Um corpo para Frida Kahlo 1

June 2, 2017 | Autor: Suely Aires | Categoria: Psicanálise e arte, Psicanalise
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Um corpo para Frida Kahlo1 Suely Aires

Quem diz dor, diz segredo. (Pauls, 2008)

No início era a dor. Ou tudo parecia se reduzir a isso. Aos seis anos, uma primeira ocorrência: a poliomielite que afeta a perna direita e o corpo se presentifica por meio do adoecimento. No entanto, é o acidente aos 18 anos que inicia, de fato, a convivência contínua com a dor. No choque entre o ônibus e o bonde, o corpo de Frida é trespassado por uma barra de ferro, “como uma espada atravessa um touro” (KAHLO apud HERRERA, 2001, p. 52). No acidente, Frida teve um rim destruído, a bacia e sua coluna vertebral receberam um forte impacto, o que provocou diversas fraturas, e o pé direito foi esmagado. Nesse momento, perdeu sua virgindade (KAHLO apud HERRERA, 2001). As cirurgias necessárias para sua sobrevivência e recuperação a levaram a um estado de imobilidade quase absoluta, devendo Frida manter-se no leito e fazer uso de um colete ortopédico que limitava seus movimentos. É nesse momento que sua família “a presenteia com uma cama com quatro colunas e baldaquim, sob o qual sua mãe coloca um espelho” (PERES, 2007, p. 16). A dor continuava, quase incessante, mas o recurso ao espelho, à pintura e à palavra, possibilitavam um outro modo de vivenciar e expressar a dor. “Quem diria que as manchas vivem e ajudam a viver? Tinta, sangue, cheiro...” (KAHLO, 1995, p. 227). E as dores não se limitam ao período do acidente, mas a acompanham por toda a vida: os problemas com a coluna, com o pé direito, os três abortos que vivenciou, a úlcera trófica, as intervenções cirúrgicas – mais de trinta, ao todo – os vários coletes nos períodos de recuperação das cirurgias, a cadeira de rodas, uma prótese. “E a dor, evidentemente, as dores de Frida, em idas e vindas, tão no centro de sua criação artística” (ORTIZ, 2010). No entanto, a dor não é apenas física; há dor psíquica, “pela perda de uma vida que se apresentava promissora” (PERES, 2007, p. 19). Dores

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Publicado em Frida Kahlo: dor e arte. Organização: Urania Tourinho Peres. 2ed. Salvador: EDUFBA/Colégio de Psicanálise da Bahia, 2014, p. 89-98.

variadas, dores distintas, mas sempre dor, aquilo que não pode ser compartilhado, nem mesmo na relação de amor (GORZ, 2008).

Uma constante: a dor As dores físicas de Frida se concentravam na coluna e na perna direita e o corpo respondia com um sentimento de fadiga quase contínuo. Após o acidente, a imobilidade se fez uma necessidade e a arte, uma invenção. Nunca pensei na pintura até 1926, quando tive que ficar na cama em função de um acidente automobilístico. Ficava entediada na cama, com um colete de gesso (eu havia fraturado a coluna vertebral, assim como outros ossos), e por isso decidi fazer algo. Roubei [sic] umas pinturas a óleo de meu pai e minha mãe mandou fazer um cavalete especial, já que eu não podia sentar. Assim comecei a pintar (KAHLO apud HERRERA, 2001).

O Diário é iniciado no mesmo período da pintura, mas não demonstra a mesma riqueza e detalhamento, parecendo ser escrito mais frequentemente nos momentos de cansaço do que de produção. Em sua escrita, Frida opta pelo fluxo de consciência, produzindo frases curtas e geralmente desprovidas de verbo. Algumas frases se destacam pela força e economia, geralmente ao lado de desenhos. As imagens que se dão a ver são esboços, riscos que revelam a qualidade do traço da artista e muitas vezes reproduzem conteúdos mitológicos e culturais do México. As cores são fortes e vibrantes. Os autorretratos são numerosos, bem como as referências a seu amor, Diego Rivera. Cabe destacar que, nos momentos de maior produção de quadros, Frida não escreve em seu Diário. Em alguns momentos de seu Diário, a caligrafia se altera e fragiliza, indicando os momentos em que o corpo de Frida insiste diante da dor, do uso de analgésicos, da posição reclinada em um leito. Lado a lado com os momentos de sofrimento, se dá a ver no Diário a recriação de si que inclui a alteração de sua data de nascimento, fazendo coincidir com a revolução mexicana, e algumas informações e antecedentes falsos, que acentuam o sentimento de irrealidade do texto fragmentado. “Eu sou a desintegração”, dirá Frida (KAHLO, 1995, p. 224). O leitor do Diário de Frida Kahlo sidera diante do texto e do colorido das imagens e é conduzido a acompanhar essa fragmentação e dissolução, bem como a multiplicação de figuras humanas e a duplicação de Frida em

