Um debate sobre a utilização de estratégias de comunicação nas organizações da sociedade civil a partir da experiência da Chácara de Quatro Pinheiros.

May 22, 2017 | Autor: Nivea Bona | Categoria: Communication, Non-Governmental Organizations (NGOs)
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1 – INTRODUÇÃO





O estímulo propulsor desse trabalho teve sua raiz na confluência de
diversos acontecimentos no campo de trabalho do comunicador e na
organização social brasileira. Como massas vulcânicas em pós-erupção, as
relações sociais estão acomodando-se em novos paradigmas, em novas frentes
e com novas forças. Os papéis e responsabilidades sociais estão sendo
revistos ou reafirmados. Some-se a isso o momento inconstante pelo qual os
processos comunicacionais estão sendo amplamente questionados, desde a sua
forma até sua missão. Por fim, o olhar questionador e a incessante vontade
de destrinchar as relações em comunicação do futuro próximo motivaram a
busca de respostas nesse trabalho.
O movimento que fervilha nas comunidades organizadas, grupos sociais
e militâncias de todas as temáticas, ao mesmo tempo em que mostra a si e a
sua mecânica funcional velho conhecido de seus próprios integrantes, por
outro lado, apresenta-se como estranho ao olhar do cidadão comum
brasileiro. Este cidadão que trabalha, estuda, vive seu cotidiano, mas não
participa de organizações temáticas, pouco conhece delas. O Brasil que
discute profundamente os anseios sociais e luta por igualdade, parece
invisível à massa da população não engajada. Mesmo existindo no país mais
de 250.000[1] organizações não governamentais há, por outro lado,
estudantes universitários, prestes a graduarem-se nas mais diversas
profissões que não sabem o que são os movimentos sociais, o que faz parte
do Terceiro Setor ou mesmo o que é uma organização não governamental, uma
ONG. Por que, numa época de oferta abundante de informação, ainda existem
profundas cisões entre a opinião pública, o cidadão comum e a sociedade
civil organizada, os movimentos sociais? Por que muitas organizações civis,
suas atividades e projetos passam despercebidas para a maioria da
população? O que faz com que algumas organizações 'não existam' para a
sociedade?
É de se esperar que toda informação seja mediatizada por processos
comunicacionais, sejam eles conscientes e planejados ou mesmo naturais ou
acidentais. Mas essas relações, ou a falta delas, ainda trazem outras
questões. Qual é o fator preponderante que faz com que os movimentos da
sociedade civil organizada e suas práticas distanciem-se dos meios de
comunicação de massa e, por conseqüência, da opinião pública massiva, e
optem por desenvolver a comunicação alternativa para atingir seus objetivos
de divulgação em plano regional e local? De que forma essa comunicação é
planejada? Quais os fatos, assuntos e situações são divulgados?
Por outro lado podemos nos perguntar também: baseados nos trabalhos
desenvolvidos junto aos meios de comunicação de massa por entidades como o
Greenpeace, o WWF - World Wildlife Fund, a SPVS – Sociedade de Pesquisa da
Vida Selvagem e Educação Ambiental e o IBASE - com o Ação contra a Fome,
por que algumas organizações civis possuem visibilidade nos meios de
comunicação de massa e outras não? O que determina que uma organização
planeje estratégias de comunicação visualizando sua 'existência' na grande
imprensa? Como funciona a comunicação nos diversos meandros do Terceiro
Setor?
Nesse processo de transformação em vistas à globalização e mesmo aos
novos rumos que o Estado – antes como força antagônica e mais recentemente
como parceiro - tem tomado, os movimentos da sociedade civil, seja como
estrutura reivindicatória e seja na maneira como desenvolvem sua
comunicação, estão em pleno questionamento.
Perante esses questionamentos e para que possamos obter um cenário da
evolução dessas relações mais firmemente calçado, traçaremos o caminhar dos
movimentos sociais num primeiro momento a partir dos anos 70, nos quais se
estruturaram alguns padrões de conceituação e de definições das atividades
dentro dos movimentos, como o formato de planejamento e a prática da
comunicação. Depois disso, perpassaremos algumas das transformações
ocorridas nos anos 80 e 90 a fim de analisar o amadurecimento tanto no que
concerne às atividades-foco ou motivos de luta quanto o formato da
comunicação desenvolvida. A partir daí analisaremos o caminhar da Fundação
Educacional de Meninos e Meninas de Rua Profeta Elias ou Chácara de Quatro
Pinheiros com o objetivo de traçar, num plano prático, os fatores
definidores dos processos de luta e de comunicação.
Mesmo que de forma mais tênue, fazem parte deste trabalho os dois
profissionais de comunicação, jornalistas, Élson Faxina e Teresa Urban, que
influenciaram a relação comunicacional da Fundação Educacional de Meninos e
Meninas de Rua Profeta Elias com as estratégias de comunicação alternativas
e com a grande imprensa.
Com o intuito de se evitar uma visão mercadológica da comunicação –
viés este usado por diversos autores – excetuamos de nossa pesquisa o olhar
da grande imprensa de Curitiba e de alguns representantes da opinião
pública sobre a Fundação Educacional de Meninos e Meninas de Rua Profeta
Elias. Limitamo-nos, na pesquisa de campo, a entrevistas com o coordenador,
alguns integrantes da fundação e com os profissionais comunicadores
militantes, gestores do processo inicial.
Visualizando o novo horizonte no qual o posicionamento do Estado terá
uma nova nuance no que concerne à sua relação com os movimentos populares,
traçaremos algumas hipóteses do caminhar das relações dos movimentos
sociais e da comunicação dos mesmos com a sociedade e opinião pública em
geral.
















