UM CORPO SEM QUADRIL - O que o professor de dança na Educação Infantil pensa sobre o rebolado

June 7, 2017 | Autor: Regina do Nascimento | Categoria: Cultural Studies, Popular Culture, Afro-Brazilian Culture, Educação Infantil, Educação
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Universidade de São Paulo Centro Universitário Maria Antonia Curso de Especialização em Linguagens da Arte

UM CORPO SEM QUADRIL O que o professor de dança na Educação Infantil pensa sobre o rebolado

REGINA DO NASCIMENTO SILVA

São Paulo 2013

REGINA DO NASCIMENTO SILVA

UM CORPO SEM QUADRIL O que o professor de dança na Educação Infantil pensa sobre o rebolado

Monografia apresentada à banca examinadora para obtenção de título de especialista em Linguagens da Arte – arte-educação.

Linha de pesquisa: Cultura Corporal Orientador: Marcos Garcia Neira

São Paulo 2013

A Cristiane Santos, Jussara Nascimento, Jully Anne, Renata Martins, Meire Lima e Bianca Ribeiro. Companheiras de diferentes estradas, mas de preocupações pedagógicas semelhantes.

Agradeço a Dorival Junior, Cynthia Tonin, Marcos Neira, Meire Lima (quem brilhantemente cunhou o título “Um corpo sem quadril”) e a toda a equipe celestial que me intuiu.

RESUMO

A partir dos referenciais dos Estudos Culturais, sua concepção de cultura e seu posicionamento em favor dos grupos sociais em desvantagem, bem como as críticas à cultura corporal historicamente privilegiada nas escolas brasileiras, este trabalho busca identificar os conceitos de uma professora de dança na Educação Infantil sobre o desenvolvimento de atividades que valorizem a cultura corporal e dança afro-brasileiras, em especial aquelas que implicam na movimentação do quadril, isto é, o rebolado. A pesquisa, de abordagem qualitativa, foi realizada utilizando-se de entrevista e análise de documentos. Após confronto com o referencial teórico, foi possível identificar a dificuldade da professora em desenvolver um trabalho multicultural na dança para Educação Infantil e a existência de preconceito e discriminação sobre o rebolado.

Palavras-chave: cultura corporal, cultura afro-brasileira, movimento do quadril, educação infantil.

“Primeiro eles te ignoram, depois riem de você, depois te combatem, e então você vence.” Mahatma Gandhi

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 8 EM BUSCA DE UM CURRÍCULO PLURAL .................................................................... 10 OS REFERENCIAIS NACIONAIS PARA UMA EDUCAÇÃO PLURAL ................................................... 10 OS ESTUDOS CULTURAIS NA PERSPECTIVA DE UM CURRÍCULO PLURAL ...................................... 11 A CORPOREIDADE NEGRA NO BRASIL ........................................................................................ 14 A VISÃO DA PROFESSORA DE EDUCAÇÃO INFANTIL ............................................ 17 A CULTURA DOMINANTE NA ESCOLA ......................................................................................... 18 REBOLAR NÃO FAZ PARTE DO CURRÍCULO ESCOLAR .................................................................. 20 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 23 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 25 ANEXO .................................................................................................................................... 27

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INTRODUÇÃO A cultura afro-brasileira sempre foi pouco ou nada explorada na escola. O que comprova essa afirmação é o fato de ter sido necessária a criação de uma lei que garantisse nos currículos escolares a presença da história e cultura africana e afro-brasileira. Trata-se da Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, a qual obriga a inserção da temática "História e Cultura Afro-Brasileira" nos currículos da Educação Básica, mas que, por si só, não basta para garantir uma formação plural e que valoriza a diversidade sociocultural brasileira. Considerando que um projeto pedagógico que insira, por lei, o ensino da cultura afrobrasileira não pode estar preso apenas aos conteúdos acadêmicos, mas deve também estar voltado para o ensino da arte e suas diversas linguagens, na educação física e outras disciplinas que promovam a tematização da cultura corporal, este trabalho analisou quais conceitos os professores de educação infantil possuem sobre o desenvolvimento de atividades que valorizem a cultura corporal e dança afro-brasileiras com ênfase no movimento do quadril. Incomoda o fato que num país onde o movimento do quadril na dança popular, nas grandes festas e nas atividades culturais corporais é comum, seja possível a existência de preconceitos da parte de educadores de crianças acerca dessa gestualidade. Para muitos pertencentes à geração nascida nos anos 1980, dançar e cantar ao som dos grupos “É o Tchan” e “Bonde do Tigrão” fizeram parte da infância e juventude. É comum em alguns grupos que as crianças pequenas dancem nas festas familiares e comunitárias estilos como o funk, o samba, o axé, o brega, entre outros, nos quais o movimento do quadril e a maleabilidade da coluna vertebral são preponderantes. Na mesma medida em que essa cultura corporal é valorizada nas comunidades também o é pela Educação Básica desde a Educação Infantil? Rebolar é algo que se aprende em casa, mas que não se encaixa no currículo escolar? Os educadores da primeira infância fazem essa conexão entre essa cultura popular o os conteúdos escolares? A partir dessas dúvidas, este estudo pretende compreender que visão predomina no professor de dança na Educação Infantil quando se fala numa cultura corporal que sofre inúmeros preconceitos dentro da escola, como as danças que mais se assemelham às dos bailes funk ou do carnaval. Assim, busca-se entender como uma cultura corporal originária das etnias africanas, fortemente presentes na constituição do povo brasileiro, explorando-se mais fortemente o movimento do quadril como motor dessa discussão, é vista pelo educador da criança pequena. O objetivo da presente investigação é identificar os conceitos que uma professora de dança da

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educação infantil possui sobre o desenvolvimento de atividades que valorizem a cultura corporal e dança afro-brasileira, com ênfase no movimento do quadril. Entende-se que o educador deve valorizar a diversidade da cultura corporal brasileira sabendo contextualizar suas origens, história, nuances, desdobramentos e ressignificações. Havendo preconceito, dificilmente o educador conseguirá fazer um trabalho crítico sobre o assunto. Nesse campo, a produção científica ainda é escassa. Ao fazer uma busca na base de dados Scientific Eletronic Library Online (Scielo) com os descritores educação, escola, afro, dança, quadril, não foi localizado nenhum estudo específico sobre a dança de origem afrobrasileira como parte do currículo escolar de Educação Infantil. Daí se percebe uma importante lacuna na produção de conhecimentos sobre o tema. Por meio de abordagem qualitativa, a pesquisa recorreu à entrevista e análise de documentos. Foram analisados os planos de ensino do ano de 2012 de uma professora de dança que atua junto às turmas de Educação Infantil e, a partir da análise destes materiais foi elaborado um roteiro para a entrevista. Nos planos investigados, a atenção recaiu sobre os conteúdos pedagógicos relativos à corporeidade africana ou afro-brasileira, se eles existiam ou não, na identificação de atividades, brincadeiras, danças e movimentos que fizessem referência à gestualidade característica desse patrimônio cultural. Na entrevista, a professora foi indagada sobre os motivos da escolha dos conteúdos presentes em seu planejamento e especificou a existência de atividades, brincadeiras, danças e movimentos que contemplam as corporeidades africana e afro-brasileira. O material resultante foi confrontado com a revisão de literatura.

