Um Debate Historiográfico Acerca da Escravidão Brasileira

June 7, 2017 | Autor: Leandro Brito | Categoria: Historia, História do Brasil, Escravidão
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Um Debate Historiográfico acerca da Escravidão Brasileira:


A presente resenha visa um debate que venha elucidar a problemática
não só da escravidão em si, mas das revoltas causadas pela mesma e como se
dava o sistema escravista, suas nuances e peculiaridades. Buscarei analisar
não só os propostos artigos de Rafael Marquese, Flávio Gomes e Roquinaldo
Ferreira, mas tentarei trazer junto a estes, outras análises sobre o
assunto e que possam, mesmo que não totalmente, pelo menos, facilitar no
entendimento de um tema tão controverso e complicado. Um campo que os
historiadores nem sempre chegam a um denominador comum.
Quando tratamos da escravidão devemos puxar com ela todos os processos
que são trazidos em seu bojo e dissecá-los para, assim, formar um
pensamento crítico a partir das historiografias existentes sobre o assunto.
Analisando os artigos ' A Dinâmica da Escravidão no Brasil', de Rafael
Marquese e 'A Miragem da Miscigenação', de Flávio Gomes e Roquinaldo
Ferreira, notamos que um consenso sobre a questão não é algo simples de ser
alcançado quando tal debate em si é alvo de estudos. Afinal, as revoltas
escravas, os quilombos e todo o processo interno do sistema escravista
possuem inúmeras explicações diferenciadas.
Primeiramente, Palmares. O caso do mais famoso quilombo e seu líder,
Zumbi, realmente teria as proporções que lhe foram conferidas ou seria
apenas um mito criado pelo pavor da época? Afinal, todos os escravos
fugidos iriam pra lá e seu número real estaria entre os três e trinta mil
pessoas segundo os historiadores de Marquese?
Rafael Marquese vai propor que o surgimento de revoltas e quilombos,
como o de palmares deve-se ao tipo de sistema implantado no escravismo na
América Portuguesa:


"A idéia de eventos como Palmares, a guerra
Marron jamaicana ou a campanha dos Saramaca
estiveram diretamente ligados à configuração
de determinado tipo de sistema escravista, que
denominarei ' escravismo de plantation'. Nesse
sistema, a produção econômica se concentrava
em um único produto e o quadro social era
marcado por desbalanço demográfico entre
brancos livres e escravos negros, amplo
predomínio de africanos nas escravarias,
poucas oportunidades para a obtenção de
alforrias e altas taxas de absenteísmo
senhorial"[1]

Sendo assim, quando se muda o estilo de sistema, automaticamente as
revoltas estariam se controlando. Com a mineração, então, existiria uma
queda em tais casos, principalmente pela facilidade do escravo em acumular
bens, que serviriam na obtenção de sua alforria e assim a "liberdade"
significaria um barril de pólvora menos propenso ao estouro.
Tal tese será contestada no artigo 'Miragem da miscigenação'. Associar
os chamados mocambos com a difusão do escravismo de plantation possui uma
problemática quando o tal sistema que tem como base o trabalho escravo
proveniente da África, que tem seu arranque, segundo as próprias palavras
de Marquese a partir de 1580, sendo que aqueles (mocambos) possuem
vestígios de existência anteriores.


"No século XVI, um navio negreiro proveniente
de Angola naufragou próximo da Ilha de São
Tomé, e os sobreviventes africanos e seus
remanescentes constituíram povoados
denominados "angolares" e já consideráveis em
1572"[2]


Portanto, a partir do trecho citado, podemos ver que o sistema de
escravidão, plantation, não teria sido uma causa determinante pra formação
de quilombos já que anteriormente ao alargamento desse estilo e,
posteriormente, quando este mesmo já estava, teoricamente ultrapassado,
quilombos e revoltas continuaram existindo de forma constante. Ao que se
refere no posterior, explicar revoltas pela maneira coercitiva e de certa
forma, com um arrocho maior, cai numa contradição histórica, principalmente
se analisarmos o caso do recôncavo baiano nos oitocentos, à época da
revolta dos Malês e anteriormente a esta. Existia naquela região uma grande
quantidade de escravos de ganho[3], o que inclusive facilitaria para que as
revoltas eclodissem, pois esses possuiriam maior liberdade de movimentação.