2 – MOVIMENTOS SOCIAIS




2.1 Do início, os atores

A consciência histórica das instituições e regimes políticos que
permearam as relações humanas através dos séculos propõe análises infinitas
e redefinições teóricas a luz de diversos ângulos. Cabe aqui situarmos
algumas proposições referentes aos principais atores – entenda-se aqui como
"atores", as instituições, grupos ou mesmo classes sociais – partícipes
desse trabalho. Nessa construção teórica há o risco de se ignorar linhas de
pensamento relevantes no afã de enfocar de forma mais direta os
significados que se deseja conseguir para dar chão às proposições e
argumentos relativos ao tema em questão. Por isso que se incluam aqui,
neste momento, todos os autores que contribuíram para o amadurecimento dos
conceitos apresentados.
Desde que vive em sociedade, de forma 'civilizada', o ser humano é
incomodado pelas suas discussões e inflexões a respeito de si mesmo. Os
bárbaros – considerados não civilizados para os conceitos atuais -, os
antigos comerciantes náuticos e os gregos em suas cidades, possuíam uma
forma de organização social. Esse formato social, invariavelmente, previa a
existência de um representante ou líder, e os liderados, o grande grupo de
pessoas, dividido em grupos menores de acordo com critérios variados. A
partir dessa organização nascem as castas ou as divisões entre classes
sociais como os cidadãos e escravos, os nobres e os camponeses, os
burgueses e os proletários e, mais recente, a elite e o povo. Essas
divisões sociais foram, através dos tempos, formatando os conceitos
referentes a grupos específicos que lutavam pelo poder de decidir, de
sobreviver, de sobrepor-se e dominar o outro grupo.
Das mais primitivas às mais modernas, todas as sociedades supunham uma
liderança. No início para 'organizar' o grupo, mais tarde para dominar e
concentrar o poder. Assim, através da história, vemos o Estado afirmando-se
como a figura que lidera, que está acima dos comuns, do grupo, da massa.
Ele pode ser representado pelo rei (monarquia), pela câmara de nobres
(aristocracia) ou mesmo república (presidente) (RUBY, 1998, p. 82). O papel
do Estado-governo foi sofrendo transformações a partir dos acontecimentos
sociais e da práxis dos governantes. Os romanos instituíram as leis que
regulavam as ações tanto do governante (senado) quanto dos governados. No
século XVI, Maquiavel revê essa posição romana publicando O Príncipe. Neste
tratado ele 'libera' o monarca para, "através de uma ação calculada
conduzir o povo, graças às contradições deste último".(RUBY, 1998, p. 68).
Nessa concepção, o Estado possui plenos poderes de dominação do povo sob o
pretexto de organizá-lo.


Visto que a unidade do corpo político não está dada, é a ação
política que a realiza. Ela desenvolve-se por ocasião do
desentendimento dos homens caracterizados como átomos egoístas sobre
cujas relações de interesses o príncipe pode/deve agir. (...) [O
príncipe] Deve dominar a eficácia da arte de governar. (RUBY, 1998,
p. 69)

A partir do período medieval e mesmo antes dele, vemos o grupo
governado dividido entre os que possuíam maior acesso ao governo e, por
conseqüência, ao poder político e financeiro e outros afastados das
decisões e mais pobres. Surge a dicotomia entre nobres e plebeus. Todos
fazendo parte do povo, dos governados, mas possuindo acessos diferenciados
ao poder decisório e financeiro.
A reflexão de Karl Marx no século XIX, uma das mais difundidas, supõe
o Estado como um co-partícipe da dominação de parcela da população – os
trabalhadores ou proletários, por outra parcela da população, os
empresários ou burgueses. Assim, num cenário de confronto, tinha-se de um
lado o Estado-regulador das relações desempenhando o papel de guardião do
status quo de dominação de um grupo social sob outro. Gramsci em 1930,
vivendo uma outra situação política, "elabora sua teoria marxista ampliada
do Estado" (SIMIONATTO,1995, p. 65). "Para o primeiro, [Marx] o Estado é um
aparelho coercitivo, instrumento de dominação, para o segundo [Gramsci] o
Estado não é algo impermeável às lutas de classe, mas é atravessado por
elas".(SIMIONATTO, 1995, p. 64) Essa renovação da teoria do Estado é
pautada pela crescente participação de organizações de massa nas decisões
políticas na Itália da época de Gramsci.
SANTOS embasa essa relação Estado-elite sobre a qual Marx discorre
lembrando das relações na idade média:


(...)Dado que os senhores feudais não detinham a propriedade dos
meios de produção, tinham de depender das instituições políticas e
jurídicas do Estado para se apropriarem do sobretrabalho dos
servos. De certo modo, como os senhores feudais não detinham a
propriedade dos meios de produção, o seu poder social estava
intimamente ligado à sua propriedade privada do Estado. (SANTOS,
2001, p. 121)


Assim o papel do Estado alterna-se, no decorrer da história humana, de
regulador das relações entre o povo, os que não tinham acesso às decisões,
à cúmplice de um grupo social dominador, antagônico à grande massa.


A modernidade do Estado constitucional do século XIX é
caracterizada pela sua organização formal, unidade interna e
soberania absoluta num sistema de Estados e, principalmente, pelo
seu sistema jurídico unificado e centralizado, convertido em
linguagem universal, por meio, da qual o Estado comunica com a
sociedade civil. (SANTOS, 2001, p. 117)

As reflexões de Gramsci partem da existência de duas esferas
distintas: a sociedade política e a sociedade civil. O conceito que envolve
a expressão de sociedade civil surge da definição de que "é o espaço onde
se organizam os interesses em confronto, é o lugar onde se tornam
conscientes os conflitos e as contradições".(SIMIONATTO, 1995, p. 66) Mais
tarde Gramsci inclui em suas reflexões sobre o Estado a sociedade
econômica, isto é, o mundo produtivo, ou, como iremos nomear neste
trabalho, o mercado.
Cabe aqui esclarecer também em que consiste a expressão "povo". Ao
mesmo tempo em que se incluem no "povo" as diversas classes sociais, não
deve-se confundi-lo com um simples grupo de pessoas, massa. A concepção de
povo, primordialmente divinificada vai configurando, com o passar da
história, um formato de massa pensante, com vontade própria, muito mais
real do que divina.
Aqui temos o defeito maior, a olhos marxistas, da história
romântica: o povo não pode ser pensado como a encarnação do verbo
divino ou natural, em suma, à imagem de Cristo feito homem; ele,
que só existe no espaço em que luta, não pode, pois ser instrumento
de uma verdade que ultrapasse, transcendendo este mundo. (...) para
Marx, ao "povo" (...) não cabe o papel crístico que consistiu em
manifestar um saber santo e superior, porém o de lutar na arena em
que se constrói, agonicamente, a sociedade. (RIBEIRO, 1993, p. 124)