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EM BUSCA DE UM CURRÍCULO PLURAL

Os referenciais nacionais para uma educação plural Desde a Constituição de 1988, a defesa da igualdade racial vem se desenvolvendo no país. Na Educação, a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN 9394/1996) menciona a importância da oferta igual de educação para todos os brasileiros, assim como os Parâmetros Curriculares Nacionais alertam para a necessidade de um trabalho pedagógico sobre a “pluralidade cultural”. Mas é em 2003, com a promulgação da lei 10.639, que se erigiu no país uma consciência política maior sobre a necessidade de ações afirmativas, de reconhecimento dos erros públicos e históricos cometidos em favor da discriminação, do racismo e da diminuição do povo negro e afrodescendente, sendo recomendável o estabelecimento de iniciativas para correção em prol da equanimidade entre brancos e negros. A Lei 10.639/2003 inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", especialmente nas disciplinas de Educação Artística, Literatura e História Brasileiras e para o Ensino Fundamental e Médio. Em 2004, o Conselho Nacional de Educação (CNE) instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, explicitando as deficiências brasileiras na promoção da igualdade racial, em especial na Educação, e apresentando as soluções encontradas para tal problema, na implantação da lei 10.639. A lei abarca apenas de Ensino Fundamental e Médio, mas seu conteúdo pode também servir para orientar o trabalho na Educação Infantil (BRASIL, 2004: 23). Ele valoriza a oralidade, a corporeidade e a arte africanas, apontando para esse trabalho a importância do aprendizado a partir do patrimônio cultural afro-brasileiro, com vistas a preservá-lo e difundilo (BRASIL, 2004: 20). Ainda que na lei haja direcionamento do ensino da temática em três específicas disciplinas, as diretrizes prolongam esse trabalho [...] em atividades curriculares ou não, trabalhos em salas de aula, nos laboratórios de ciências e de informática, na utilização de sala de leitura, biblioteca, brinquedoteca, áreas de recreação, quadra de esportes e outros ambientes escolares (BRASIL, 2004: 21)

demonstrando, assim, que ensinar história e cultura afro-brasileira e africana vai muito além do que desenvolver conhecimento teórico sobre o assunto, mas significa também promover

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conhecimento corporal e prático, perpassando diferentes disciplinas e atividades curriculares ou não, isto é, como parte do projeto político pedagógico da escola.

Os estudos culturais na perspectiva de um currículo plural Ao longo do tempo e no percurso dos estudos acerca do que se entende por cultura muito se avançou. Neste trabalho, a opção pelo campo dos Estudos Culturais (EC) decorre de sua visão sobre cultura como determinante e determinada pelas práticas sociais e seu posicionamento em favor dos grupos em desvantagem para subsidiar a pesquisa, pois fornecem as condições teóricas para interpretar os dados levantados. Os EC veem a cultura como um campo independente, que possui relativa autonomia das demais esferas constituintes da sociedade. “(...) toda ação social é cultural, e todas as práticas sociais expressam ou comunicam um significado, sendo, nesse sentido, práticas de significação.” (NEIRA e NUNES, 2008: 44), portanto, as práticas sociais, por serem carregadas de significados e por isso darem sentido às ações sociais se configuram como práticas culturais. Os EC levam em conta que para se definir a cultura de um grupo ou de cada grupo, precisa-se dar importância às relações de poder existentes, às significações que as práticas têm e produzem dentro e para fora do grupo e as definições de identidade dos grupos dominantes e dominados. Isso porque a cultura é vista como “construção social”, ideia cunhada por Stuart Hall (NEIRA e NUNES, 2008: 42), visto que é resultado de um processo de constante construção da sociedade, jamais como algo estático e congelado no tempo. Quando olhamos para a cultura como algo que está sempre sendo construído a partir das relações de poder, significações e identidade fica mais fácil entender por que determinadas práticas culturais são mais valorizadas e outras menosprezadas; que forças movem pessoas e grupos a desvencilharem-se gradativamente de suas identidades originárias; que movimentos levam grupos a defenderem ideias, práticas e fazerem discursos incompatíveis com sua própria história. Ocorre que nesse processo de construção, os significados atribuídos às coisas e às ações é que desenham a cultura dos grupos e pessoas que se relacionam: [...] o ser humano utiliza variados sistemas de significados para definir o que as coisas significam, e, por meio desses significados, pode regular e organizar todas as relações sociais. São os sistemas elaborados a partir desses significados que dão sentido às ações sociais. (NEIRA e NUNES, 2008: 44)

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A utilização desses sistemas de significados vai gerar discursos e práticas discursivas que irão influenciar a forma como vivemos nossas vidas “pois somente por meio do discurso e da linguagem é que os significados são validados, e podemos conferir sentido à realidade social” (Idem). Sendo assim, o que está em jogo no processo de construção da cultura e de atribuição de sentido às ações são as práticas de significação, nas quais se corporificam verdadeiros campos de luta em que os grupos com mais poder se impõem sobre os demais, fazendo valer exclusivamente seus significados em detrimento daqueles que não possuem os mesmos recursos para o combate cultural. Nesse campo de lutas pelo significado, as práticas discursivas, entendidas como “regras que governam o que se pode falar e o que deve ser mantido em silêncio, quem tem o direito de falar e quem deve ouvir” (Ibidem), produzem efeitos nos indivíduos, já que as estratégias de poder, acima de critérios epistemológicos, é que vão dizer o que é a verdade. No encontro das culturas branca e negra podemos reconhecer com facilidade as relações de poder e o discurso do que é certo, bom e bonito. As práticas sociais negras, que não tinham comunhão com a cultura europeia judaico-cristã, eram recriminadas de forma que A razão para a recusa, por parte das sociedades dominantes, em legitimar a cultura negra faz parte do processo de utilização histórica de marcadores raciais para manter a hierarquia dentro de específicas economias e sistemas políticos nacionais (SANSONE, 2002: 252).

Os integrantes de religião africana passam a ser chamados de macumbeiros1; as danças e músicas produzidas ganham a denominação pejorativa de dança de crioulo, música de crioulo; os sotaques característicos das localidades onde mais se concentram negros começam a ser ridicularizados; baiano e paraíba2 passam a se igualar a xingamentos nas regiões Sudeste e Sul do Brasil; cria-se o termo pejorativo preto para designar tudo aquilo que é mal feito, sujo, errado, como “serviço de preto”, “a coisa está preta”; o cabelo crespo é chamado de “cabelo ruim” ou “cabelo duro”, quanto mais encaracolado, “mais ruim”; e por aí vão os muitos discursos e práticas discursivas, corroboradas por leis nacionais, determinações e práticas públicas e privadas que diminuíam a produção social e cultural dos afrodescendentes no país. Os efeitos sobre o povo negro brasileiro foram arrasadores. Fomento e manutenção 1

Segundo Sansone “apenas nos anos 1970 a obrigação de registrar os terreiros de candomblé na polícia, foi suspensa” (2002: 257). 2 “Inspirados pela busca de ‘africanismos’ no Novo Mundo, vários antropólogos e sociólogos consideraram o Brasil, e em especial o litoral do Estado da Bahia e o Recôncavo, como uma das áreas nas quais a cultura negra manteve os traços africanos num grau maior do que em qualquer outro lugar” (SANSONE, 2002: 254), ou seja, a região Nordeste do país é a que mais mantém as características culturais negras.

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da pobreza para essa população, a inacessibilidade a direitos sociais, exclusão e segregação, entre outros, que fizeram com que a cultura negra ficasse subjugada, inclusive na escola, categorizando-a como inferior, não erudita, e, por consequência dos sincretismos e hibridismos produzidos, sendo considerada como popular. O popular, pautado no debate cultural, é entendido como categoria de oposição àquilo que é erudito, o que pertence às elites. O que é de domínio do povo não pode ser um conteúdo das classes dominantes (Stuart Hall apud NEIRA e NUNES, 2008: 49).