Os antropólogos Orlando Petterson e Igor Kopytoff serão citados por
Marquese para auxiliá-lo na tentativa de esclarecer que a escravidão seria,
na verdade, um processo de transformação referentes associando tal posição
como uma questão sociológica e não étnica.
A generalização é sempre perigosa, como o próprio autor diz, ainda
mais quando as propostas que o mesmo utiliza trata de um sistema africano e
não brasileiro. Portanto, não pode ser utilizado como certeza absoluta pra
se analisar a escravidão na América portuguesa.


"Marquese se vale de uma preoposição de Igor
Kopytoff, antropólogo com pesquisa de campo na
Nigéria, que afirmou " a escravidão não deve
ser definida como um status, mas sim como um
processo de transformação de status que pode
prolongar-se uma vida inteira e inclusive
estender-se para as gerações seguintes". Tal
argumento se insere numa discussão africanista
sobre o caráter da escravidão na África, não
no Brasil"
(GOMES, Flávio e FERREIRA, Roquinaldo. 2008.
p.148)


Marquese parece ter um problema crônico chamado generalização. Explica-
se isso sempre quando o autor usa um exemplo de algum caso para utilizar o
mesmo como forma de enquadrar um período ou sistema naquele exemplo em
particular. Ele cita uma suposta ajuda de crioulos e mulatos na manutenção
e sucesso do sistema escravista, visto que estes possuiriam escravos depois
de alforriados. Até pode-se entender que isso realmente tenha contribuído
para manter certa separação entre negros, pardos e mulatos. Mas recorrendo
a João José Reis vemos que essa contribuição de mulatos livres para a
manutenção da escravidão apenas refletia um pensamento da época.


"É prova de mendicidade extrema o não ter um
escravo: ter-se-ão todos os incômodos
domésticos, mas um escravo a toda lei. É
indispensável ter ao menos dois negros para
carregarem uma cadeira ricamente ornada, um
criado para acompanhar esse trem. Quem saísse
à rua sem esta corte de africanos estava
seguro de passar por um homem abjeto e de
economia sórdida"[4]


Reis, em 'Rebelião Escrava no Brasil – A História do Levante dos
Malês' esclarece que as revoltas ocorridas no recôncavo aconteciam com
ajuda dos pardos e mulatos que pela região circulavam. Associada a isso,
também temos que entender que aquela região sempre possuiu uma tradição de
revoltas escravas.
Podemos recorrer ao mesmo historiador (João José Reis) e tentar ver
sentido ou não na questão de alforrias que sustentavam a máquina escravista
rodando. No artigo 'A dinâmica da escravidão no Brasil', Stuart Schwartz
será utilizado para sustentar tal tese:


"A tendência predominante de alforriar
mulheres em idade fértil, concluiu Schwartz,
comprometeu as possibilidades de reprodução
demográfica auto-sustentável da escravidão
brasileira, o que acabou por acentuar o papel
estrutural do tráfico negreiro transatlântico
para repor a força do trabalho escrava"[5]


Essa tendência não deve ser desprezada, mas também não podemos cair
nesse caráter exclusivista. A equação de alforrias e intenso tráfico como
forma de entender unicamente o motivo dessa circulação intensa de escravos
parece simplista, principalmente se analisarmos que:


"A população escrava se caracterizava pelo
alto índice de mortalidade infantil e curta
expectativa de vida, ambos resultado das
péssimas condições em que viviam e
trabalhavam, além de maus-tratos. A
escravatura brasileira era sistematicamente
realimentada pela importação de africanos,
pois os que chegavam não criavam descendência
suficiente para expandir ou mesmo reproduzir o
sistema econômico"[6]