Vê-se, no decorrer dos anos, mudando de formato e de papel social, de
acordo com os movimentos culturais e artísticos, as relações entre Estado,
mercado e sociedade civil (esta dividida entre a maioria dos cidadãos - o
povo e um grupo menor, dominador dos bens de produção - a elite).
A relação mais comum entre essas esferas, presente na realidade
brasileira nas últimas décadas, foi a do Estado como força coercitiva e
reguladora das relações econômicas e sociais. O Estado em conluio com o
mercado dominando o povo. O momento atual sinaliza uma transformação dessa
relação mostrando um Estado mais participativo, democrático, consensual.
Esse novo agir surge da incapacidade do Estado de gerir suas lacunas de
deveres e da maior organização da sociedade civil a fim de preencher essas
"falhas" e tomar seu lugar nos processos decisórios.
Em qualquer forma de Estado moderno, as funções de hegemonia e
dominação, ou coerção e consenso, podem ser apontadas. No entanto,
o que permite que a postura do Estado seja menos "coercitiva" e
mais "consensual", se imponha menos pela dominação e mais pela
hegemonia, depende da autonomia relativa das estruturas e de como
se colocam no interior do Estado as organizações de cada esfera.
(SIMIONATTO, 1995, p. 68)

A história brasileira de um Estado que provê uma elite com maior
vantagens e de um povo que luta contra isso está a ponto de ser revisada. A
subida ao poder federal do movimento político de esquerda representante do
povo, traz um cenário inédito nas relações políticas do país. Desde o
início da década de 80 o papel do Estado vem sofrendo algumas mudanças com
a participação mais enfática dos setores da sociedade que sempre foram
deixados à distância do poder decisório central. Esse processo de
'abertura' torna-se ainda mais concreto com a esquerda fazendo parte do
Estado. As relações de luta e de dominação certamente deverão ser
repensadas nos próximos anos. O fato que inicia esse processo é fortalecido
pela organização dos grupos sociais que fazem parte do povo a fim de
participar ativamente das decisões nacionais.


É inegável que a reemergência da sociedade civil tem um núcleo
genuíno que se traduz na reafirmação dos valores do autogoverno, da
expansão da subjectividade, do comunitarismo e da organização
autônoma dos interesses e dos modos de vida. (SANTOS, 2001, p. 124)

O reflexo mais efusivo dessa tomada do poder pela sociedade civil
organizada foi a fundação de grande número de organizações da sociedade
civil, que também são chamadas de organizações não governamentais ou mesmo
de organizações do Terceiro Setor, nas décadas de 80 e 90. O nome Terceiro
Setor advém da classificação das outras duas esferas: o Estado como
Primeiro Setor e o mercado ou a sociedade produtiva como Segundo Setor.
Atualmente, a visão marxista que trata da luta de classes tem sido
revista por diversos pensadores. A definição de burguesia e proletariado
não serve aos propósitos classificatórios das relações da sociedade atual.
Mas isso não impede que o conflito social continue a existir. TOURAINE
afirma que a "nossa sociedade possui uma economia fortemente associada a
relações sociais e a formas de poder político e que isso nos traz a idéia
de desigualdade de oportunidades e exclusão". (TOURAINE, 1998, p. 113).
Para ele, o sujeito, externo às classes sociais, está lutando de um lado
contra o triunfo do mercado e das técnicas e de outro contra os poderes
comunitários autoritários. "Os pares de oposição antigos (rei-nação,
burguesia-povo, capitalistas-trabalhadores) foram substituídos aqui pela
imagem de um sujeito que trava uma luta dupla, já que é a dissociação entre
a economia e o cultural que é o fato central".(TOURAINE, 1998, p. 114)
Mais à frente TOURAINE resgata ainda, como Gramsci, o conceito de
sociedade civil de forma mais atualizada:


(...) é preciso ter consciência de que com esta expressão designou-
se durante três decênios um conjunto de atores sociais e políticos
que combatiam ao mesmo tempo a dominação capitalista e o estado
autoritário. (...) a idéia de sociedade civil é indispensável. Ela
designa o lugar das ações coletivas realizadas para libertação dos
atores sociais e contra o funcionamento da economia dominada pelo
lucro e pela vontade política de dominação. Contra esses dois
sistemas de poder, todas as imagens do sujeito buscam criar um
espaço autônomo e intermediário. (TOURAINE, 1998, p. 121)


Por se tratar de um momento no qual as relações sociais estão sofrendo
adaptações e reorganizações trabalhar-se-á em alguns momentos com a luta de
classes que esteve claramente presente até as últimas décadas nas relações
da sociedade brasileira e em alguns momentos será necessário recorrer à
questão do sujeito e sua dupla luta como Touraine reflete de forma muito
atual.

2.2 Os movimentos e suas formas


A proliferação de organizações da sociedade civil neste início de
século gera desencontros conceituais no que se refere à definição de
movimentos popular e social, organizações não governamentais, fundações,
associações e outras organizações da sociedade civil. Muito utilizada nos
dias de hoje, a expressão 'Terceiro Setor' tenta afunilar a caminhada de
organizações civis que já nasceram institucionalizadas e, por outro lado,
movimentos sociais que se institucionalizaram recentemente. Aqui se torna
necessária, a título de análise, a separação entre esses dois formatos de
organização por possuírem cenários históricos, tanto de atividades
desenvolvidas quanto de relacionamentos comunicacionais não confluentes.
Alguns autores demonstram que essa "confusão" é específica da década de 90,
quando ocorreram algumas transformações nos formatos de atividades do
próprios movimentos e de relação com o Estado e com a sociedade. SANTOS
(2001, p. 115) diz que, "à medida que nos aproximamos do fim do século XX,
as nossas concepções sobre natureza do capitalismo, do Estado, do poder e
do direito tornam-se cada vez mais confusas e contraditórias". Um dos
motivos, segundo o autor, são os questionamentos que envolvem o sucesso ou
não do regime capitalista e do próprio papel do Estado. Não podemos
esquecer que os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil
estão inseridos no contexto e nas relações com essas duas esferas. Dessa
forma, é natural que o formato e os papéis dos movimentos e organizações
sociais estejam, também, em processo de transformação conceitual e prática.