A categoria para aquilo que não é erudito, isto é, popular foi criada para se manter a distinção e as diferenças entre as classes sociais. Configura-se como um campo de tensão permanente “de relacionamento, influência, oposição e resistência da cultura popular versus a cultura dominante” (NEIRA e NUNES, 2008: 49). No entanto, Neira e Nunes defendem, a partir das análises de Hall, que “é a cultura popular que permite reconhecer-se nas representações ou rejeitá-las, além de fazerem leituras que permitam novas construções identitárias.” (2008: 48). Isso significa que nenhuma forma cultural é inteira e pura, nem inteiramente corrompida ou autêntica. Por exemplo, podemos colocar a tentativa das escolas em negar a prática de danças como o axé ou o funk, porque não é entendida como cultura popular, como algo autêntico, e sim artefato da indústria cultural, algo totalmente corrompido ou algo que possa, de algum modo, ‘corromper’ os/as alunos/as. Contudo, essas formas culturais (axé e funk) não conseguiriam sobreviver se não tivessem algo de suas origens nas danças e gestos populares, nem iriam tão longe se não contassem com a capacidade de difusão e reconfiguração que a indústria cultural possibilita ao que é popular (NEIRA e NUNES, 2008: 48)

Essa discussão casa perfeitamente com a que estamos fazendo nessa pesquisa. O axé e o funk são resultado, hoje, das diversas ressignificações que as danças africanas e afrobrasileiras já foram um dia. Ambos os ritmos e suas danças favorecem o movimento do quadril e a maleabilidade da coluna vertebral, são praticadas, em sua maioria, nas regiões mais populares e vulneráveis por todo o país e sofrem inúmeras formas de preconceito. Isso demonstra que a prática dessas danças possui todas as características socioculturais que a prática da própria dança africana sofreu no início. Os discursos mais comuns para a diminuição dessas danças são que o axé é uma música de qualidade inferior; a ideia muito difundida de que o axé cumpriu somente a função de fundar um novo mercado musical; o funk é a dança que desenvolve unicamente a erotização infantil; o funk não pode ser dançado na escola, nas apresentações culturais, não entra na lista de ensaios para as festas escolares; etc.

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Não se pode ignorar que alguns setores das classes dominantes incorporaram o axé e o funk em seus repertórios, a exemplo do sucesso de muitas academias de ginástica que ofereciam aulas de dança de axé como alternativa para atividades físicas, fortemente na década de 1990, bem como as músicas de funk que fizeram parte do repertório de DJs que tocavam e tocam ainda em festas familiares, comunitárias ou em baladas fora das comunidades vulneráveis onde originalmente eclodiram essas danças. O que comprova a existência de um trânsito de cultura entre a classe dominante e a subjugada e a ausência de uma paralisação de qualquer das formas culturais no tempo, todas percorrem um infinito caminho de construção. Ainda assim, Neira e Nunes (2008) compreendem que a categoria popular permanece mesmo que em alguma época seu conteúdo seja elevado ao erudito, para demarcar sempre a distinção entre ambas. A vivacidade das práticas corporais originárias da cultura africana é a verdadeira representação do que revela o estudioso Hall sobre o movimento que a aculturação gera nos grupos sociais e nas lutas por significação: “incorporação, distorção, resistência, negociação e recuperação” (p. 50). Ou seja, a cultura ressignifica-se, nunca morre, como demonstra os autores.

A corporeidade negra no Brasil A corporeidade africana não foi bem aceita desde a vinda forçada do negro às terras brasileiras. Coito (2008) apresenta que com os senhores de fazendas treinando, modelando e manipulando os corpos negros no processo de escravidão e exclusão social, cria-se uma representação do negro como um ser domesticável. No entanto, esta falsa representação que a história insiste em determinar como corpo domesticável é desmentida no momento em que o negro resiste à domesticação e instaura um novo dizer: o dizer da/na dança e do/no canto: o dizer da liberdade de corpos que movimentam a história revelando que os sentidos, também da identidade, estão na dispersão e, ainda, nos silenciamentos (COITO, 2008: 223).

A dança e o canto, permitidos pelos senhores nas senzalas como estratégia para manter e conseguir mais escravos passaram a ser fortes expressões da resistência à “domesticação”, representada pela liberdade do corpo e do movimento durante os festejos realizados pelos grupos negros. Tais manifestações eram permitidas pelos senhores de escravos, no entanto, proibidas pelas normas da igreja católica. O confronto aparece nas raízes filosófico-religiosas de ambas

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as culturas. Enquanto para o europeu judaico-cristão, a sexualidade humana é vista como algo proibido e o ritual de sensualidade é tido como profano, para o africano, o ser humano tem similitude com a natureza e a procriação significa dádiva divina, pois a partir dela surgem os filhos concebidos. [...] neste jogo de similitude, a cultura negra desvela-se como uma comunhão plena entre o homem e a natureza. Isso muito incomodou a visão da Igreja, a qual vê o homem como imagem e semelhança de Deus, impedindo-o de ver-se na natureza ou de ver na natureza uma aparência de semelhança consigo. Em outras palavras, o homem é reprimido em seus instintos e eleva-se à categoria de ser assexuado, que é uma forma de privar o negro que veio da África de sua identidade. (COITO, 2008: 222)

Isto é, ao “tornar” o negro um ser “assexuado”, desprovido da possibilidade de comunicar sua forma de ver o mundo, inclusive por meio das expressões corporais, as normas sociais da época criam formas de privar o africano da sua própria identidade, além de todas as repressões físicas, a repressão moral também foi altamente danosa à sobrevivência e valorização da cultura negra no Brasil. É possível identificar os gestos de maior expressão da dança negra por meio daqueles que colocam o corpo do homem em contato com o corpo da mulher, representam a sensualidade entre ambos e no próprio corpo do indivíduo. A sua expressão corporal possui traços distintos que a diferenciam pelo jeito de comunicar, através de gestos largos e expressivos de braços, os movimentos acentuados pelos requebros dos quadris, com uma postura e expressão marcantes, provocando aplausos e entusiasmo de quem a assiste e respeita esta cultura. (OLIVEIRA, 2005a: 186)

Os gestos mais fortes da dança africana são a maleabilidade da coluna vertebral, o desafio às diferentes articulações, pisadas fortes, rodopios (do corpo todo ou só de uma parte do corpo, como a cabeça), abertura e fechamento dos braços, dançar no nível baixo, com a coluna curvada, a umbigada e, marcadamente, o movimento do quadril. Movimentos estes originários de danças aos orixás e deuses do Candomblé e da religiosidade africana (OLIVEIRA, 2005b), estranhos à cultura europeia, portanto, aos olhos dos brancos ocidentais europeus, representantes de um corpo profano e longe da divinização. Corpo esse que “a tradição ocidental desenhou como apropriado apenas para o trabalho, convencionalmente representado com depositário de qualidades e sentidos negativos e desprestigiados” (OLIVEIRA, 2005b: 63).