autorretratos. Para o leitor, certa vivência de estranhamento e enlevo se produz a partir da singular combinação entre frases curtas e desenhos contundentes, produzida por Frida. Passo a passo, se acompanha a construção e desconstrução de Frida diante da decadência e desintegração de seu corpo. “Já vais? Não. Asas partidas [alas rotas]” (KAHLO, 1995, p. 269). Essas anotações que acompanham um desenho em que se vê Frida nua com asas quebradas fazem um estranho eco à questão que se coloca em outro desenho, datado de 1953: “Pés para que os quero se tenho asas para voar?” (KAHLO, 1995, p. 274). O desenho detalhado dessa página de seu Diário retrata pés, sobre um estrado, com tom amarelado e veias ou ramos que saem da parte que se ligaria a uma perna. Destacados do corpo causam incômodo e estranhamento. Ainda em 1953, outra anotação:

Em todo meu corpo existe apenas um, e eu quero dois. Para que eu tenha os dois terão de me cortar um. O um que não tenho é o que tenho de ter para poder caminhar, o outro já deve estar morto! Para mim, as asas são supérfluas. Mesmo que as cortem, eu voarei!! (KAHLO, 1995, p. 276).

Nem pés, nem asas. Em agosto de 1953, Frida teve seu pé direito amputado e as anotações no Diário cessam. Serão retomadas em fevereiro de 1954 e, após algumas páginas arrancadas – não se sabe claramente as razões –, novas anotações surgem em março do mesmo ano. Frida morre em julho de 1954.

Ainda a dor... A dor, como bem indica Freud (1895 [1976]), difere do desprazer por sua afetação do corpo. Ela é uma constante, um excesso de excitação, um transbordamento dos limites do corpo e dos limites do eu, cuja única solução é a sua cessação. Não há mecanismo de fuga possível por sua relação com o corpo. Também não há prazer direto decorrente da cessação da dor, mas suspensão do desprazer e alívio. “(...) a dor é imperativa; as únicas coisas diante das quais ela pode ceder são a eliminação por algum agente tóxico ou a influência da distração mental” (FREUD, 1915 [1976], p. 169). A influência da distração mental – afirmação bastante interessante – deriva da concepção freudiana da dor como algo que atravessa o aparelho psíquico e que se apresenta à consciência como percepção ao mesmo tempo interna e externa (FREUD, 1923 [1976]). Nesse sentido, a dor exige, por parte do eu, trabalho psíquico e “constitui

talvez um modelo da maneira pela qual em geral chegamos à ideia de nosso corpo” (FREUD, 1923 [1976], p. 39). O corpo, suas partes e órgãos, se faz reconhecer pela dor. Ou seja, o trabalho psíquico necessário para lidar com a dor inscreve o corpo para além de sua dimensão de imagem. Se o espelho, colocado pela mãe em seu leito, permite uma construção da imagem de Frida – e os autorretratos feitos ao longo de horas de observação parecem confirmar e multiplicar esse modo de construção de si – ainda assim o corpo insiste para além da imagem. “O caminho de recomposição narcísica, da reconstituição da imagem do corpo próprio e a retomada do sentimento de si vão ser ajudados pela criação, pela arte” (PERES, 2007, p. 18). E a recomposição narcísica também passará pelas palavras – dela e de outros – sobre Frida Kahlo, mas fundamentalmente sobre cada um de seus quadros, tornando sua obra indiscernível de sua própria figura. A recomposição narcísica de Frida se fez em relação à construção de feminilidades, como artista e como mulher: para Diego Rivera, para outros homens, para outras mulheres, para si. Em cartas, fotografias e pinturass, Frida inventava a si mesma e multiplicava as figurações do feminino que, surpreendentemente, se resumiam ao mesmo rosto, quase idêntico, de seus autorretratos. “Uma poesia agônica” que, nas palavras de Rivera, “nenhuma mulher jamais colocou em uma tela” (HERRERA, 2001, p. 127) e cuja “máscara se converteu em rosto” (HERRERA, 2001, p. 73). A duplicação das figuras femininas, a duplicação de si, as figurações de Frida em trajes típicos mexicanos, de cabelos curtos, com o corpo sustentado por estacas, representado como veado trespassado por uma lança ou flecha, cercada por macacos, com uma linda trança nos cabelos... cada um dos modos de apresentação multiplicava e recriava sua figura. “Nada me parece mais natural do que pintar aquilo que ainda não se realizou” (KAHLO, 1995, p. 253). Frida insiste por meio da arte; reitera a tentativa de dar consistência imaginária e significante ao que vê e vive. Mas o corpo ainda resiste.