Para a sociedade, ou opinião pública em geral, essa sectarização
analítica não aparece tão claramente. Podemos imaginar que isso se deve aos
posicionamentos políticos tomados pelas mesmas e à comunicação por elas
desenvolvidas com a comunidade e com a imprensa. KRIESI (apud GOHN,1997, p.
243) confirma essa 'facilidade' em classificar os movimentos sociais por
parte da comunidade:


(...) as pessoas comuns, quando indagadas sobre suas simpatias
ou identificações com alguns movimentos sociais (pela paz,
antinucleares e ecológicos), têm pouca dificuldade em
identificar o que é um movimento social, ao contrário dos
cientistas sociais. Isto porque tais pessoas atentam para uma
das dimensões de movimentos, a do conteúdo da demanda em si.
Elas vêem o movimento como um todo homogêneo, a partir da imagem
que suas ações projetaram na sociedade. (KRIESI apud GOHN, 1997,
p.243)



Essa primeira projeção das organizações inclusas como idênticas
dentro da classificação de 'Terceiro Setor' acaba sendo originada pela
divulgação, satisfatória ou não, de seu formato de trabalho e de sua
'bandeira' de luta à sociedade em geral.
A separação de movimentos sociais que possam ter se
institucionalizado atualmente e das organizações historicamente já
institucionalizadas é necessária no momento para traçarmos um viés
histórico e viajarmos às raízes dos motivos que levaram a uma determinada
relação com a comunicação e seu planejamento. Apesar dos inúmeros estudos
voltados para os movimentos sociais, "ainda não há a possibilidade de
formatar uma teoria bastante elaborada a respeito do assunto" (GOHN, 1997,
p. 242). Essa dificuldade de unificar uma definição e os diferentes
pensamentos sobre o que é um movimento social na atualidade decorre,
segundo GOHN, de três fatores principais: a mudança nas ações coletivas da
sociedade civil, mudanças nos paradigmas de análise dos pesquisadores e
mudanças na estrutura econômica e nas políticas estatais. Assim vários
fenômenos sociais estão sendo chamados de movimentos sociais a partir
dessas constatações.
Há ainda a definição do que se pode chamar de Novos Movimentos
Sociais (institucionalizados ou não), baseada no paradigma europeu que
afirma que os mesmos nascem da decisão de grupos organizados (FAXINA, 2001,
p. 21). Seguindo esse conceito, os Novos Movimentos Sociais possuem três
elementos constitutivos: identidade coletiva, solidariedade e consciência
(COHEN apud FAXINA, 1985, p. 663).
Por outro lado, a visão marxista, mais utilizada pela maioria dos
autores, prevê uma área de conflito central para o nascimento de um
movimento social. TOURAINE (1998, p.112), concorda, mas foca o conflito a
partir do sujeito:
Embora a maioria das ideologias políticas afirme que se a ação
política pode dar um alcance geral às reivindicações sempre
particulares, a idéia de movimento social busca demonstrar a
existência, no interior de cada tipo societal, de um conflito
central. Este opunha a nação e o príncipe, depois os
trabalhadores e os empregadores. Hoje em dia existe tal
conflito? (...) Segundo minha análise, é o conflito central de
nossa sociedade que leva um sujeito em luta, de um lado, contra
o triunfo do mercado e das técnicas e, de outro lado, contra os
poderes comunitários autoritários. (TOURAINE, 1998, p. 112)

O cenário latino americano ainda traz uma especificidade: o conflito
gira em torno do antagonismo ao Estado, que se pautou durante muito tempo
pelo regime ditatorial. Ao mesmo tempo em disputa pelo poder e em
reivindicação de alento às suas problemáticas pelo próprio Estado, os
movimentos sociais tinham suas ações voltadas, de forma muito expressiva,
ao campo político. TILLY (apud GOHN, 1997, p. 246) dizia que "os movimentos
seriam a contraparte não institucionalizada dos partidos políticos,
sindicatos e associações".
PERUZZO identifica esse conflito num processo histórico datado das
décadas de 70-80, e que, na sua opinião, hoje está mudando:


Num primeiro momento muitos movimentos populares colocaram-se
numa posição de antagonismo em relação ao Estado, negando-o em
tudo que viesse dele. Dizia-se então que era necessário exigir
do poder público e não pedir-lhe a solução de determinados
problemas. (...) Mas aos poucos essa postura, própria da década
de oitenta, foi mudando. Em muitos casos houve cooptação.
Contudo, grande parte dos movimentos tem lutado para garantir a
autonomia, sem deixar de negociar ou até de participar de
programas públicos de interesse social. (PERUZZO,1998, p. 58)




SCHERER-WARREN (1984, p.116) define que temos um "movimento social
quando se tratar de um conflito social que opõe formas sociais contrárias
de utilização dos recursos e dos valores culturais, sejam estes da ordem da
economia, da ciência e da ética".
Outro fator que devemos assinalar é que prioritariamente os
movimentos sociais nasceram da base do povo politizado, em detrimento de
uma ordem constituída. FAXINA (2001, p. 22) coloca que os movimentos
sociais são vistos, de alguma forma, como "o espaço próprio e privilegiado
dos deserdados do projeto político-econômico vigente, dos excluídos de uma
ordem estabelecida em busca de sua inclusão".
Mesmo tendo visto que vários autores concordam com a premissa de que
os movimentos sociais se constituem no conflito social e originam-se das
bases do povo politizado contra uma forma de dominação vigente, não se pode
negar que, mesmo em menor número, principalmente nos países latino-
americanos, existem
movimentos conduzidos por categorias dominantes e dirigidos
contra categorias populares consideradas obstáculos à integração
social ou ao progresso econômico. Em ambos os casos, porém, o
movimento social é muito mais que um grupo de interesses ou um
instrumento de pressão política. Ele questiona o modo de
utilização social de recursos e de modelos culturais. (TOURAINE,
1998, p. 113)


Como exemplo desses movimentos antagônicos podemos citar o Movimento
dos Sem Terra, criado por famílias rurais de Santa Catarina que
reivindicava a reforma agrária, e a União Democrática Ruralista,
agrupamento formado por grandes latifundiários que se colocava como um
movimento contrário à melhor distribuição de terra.
Demonstra-se, assim, um primeiro fator diferenciador das organizações
constituídas e que hoje fazem parte do chamado Terceiro Setor: uma descende
de movimentos sociais, novos ou velhos, nascidos a partir de um conflito
social, prioritariamente surgido entre povo e elite dominante e, em outros
momentos, entre povo e Estado. O segundo tipo de organização é aquela
voltada à filantropia ou à preservação do meio ambiente, sem
necessariamente ter nascido de um confronto social e podendo também ser
administrada ou contar com a participação de grupos pertencentes às elites
dominantes e/ou integrantes do Estado. Uma importante característica dessas
organizações é o nascimento já institucionalizado. Até os anos 80 essas
organizações filantrópicas marcaram suas ações principalmente nas áreas
urbanas, através de construções físicas como as Casas de Misericórdia e
hospitais. Seus objetivos não são ligados à politização da sociedade,
questionamento à ordem vigente ou conscientização quanto a um conflito
social, e sim em amenizar dores pontuais de parte da sociedade necessitada,
ajudar e 'fazer o bem'. Note-se que esse 'fazer o bem' advém de uma ação
que tem sua origem na elite e direcionamento ao povo. Não nasce das bases.
GOHN (2000, p. 12) as chama, atualmente, de ONGs assistencialistas como
veremos mais adiante.