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À medida que esse corpo é desprestigiado, sua produção artístico-cultural também o é, nascendo daí uma corrente preconceituosa e discriminatória. Mas ainda assim, não forte o suficiente para a eliminação dessa gestualidade do cotidiano brasileiro. É possível considerarmos a dança como uma das formas de comunicação não verbal da cultura afro-brasileira, sendo um elemento importante na função de manter e resguardar ao longo da história conhecimentos fundamentais presentes e atuantes no processo civilizatório dos afrodescendentes (...). (OLIVEIRA, 2005b: 63)

A gestualidade africana sincretizou-se com a europeia e a indígena no Brasil de forma a criar novas gestualidades, fortalecer umas e abafar outras, num longo e infinito caminho de ressignificações no decorrer do tempo e dos acontecimentos. Dos gestos africanos sobreviventes, que são muitos, é possível identificar as danças da contemporaneidade herdadas destes, como samba, pagode, maracatu, baião, axé, funk, todas carregadas de julgamentos acerca da exposição da sexualidade de quem as pratica. Tais práticas ganharam ampla repercussão social em todo o país. Em cada região uma é mais valorizada e praticada que outra. Ao ponto que todas são facilmente encontradas nos pátios e recreios escolares, onde crianças e jovens num momento de descontração e diversão entre um período e outro, manifestam movimentos e corporeidades que não entram facilmente nos currículos ali desenvolvidos. Divertir-se com o corpo é uma prática que inicia na própria comunidade dos alunos. Nas festas familiares (desde as infantis), nas comemorações da comunidade, nos momentos de descontração aos domingos, no encontro entre amigos. Os pátios escolares, as festas e os espaços comunitários podem carregar práticas corporais afro-brasileiras que se traduzem como cultura contemporânea e, portanto, requerem um espaço curricular na escola para que possam ser compreendidas, conhecidas e ressignificadas a fim de que esses grupos sociais possam reconhecer-se na história e cultura corporal afro-brasileira e africana, reconhecendo também suas próprias identidades.

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A VISÃO DA PROFESSORA DE EDUCAÇÃO INFANTIL A professora de dança que participou da pesquisa atua numa escola localizada no centro da cidade de São Paulo/SP. É licenciada em Pedagogia e estuda ou estudou diferentes danças (dança de salão, dança do ventre, balé e jazz). Apesar de o seu trabalho ser ligado à coordenação de Educação Física da instituição, ela tem total autonomia para escolher os temas e conteúdos a serem trabalhados, uma vez que a escola não faz qualquer exigência por uma dança ou por uma abordagem específica. Como as atividades que envolvem a dança e o caratê acontecem no mesmo horário para as turmas de Educação Infantil e 1º e 2º anos do Ensino Fundamental, automaticamente as meninas vão para a dança e os meninos para o caratê. A partir do 3º ano, as crianças podem escolher, mesmo assim, a concepção segregacionista e sexista já foi estabelecida e a maioria das meninas opta pela dança e os meninos, pelo caratê. Como afirma a professora: “é mais comum ter meninas no caratê do que meninos na dança”. Os diversos modos de comportamento presentes entre as pessoas de sexos diferentes são determinados culturalmente, pois, ao mesmo tempo em que constituímos a cultura, somos constituídos por ela [...]. (NEIRA; NUNES, 2008: 21).

A opção da escola veicula um padrão cultural em que mulheres e homens têm atividades designadas e funções diferentes na sociedade. Essa postura interfere diretamente na constituição identitária das crianças. Tornar-se humano é tornar-se individual, e nós nos tornamos individuais sob a direção de padrões culturais, sistemas de significação criados historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direção às nossas vidas. (Geertz apud NEIRA; NUNES, 2008: 220).

Com essa mesma crítica sobre a construção da identidade das crianças, alunas dessa disciplina de dança, que permaneceremos as reflexões sobre a ausência da dança africana e afro-brasileira e o movimento do quadril nesse currículo.

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A cultura dominante na escola Em seu planejamento anual e nos mensais de 2012 não foi encontrado nenhum conteúdo que fizesse referência à corporeidade africana e afro-brasileira. Para as crianças do maternal foram abordados os movimentos de demi plié e grand plié do balé, além da denominada dança educativa e propostas para o desenvolvimento da consciência corporal. Nas turmas Pré I e II, os principais conteúdos são as 1ª, 2ª e 3ª posições do balé, consciência corporal e espacial, dançando nos níveis baixo, médio e alto propostos por Laban3, capacidades expressivas do movimento, movimento de perfuração, o lúdico e a dança e a conexão com o outro. Na análise do plano mensal ficou perceptível a exploração de movimentos diversos e criação de sequências e danças pelas próprias crianças, não caracterizando uma “escola de balé”, mas sim práticas corporais fundamentadas nos movimentos e nas teorias do movimento e da dança de Laban e Isadora Duncan4, como mencionou a professora. Apresentou as seguintes razões para a escolha desses conteúdos na Educação Infantil: a) as crianças da educação infantil gostam muito, pois veem as bailarinas em filmes e em bonecas (como a Barbie), portanto querem aprender; b) para que o corpo fique disciplinado para qualquer outra dança; c) para dançarem mais bonito; d) para a dança não acarretar lesões corporais nas crianças. Esses argumentos encontram-se presentes naqueles discursos em que, geralmente, o foco é a formação de um corpo “para a dança” e não para a educação das crianças e no desenvolvimento de uma corporeidade crítica e consciente das referências culturais que ela carrega. A escola exclui certas manifestações lúdicas, atribuindo-lhes concepções desviantes ou problemáticas (a competição, os jogos de azar, o axé, o jiu jitsu, por exemplo) para a ação pedagógica. Em detrimento dessas, os professores apresentam seus jogos educativos, muitas vezes, absolutamente desprovidos de lastro cultural. (NEIRA; NUNES, 2008: 232)

O grupo de alunos para os quais ela leciona demonstra a presença da corporeidade africana, pois ela coloca em três momentos da entrevista que o movimento do quadril aparece quando ela deixa as crianças livres para fazer um movimento. É nessa ocasião que elas 3 Rudolf Von Laban foi dançarino, coreógrafo, considerado como o maior teórico da dança do século XX e como o "pai da dança-teatro". 4 Angela Isadora Duncan foi considerada a pioneira da dança moderna. Causou polêmica ao ignorar todas as técnicas do balé clássico.

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apresentam os gestos do seu repertório cultural e pedem para aprender a sambar para participarem dos grupos de dança dos familiares. Com o foco no balé, dança clássica e com movimentos mais marcados, sob influência de Laban e dança moderna, a professora se manteve na cultura, estudo e manifestação corporal europeia. Tendo chegado à América do Sul como dominante e tida como superior às manifestações artístico-corporais já existentes, em diversos sentidos, essa visão prevalece. Entende-se, portanto, que a professora desenvolve sua prática pedagógica baseada na manutenção dessa hegemonia, sem o (re)conhecimento dos sistemas de significado que ela possui, portanto sem uma interlocução democrática com outras culturas, inclusive a das próprias crianças, suas alunas. A prática pedagógica na abordagem cultural, pautada nos pressupostos da pedagogia crítica e pós-crítica, visa proporcionar aos sujeitos da educação a oportunidade de conhecer os sistemas de significado de cada cultura (diversidade) por meio das manifestações corporais. É criar códigos de comunicação que favoreçam a interlocução democrática dos significados. É proporcionar aos educandos condições para estabelecerem uma relação dialética com seus pares, mediante a sua produção e conhecimento culturais. (NEIRA; NUNES, 2008: 228)

Um trabalho nesse sentido exclui a possibilidade dos educandos estabelecerem a relação dialética indicada pelos autores e tampouco a interlocução democrática com as diferentes manifestações culturais presentes no país. E nesse caso, a cultura negra é das mais pormenorizadas, portanto não considerada como conteúdo carregado de possibilidades práticas, de estudo e manifestações importantes para o desenvolvimento dos educandos, visto que a professora visa à formação de uma corporeidade pertencente a uma cultura específica. [...] num mundo onde o “valor” das culturas e identidades étnicas é sua diferença em relação à cultura urbana ocidental, as culturas negras não gozam do reconhecimento oficial das “culturas étnicas estabelecidas” (por exemplo, no caso da cultura de algumas minorias imigrantes nos países industrializados, como os turcos e os marroquinos na Alemanha e França) e as pessoas negras têm maiores problemas, do que grande parte das outras minorias étnicas, em se definirem como uma comunidade cultural ou politicamente distinta. (SANSONE, 2002: 252)

Um fato que pode interferir bastante na sua opção pedagógica é o desconhecimento da legislação que insere no currículo escolar a história e cultura africana e afro-brasileira, o que já é um dado negativo, visto que trabalha diretamente com a dança, uma atividade essencialmente cultural. Discussões sobre assuntos como esse, sobre a legislação vigente e tudo mais que implicaria no projeto pedagógico deveriam fazer parte do cotidiano escolar, o que auxiliaria os professores a atualizarem-se na questão.

