b, p.18).

Sendo que a própria definição científica faz já falhar qualquer
conclusão determinista biológica estrita, pois, e ele conclui a seguir: "o
número das raças puras é limitadíssimo, sendo poucos, em nossos dias, os
exemplares de verdadeiros espécimes de raças, virgens de mescla", restando
essencialmente tipos compósitos, que já não permitem assertivas dignas de
confiança e verificação. Na verdade, trabalhando já mais elaboradamente os
conceitos nacionalistas europeus à luz da História, n'A organização
nacional podemos até encontrar uma conclusão prospectiva, baseada naquele
critério de "observação" que estamos sempre a ressaltar, bem acertada, a
qual grifamos:

A idéia de "nacionalidade", no sentido clássico, é a que
se procura representar, em regra, com a palavra "raça".
[...] A pretensa unidade da raça indo-européia é simples
ficção, resultante do predomínio político dos árias sobre
as populações primitivas dos territórios conquistados, e,
ainda depois da invasão dos árias, não é difícil
encontrar, em quase todos os países europeus, fortes
elementos migratórios estranhos: turanianos, mongóis,
berberes, semitas de várias origens, etc.
O pleno conhecimento do globo, de sua geografia física,
política e econômica, o imenso desenvolvimento dos meios
de comunicação, transporte e comércio, a intensa expansão
da iniciativa e da ambição, multiplicam e avolumam
migrações individuais e coletivas.
Essas migrações continuarão a ser intensas e repetidas, de
forma a impedir a formação e persistência de tipos étnicos
(grifos nossos, TORRES, 1978a, p.115).

Ora, prossegue o autor, depois de ter analisado brevemente a história
do continente africano, passando mesmo pela narrativa de um viajante
cartaginês sobre o considerável grau de evolução que lá encontrou, tratando
já sobre os tipos étnicos que compõem o Brasil, destarte: "seria simples
pretensão de vaidosa nobreza étnica afirmar que o brasileiro negro ou índio
é inferior ao branco. Mais de uma memória ilustre protesta contra a
sentença de incapacidade dos nossos negros; [...]". (TORRES, 1978a, p.119).
Contudo, já na conclusão daquele excerto d'O problema nacional
brasileiro poderíamos ter verificado qual o critério relevante a este autor
cuja arte, como dissemos, é a política e cujo foco são os problemas humanos
e sociais:

É, assim, dificílimo generalizar juízos sobre a capacidade
específica das diversas raças: a confusão tem obliterado
os caracteres étnicos; os trâmites da evolução nacional e
política realçaram, por força dos costumes e das
instituições, os fatores puramente sociais de seleção
(grifo nosso, TORRES, 1978b, p.18).

Não se trata, logo, do atualmente abominável determinismo biológico,
mas dos então moderníssimos, e ainda hoje muito caros, estudos sociais. No
entanto, em solo patrício vigorava, até não muito tempo antes da publicação
das obras citadas, a escravidão. Cabe verificar o enfoque dado a ela:

O negro é, de há muito, uma das caricaturas do humorismo
literário. Único escravo dos tempos modernos, recebeu,
ainda mais, sobre os ombros, toda a carga dos labéus da
escravidão. A escravidão – sorte de vencidos e comutação
da morte, para povos inermes, em que caiam, igualmente,
raças incultas e povos abatidos, como os gregos que iam,
entretanto, ensinar artes, letras, ciências e filosofia, a
seus poderosos senhores romanos – é de uma das
instituições amaldiçoadas pela magistratura crítica
(TORRES, 1978b, p.20).

Novamente recorrendo à História, talvez confiando na sua biografia (e
bibliografia produzida eventualmente em periódicos) de abolicionista
precoce, Alberto Torres não se delonga sobre o instituto da escravidão per
se. Mesmo porque, como vimos, seu enfoque vai em seguida buscar novamente o
social:

A escravidão foi, entretanto, uma das poucas coisas com
visos de organização, que este país jamais possuiu; [...].
Social e economicamente, a escravidão deu-nos, por longos
anos, todo o esforço e toda a ordem que então possuíamos,
e fundou toda a produção material que ainda temos. A moral
dos seus costumes foi superior à das relações,
desapiedadamente cruas, dos anglo-saxônios com os pretos e
indígenas, nos Estados Unidos (TORRES, 1978b, p.20).