2.3 - Olhar histórico – caminhada



Entre esses dois formatos de organizações civis o caminhar histórico
se distingue claramente. As organizações voltadas para a filantropia, e que
muitas vezes eram ligadas ou funcionavam através da elite dominante,
possuem uma história antiga, pois podemos interpretar que são ligadas a
todas as ações de benfeitorias pontuais ao povo. São organizações que mais
facilmente acham seus pares em países desenvolvidos, pois sua orientação
independe de regime político ou mesmo da existência ou não de lutas ou
mesmo confrontos sociais.
Esse formato de organização remonta a semelhanças com organizações de
países desenvolvidos, como os Estados Unidos. Sua história confunde-se com
a história da filantropia ou mesmo da manobra social de cuidar do
semelhante. O americano HUDSON remonta a ação caritativa para provar que a
prática da sociedade organizar-se em prol do semelhante sem obter nada em
troca data da antigüidade:
Alguns [autores] sugerem que se volte à época elizabetana ou
ainda aos tempos do Império Romano. (...) Essa filosofia, no
entanto, data de mais longe. As pessoas dizem: "a caridade
começa em casa" - e assim foi. Desde os tempos mais remotos era
o grupo familiar que cuidava dos membros pequenos, enfermos,
deficientes, velhos, viúvos e órfãos. (...) As primeiras
civilizações egípcias desenvolveram um severo código moral com
base na justiça social.(...) O próprio faraó contribuiu ao dar
abrigo, pão e roupas para os pobres quase 5.000 anos atrás.
(...) Na antiga Índia, o imperador budista Asoka (aprox. 274-232
a.C.) proporcionou instalações médicas, mandou que fossem
cavados poços e, já preocupado com o meio ambiente numa época
remota, plantou árvores para o deleite do povo. (...) No mundo
islâmico, a filantropia foi usada para montar grandes hospitais.
Exemplos remotos de "fundo de miséria" também partiram do
islamismo quando pacientes indigentes recebiam cinco peças de
ouro assim que recebessem alta. (HUDSON, 1999, p. 3)


Algumas organizações filantrópicas, hoje institucionalizadas
como ONGs, podem ter seu berço nessa linha de trabalho. Existem desde que o
Brasil é Brasil e tem como fim "ajudar os mais necessitados". A grande
maioria é ligada a comunidades religiosas tanto católicas como de outros
credos. No momento de analisar as relações comunicacionais essas diferenças
sedimentadas nas suas origens vão aparecer muito claras.
Já os movimentos sociais possuem história tão antiga quanto das
organizações filantrópicas, mas receberam a denominação de movimentos
sociais somente no século XIX:

(...) na sociologia acadêmica o termo movimento social surgiu
com Lorens Von Stein, por volta de 1840, quando este defende a
necessidade de uma ciência da sociedade que se dedicasse ao
estudo dos movimentos sociais, tais como o movimento proletário
francês e o do comunismo e socialismo emergentes. (SCHERER-
WARREN aput GOHN 1997 : 328)


No Brasil, os movimentos sociais praticamente nasceram com o país. O
Quilombo dos Palmares (1690-1695) e o Movimento da Cabanagem (1831 – 1840)
são alguns exemplos de movimentos da época do Brasil colônia. Mas é no
período final da ditadura – década de 70 - que os movimentos surgem em
maior número e força. A temática que envolvia suas lutas era o conflito com
o Estado num primeiro momento, em defesa dos direitos humanos (Movimento
pela Anistia), em defesa de minorias (movimento de negros e de mulheres) e
de necessidades específicas (movimento de luta pelas creches e movimento
nacional contra os altos preços dos alimentos). Segundo SCHERER-WARREN
(1993, p. 115) estas organizações que proliferaram da década de 70 a meados
da década de 80 tiveram sua relevância política durante o regime
autoritário, pois eram o espaço de expressão política possível para novos
atores sociais.
A principal característica que marca o desenrolar da relação dos
movimentos sociais com o Estado e com o mercado nasce nessa época. As
bandeiras levantadas eram firmemente colocadas contra o regime autoritário
e a favor dos direitos humanos. O Estado, inimigo das comunidades de base
por ser opressor e o mercado por ser o aglutinador do capital nas décadas
de 70 e 80, principalmente, eram os inimigos. A partir dos anos 80 os
movimentos começaram a lutar pelo poder de forma institucionalizada. Mas,
mesmo com todo o trabalho realizado pelos movimentos populares, "uma coisa
é certa: a classe burguesa, com a abertura gradual do governo transitório,
foi hábil o suficiente para reorganizar o bloco histórico, mudando apenas
algumas regras do jogo e os atores políticos para continuar no poder"
(PERUZZO, 1998, p. 51).
O posicionamento de negação a tudo que vinha do mercado ou do Estado,
inclusive seus formatos de organização e de institucionalização, era
concreto e definido como premissa de identidade. O discurso que afirmava o
antagonismo e ressaltava a cisão social era repetido por todos os
integrantes dos movimentos. Roupas, modo de agir e escolhas politicamente
radicais pautavam a vida dos 'militantes'. Institucionalizar-se era adequar-
se aos moldes dos inimigos.
(...) essas novas estruturas sociais nascem a partir de baixo e
se organizam por formas independentes de instituições públicas e
privadas e dos meios tradicionais de participação, como os
sindicatos e os partidos políticos, preenchendo um vazio deixado
por eles enquanto canais institucionalizados e abrindo-se à
confluência dos interesses da sociedade (PERUZZO apud FAXINA
2001, p. 25).

Ainda hoje alguns autores insistem nessa lógica, fruto da luta
herdada dos anos 70 – 80, que dita que movimentos sociais não devem
institucionalizar-se com o risco de, assim, perderem sua identidade de
luta.


Na minha interpretação, partidos e sindicatos deveriam se
habituar com a idéia de que a pior coisa que podem fazer contra
o crescimento político do povo, contra a afirmação da sociedade
civil e a afirmação da cidadania é a tentativa de submeter os
movimentos sociais a critérios de articulação, coordenação ou
centralização. Seria o mesmo que restringir a sua vitalidade aos
critérios racionais e constrangimentos da lógica da organização
(...) É um equívoco supor que se avança politicamente submetendo
os movimentos sociais aos critérios e concepções das
organizações. As organizações é que deveriam estar preparadas
para absorver a vitalidade e a criatividade, os temas e
problemas, dos movimentos sociais. Para, desse modo, se
ajustarem com flexibilidade às demandas populares (MARTINS apud
GOHN 2000, p. 50).