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Rebolar não faz parte do currículo escolar Segundo a professora, na escola teria abertura para desenvolver a dança africana, mas com algumas reservas, ela comenta: Acho que tem um pouco de preconceito por parte de alguns movimentos, então, com certeza, eles iriam indicar pra eu não trabalhar algumas movimentações tão extensas, que foquem bastante na movimentação, por exemplo, do rebolar, trabalhando de forma mais sutil, uma forma mais leve pra não ficar tão chamativo.

Falta à escola refletir sobre o fato de que “[...] ao entrecruzar-se com a cultura, o indivíduo tanto constrói sua motricidade como expressa suas produções culturais” (NEIRA; NUNES, 2008: 217). Constrói sua motricidade e também sua identidade. Trabalhando com concepções como essas, a escola gera para os educandos um conflito entre a cultura de que a criança participa na família e na comunidade e a cultura que a escola apresenta, causando estranhamento, resistência e falta de significado daquela corporeidade apresentada. Além disso, a escola passa a construir com esse educando uma corporeidade cheia de conflitos e desprovida de importantes significados. Quando questionada sobre a origem desse preconceito, a colaboradora do estudo responde: Tem essa preocupação de não focar nesses movimentos que rebolam, chamam a atenção para o bumbum, chamam a atenção para o quadril (...), já que os meninos, muitos ainda não são maduros e vão acabar tendo um outro olhar ou fazendo alguma piada.

O posicionamento revela o risco de trabalhar uma manifestação cultural, como a dança, sem o lastro cultural que a identifica e que a construiu. O mesmo preconceito originário do confronto entre as diferentes perspectivas filosófico-religiosas europeia e africana – no qual a cultura dominante trata o corpo negro forçadamente como assexuado enquanto este lida com a sensualidade do corpo como natural e parte do ser humano e da natureza. A própria respondente identifica essa situação como “falta de respeito com a cultura”. Falta de respeito tem a ver com desconhecimento, com saber lidar com o diferente. É possível que as crianças atribuam ao rebolado conotação sensual e provocativa, como é muito comum nas danças de axé e funk, por exemplo, entretanto, como manifestação cultural, o rebolado

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precisa ser entendido, experimentado, compreendido. Afinal, “para compreender um gesto, é necessário estar mergulhado no interior das regras da linguagem e dos sistemas de significado estabelecidos culturalmente” (NEIRA; NUNES, 2008: 225). Ao compreender que o movimento do corpo na cultura negra tem um significado diferente do da cultura dominante, tem uma origem filosófico-religiosa, tem uma visão de mundo diferenciada da vigente, é possível, então, desestabilizar o rastro preconceituoso de séculos, colaborador de uma repressão que fez essa cultura corporal permanecer subjugada, sendo manifestada apenas pelas pessoas e grupos que ficaram à margem dos processos de inserção e validação sociocultural, visto que “é a cultura popular que permite reconhecer-se nas representações ou rejeitá-las, além de fazerem leituras que permitam novas construções identitárias” (NEIRA; NUNES, 2008: 48). Ainda assim, a professora se posiciona favoravelmente à inserção do movimento do quadril nos seus conteúdos escolares, ela diz que O quadril faz parte do corpo e na dança contemporânea a gente pode ver algumas movimentações de quadril, não tão profundas como o rebolado, mas já tem essa mexida no quadril que não tem nas danças clássicas (...). Eu gosto, eu trabalharia sim com uma dança voltada pro quadril, porque estimula bastante não só a autoestima, como na criatividade dos alunos.

Todavia, quando questionada sobre sua inserção na Educação infantil, ela responde: Na Educação Infantil não entra, só se for numa dinâmica de dança, ou que eu peça pra eles criarem algum movimento, aí elas acabam colocando a mão na cintura e fazendo algum movimento pra lá e pra cá com o quadril. É mais na brincadeira, mas não entra ainda.

Sabendo que as danças que movimentam o quadril, em especial nas danças de origem africana ou afro-brasileira, têm uma representação maior da sexualidade humana fica fácil compreender por que são mantidas ainda mais distantes da Educação Infantil do que de outros níveis da Educação Básica. A pureza da cultura judaico-cristã fica ainda mais evidente para a criança pequena, símbolo de inocência e ausência de sexualidade. Quanto à inserção de alguma referência à cultura corporal africana nas atividades, mesmo as que não estejam explícitas no planejamento, a professora menciona as apresentações de final de ano, mas sem muita clareza. Com relação às atividades cotidianas, afirma: “não consegui ainda inserir, no máximo eu coloquei uma expressão corporal que eu acho que faz parte de todas as danças e você acaba tendo um pouco de movimento específico de cada cultura”. Isto é, a professora reconhece que nas diferentes manifestações corporais

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podem ser identificadas diferentes culturas, no entanto, seleciona danças de um só grupo sociocultural como importante para a dança escolar, além de não apresentar os significados que carregam, fortalecendo o discurso de que a cultura corporal dominante é a adequada, a correta. É possível identificar em todas as manifestações corporais os gestos que expressam significados peculiares à determinada cultura e à sua época de criação, e torna-se importante ressaltar que todos esses signos, sem exceção, são válidos, ou seja, sem oposição binária entre o certo e o errado, o adequado e o inadequado à escola. (NEIRA; NUNES, 2008: 233)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Séculos se passaram entre a chegada do negro às terras brasileiras e sua entrada na escola e, por fim, a importância dada à pluralidade cultural no âmbito escolar. É possível que ainda muitas escolas interpretem a lei 10.639 de forma a implantarem somente nas três disciplinas principais recomendadas, sem necessariamente inserir o tema como parte do projeto político pedagógico, no entanto o fim que se espera é esse, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana são claras nesse sentido. A repressão do negro é muito forte em todos os sentidos. Sansone (2002) aponta para o fato de que de todas as minorias étnicas espalhadas pelo mundo, a negra é a que sofre mais dificuldades em se definir cultural e politicamente como comunidade distinta. No entanto, ele afirma que Tem havido forças ‘locais’ mais poderosas, nas formas como as coisas africanas têm sido classificadas e posicionadas. O sistema mundo, certamente, provoca a internacionalização do racismo, bem como do antirracismo. No entanto, importantes graus de variâncias nacionais e locais ainda podem ser detectados. Quase sempre é apenas uma questão de se procurar e estas serão encontradas. (SANSONE, 2002: 269)

É no sentido do antirracismo que estão os esforços do CNE com as diretrizes e com o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. O professor deve se atentar aos discursos que validam suas práticas e, essencialmente, aos discursos que está usando com os educandos e que levam as “verdades” sobre as “melhores” práticas sociais e culturais para seus alunos. Sem essa atenção, ele se torna mais um dos instrumentos da cultura dominante nesse campo de luta que é a cultura. A prática democrática também deve viger na atuação do professor e isso é um exercício constante, pois não é fácil e requer enfrentamento dessas verdades impostas socialmente, ao passo que a cultura dominante também estará presente e deverá ser problematizada em torno da compreensão das significações que cada cultura possui. O break, o funk e o forró constituem-se representações da cultura popular, enquanto o balé, o voleibol e o tênis representam signos da cultura dominante. A escola, enquanto espaço público e democrático, poderá problematizar todas, aprofundando o estudo sobre seus sentidos e significados. (NEIRA; NUNES, 2008: 233)