Embora certamente esta seja a citação mais popular do nosso autor
(Caio Prado a retomará), convém verificarmos todo o seu contexto. Embora
aqui já possamos começar a constatar uma certa relativização da gravidade
do regime servil, na comparação com os Estados Unidos, e que nos será útil
mais adiante.
Verificamos, ao prosseguirmos a leitura, um outro elemento, pois:
"toda a operosidade deste país, tudo quanto nele se edificou como fonte de
riqueza e de trabalho, o pouco que já possuimos em estabilidade social e
dinamismo orgânico progressivo, assenta sobre a labuta do preto e sobre o
esforço do senhor" (TORRES, 1978b, p.20).
E nossa cultura casualmente televisiva atual faz esquecer que nem
todas as propriedades eram de senhores que levavam a vida de "cavalheiros",
possuidores de uma enormidade de escravos, senão que também havia os muitos
senhores que trabalhavam lado a lado com os poucos escravos. E, em certo
sentido, mesmo a "família patriarcal" de autores que viriam a seguir também
encontram em Alberto Torres alguma precursão:

O senhor de escravos – o das primeiras gerações
colonizadoras, em realce [...] – foi um explorador da
terra ignorante e desavisado, mas incansavelmente
laborioso. Na vida própria do interior, a gente que, na
'fazenda', formava a nossa família rústica, era ocupada e
ativa como a de qualquer outro povo agrícola (TORRES,
1978b, p.20).

No entanto, aqui começamos a identificar um dos pontos que
consideramos relevante ao nosso entendimento do "mister" que citamos.
Começa-se a chamar a atenção para um dos valores elevados buscados pelo
autor. Ele fica mais evidente no prosseguimento do texto:

Os que conhecem, por observação direta, os nossos antigos
costumes, sabem que, na roça, entre os que lá se
conservavam, e, nas cidades, entre os que mantinham os
hábitos ali adquiridos, a vida doméstica era ocupada, e os
homens esforçavam-se por produzir. (TORRES, 1978b, p.20).

Começa a surgir essa relevância, citada acima no texto como a "moral
do trabalho" e os "costumes". Coisa que faltará ao outro tipo humano que
sofreu igualmente com o instituto da escravidão:

Para outro lado do horizonte social, nosso sentimento nos
impele a correr para o problema da civilização dos índios.
[...] Nada conheço dos processos de educação empregados
entre nós. Não vejo, contudo, como se possa depositar
confiança em sistemas educativos que mantêm os selvagens
isolados em colônias, em contato exclusivo com
eclesiásticos ou com soldados, sem o convívio de um meio
social ordinário, onde adquiram os hábitos e a prática da
civilização, que se não aprendem por tradição, e são
entretanto, a base dos costumes e do saber elementar da
vida (TORRES, 1979a, p.48).

Relembrando aqui aquele estigma policialesco e limitante de efeito
nas gentes que mencionamos na seção anterior (final do parágrafo sobre
Liberalismo), novamente vemos a importância dada ao "saber elementar da
vida", à "roça", à cultura do campo. Ao que pensamos em Alberto Torres como
a "ordem natural" numa nação "naturalmente voltada para a agricultura". Na
verdade, o prosseguimento do texto vai trazer um curioso exemplo de
inversão. Se as teorias raciais apontavam para a existência de "raças
degeneradas", o nosso autor vai demonstrar que ela se dá ao contrário, pela
ambição e individualismos, motores tão caros ao Liberalismo:

[...], o curso de um povo que se dissolve: progredindo em
luxo, em ambição fácil, em vaidades, em fatuidade, em
despreocupação das coisas sérias, nas classes elevadas –
menos cultas e menos civilizadas, em geral, que as das
gerações que nos precederam –, e ociosa, indolente,
dominada pelo vício, pelo álcool, pelo jogo, exposta a
toda espécie de infecções, nas classes inferiores. O
problema da cultura do indivíduo e o da construção
estrutural da sociedade continuam a ser assuntos em branco
em nossos anais (TORRES, 1979a, p.48).

De fato, também n'O problema nacional brasileiro este temor de
dissolução já aparecia. Lê-se:

Onde o nosso caso mostra as causas específicas da futura
dissolução, é nos contatos da vida urbana com a do campo,
na interpenetração da civilização, que íamos fazendo, com
a economia que possuíamos: na fusão dos costumes das
cidades, com os costumes da roça (TORRES, 1978b, p.20).

Este contato com as cidades, propiciado pela melhora nos meios de
transporte como as ferrovias iria aos poucos trazendo aquele apreço pela
"vaidade", pela "despreocupação com as coisas sérias". Ia acabando com o
que Torres associará mais tarde a "lirismo natural da vida" (TORRES, 1978a,
p.54).

A multidão de gente, enfim, que, na Inglaterra, nos
Estados Unidos, na Alemanha, na França, em todos os países
civilizados, não se submete mais, apenas de posse de um
diploma de primeiras letras, aos trabalhos da lavoura,
correndo a procurar, nas cidades, empregos e negócios de
vida fácil (TORRES, 1978a, p.53).