Martins enviou a Frei Beto esse texto argumentando sobre a sua não
participação na criação de uma Central dos Movimentos Populares. Hoje a
central está criada, mas GOHN (2000, p. 51) ressalta que o texto serve para
mostrar que não se pode confundir movimentos sociais, principalmente os
populares, com organizações institucionalizadas como as ONGs. Mesmo assim,
a própria autora admite que, em algumas situações, as ONGs podem ser
consideradas substitutas dos movimentos: "os anos 90 definiram a
institucionalidade das organizações e viram o nascimento e o crescimento,
ou a expansão, da forma que viria a ser quase que uma substituta dos
movimentos sociais nos anos 90: as ONGs". (GOHN, 2000, p. 28)
Nesta década, as relações dos movimentos populares com o Estado e com
o mercado se arrefeceram. A luta pelo poder político impingida pelos
movimentos populares deu frutos e provocou algumas mudanças de
posicionamento dos movimentos e seus integrantes. De inimigo, o Estado
passou a ser parceiro.


(...) a consolidação dos movimentos como estruturas da sociedade
civil foi um projeto que, nos anos 90, é reconhecido como não
realizado, embora seja apontado não como um fracasso, mas sim
como um projeto utópico, dentro do cenário político dos anos 70
e 80, quando o Estado era visto como um inimigo. Ao final dos
anos 80, quando o Partido dos Trabalhadores ascende ao poder em
várias prefeituras, esta postura foi redefinida, e a
problemática principal passou a ser a da capacitação técnica das
lideranças populares para atuarem como co-partícipes das
políticas públicas locais. (GOHN, 2000, p. 29)


Essa transformação não foi de uma hora para outra. Ao mesmo tempo em
que o processo democrático foi se afirmando no país, os movimentos,
continuando sua luta de reivindicação, foram tomando parte do Estado e se
apercebendo que este, no processo de globalização mundial, não mais daria
conta da gerência dos serviços públicos essenciais. SCHERER-WARREN (1984,
p. 113) chama isso de desmodernização política, ou seja, a incapacidade do
Estado em gerenciar satisfatoriamente os serviços públicos indispensáveis.
SANTOS analisa os motivos que levaram a essa falência do Estado
dando, assim, espaço para o fortalecimento de estruturas vindas dos
movimentos ou ONGs criadas nessa época:
"(...) o Estado é crescentemente ineficaz, cada vez mais
ineficaz de desempenhar as funções de que se incumbe. De acordo
com essa concepção, o Estado ou carece de recursos financeiros
(o argumento da crise financeira) ou de capacidade institucional
(o argumento da incapacidade da burocracia do Estado para se
adaptar ao acelerado ritmo de transformação social e econômica)
ou carece ainda dos mecanismos que na sociedade civil orientam
as acções e garantem sua eficácia (o argumento da falta de
sinais de mercado no Estado)". (SANTOS, 2001, p. 116)


Assim, na década de 90, assiste-se a uma nova forma de posicionamento
perante as lutas sociais. Os conflitos sociais não são mais resolvidos pelo
uso da força, mas nas mesas de negociação. Estruturam-se movimentos sociais
que defendem demandas particularistas e estão voltados para atuarem como co-
partícipes das ações estatais (GOHN, 2000, p. 31). A ala do movimento
popular não combativo se ampliou. Ela tomou o lugar dos movimentos sociais
combativos e progressistas como interlocutora privilegiada das políticas
sociais (GOHN, 2000, p. 33).
Outro fator interessante nesta década é que a igreja, parceira dos
movimentos nas décadas de 70-80 através da Teologia da Libertação, deixa de
participar ativamente das reivindicações dos movimentos. Acaba por se
distanciar. Parece-nos que isso acontece porque não há mais um inimigo
contra o qual lutar o que, na verdade, era a indiferença do Estado em
relação ao fornecimento dos serviços essenciais. O Estado assume sua
incapacidade e transfere a responsabilidade à sociedade civil organizada.
Apesar disso, a igreja continua fornecendo apoio a iniciativas de
organizações institucionalizadas como a Pastoral da Criança e a Pastoral do
Menor.
Algumas organizações não tiveram grandes problemas em aliar-se ao
Estado na busca de formas e de recursos financeiros para resolver problemas
sociais comuns, mas a intenção ainda é buscar a independência das
tendências do Estado. O problema maior é que:


Fora das políticas públicas não há recursos financeiros para
desenvolver projetos com a comunidade organizada porque os
financiamentos internacionais agora são escassos. A questão
financeira é um dos nódulos principais da complexa relação dos
movimentos com o Estado. Todos os movimentos reivindicam e
apregoam autonomia e independência diante do Estado. Mas na
prática o total isolamento nunca existiu (...) (GOHN, 1997, p.
313)


Os motivos que fazem com que o Estado passe a responsabilidade de
prover serviços básicos à população para as organizações não governamentais
e outras instituições vão desde o maior controle quanto a aplicação dos
recursos até o profissionalismo e agilidade dessas entidades. Outros
motivos são ressaltados por HUDSON:
Numa época em que muitas organizações do setor público são
vistas como inadequadas para lidar eficientemente com os
problemas sociais de hoje em dia, o terceiro setor acha-se apto
para exercer um papel mais amplo, pois consegue juntar
administração com consciência social – justamente as
características necessárias para enfrentar alguns dos problemas
sociais mais profundamente enraizados com que se defrontam
países industrializados e em desenvolvimento. (1999, p. XII)