Uma outra controvérsia vem à tona em relação à ameaça ao sistema
escravista, que não foi apenas externo. Podemos notar que as tensões
internas colocavam em xeque constantemente o sistema em si. Com a eterna
paranóia haitiana que rondava a cabeça dos senhores, os alforriados seriam
vistos como aliados dos quilombos e escravos propensos a levantes. Ora,
como dizer então que essas pessoas (alforriados) poderiam contribuir para
uma identidade nacional se sempre foram vistos como ociosos e vagabundos,
um perigo constante para a sociedade.
"Na constituição de um Estado nacional, percebe-se que os libertos são
aliados e não inimigos" (MARQUESE). Analisando friamente o trecho esquece-
se do embate travado, inclusive na imprensa, sobre o real papel dos pardos
na constituição do Estado nacional:
"O Nova luz brasileira afirmava: os pardos são
fortes, são talentosos, são verdadeiros,amigos
da Pátria, são nesta, melhor que muitos
brancos.; acusando: se trata na Corte, e nas
províncias contra a Constituição, e contra
pardos e negros, aos quais se pretende fazer
caso venha o absolutismo o que fizeram a eles
em São Domingos, os franceses."[7]



Assim como citar a escravidão na América Portuguesa como sendo
mais benigna em relação a que ocorria na América inglesa. Marquese cita o
relato de um viajante, chamado Koster[8], para dar sentido a tal
declaração. Porém, esquece de citar o mesmo que diz 'Os alforriados não
poderiam se distanciar de seus respectivos locais onde conseguiram a
liberdade por medo de reescravização'. Tola utopia de uma liberdade
assistida. Encontramos suporte nessa frase quando analisamos que:
"É mais do que provável que tais libertos fossem confundidos com
escravos em diversos momentos e sofressem, em outro, pelo temor da
reescravização" [9].
Os questionamentos que Flávio Gomes e Roquinaldo Ferreira propõem ao
longo de todo o artigo por eles escritos trazem à luz questões ainda sem
solução. Por exemplo: A Revolta dos Malês é abordada em 'Miragem da
miscigenação' de maneira vaga, principalmente quando se lança uma pergunta
que não é colocada em debate: Afinal, houve derrota ou vitória no levante
ocorrido em 1835? Tal levante poderia ser inserido no quadro de revoltas
escravas analisadas até então? Até que ponto a revolta planejada, mas não
executada por completo, teria um caráter de revolução contra os senhores e
não algo de cunho religioso. Afinal, é plausível usar o conceito de jihad
para o ocorrido naquele ano e em revoltas anteriores ocorridas na Bahia.
Por exemplo, um levante ocorrido em 1807 estava cercado de simbolismos que
podemos associar a uma inspiração religiosa:


"... Há muitas evidências do papel da religião
nessa revolta (1807); Por exemplo, os amuletos
muçulmanos confiscados pela polícia... O
planejado incêndio da igreja de Nazaré e a
fogueira de imagens católicas seriam indícios
da dimensão religiosa da guerra. Acrescente-se
que haveria um líder, cuja identidade as
fontes não revelam, portador do título de
"bispo"..."
(REIS, João José. 2003. pp.74-76).