De toda a forma, retomando o tema para concluir esta seção, "a
abolição fez-se e a lavoura ficou desorganizada" (TORRES, 1978a, p.58). E
um sistema político habituado a solver apenas problemas imediatistas, sem
planejamento, ficou sem "braços para as fazendas", e pensou-se, como
outrora se importava escravos, "continuou-se a pensar em importar colonos,
para o trabalho assalariado; [...]" (TORRES, 1978a, p.101). A raiz desse
problema, no entanto, talvez estivesse bem antes no passado. À luz da
leitura de Caio Prado, a ser efetuada na sequência, verifica-se também em
Torres algumas considerações sobre o Brasil colônia, o móvel do aventureiro
e da ambição:

Os descobrimentos da América abriram nova era à história
da distribuição demográfica e da evolução do homem; [...].
No período colonial, as populações imigradas traziam, com
o nexo político de fidelidade à metrópole, com a tradição
patriótica e com identidade da língua e da religião, um
incentivo novo e ardentíssimo. [...].Os países de origem
colonial têm por móvel psíquico de formação a cobiça
desordenada de aventureiros (TORRES, 1978a, p.99).

Mais claramente, vinculando também à escravidão:

Portugal, enviando para suas colônias os elementos
irrequietos do povo sem cultura e sem piedade, assentou as
raízes da nossa história econômica sobre a cobiça da
riqueza fácil, na mineração e na devastação das matas, com
a submissão do indígena e a escravização do africano
(TORRES, 1978a, p.100).

Igualmente, de forma insipiente, o autor atualmente em tese menciona
a ordem, organização, entre os polos senhor-escravo, e a existência de
elementos fora desse núcleo: "como população, entre a classe senhoril e os
escravos, além de limitado número de habitantes das cidades, entregues, com
pachorra, a meia dúzia de negócios e indústrias, primitivos e rotineiros,
havia a imensa massa dos 'agregados', [...]" (grifos nossos, TORRES, 1978a,
p.100). Novamente: os futuros "desclassificados"?
Quanto à abolição do único instituto nacional e organizado, começamos
a verificar um mea culpa(?), pois foi o autor também um precoce republicano
e abolicionista, analisa o autor:

A abolição e a República, aspirações morais do
liberalismo, que as propagara romanticamente, fizeram-se
um dia, de improviso, trazida uma a termo por um movimento
de interesse dinástico, a outra consumada pela revolta das
forças militares – sem sucessão de antecedentes
evolutivos, e sem estações de sazonamento e maturidade,
que lhes preparassem o êxito, traçassem o caminho e
antecipassem as idéias e elementos de substituição, [...]
(TORRES, 1978a, p.101).

E, na verdade, entendemos todo este plano de organização e proposta
elaborada ocorrendo sob a ameaça de um outro inimigo contemporâneo, ou pelo
menos tardiamente identificado por Torres: "nas sociedades contemporâneas,
suprimido o velho critério tradicional da hierarquia pela nobreza,
manifesta-se a tendência para a hierarquia do capital". (TORRES, 1978a,
p.127).
É para combatê-lo, também, que existe aquele "mister":

O argentarismo, embora alheio à política, domina mais que
os próprios poderes públicos e irrita a chaga da miséria.
O despotismo do dinheiro, em face dos famintos e da gente
de posição será o estado permanente das nossas sociedades
se a política não for substituindo o velho equilíbrio das
forças tradicionais pelo equilíbrio conservador da balança
dos interesses, fundado no respeito às necessidades vitais
e às aptidões do homem (grifos nossos, TORRES, 1978a,
p.127).

E, se não bem exercida a Política, se não combatidas, domadas ou
substituídas as motivações "ambiciosas" pelo "bem comum", o culto das
"vaidades", em detrimento das "coisas sérias", valorizada a vida produtiva
e lírica do campo, frente à degeneração das grandes cidades, o prenúncio é
de uma nova escravidão, da eventual sofisticação dela. Pois, então: "os
miseráveis, por sua vez, não odeiam e não se revoltam senão porque a dor da
fome e da moléstia, irritada pelo contraste com o luxo, fere tanto como o
látego do feitor" (TORRES, 1978a, p.128).
2 caio prado e o sentido da colonização

EM FORMAÇÃO DO BRASIL CONTEMPORÂNEO (1942), O RECORTE TEMPORAL FEITO
POR CAIO PRADO – FIM DO SÉCULO XVIII E INÍCIO DO SÉCULO XIX – MARCA UM
MOMENTO DECISIVO PARA O BRASIL, NO SENTIDO DE GESTAR ALGUMA ESPÉCIE DE
TRANSFORMAÇÃO ECONÔMICA E SOCIAL, EM FACE DA INSUSTENTABILIDADE DAQUELA
ESTRUTURA SOCIAL, "MINADA E CORROÍDA" POR UMA SÉRIE DE FATORES, CHAMADA
PELO AUTOR DE "PONTO MORTO" DE NOSSA HISTÓRIA. UM PONTO TAMBÉM, SEGUNDO
NOVAIS (2011, P.413-414), DE CONSTITUIÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA.
Caio Prado Júnior faz, ainda, um novo recorte lógico da nossa
historiografia. Enquanto os historiadores, em sua maior parte, tomavam o
"descobrimento" do Brasil por Pedro Álvares Cabral ou a Carta de Pero Vaz
de Caminha como marcos iniciais desse recorte, que de certa forma
inaugurariam o processo de conhecimento e colonização do país, Caio Prado
atenta para o que ele chama o sentido da colonização, para entender o que
foi a colônia – ou, para entender a história de uma colônia que se
transforma em nação. E o que é estrutural, para o autor, nesse sentido da
colonização, é a exploração.
Não vê, como muitos estudiosos, o Brasil colonial como uma espécie de
feudalismo, mas como uma forma de capitalismo mercantilista voltado à
exportação de produtos primários, o que, paradoxalmente, era o que conferia
à dinâmica da colonização uma "unidade" ou "organização", se podemos chamar
assim. Ainda, "a trave mestra em torno da qual se organizaria a grande
exploração seria a escravidão" (RICUPERO, 2011, p.425).
Sobre o sentido da colonização e sobre a essência de nossa formação,
Caio Prado afirma no início da obra:

Em suma e no essencial, todos os grandes acontecimentos
desta era, que se convencionou com razão chamar dos
"descobrimentos", articulam-se num conjunto que não é
senão um capítulo da história do comércio europeu. Tudo
que se passa são incidentes da imensa empresa comercial a
que se dedicam os países da Europa a partir do século XV,
e que lhes alargará o horizonte pelo Oceano afora (PRADO
JR., 1986, p.22).


Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na
realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco,
alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes;
depois, algodão, e em seguida café, para o comércio
europeu. Nada mais que isto. É com tal objetivo, objetivo
exterior, voltado para fora do país e sem atenção a
considerações que não fossem o interesse daquele comércio,
que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras.
Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura, bem como as
atividades do país. Virá o branco europeu para especular,
realizar um negócio; inverterá seus cabedais e recrutará a
mão-de-obra que precisa: indígenas ou negros importados.
Com tais elementos, articulados numa organização puramente
produtora, industrial, se constituirá a colônia
brasileira. (p.31-32).

Sobre a forma de produção na grande lavoura de monocultura, ele
afirma:

Cultiva-se a cana como se extrai o ouro, como mais tarde
se plantará algodão ou café: simples oportunidade do
momento, com vistas para um mercado exterior e longínquo,
um comércio instável e precário sempre. [...] A
colonização não se orienta no sentido de constituir uma
base econômica sólida e orgânica, isto é, a exploração
racional e coerente dos recursos do território para a
satisfação das necessidades materiais da população que
nela habita (PRADO JR., 1986, p.73).

Ao falar sobre os atrativos que os gêneros tropicais ou a América
exerciam sobre os colonizadores – o tabaco, o açúcar, o anil, o arroz, o
algodão, entre outros –, o autor comenta:

Isto nos dá a medida do que representariam os trópicos
como atrativo para a fria Europa, situada tão longe deles.
A América lhe poria à disposição, em tratos imensos,
territórios que só esperavam a iniciativa e o esforço do
Homem. É isto que estimulará a ocupação dos trópicos
americanos. Mas trazendo este agudo interesse, o colono
europeu não traria com ele a disposição de por-lhe a
serviço, neste meio tão difícil e estranho, a energia do
seu trabalho físico. Viria como dirigente da produção de
gêneros de grande valor comercial, como empresário de um
negócio rendoso; mas só a contragosto como trabalhador.
Outros trabalhariam para ele (PRADO JR., 1986, p.28-29).

O comentário a seguir, de Caio Prado, é a nosso ver emblemático de
sua visão sobre o trabalho servil do negro e do índio na sociedade colonial
brasileira:

O negro e o índio teriam tido certamente outro papel na
formação brasileira, e papel amplo e fecundo, se diverso
tivesse sido o rumo dado à colonização; se se tivesse
procurado neles, ou aceitado uma colaboração menos
unilateral e mais larga que a do simples esforço físico.
Mas a colonização brasileira se processa num plano muito
acanhado; outro objetivo não houve que utilizar os
recursos naturais do seu território para a produção
extensiva e precipitada de um pequeno número de gêneros
altamente remunerados no mercado internacional. Nunca se
desviou de tal rumo, fixado desde o primeiro momento da
conquista; e parece que não havia tempo a perder, nem
sobravam atenções para empresas mais assentes, estáveis,
ponderadas. Só se enxergava uma perspectiva: a remuneração
farta do capital que a Europa aqui empatara. A terra era
inexplorada, e seus recursos, , acumulados durante
séculos, jaziam à flor do solo. O trabalho para tirá-los
de lá não pedia grandes planos nem impunha problemas
complexos: bastava o mais simples esforço material. É o
que se exigiu do negro e do índio que se incumbiriam da
tarefa (PRADO JR., 1986, p.273).