2.4 - As ONGs de hoje


A linha de separação dessas organizações – filantrópicas e que
advieram de movimentos sociais - hoje se torna tênue, pois os objetivos
voltados para o bem comum e a não busca de lucro, fazem com que sejam
colocadas num mesmo patamar de comparação. Além dessas duas raízes de
organizações, atualmente podemos ainda identificar um outro tipo de
organização que fica entre o mercado e o Estado: as derivadas de empresas
privadas. Essas nasceram recentemente, possuem o mesmo intuito de promover
o bem-estar social, são voltadas para a manutenção do meio ambiente - como
é a Fundação O Boticário ou objetivam financiar organizações que cuidam de
crianças e adolescentes como a Fundação C&A. Outras ainda voltam seus
esforços para as comunidades locais.
A vontade é de acreditarmos que essas organizações privadas,
imbuídas de um sentimento de solidariedade humana, resolveram
momentaneamente apostar num mundo melhor. É até possível que algumas
organizações, por meio de seus presidentes ou donos, pensem realmente
assim, mas a conjuntura atual nos leva a acreditar que isso se deve muito
mais a um avanço cultural e de informação que os próprios consumidores
dessas empresas começaram a sofrer. Devido ao regime capitalista, que prima
pela concorrência livre de mercado, as empresas precisaram se adequar às
exigências atuais dos consumidores, que não querem mais somente um produto
de boa qualidade, mas querem saber se a empresa que o fabrica ou vende é
política, social e ecologicamente correta para poder consumir. As que não
se adequassem estariam fora do mercado. Além disso, a legislação ambiental,
por pressão de organizações ambientalistas, acabou ficando mais rígida.
Some-se a isso ainda o marketing social, tema recente das teorias de
marketing, que levanta a importância do cuidado com a imagem que a empresa
tem que passar, por meio da comunicação, ao seu público consumidor.
É importante ressaltar que a classificação aqui adotada gira em
torno das origens das organizações, o que muda intensamente sua forma de
gerência e a relação que esta mantêm com os meios de comunicação e com a
sociedade.
Alguns autores classificam as organizações em relação à sua atividade-
fim ou temática de trabalho. GOHN e PERUZZO classificam, em primeiro plano,
os movimentos sociais e populares. Como citado anteriormente, para GOHN
(1997, p. 268), existem movimentos construídos a partir da origem social da
instituição que apóia ou abriga seus demandatários, que são os ligados a
igrejas, por exemplo; movimentos sociais construídos a partir das
características da natureza humana: sexo, idade, raça e cor, como o das
mulheres ou dos negros; movimentos sociais construídos a partir de
determinados problemas sociais, como os que pedem por creches ou por
preservação ecológica e movimentos sociais construídos a partir das
ideologias, como o marxismo, anarquismo, etc.
Já PERUZZO utiliza uma outra classificação:


Conceitualmente as expressões movimentos sociais, movimentos
coletivos, movimentos populares, movimentos sociais urbanos,
movimentos sociais populares, entre outras, são usadas
indistintamente, o que talvez reflita sua grande diversidade e
heterogeneidade em nossa sociedade. Eles podem agrupar-se da
seguinte forma:
1-Ligados aos bens de consumo coletivo (...)
2-Envolvidos na questão da terra (...)
3-Relacionados com as condições gerais de vida (...)
4-Motivados por desigualdades culturais (...)
5-Dedicados a questão trabalhista (...)
6-Voltados a defesa dos direitos humanos (...)
7-Vinculados a problemas específicos (...) (PERUZZO,1998, p. 44)


GOHN, mais recentemente, organizou as ONGs em alguns grupos
determinados pela sua forma de ação e tema de trabalho. Chegou-se, então,
em quatro grandes grupos: ongs caritativas que se ocupam de fornecer
assistência aos menores, mulheres e velhos; ongs desenvolvimentistas, que
intervém no meio ambiente e possuem um trabalho internacionalizado; ongs
cidadãs que focam em campanhas educativas e denunciadoras da violação dos
direitos sociais (a anistia internacional é um exemplo) e ongs
ambientalistas como o Greenpeace e a SPVS. (GOHN, 2000, p. 31).


Podemos dizer que as ONGs caritativas são principalmente as que
descenderam de instituições filantrópicas, as desenvolvimentistas
normalmente são ligadas a projetos globais e precisam mostrar números
atestando a eficiência dos projetos realizados, as cidadãs que descenderam
dos principais movimentos sociais voltados à conquista dos direitos humanos
e as ambientalistas, que defendem a preservação do meio ambiente e podemos
dizer que são as que possuem maior espaço na mídia atualmente.
As ONGs em geral não trabalham na linha da militância e da
politização da sociedade civil, como os movimentos sociais. "Apenas uma
parcela das ONGs cidadãs evoca o mundo da política, da participação, do
ativismo militante ao contrário das ONGs assistencialistas ou
desenvolvimentistas" (GOHN, 2000, p. 59).
Ainda segundo GOHN (2000, p. 54), o Banco Mundial as separa em quatro
grandes áreas: assistência de bem-estar, desenvolvimento de recursos
humanos, capacitação/militância política, e políticas de amparo ou de
proteção (no Brasil as duas últimas não se subdividem).
Como se vê, existe a possibilidade de classificar as ONGs por
meio de diversos recortes. Para nossa pesquisa, emprestaremos parte da
classificação feita por GOHN para as ONGs mas adequando-a às outras
instituições que forem citadas seguindo principalmente a sugestão inicial
de dividi-las em três grandes grupos: as filantrópicas ou caritativas, as
cidadãs ou que derivaram dos movimentos sociais e as do mercado, ou ligadas
à iniciativa privada.
Em síntese, os novos atores sociais que emergiram na sociedade
civil brasileira, após 1970, à revelia do Estado, e contra ele
num primeiro momento, configuraram novos espaços e formatos de
participação e relações sociais. Estes novos espaços foram
construídos basicamente pelos movimentos sociais, populares ou
não, nos anos 70-80 (Gohn, 1991); e nos anos 90 por um tipo
especial de ONGs, que denominamos anteriormente de cidadãs ou
seja, entidades sem fins lucrativos que se orientam para a
promoção e para o desenvolvimento de comunidades carentes a
partir de relações baseadas em direitos e deveres da cidadania.
(Gohn, 1994). Movimentos e ongs cidadãs têm se revelado
estruturas capazes de desempenhar papéis que as estruturas
formais, substantivas, não têm conseguido exercer enquanto
estruturas estatais, oficiais, criadas com o objetivo e o fim de
atender a área social.(GOHN, 2000, p. 303)


Apesar de muitos movimentos sociais terem se institucionalizado,
alguns ainda permanecem somente movimentos e, há ainda, as organizações
institucionalizadas que, momentaneamente podem produzir movimentos sociais.

FAXINA atesta que "são muitos os casos de organizações sociais que criam um
movimento social, ou os movimentos sociais que se institucionalizam
tornando-se organizações sociais ou ONGs." (FAXINA, 2001, p. 17)

Mesmo sendo classificadas de diversas formas, as organizações da
sociedade civil institucionalizadas em ONGs, fundações, institutos,
associações, sindicatos e outros incluem-se no chamado Terceiro Setor, por
não estarem em busca do lucro e nem sob controle efetivo do Estado. Mesmo
assim, deixaremos a conotação de Terceiro Setor para as organizações
oriundas de empresas privadas e quando formos utilizar as organizações,
como um todo, chamaremos de organizações da sociedade civil.