Corpo entre dissolução e enodamento

Um corpo é um conjunto, não é verdade? Uma harmonia. Se lhe tiram um elemento – ainda que seja mediante uma cirurgia estética – sempre lhe faltará algo. Uma parte do corpo que se transforma, que se amputa, é o início de uma lenta mutilação. Outras coisas seguirão sendo amputadas, até que já não reste mais nada (KAHLO apud JAMIS, 1997, p. 253).

A afirmação de Frida sustenta-se em um engano: supor que o corpo é um conjunto. Engano necessário ao sujeito, desde o registro imaginário, mas que desconsidera o caráter fragmentário do corpo, o qual é reconhecido em alguns processos subjetivos (LE POULICHET, 2009). Em situações de vivência contínua de dor e fragilização do eu, um corpo necessita se inscrever e as imagens e palavras parecem insuficientes. Se, em uma referência imaginária, o corpo depende do espelho e, simbolicamente, das palavras que o constituem, unindo imagem e significante, ainda assim sua dimensão real não se deixa concernir.

De radiografia em radiografia, de interrogatório em interrogatório, de cirurgia em cirurgia – junto com as telas e as escritura e as inúmeras fotos que tiram dela ou que ela mesma tira – vai se formando a collage que permite a Frida ver de fora, inventar, imaginar esse universo decomposto que é seu corpo (ORTIZ, 2010, p. 192).

Na collage construída por Frida, destacam-se as pinturas de autorretratos, que pouco a pouco apresentam um corpo que se mostra fragmentado, ensanguentado, esburacado, sustentado por próteses, mas ainda assim, um corpo que se faz belo. Duplicado e multiplicado, esse corpo obtém uma inscrição no universo da arte e traz sua artista – e modelo, poderíamos dizer – para o centro da cena e dos olhares. Tanto o olhar sobre Frida Kahlo, quanto o olhar de Frida aí se apresentam, já que ela “pinta ao mesmo tempo o exterior e o interior dela mesma e do mundo” (RIVERA apud HERRERA, 2001, p. 133). O corpo é reconstruído sistematicamente, em uma operação que demanda tempo, implica investimento narcísico e produz efeito de significação. O olhar de Frida também se faz para além da pintura: as fotografias que colecionou sofreram sua intervenção estética – as imagens foram coloridas, beijadas com um forte batom, cortadas, coladas e, por vezes, rasgadas. Nessa operação, produziu um modo de recriação da história, das estórias, tal como havia feito no Diário, que impacta pela sua força e pelo olhar que impõe, sobre os objetos do mundo e sobre si. “A vista fixa na frente, diretamente na objetiva, é o olhar que refletirá tanto em seus quadros como nos múltiplos retratos que fizeram dela grandes fotógrafos do século XX” (SOTO, 2010, p. 10). Há um conhecimento, uma observação contínua de sua imagem, de seus melhores ângulos e poses que não pode ser desconsiderado e que só pode ser efetivada por meio de uma superfície especular plana. O olhar constitui corpo.