Segundo Caio Prado, "os povos que os colonizadores aqui encontraram,
e mais ainda os que foram buscar na África, apresentam entre si tamanha
diversidade que exigem discriminação" (1986, p.85). E, embora neste texto
estejamos tratando mais especificamente do negro, cabe algum comentário
também sobre os indígenas, cuja inadaptação ou reação ao trabalho servil ou
à cultura do branco colonizador foi um dos fatores que de certa forma
impulsionaram a importação de negros escravos vindos da África.
Sobre as particularidades de comportamento dentro de uma mesma raça –
indígena e negra –, cabe citar, com Caio Prado, que "houve indígenas que se
submeteram com facilidade; outros não; alguns se amalgamaram com as demais
raças; mas também há os que não o fizeram de forma geral e completa,
permanecendo relativamente puros e enquisitados na colonização até serem
afinal eliminados e desaparecerem" (1986, p.86, rodapé).
Diferentemente do que ocorreu com o índio em outras colônias
americanas,

[...] no Brasil tratou-se desde o início de aproveitar o
índio, não apenas para obtenção dele, pelo trato
mercantil, de produtos nativos, ou simplesmente como
aliado, mas sim como elemento participante da colonização.
Os colonos viam nele um trabalhador aproveitável; a
metrópole, um povoador para a área imensa que tinha de
ocupar, muito além de sua capacidade demográfica (PRADO
JR., 1986, p.91).

Há uma outra intervenção dirigida ao indígena, esta mais complexa,
vinda dos Jesuítas. Mais complexa porque sua atuação, mediante a
catequização, embora em princípio fosse no sentido de inserir o indígena no
processo de colonização, neste ponto atendendo estritamente aos interesses
da Metrópole, ganhava também uma outra direção – a tese jesuítica era a da
"liberdade dos índios, da necessidade de educá-los e os preparar para a
vida civilizada, e não fazer deles simplesmente instrumentos de trabalho
nas mãos ávidas e brutais dos colonos, de que já resultara o extermínio de
boa parte da população indígena do país" (PRADO JR., 1986, p.93).

[...] o fato é que [a Companhia de Jesus] nas suas
atividades, na ação que desenvolveu junto ao índio, no
regime e educação a que o submeteu, agia muitas vezes em
contradição manifesta não só com os interesses
particulares e imediatos dos colonos, o que é matéria
pacífica, mas com os da própria metrópole e de sua
política colonial. [...] À escravidão sumária e exploração
brutal do índio pelo colono o jesuíta opôs o segregamento,
o isolamento dele. E na luta que se acendeu em torno
destes extremos inconciliáveis, ambos contrários aos
interesses gerais e superiores da colonização [...] não
sobrou margem para outras soluções intermédias que teriam
possivelmente resolvido o caso.

A legislação pombalina, nas palavras do autor, "pôs termo a uma
disputa que durava desde o início da colonização, e regularizou
definitivamente o problema indígena" (PRADO JR., 1986, p.95). Apesar dos
seus defeitos, "ela encaminhou a solução do problema índio, preparando,
dentro das possibilidades existentes que, dados os caracteres étnicos e
psicológicos do índio, eram evidentemente limitadas, a absorção da massa
indígena pela colonização". Desaparece com ela a escravização do índio,
embora esta reapareça, atenuada, no início do século XIX. Contudo,
continuaram, não obstante "as leis que procuravam equipará-los aos demais
colonos, uma raça bastarda; e como tal, alvo do descaso e prepotência da
raça dominadora".
A questão do negro é para o historiador mais simples. "Uniformizado
pela escravidão sem restrições que desde o início de sua afluência lhe foi
imposta, e que, ao contrário da do índio, nunca se contestou, ele entra
nesta qualidade e só nela para a formação da população brasileira." (PRADO
JR., 1986, p.107).
O incremento do tráfico africano, fomentado após as leis pombalinas,
torna os colonos menos dependentes dos índios. O progresso econômico
permitiria o emprego generalizado do negro, "mais eficiente e fácil" (PRADO
JR., 1986, p.100).
Quanto à ocupação dos negros, cabe apontar distinções entre os que se
aproveitavam, de preferência, nos trabalhos rurais, e os que serviam nas
atividades domésticas. Sobre esta última situação, discorre Caio Prado:

Não só ele [o trabalho doméstico do escravo negro] é
numericamente volumoso – pois intervém, a par das
legítimas necessidades do serviço doméstico, a vaidade dos
senhores que se alimenta com números avultados de servos;
como é grande a participação que tem na vida social da
colônia e na influência que sobre ela exerce. Neste
sentido, e excluído o elemento econômico, ele ultrapassa
mesmo largamente o papel do outro setor. O contacto que o
escravo doméstico mantém com seus senhores e com a
sociedade branca em geral, é muito maior, muito mais
íntimo. E é certamente por ele que se canalizou para a
vida brasileira a maior parte dos malefícios da
escravidão. Do pouco que ela trouxe de favorável, também:
a ternura e afetividade da mãe preta, e os saborosos
quitutes da culinária afro-brasileira (PRADO JR., 1986,
p.278)