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Com este estudo, pudemos perceber a fragilidade em reconhecer a diferenciação entre o popular e o erudito na importância de ambos para a compreensão do que é cultura e de como ela se apresenta. Dessa forma, é impossível haver aprofundamento no estudo sobre o sentido e significado das diferentes culturas conhecidas ou presentes na vida dos educandos. Antes de ser uma manifestação artística, a dança é uma manifestação cultural que possui fortes marcadores sociais, que carrega história e tradição do grupo protagonista. O professor de dança, e todo aquele que lida especificamente com a corporeidade do aluno, deve tratá-la como componente cultural e, para isso, necessita entender seus signos e significados, pois sua atuação interferirá diretamente na construção da motricidade e da identidade cultural do educando. Na dança, cada gesto tem seu motivo, seu significado e quando alguém, de um ponto de vista que considera adequado, avalia aquele gesto sem compreender seu mote, está fadado a discriminá-lo ou a tratá-lo como inferior, menor, desqualificado. O rebolado é um gesto importantíssimo na cultura africana e que só carrega o peso do pudor, porque não teve quem o avaliasse em seu significado sem o subjuga-lo, logo que ele se tornou conhecido da cultura dominante da época no Brasil. Após tanta desqualificação e de tanto discurso quanto à sua erotização, parece-nos que ao rebolado foi incorporada uma função estritamente erótica e propagadora de um comportamento sexual não aceito socialmente, com os bailes funk da “potranca” e da “preparada” – termos destinados à mulher (muitas vezes independente da idade) que se encontra disponível para ser “penetrada” por qualquer um indiscriminadamente. No entanto, não é o rebolado que produz o erótico, é a interpretação que se faz e que se dá a ele e como formador da criticidade da criança e do adolescente, o professor não deve jamais silenciar determinadas práticas, seu papel é, na medida em que são expostas pela comunidade, compreender seus significados e seu papel na sociedade e problematiza-las com os alunos. Nesta perspectiva, acreditamos que a Educação Física possa proporcionar o estudo, a aproximação e a valorização de diversas formas de produção e expressão cultural dos/as alunos/as e de outros grupos, se um agente, através de seus professores, verossímil de um multiculturalismo crítico e possibilitar uma escola multicultural democrática que favoreça as relações humanas. (NEIRA; NUNES, 2008: 233-234)

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REFERÊNCIAS

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ANEXO ENTREVISTA COM PROFESSORA DE DANÇA Pesquisadora: qual foi a sua formação em dança? Professora: comecei na pós-graduação, porque eu sou pedagoga então tive a vontade de buscar um pouco na área de dança algumas atividades diferenciadas para os alunos na escola então eu optei pelo curso Dança e consciência corporal na pós-graduação, em um ano em meio. Pesquisadora: você tem alguma outra formação em dança? Professora: eu já dancei em academia de dança de salão por dois anos, já fiz 4 meses de dança do ventre e agora eu faço na academia Tania Ferreira curso profissional de dança, ballet e jazz. Pesquisadora: você conhece alguma coisa de dança africana ou afro-brasileira? Professora: no curso da pós graduação eu tive uma disciplina de dança africana e eu percebi nesse curso que na dança africana você pode trabalhar sem entrar muito no aspecto religioso, não entrando em conflitos, então você trabalha com o corpo mais voltado pro chão e pra terra que é a caracterísitca deles e você coloca esse tipo de movimentação pra que os alunos entendam partes do corpo, entendam como podem estimular o quadril, por exemplo, que é bastante usado. A professora mostrou outros tipos de movimentações com o braço, é tudo muito firme, bem expressivo o rosto e passou algumas dinâmicas, falou sobre os orixás, que a dança africana você pode levar tanto pra cultuar os orixás, como pra cultura mesmo, como pra conhecimento dessa cultura. É uma dança que estimula o corpo inteiro. Pesquisadora: eu vi o seu planejamento e eu quero perguntar como que você e a sua equipe de trabalho na escola definem os conteúdos de dança na Educação Infantil? É você mesma ou são outras pessoas que ajudam? Como que é? Professora: eu comecei a atuar nessa área de dança desde o ano passado, no início do ano. Sou instrutora de dança e eu comecei a pensar no conteúdo focando na importância do movimento do corpo da criança. Então eu busquei o autor Laban, eu busquei a autora Isadora Duncan, que me ajudaram bastante nessa experiência, nesse foco, porque o Laban trabalha bastante com o corpo desde o movimento das plantas, da natureza, do movimento do dia a dia e ele busca desse movimento e transforma numa dança, então ele tira o significado do movimento de você, por exemplo, apagar uma luz e põe essa ação na dança. Então isso acho que abriu bastante o leque, principalmente em escola, porque as crianças não estão acostumadas, muitas não estão acostumadas com academia de dança e não têm dança desde pequenininhos, o corpo não está tão felxível. Então pra começar eu gostei bastante porque ele tem um teórico pra educação muito bom e fica mais fácil de visualizar, até mesmo no corpo das crianças, começando com essa parte de movimentação, de estrutura corporal, de elas perceberem o quanto elas podem se alongar, o quanto elas podem criar movimentações. Pesquisadora: então é você que escolhe os conteúdos? Professora: sim, a escola por enquanto ela não optou por alguma dança, ela deixou à minha escolha. Pesquisadora: no seu planejamento eu vi que você trabalha com Laban mesmo e também com o ballet, um pouco com os princípios do ballet. Por que você escolheu também o ballet nesse caso? Professora: nesse caso eu escolhi o ballet principalmente para as crianças menores, porque elas gostam muito, elas pedem e o ballet trabalha com o corpo todo também, mas de uma forma diferente, ele dança se alongando, como se fosse isso, porque você vai lá trabalhar num plié, você abaixa, flexiona a perna e você estende, mas pra você trabalhar o plié, você primeiro tem que estender a sua perna numa barra pra que ela fique totalmente disciplinada, estendida, pra que não aconteça nenhuma dor no músculo, mas o ballet te traz uma postura do corpo muito boa e essa postura deixa você disciplinado para a dança, pra qualquer outra dança. Por isso que eu pensei no ballet, as crianças tendo uma postura correta do corpo, elas podem até dançar mais bonito outras danças e fazendo com que não tenha nenhuma lesão corporal. Pesquisadora: então esse já é o seu objetivo com a dança com os seus conteúdos? É você trabalhar essa postura? Professora: sim. Com os conteúdos esse é o objetivo, de trabalhar a postura corporal, fazendo com que elas dancem sem machucar o corpinho, fazendo com que elas conheçam mais da parte do clássico para o moderno, porque a dança começou com o clássico, então eu quero que elas entendam desde o início da dança, do clássico, da dança da nobreza até a modernidade, o contemporâneo.