E na ausência do olhar – e do espelho – como produzir a unidade corporal? Palavras podem surtir esse efeito, mas estas parecem não ter sido suficientes, não as suas. O Diário tem caráter fragmentário e compõe-se de retalhos, estranha combinação de frases sem verbos e imagens. O corpo parece prestes a se desfazer a cada momento de dor. E com ele desfaz-se a própria vida. Nesse ponto, Diego Rivera – que oferta imagens e significantes, apesar das oscilações da relação amorosa – faz diferença. Dedicar-se a ele, viver para ele parece ter sido um caminho possível para Frida manterse viva. “Continuo a sentir vontade de me suicidar. Diego é que me impede, despertando em mim a vaidade de pensar que posso fazer falta. Ele disse e eu creio nele” (KAHLO, 1995, p. 278). Para que não seja vivenciada a iminência da fragmentação, se faz necessário construir certa consistência corporal, que pode ser pensada em diferentes ângulos; ou mais precisamente, de acordo com os registros de apreensão da realidade. Se o imaginário nos permite supor o corpo como unidade, tendo o saco como representação de conjunto – superfície fechada que contém suas partes –, a apreensão simbólica possibilita que o corpo seja nomeado por significantes, fazendo reconhecer sua unidade. No entanto, se a palavra torna possível reconhecer esse corpo como distinto, como objeto entre outros, mostra-se insuficiente para nomear para o sujeito o que é da ordem do gozo e da identificação. Como dizer que esse corpo é um corpo próprio? Um corpo que se pode fazer uso?

Um corpo próprio Para que um sujeito tenha um corpo é necessária uma operação por meio da qual o simbólico deixe sua marca sobre a carne, produzindo um recorte, esburacando, por assim dizer, o corpo e constituindo um circuito pulsional e uma imagem especular. No entanto, por sua presença real, o corpo faz obstáculo à palavra e não se deixa concernir. Vivenciando a dor e sendo submetido a diversas intervenções cirúrgicas e ações protéticas, o corpo de Frida parece mostrar-se ainda mais opaco à operação significante. O espelho colocado em sua cama, por meio do qual Frida se contemplava insistentemente, permitia a apropriação de uma parte de si, fixada na instantaneidade da imagem. No entanto, era como se esse corpo, através do olhar, devesse se constituir em sua totalidade, íntegro, narcísico, sem reconhecer as perdas que se inscreveram em sua materialidade. Nesse sentido, a questão talvez se formulasse em torno da possibilidade

de se apropriar de um corpo que não corresponde à imagem especular idealizada. Escolhendo a imagem, o corpo se mantém alheio, exterior. Para que um sujeito se autorize a enunciar que tem um corpo – em sua estranha relação de alienação e identificação – é necessária a passagem por uma operação de apropriação, na qual “um corpo, eu insisto sobre esse ponto, deve ser atribuído ao sujeito. O termo evocando ao mesmo tempo o a e o tributo. O tributo que é necessário pagar – e que se nomeia também castração – para se apropriar do corpo” (SOLER, 2001, p. 67-68). Ao que remete esse jogo de palavras - a-tributo -, senão à constituição do sujeito e do corpo em sua relação ao objeto a e suas substâncias episódicas? É necessário que esse corpo seja recortado; não em sua materialidade corpórea, mas por meio da inscrição significante sobre a imagem que venha a produzir um destacamento do objeto. É unicamente por meio da operação de castração que se destaca o objeto, possibilitando que o corpo seja definido não apenas como superfície, mas também em relação aos orifícios, aos buracos e às perdas. Nesse sentido, a operação subjetiva de construção do corpo próprio deixa um resto: “(...) o que chamamos de corpo, talvez seja apenas esse resto que chamo de objeto a. O que faz aguentar-se a imagem é um resto” (LACAN, 1972 [1985], p. 14). Articular, então, real, simbólico e imaginário para falar do corpo implica reconhecer a “(...) transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem” (LACAN, 1949 [1998], p. 97). Para tanto, é necessário ir além da imagem vista no espelho em seu caráter de superficialidade e unificação, que oferece à criança um semblante de objeto fixo e reificado, pois, se, de um lado, o estádio do espelho produz disjunção entre sujeito e imagem e entre sujeito e eu (moi), por outro lado, o corpo só pode ter existência por meio da sobreposição entre organismo e imagem em um sistema de identificação que depende da ordem significante. Ao dizer que tem um corpo, o sujeito une organismo, significante e imagem, fazendo um. Não se trata, portanto, de um objeto reificado, mas de uma construção lógica que ao aproximar elementos distantes, produz certa unidade assumida subjetivamente. No entanto, a incompletude do simbólico relança o sujeito para fora da cadeia discursiva, ainda que este mesmo sujeito só possa ser suposto a partir da cadeia significante (LACAN, 1961/1962), reafirmando a impossibilidade de o significante recobrir totalmente o corpo.