Ao falar sobre essa presença do negro à volta do clã patriarcal
constituído na colônia, interessa a Caio Prado destacar sobretudo o quanto
o patriarcalismo "serve para reforçar a dominação dos senhores rurais,
tornando-a mais aceita" (RICUPERO, 2011, p.426). Assim, não obstante a
brutalidade da escravidão, essa relação conseguia envolver até mesmo os
escravos, que de algum modo se identificavam com seus senhores, criando
entre eles uma espécie de sociabilidade.
A mestiçagem, signo sob o qual se formou a etnia brasileira, "resulta
da excepcional capacidade do português em se cruzar com outras raças. [...]
Graças a ela, o número relativamente pequeno de colonos brancos que veio
povoar o território pôde absorver as massas consideráveis de negros e
índios que para ele afluíram ou nele já se encontravam; pôde impor seus
padrões e cultura à colônia, que mais tarde, embora separada da mãe-pátria,
conservará os caracteres essenciais da sua civilização" (PRADO JR., 1986,
p.107).
Além disso, "na incerteza do desconhecido", o colonizador vem só para
a Colônia, sem a família, o que favorece a aproximação com as mulheres das
raças aqui encontradas. E o autor acrescenta:

E embora quase sempre à margem do casamento - contra as
uniões legais com pretas ou índias, sobretudo com as
primeiras, havia fortes preconceitos - tais uniões
irregulares, de tão freqüentes que eram, passara, à
categoria de situações perfeitamente admitidas e aprovadas
sem restrições pela moral dominante. E os rebentos
ilegítimos que delas resultassem não sofriam com esta
origem nenhuma diminuição ((PRADO JR., 1986, p.109).

Quanto ao contato entre as raças dominadas,

[...] não há na colônia, nem na distribuição geográfica,
nem sobretudo na disposição social das três raças, um
terreno comum em que as dominadas entrassem entre si em
contacto íntimo e duradouro. O negro nas senzalas ou nos
serviços domésticos do branco; o índio que se aproxima da
colonização quase unicamente nas suas relações de trabalho
ou para satisfazer de outra forma o colono branco; aquele,
concentrado nas regiões economicamente mais prósperas,
donde o outro é excluído: eis a posição relativa das duas
raças (PRADO JR., 1986, p.110).

Assim, na constituição do status quo na Colônia, respeitante a essas
três raças, o negro e o índio se situarão nas camadas inferiores; o branco,
para as mais elevadas - se não logo de início, quando chegam sem recursos,
pelo menos mais tarde (PRADO JR., 1986, p.112).
Nesse contexto de discriminação e muitas vezes de perseguição, o
sertão sempre representou um refúgio para negros e mestiços provindos do
litoral: "escapos da justiça, que sobre eles pesava mais que sobre as
outras categorias da população, ou recalcados pelo regime de vida
desfavorável que lhes proporcionavam os centros mais ativos e policiados da
costa" (PRADO JR., 1986, p.113). Em suas palavras, no sertão a lei que
prevalece é a do mais forte, do mais capaz, e não a das classes
dominadoras.

Representa por isso uma válvula de escapamento para todos
os elementos inadaptáveis ou inadaptados que procuram
fugir à vida organizada dos grandes centros de povoamento
da colônia. E deles, os mais numerosos são naturalmente os
que suportam o maior ônus de tal organização, os que
trazem estampados na pele o estigma de uma raça bastarda e
oprimida: os negros e seus derivados mais escuros. No
sertão, confundidos com a população de origem indígena,
num pé de igualdade que as circunstâncias do meio impõem,
cruzam-se em larga escala, dando este tipo, o sertanejo,
de tão singular definição psicológica e étnica. (PRADO
JR., 1986, p.114).

Retomando o sentido da colonização de que nos fala Caio Prado, o
trabalho escravo, junto com a grande propriedade e a monocultura, são os
três elementos que a fundamentaram. "É aliás esta exigência da colonização
dos trópicos americanos que explica o renascimento da escravidão na
civilização ocidental em declínio desde fins do Império Romano, e já quase
extinta de todo neste séc. XVI em que se inicia aquela colonização" (PRADO
JR., 1986, p.122). Acrescente-se que, no mundo antigo, o trabalho servil se
ajustava à ordem material e moral daquela estrutura, o que não se dá na
América no período em pauta, e particularmente no Brasil, onde a escravidão
ressurgiu "de chofre", sem ligação com um passado ou tradição, visando
unicamente empregar o trabalho do negro para aquele objetivo maior de que
falamos, a produção ou extração para o mercado externo.
O colono europeu vem para cá não com o papel de trabalhador ou
povoador, mas sim como dirigente de um negócio. Tratava-se de uma "empresa
de colonos brancos acionada pelo braço de raças estranhas, dominadas mas
ainda não fundidas na sociedade colonial" (PRADO JR., 1986, p.125). Essa
forma de produção, por sua vez, tem influência sobre toda a estrutura
econômica e social do país, conduzindo à concentração de riqueza.
O indígena e negro africano, "povos de nível cultural ínfimo", foram
"arrancados de seu habitat natural e incluídos, sem transição, numa
civilização inteiramente estranha", sem nenhum elemento construtivo.