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Pesquisadora: você coloca também no seu planejamento a questão da dança escolar, dança educativa, como a introdução à dança escolar. O que você entende por dança escolar e dança educativa? Professora: dança escola e dança educativa é como se fossem sinônimos. As duas tem o objetivo de trabalhar com o foco de dança na escola, que seria só uma nomenclatura pra diferenciar o nome, mas elas trabalham com o mesmo objetivo de levar pra criança essa importância de se movimentar e de fazer com que ela conheça mais o corpo usufruindo mesmo da própria experiência. Pesquisadora: o foco do trabalho (artigo) é a questão do movimento do quadril, rebolado, dança africana e tal. As crianças trazem isso na corporeidade delas? Elas demonstram que gostam ou fazem movimento com o quadril nas atividades? Professora: sim, elas demonstram bastante, ainda elas, as maiores, pedem pra aprender o samba, por exemplo, e isso eu vejo que vem da própria cultura de muitos. Elas gostam dessa parte de mexer o quadril, não como forma, assim, de se mostrar, mas sim de poder aprender mesmo. Até uma fala que "nossa, eu to desesperada pra aprender o samba, porque minha mãe faz parte do grupo, da academia do samba, e eu queria também fazer, eu quero fazer parte". É mais pra aprender e poder dançar do que pra se mostrar. E um ponto muito forte é a cultura do nosso país que é bem voltada pro samba, pra parte inferior mesmo, quadril pra baixo, pra dança africana, dança do ventre. Pesquisadora: e o que você pensa de uma inserção do movimento do quadril, atividades com o movimento do quadril, nos conteúdos escolares em dança? Professora: eu penso que é bom, é normal, porque faz parte do... o quadril faz parte do corpo e na dança contemporânea a gente pode ver algumas movimentações de quadril, não tão profundas como o rebolado, mas já tem essa mexida no quadril que não tem nas danças clássicas, é uma coisa mais rígida, mas na dança moderna que é também voltada pro chão, ela também tem algumas movimentações de giro com o quadril, de transferências de direita pra esquerda, fazendo com que o quadril se mova. Eu gosto, eu trabalharia sim com uma dança voltada pro quadril, porque estimula bastante não só a autoestima, como na criatividade dos alunos. Pesquisadora: mas no momento ele não entra na educação infantil ainda? Professora: na Educação Infantil não entra, só se for numa dinâmica de dança, ou que eu peça pra eles criarem algum movimento aí elas acabam colocando a mão na cintura e fazendo algum movimento pra lá e pra cá com o quadril. É mais na brincadeira, mas não entra ainda. Pesquisadora: nas suas atividades, mesmo que não esteja explícito no planejamento, teve alguma atividade que fizesse alguma referência à dança africana ou à dança afro-brasileira ou a alguma cultura corporal africana ou você não chegou a inserir nas atividades? Professora: nas atividades, por enquanto, do ano passado até agora eu não consegui ainda inserir, no máximo eu coloquei uma expressão corporal que eu acho que faz parte de todas as danças e você acaba tendo um pouco de movimento específico de cada cultura. Pesquisadora: então teve alguma atividade em que as crianças foram estimuladas a perceber as articulações, os limites e em especial a do quadril que é a nossa maior articulação? Professora: sim, teve uma atividade de alongamento e atividade de dinâmica, nas dinâmicas da dança. Eu coloquei bastante a parte do quadril, principalmente para as crianças menores, elas que trabalham bastante com ballet, eu tento mesclar um pouco pra elas terem uma noção do corpinho delas. E pra tirar um pouco desse preconceito. Eu fiz uma dinâmica em roda, uma dinâmica que é pra imitar o amigo, então o amigo ia lá dentro da roda e ele fazia uma movimentação que eu colocava as características, "faz uma movimentação que você mexa só a pernas", aí ele mexendo as pernas, obviamente ele mexe o quadril, aí eles começavam a imitar, e ia outro pro centro. Eu focava mais no quadril pra baixo pra gente trabalhar essa articulação, mas essa dinâmica é uma dinâmica voltada pra todo o corpo, mostrando pras crianças a articulações dos dedos, das mãos, do punho, de todo o corpinho. Pesquisadora: as crianças apresentam danças para os pais, famílias/ responsáveis e pra comunidade? Professora: sim, as crianças apresentam dança pra elas mesmas. É assim, uma série apresenta pra outra na escola, a gente faz um mini festival na escola pra ter essa troca de aprendizado e no final do ano tem a apresentação para os pais e responsáveis. Pesquisadora: então é uma vez por ano que tem apresentação para os pais? Professora: sim, da dança sim. Tem as festas típicas, que é a festa junina que eles também dançam, mas onde eu trabalho essa parte fica com os professores de Educação Física e é voltado pra quadrilha, todas as séries.

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Pesquisadora: então não tem uma participação da dança trabalhada nas aulas nas festas juninas específicas? Professora: não. O que trabalhamos em aula não tem na festa junina, só no final do ano mesmo. Pesquisadora: no ano de 2012, quais foram as apresentações da Educação Infantil? Teve alguma que trabalhasse com alguma referência ou alguma dança específica africana? Professora: com dança específica africana, não. Mas teve referências. Com o grupo do maternal eu trabalhei jogos e brincadeiras na dança, então eles dançaram uma música da pantera cor de rosa, só a música instrumental, e foi como forma de brincadeira, elas iam andando e abaixando o corpinho, virando de um lado pro outro, aí na parte que a música faz "tãnãnãnãnã", elas abaixavam, depois elas voltavam a procurar como se estivessem procurando alguma coisa, mexendo as perninhas e girando, foi mais uma brincadeira. No Pré I e Pré II eu coloquei músicas que eles mesmos escolheram, que foi música da novela Carrossel, que eles gostam, e a gente não teve um tema específico, eles dançaram uma composição coreográfica que eu montei pra dança. Pesquisadora: e você que elaborou a coreografia? Foi você que montou? Professora: do maternal, sim, fui eu que montei, é uma brincadeira que a gente já tinha feito em sala de aula, treinamos em sala de aula pra apresentar. Do Pré I e Pré II também fui que fiz, algumas crianças elas questionam, ela falam "pode fazer desse feito?", aí a gente faz, a gente treina da forma que a criança quer, elas interferem bastante nos passos e do primeiro ano (do Ensino Fundamental), eles criam uma parte da música e eu crio outra, ou se não eles criam e eu limpo a coreografia deles pra ficar de uma forma visualmente mais bonito para a apresentação. Pesquisadora: então as crianças acabam até participando da composição? Professora: é, elas participam bastante, elas gostam e eu acabo ficando só pra limpar os passos. Tem uma sala do terceiro ano que a sala inteira elas gostam de separar os grupos e fazem a própria criação de passos, aí eu deixo elas na criação e depois eu só ajudo na limpeza dos passos. Pesquisadora: na sua escola eu sei que tem uma coordenação da Educação Física, da parte de dança, de movimento, do esporte. Como funciona isso? Ela direciona o trabalho de vocês? Professora: sim, de alguma forma sim, ela sempre instrui. Tem a coordenação de esportes e a dança faz parte. Nos meus planejamentos, ela sempre dá um auxílio ou alguma opinião sim. Por exemplo, se eu for trabalhar com o ballet, ela fala que de algma forma eu não posso trabalhar só os passos, de alguma forma você tem que incluir algum valor e então esses valores eu sempre dou espaço na hora da criação da coreografia. Como a gente pode dançar, o que a gente pode mostrar na dança esse valor? Como a gente pode mostrar isso? Através da música, através da dança mesmo. Pesquisadora: valores seriam, no caso, valores positivos? Professora: isso, valores positivos. No caso, valores como o amor, fraternidade, companheirismo, solidariedade. Ela fala pra não deixar só no técnico, porque as crianças não são robôs então elas precisam de uma substância emocional e fazem com que elas fiquem até mais a vontade quando a gente tem esse espaço, esse vínculo, quando a gente cria esse vínculo com elas, elas ficam mais à vontade pra se expressar. Pesquisadora: você acha que na escola você teria abertura pra você trabalhar dança africana? Professora: sim, teria abertura sim se eu quisesse trabalhar, mas ainda, na minha opinião, acho que tem um pouco de preconceito por parte de alguns movimentos, então com certeza eles iriam indicar pra eu não trabalhar algumas movimentações tão extensas, que foquem bastante na movimentação, por exemplo, do rebolar, trabalhando de uma forma mais sutil, uma forma mais leve pra não ficar tão chamativo. Pesquisadora: por que você acha que tem essa resistência, que haveria essa resistência? Professora: pelo preconceito mesmo, porque o mundo mostra as culturas e mostra ao mesmo tempo a falta de respeito com essas culturas, então é nessa falta de respeito que a escola impede, tem essa preocupação de não focar nesses movimentos que rebolam, chamam a atenção pro bumbum, chamam a atenção pro quadril, pra que não tenha essa falta de respeito dentro da escola mesmo, já que os meninos eles são adolescentes, muitos ainda não são maduros e vão acabar tendo um outro olhar ou fazendo alguma piada. É claro que eu entendo que se trabalhasse com os meninos também a forma do respeito a essas movimentações, do que por que é importante fazê-los, eles com certeza entenderiam. Pesquisadora: há formas de trabalhar o próprio rebolado, o movimento do quadril, sem estar carregado desse viés erotizador? Professora: sim, há uma forma. Você trabalhando o corpo inteiro, não focando só naquela articulação, por exemplo, do quadril, mas também não deixando de trabalhar numa movimentação. Você trabalha, mas ao mesmo