Alguma coisa se nos propõe a divisão entre existência de fato e existência lógica. A existência de fato nos reporta à existência de seres ou não falados. (...)

A existência lógica é outra coisa e, como tal tem um outro estatuto. Há sujeito a partir do momento onde nós fazemos lógica, quer dizer, onde manejamos significantes (LACAN, 1966/1967).

A distinção entre existência lógica e existência de fato permite aproximar – ou melhor dito – articular corpo e sujeito de um modo que trará vários desdobramentos possíveis, inclusive em relação ao sujeito sobre o qual opera a psicanálise e sua relação com o corpo em modos não-narcísicos de construção da imagem. Há, para Lacan, suposição lógica de sujeito, mas há também um corpo que insiste como materialidade (LACAN, 1966/1967). É o litoral entre elementos distintos – corpo e linguagem, sujeito dividido e objeto a –, que permite questionar a junção e disjunção entre corpo e sujeito. E os modos de enodamento entre os registros real, simbólico e imaginário permitem problematizar os meios pelos quais um sujeito se apropria de seu corpo. É por meio do nó borromeu – ou, mais precisamente, de seu manejo – que Lacan se propõe discutir os modos de entrelaçamento entre os registros. Nesse sentido, afirma que o entrelaçamento cria as relações entre os termos, não apenas as representa (LACAN, 1974/1975). Borromeanamente, o corpo é simbolicamente constituído, mas também deve situar-se ou ser inscrito do lado do imaginário, como consistência, para aquilo que se coloca como materialidade corporal. Em sua teorização, Lacan substitui a noção de consistência imaginária que tinha como imagem o saco – o corpo como um saco de pele que contém órgãos, gerando a ilusão de coerência e coesão – pela consistência a ser dada pela corda – fio que enoda, que mantém presos os elementos, cuja consistência é exterior ao conjunto. E, ao supor a consistência como exterior ao conjunto, apresenta uma noção de corpo que permite incluir os orifícios do corpo, as bordas e furos, e reconhece a comunicação entre exterior e interior. Por consequência, sua teorização possibilita situar o corpo para além da consistência imaginária, dando ao mesmo a possibilidade de funcionar de modo operatório para o sujeito, entre identificação ao corpo e gozo do corpo.

Um corpo para Frida Kahlo Retomemos a afirmação de Frida Kahlo: “Um corpo é um conjunto (...) Se lhe tiram um elemento (...), sempre lhe faltará algo” (KAHLO apud JAMIS, 1997, p. 253). A suposição de que um corpo se constitui como conjunto fechado, contendo todos os

seus elementos, parece conduzir Frida a um impasse: os pedaços retirados mantêm-se como elementos desse conjunto, não destacados, ligados por laços ou linhas. Algumas de suas pinturas trazem estes elementos em torno ao corpo em um leito, em especial o quadro Henry Ford Hospital. Ora, para que houvesse destacamento dessas partes, uma elaboração da perda deveria ser feita e o conjunto seria refeito, ainda que com menos elementos ou outros elementos. Seria necessário um trabalho de luto e a elaboração e construção de uma unidade corporal. No entanto, a suposição de que o corpo é conjunto – completo ou incompleto – leva à conclusão de que as partes perdidas permanecem presentes em sua ausência e se fazem reconhecer como faltas ao todo corporal. E, por sua vez, o corpo mostra-se incompleto. Talvez por isso seja imperativa para Frida Kahlo a construção de imagens, como modo de fixar uma totalidade, com os pedaços de si em torno do corpo. Pedaços esses que, cabe destacar, incluem os abortos vivenciados, próteses e sangue. A materialidade e instantaneidade das imagens permitem certa apreensão do corpo e das perdas em um mesmo lampejo, que logo se desfaz, e novos modos de inscrição se fazem necessários. Relançamento que parece infinito. Ao buscar apropriar-se continuamente de si por meio da pintura, Frida reinventa-se e, em sua dor, afirmou de forma singular, um lugar na história da arte: “Minha pintura leva dentro de si a mensagem da dor” (KAHLO apud HERRERA, 2001, p. 131).

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SOTO, Hilda Trujillo. Frida kahlo, suas fotos. In: Frida Kahlo: suas fotos. Tradução de Gênese Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

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