Ou seja, o caráter das rebeliões era diversificado, embora a
distância de um levante para outro seja considerável, não podemos cair na
associação por generalização.
Analisar um tema que possui uma historiografia dominante[10], que
foi o caso de Marquese com o seu artigo, é colocar sua proposta no caminho
de contrapontos, que 'A miragem da miscigenação' tanto se esforça em fazer.
O autor do artigo citado primeiro tentou aliar a idéia geral que os
historiadores tinham sobre Palmares e as formações dos quilombos em geral,
com um ensaio, talvez exagerado no que se refere às generalizações, tão
citadas aqui, porém, pontos interessantes podem ser destacados. Como citado
anteriormente, a utilização de escravos por alforriados e, inclusive, por
outros escravos é um ponto de reflexão no quanto estes teriam realmente
auxiliado na manutenção desse sistema. Afinal, quem sofria com isso também
fazia outros sofrerem. Porém, tentando fugir ao máximo dos anacronismos que
talvez venha a cair, um alforriado para se inserir numa sociedade que o via
como vagabundo e perigoso, não pensaria de outra forma que não a classe
dominante da época para fazer parte da mesma.
Quando nos transportamos para tempos mais presentes, um cidadão que
ascende socialmente, logo pensa em fazer parte de uma suposta classe que
está acima tentando adquirir os hábitos destas. Associações esdrúxulas à
parte, de certa forma a contribuição de ex-escravos para a escravidão
realmente existiu, mas, guardadas as devidas proporções. Pois, um forro,
possuindo ou não um escravo, em nada iria interferir no sistema em si, como
um todo.
Finalizando: A proposta de Flávio Gomes e Roquinaldo Ferreira, a
princípio, parece ser de elaborar um artigo apenas como crítica ao de
Rafael Marquese mas não podemos cair na armadilha de que não passa de
conflitos de egos. As propostas de ambos artigos são oferecer visões
diferentes, umas com mais sentido que outras. Porém, todas com perspectivas
a serem consideradas e não descartadas e sim discutidas à luz das fontes
disponíveis.




























Referências Bibliográficas:


MARQUESE, Bivar Rafael. A dinâmica da escravidão no Brasil: Resistência,
tráfico negreiro e alforrias, Séculos XVII a XIX IN Novos estudos CEBRAP,
nº 74. 2006;

GOMES, Flávio e FERREIRA, Roquinaldo. A miragem da mestiçagem, Novos
Estudos CEBRAP n° 74 2008;

Nova Luz Brasileira, sexta, 11/12/1829, pp. 10-12.

REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil – A História dos Levantes dos
Malês em 1835. 2 Ed. São Paulo: Companhia das letras, 2003

Wikipédia. Disponível em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Henry_Koster .Acesso em 8 de novembro de 2014

VIANA, Larissa. O estigma da impureza In: O idioma da mestiçagem: as
irmandades de pardos na América portuguesa. Campinas: EdUnicamp, 2007.
-----------------------
[1] MARQUESE, Bivar Rafael. A dinâmica da escravidão no Brasil:
Resistência, tráfico negreiro e alforrias, Séculos XVII a XIX IN Novos
estudos CEBRAP, nº 74. 2006. p.109
[2] GOMES, Flávio e FERREIRA, Roquinaldo. A miragem da mestiçagem, Novos
Estudos CEBRAP n° 74 2008. p.144
[3] Os escravos de ganho eram escravos que, no período colonial e no
Império, realizavam tarefas remuneradas, entregando ao senhor uma quantia
diária do pagamento recebido.
[4] Frase de José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu.
[5] SCHWARTZ, Stuart. Alforria na Bahia, 1648-1745
[6] REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil – A História dos Levantes
dos Malês em 1835. 2 Ed. São Paulo: Companhia das letras, 2003

[7] Nova Luz Brasileira, sexta, 11/12/1829, pp. 10-12.
[8] Henry Koster (Portugal, c.1793 — Recife, 1820), também conhecido
como Henrique da Costa, foi um empresário e pintor português. Filho de pais
ingleses, por motivos de saúde veio ao Brasil em 1809, onde se tornou
senhor de engenho. Quanto as suas obras artísticas, tinham como tema a
retratação dos engenhos no Brasil Colonial e também explorou vários locais
do país, através de viagens que deram origem ao livro Travels in Brazil.

[9] VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem, as irmandades de pardos na
América Latina
[10] A Historiografia recorrente fala de uma legislação repressiva, somada
à institucionalização da figura do capitão-do-mato como motivos que
impediram a eclosão de novos palmares.
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