E, por isto, para objetivo tão unilateral, puseram os
povos da Europa de lado todos os princípios e normas
essenciais em que se fundara a sua civilização e cultura.
O que isto representou para eles, no correr do tempo, de
degradação e dissolução, com repercussões que se vão
afinal manifestar no próprio terreno do progresso e da
prosperidade material, não foi ainda bem apreciado e
avaliado [...]. Mas terá sido este um dos fatores, e dos
de primeiro plano, do naufrágio da civilização ibérica
[...]. Foram elas que mais se engajaram naquele caminho;
serão elas também suas principais vítimas (PRADO JR.,
1986, p.271).

Nesse contexto, a contribuição do escravo preto ou índio para a
formação brasileira, segundo Caio Prado, embora tenha sido significativa se
se considerar a cultura de forma ampla, tal como encarada pelos
antropólogos, aponta de forma tímida em um ou outro aspecto, atuando em
alguns aspectos como "elemento corruptor" da cultura do branco, a exemplo
do sincretismo religioso. Em suas palavras, "O cabedal de cultura que traz
consigo da selva americana ou africana, e que não quero subestimar, é
abafado, e se não aniquilado, deturpa-se pelo estatuto social, material e
moral a que se vê reduzido seu portador" (PRADO JR., 1986, p.272).
Caio Prado toca também na questão da profunda diferença de raças
entre o colonizador e o escravo, diferença iniludível, estigmatizante,
expressa na cor da pele, e que, embora dissimulada em algumas situações,
nunca deixou de existir; preconceito contra o negro que se firmou pela
rejeição ao trabalho por parte do branco, associada à discriminação moral
ou social, e que separavam ainda mais essas classes e qualquer
possibilidade de integração mais homogênea do negro. O aparte que se pode
fazer aqui diz respeito aos indivíduos de origem negra que gozavam de certa
circulação intrassocial, o que lhes permitia alguma elevação social por uma
espécie do que se chamou "banqueamento", mas que não eliminava o
preconceito, apenas o atenuava. "O negro ou mulato escuro, este não podia
abrigar quaisquer esperanças, por melhores que fossem suas aptidões;
inscrevia-se nele, indelevelmente, o estigma de uma raça que à força de se
manter nos ínfimos degraus da escala social, acabou confundindo-ses com
eles." (PRADO JR., 1986, p.274).
Se é que cabe alguma comparação entre a escravidão imposta aos índios
e aquela imposta aos negros, para o autor em pauta os primeiros contaram ao
menos com a ação dos Jesuítas e de outras Ordens religiosas, a qual, mal ou
bem, protegeu-os e educou-os de algum modo no processo de integração à
colonização. Com o negro isto não ocorreu; pelo contrário, as ordens
religiosas, segundo Caio Prado, foram as primeiras a aceitar a escravidão
do negro africano, o que permitia a elas a continuidade de seu trabalho de
catequização com os indígenas.

O negro não teve no Brasil a proteção de ninguém.
Verdadeiro "pária" social, nenhum gesto se esboçou em seu
favor. E se é certo que os costumes e a própria legislação
foram com relação a ele mais benignos na sua brutalidade
escravista que em outras colônias americanas, tal não
impediu contudo que o negro fosse aqui tratado com o
último dos descasos no que diz respeito à sua formação
moral e intelectual, e preparação para a sociedade em que
à força o incluíram. Estas não iam além do batismo e
algumas rudimentares noções de religião católica, mais
decoradas que aprendidas [...]. (PRADO JR., 1986, p.276).

Sobre a inserção do negro escravo naquela estrutura social – inserção
nos moldes de que falamos acima – este, nas palavras de Caio Prado Júnior,
"é onipresente [...] no campo como na cidade, no negócio como em casa"
(PRADO JR., 1986, p.278). Esse monopólio do escravo no trabalho, por sua
vez, tornaria o conceito de trabalho desabonador para o mulato e
especialmente para o branco, que não aceitavam 'pegar na enxada' ou viver
sob os favores e salário de um amo.
A estrutura social que se constitui na Colônia, desse modo, ao não
inserir os que não podiam ser proprietários, fazendeiros, obter algum cargo
público ou algum ofício mecânico do qual o negro não participasse, acabou
gerando os homens livres pobres. Assim, se havia alguma "organicidade"
naquela estrutura social (empregando aqui um conceito do autor), era a que
abarcava os senhores e os escravos, e neste ponto Caio Prado concorda com
Alberto Torres. Sobre esse empobrecimento da população, ou sobre este setor
inorgânico da população, e que levará a inúmeras agitações que precedem a
Independência, escreve o autor:

Abre-se assim um vácuo imenso entre os extremos da escala
social: os senhores e os escravos; a pequena minoria dos
primeiros e a multidão dos últimos. Aqueles dois grupos
são os dos bem classificados da hierarquia e da estrutura
social da colônia: os primeiros serão os dirigentes da
colonização nos seus vários setores; os outros, a massa
trabalhadora. Entre essas duas categorias nitidamente
definidas e entrosadas na obra da colonização comprime-se
o número, que vai avultando com o tempo, dos
desclassificados, dos inúteis e inadaptados; indivíduos de
ocupações mais ou menos incertas e aleatórias ou sem
ocupação alguma. Aquele contingente vultoso em que Couty
mais tarde [em L'esclavage au Brésil] veria o "povo
brasileiro", e que pela sua inutilidade daria como
inexistente, resumindo a situação social do país com
aquela sentença que ficaria famosa: "Le Brésil n'a pás de
peuple" (PRADO JR., 1986, p.281).