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tempo você dá a visão pra outra parte do seu corpo, então você trabalha duas partes ao mesmo tempo. Pesquisadora: você falou um pouco dessa atenção que alguns meninos teriam com o corpo das meninas, mas também poderia ser trabalhado com o corpo dos meninos? Que é uma coisa que acontece também na nossa cultura. Professora: é, se você mostra isso pra eles, a importância de trabalhar o corpo inteiro e por que dessa importância, com certeza eles entenderiam, porque não tem como você dançar mostrando só os braços ou só os pés e não mexer o restante do corpo, sendo que faz parte do conjunto. Acabando ficando... você acaba não trabalhando essa função e pode ser prejudicial. Pesquisadora: dentro das danças que hoje tem esse lastro cultural da cultura africana, a gente tem aquelas que mexem com o quadril e outras articulações. A gente tem o Break, que o homem dança, ele tem que fazer ondulações com o corpo. Você acha que haveria uma abertura pra essas outras danças que nem o Break? Professora: sim, eu acho que haveria abertura sim. É uma dança que você precisa ter muito equilíbrio do corpo, resistência, então ela pede um trabalho, primeiramente, de força e resistência pra que você introduza o movimento de cabeça no chão e giro. O Break é uma dança que vem de rua, com características de sociedade mais pobre e pede essa transferência do peso. Um aluno, tirando o preconceito de lado, mas um aluno obeso teria que ter muito cuidado pra fazer essa tipo de dança, já que você tem que sustentar o seu corpo talvez na cabeça, ou sustentar só nos braços, ou sustentar só na barriga, então exige muita força. Pesquisadora: você acha que o preconceito com as danças de origem africana, que tem essa característica cultural, o preconceito também tem a ver com a pobreza, com elas terem nascido, muitas vezes, em regiões vulneráveis, em situação de pobreza? O preconceito com a dança tem a ver com o preconceito com a população que dança ela também? Professora: não, eu acho que esse preconceito não existe mais, ele pode até ter existido, mas é uma dança que mostra muito a característica do povo, desse povo, e mostra a forma que eles expressam a situação deles, que eles acabam mostrando nessa dança o que eles vivem. Então não acho como forma de preconceito a esse tipo de dança na sociedade porque hoje em dia é muito trabalhado em vários locais, até em academias, apresentações em programas de televisão, tem uma abertura muito grande já, pra esse tipo de dança. Então preconceito não tem, mas não tem um espaço apropriado pra essas pessoas, então por isso que muitas vezes isso é colocado nas ruas, e somente nas ruas, não passam disso, eles não têm a oportunidade para que você expanda essa criação. Pesquisadora: tem algum aspecto cultural das crianças que você ensina, dança e trabalha com a dança que você achou relevante levar em consideração nos conteúdos que você elencou em trabalhar com elas? Assim, alguma coisa que elas falavam "eu gosto muito dessa dança" ou "lá na minha casa, a minha mãe faz isso e eu também quero fazer", como você até comentou antes? Professora: ah é, tem muito disso sim. Tem as crianças que querem aprender samba porque a família toda faz samba, tem crianças que gostam muito de samba-rock, que vem do samba mas tem a sua própria característica que é dançado em duplas. Tem as crianças que querem muito o ballet, principalmente as menores, elas querem porque elas veem desenhos, bailarinas, as barbies, elas dançam o ballet então elas querem ter essa experiência também. Os maiores querem street dance, alguns meninos também querem street dance, por ser uma dança mais urbana e não ter movimentos tão suaves que você mostra um pouco de romantismo, tem meninas e meninos que gostam mais da parte bem técnica e de pontuações, que a música seja só de batida e você faz as movimentações com essas batidas sem mostrar muito o seu lado emocional. Tem os alunos que pedem jazz, que eu já dou o jazz, tem diversos. Os alunos eles pedem bastante coisa, até mesmo do Hip Hop. Pesquisadora: é, o Break vem do Hip Hop, né? Professora: é, o Break vem do Hip Hop e é uma área assim extensa que eu não tenho muita experiência nessa área, então é por isso que eu não incluí, mas onde eu trabalho até seria um pouco difícil porque os meninos tem um outro objetivo que é a aula de caratê, então eu acabo pensando mais nas meninas, no que elas querem, que é um pouco diferente. Pesquisadora: os mais velhos escolhem se vai para o caratê ou se vai para a dança? Professora: os mais velhos escolhem, mas mesmo nessas escolhas eu não tenho muitos meninos, eu acabo tendo uma minoria bem pequena, pequena parte. Por exemplo, no Ensino Médio eu tenho uns dois só. Pesquisadora: e na Educação Infantil você dá aula pra toda a turma? Professora: não, na Educação Infantil é separado. As meninas vão pra dança e os meninos vão pro caratê. A partir do segundo ano [Ensino Fundamental] eles começam a escolher o que eles querem, mas mesmo assim a maioria das meninas vão pra dança. Tem mais meninas no caratê do que meninos na dança.

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Pesquisadora: você conhece a lei que insere cultura e história africana e afro-brasileira no Ensino Fundamental? Professora: é a Lei de Diretrizes e Bases? Pesquisadora: essa é a LDB. Tem uma lei além dessa, que insere na LDB a obrigatoriedade de trabalhar a cultura africana e afro-brasileira. Professora: essa eu ainda não conheço. Pesquisadora: você acha que a história e cultura africana e afro-brasileira podem entrar também por meio da dança? Professora: pode, pode entrar por meio da dança, porque é o ponto forte deles. Eles falam pela dança, eles se expressam pela dança, eles mostram a cultura deles pela dança e música. Então não tem como não entrar, tem toda a parte rica da história deles, mas a maior parte da história é a dança, então com certeza o que fica memorizado no Brasil, o que mais ficou marcado no Brasil foi a dança. Pesquisadora: você trabalharia num currículo próximo a própria cultura afro-brasileira na Educação Infantil? Professora: sim, com certeza eu trabalharia porque é uma cultura rica, muito rica pra nossa história. Pesquisadora: mais alguma consideração? Professora: minha consideração é de quebrar tabus e preconceitos quanto ao corpo e mostrar pras pessoas que nós trabalhamos com a dança não só pelo lazer, mas também pelos benefícios da saúde, da autoestima, muitas vezes da beleza também, pois muitos têm traumas, depressões, então a gente leva a dança como forma de alegria, pra pessoa se extravasarem pra parte boa, descansar o corpo dela do dia a dia, mais uma forma pra ajudar o próximo do que só a fantasia de aproveitar um do outro. É isso, é levar a dança como um benefício pras pessoas. Pesquisadora: muito obrigada, professora!

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