Para Caio Prado, os "desclassificados" da colônia têm papel decisivo
na superação desta. Ricupero (2011, p.429) destaca aqui a originalidade do
autor: "Numa perspectiva pouco comum para um marxista, não pensa o fim de
uma ordem social somente a partir da ação de grupos que estariam ligados
aos seus setores mais avançados, como deveria ocorrer com o operariado na
transição do capitalismo para o socialismo". No Brasil, esses inadaptados
teriam um importante papel na construção de algo como uma nação.
Em A revolução brasileira, livro escrito pelo autor 24 anos depois da
obra em pauta, tal perspectiva se mantém na importância que confere aos
trabalhadores rurais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

QUANTO A ALBERTO TORRES, PARECE LÚCIDA A CONCLUSÃO DE FRANCISCO
IGLESIAS, POIS, RECONHECENDO VALOR, APONTA TAMBÉM A FRAQUEZA:

Denuncia-se a alienação da riqueza pública, a passagem ao
domínio do capital estrangeiro, aponta-se o imperialismo:
a importância dos fatos requeria análise mais extensa e
profunda. Como escrevemos antes, o autor não podia captar
problemática tão rica, pois lhe faltavam leituras, sua
formação era eminentemente jurídica e política; embora
fosse sensível ao social, sem boa base em ciência
econômica esses assuntos não adquirem a devida
consistência (1978, p.30).

Pois há essa inadequação sistêmica do método de observação de Torres.
Ao se focar na "gente" e na "sociedade", ao adotar o que quase unanimemente
seus comentadores apontam como "excesso de psicologismo", falhou em
aproveitar, como Caio Prado, do raio de visão que abria a doutrina
marxista. Viu aquele que não havia proletariado, mas não demorou-se ou deu
tratos à bola para aplicar as considerações macroeconômicas que fizeram a
obra deste último algo esclarecedor e fundador na história nacional. Mesmo
que tenha contribuído relevantemente para o pensamento político e humanista
nacional.
Já quanto ao derradeiro autor analisado, alguns críticos consideram
datada a obra Formação do Brasil Contemporâneo.
E, embora alguns julguem racista a linguagem empregada por Caio Prado
em algumas passagens do livro, a exemplo de quando esse afirma que os
negros formam um povo de "nível cultural ínfimo", ou que são "pretos
boçais" (devendo-se acrescentar, contudo, que o termo boçais, no período
escravocrata, se referia aos africanos que ainda não falavam português), em
outros trechos o autor sugere que muitas dessas características negativas
resultam sobretudo de os negros "terem sido obrigados a viver num ambiente
distinto daquele em que se encontravam originalmente, motivando um conflito
entre os valores que orientam a conduta humana" (RICUPERO, 2011, p.427).
A obra em pauta, de qualquer forma, continua a nos interpelar,
segundo Ricupero. "Até por ainda serem frequentes situações em que
trabalhadores são tratados como pouco mais que instrumentos de trabalho."
Ainda em suas palavras (p.429):

Persiste, além disso, a exclusão de boa parte da população
do mercado de produção e consumo, perpetuando, de certa
maneira, a condição de "desclassificados". E até num setor
de ponta, como o moderno agribusiness, não é difícil
encontrar ecos da grande exploração colonial. Numa outra
perspectiva, um momento otimista do país, como o atual, é
alimentado pela exportação de commodities, produtos
primários que não nos deixam esquecer que o "sentido da
colonização" não está tão longe quanto poderíamos desejar.





REFERÊNCIAS

IGLÉSIAS, FRANCISCO. PREFÁCIO À TERCEIRA EDIÇÃO. IN: TORRES, ALBERTO. A
ORGANIZAÇÃO NACIONAL. 3.ED. SÃO PAULO: NACIONAL, 1978.

KUNTZ, Rolf. Alberto Torres. A organização nacional. In: MOTA, Lourenço
Dantas (Org.). Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico, 2. 2.ed. São
Paulo: SENAC, 2002.

NOVAIS, Fernando. Entrevista. In: PRADO JR., Caio. Formação do Brasil
Contemporâneo: colônia; posfácio Bernardo Ricupero. São Paulo: Companhia
das Letras, 2011.

PRADO JR., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 19.ed. (1.ed. em 1942),
São Paulo: Brasiliense, 1986.

RICUPERO, Bernardo. Posfácio. In: PRADO JR., Caio. Formação do Brasil
Contemporâneo: colônia. Entrevista Fernando Novais. São Paulo: Companhia
das
Letras, 2011.

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