3 – OBJETO DE ESTUDO – QUATRO PINHEIROS




A Chácara Pe. Eduardo Michelis, mais conhecida como Chácara de Quatro
Pinheiros, por se tratar do nome da localidade, abriga a organização
institucionalizada como Fundação Educacional de Meninos e Meninas de Rua
Profeta Elias. A Chácara situa-se na área rural do município de
Mandirituba, região metropolitana de Curitiba, Paraná. Hoje possui 10
alqueires, cinco casas, uma biblioteca, computadores, oficinas de
marcenaria, serigrafia e cerâmica; uma granja para oito mil frangos e
plantações de milho, feijão e mandioca. Há ainda um tanque para produção de
peixes, horta e uma oficina mecânica. Criações de cabritos, vacas e ovelhas
também fazem parte da Chácara. Ao todo, 43 meninos de idades entre oito e
19 anos moram na chácara atualmente. Há um consultório médico e
odontológico equipado com modernos aparelhos. Um ortodontista voluntário
atende os meninos e a população da região colocando aparelhos ortodônticos
ao preço de 35 reais. Médicos de várias especialidades também assistem a
saúde dos meninos e da comunidade da redondeza. Em média, nove educadores
contratados e um número variado de voluntários estimulam as atividades com
os meninos. Está sendo construído, com o apoio de um grupo de empresários,
uma casa de mais de mil metros quadrados, na qual, no andar de cima, serão
abrigados alguns meninos em alojamento e no andar de baixo serão destinadas
salas para cursos profissionalizantes para os moradores da chácara e para a
comunidade da região de Quatro Pinheiros.
Atualmente, os Meninos de Quatro Pinheiros, como são chamados, estão
estudando em escolas da região ou esperando o início das aulas do supletivo
para começar estudar. Todos são meninos que, antes de morarem na chácara,
viveram nas ruas. Uns mais, outros menos tempo. Amplamente conhecida no
setor, dentro das organizações voltadas para a proteção e desenvolvimento
de menores em situação de rua e da grande imprensa paranaense, a chácara
nasceu em 1993 da idéia de um ex-seminarista carmelita, Fernando de Gois. A
história da chácara confunde-se com a história de seu fundador.



3.1 – A história



Fernando Francisco de Gois é filho de família sergipana, nasceu em
Santo Anastácio, Estado de São Paulo, mas foi criado em Paranavaí, no norte
do Paraná. Veio para Curitiba em 1981 como seminarista carmelita estudar
filosofia. Foi morar na Vila Lindóia. Nesta época, estava alocada na região
uma 'invasão', que na verdade eram famílias retirantes do campo que
montaram suas casas-barracos em vários terrenos pertencentes à prefeitura.
Vários conflitos aconteciam entre essas famílias e a prefeitura, que sempre
investia para desocupação dos terrenos sem elaborar uma forma de
recolocação dessas famílias. Não possuíam saneamento básico ou mesmo luz
elétrica. Os conflitos intrafamiliares também eram comuns. Aos poucos os
seminaristas, liderados por Frei Chico, que era um entusiasta da linha da
igreja católica chamada de Teologia da Libertação, foram visitando a
comunidade e, através da reza do terço e de estudos da Bíblia, tomando
conhecimento da realidade dessas famílias e agindo em torno da organização
das mesmas a fim de que pudessem elaborar formas de negociação com a
prefeitura. Fernando e outros dois seminaristas mudam-se e acabam por morar
na comunidade, que passou a se chamar Comunidade Profeta Elias. "(...) a
comunidade passa a manter contato com entidades voltadas às comunidades
carentes. Mantém ligações com a Pastoral de Favelas, com a entidade Justiça
e Paz e com o Movimento de Associações de Bairro". (MIRANDA, STOLZ, 1999,
p. 7)
Como visto anteriormente e atestado por GOHN, PERUZZO e TOURAINE pode-
se dizer que surge na região a organização de um movimento social a partir
do conceito de conflito. O conflito ali era o da falta de terreno próprio
para a moradia das famílias. O confronto nasce a partir do direito de morar
e da falência do Estado de prover esse direito.
Lá, as famílias engajadas na luta pela compra dos terrenos organizam-
se e dividem tarefas. Fundam a Associação dos Moradores da Comunidade
Profeta Elias. Que pode ser classificada como uma organização do Terceiro
Setor como já dito anteriormente pois, similar às outras, não busca o lucro
e nem tem relação direta com o Estado. Mas é importante ressaltar que a
Associação nasce da organização e se gere a partir de um objetivo em comum
entre seus integrantes. Seguindo a concepção de GOHN, a Associação pode ser
enquadrada dentro da classificação de organização cidadã, pois como já
dito, ao mesmo tempo em que luta pelos direitos de determinado grupo,
estimula a consciência política de seus integrantes e da sociedade a sua
volta.
A partir da organização, os jovens e os pais buscam trabalho para dar
sustento às famílias. Sobram as crianças que, sem atividades além da escola
formal, acabam passando o dia sozinhas. Daí surgem grupos rivais e
conflitos gerados pela falta de atividades formadoras. Fernando e Euclides
– outro seminarista carmelita – desenvolvem, então, um trabalho voltado
para apoio e desenvolvimento escolar desses meninos e à estimulação das
manifestações culturais. Assim, como estratégia de comunicação com o grupo
e para fora dele, estimulam atividades ligadas ao teatro, confecção de
bonecos, cerâmica, pintura, desenhos entre outros. (MIRANDA, STOLZ, 1999,
p. 8).
Nesse trabalho com os meninos, pautado pela filosofia de Paulo
Freire[2], Fernando percebe que pode ir além. O envolvimento dos meninos no
âmbito político e sobre as questões de justiça e igualdade presentes nos
trabalhos religiosos acabam desembocando num processo crítico por parte dos
integrantes. Em 1986 eles encenam a via-sacra ligada com a temática da
Campanha da Fraternidade, que colocava em pauta a questão da Terra criando
ainda cartazes que ilustravam a caminhada de Jesus ao calvário e a
comparação com as famílias sem-terra. As apresentações de teatro
ultrapassam os limites da comunidade, chegando às Comunidades Eclesiais de
Base e outras organizações. Neste ano o grupo da Comunidade Profeta Elias é
procurado pelo Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua e por
entidades internacionais. Discussões sobre a problemática do menor são
iniciadas. Nota-se, assim, a organização dos menores em torno de um outro
conflito: o do abandono pelas famílias e pelo Estado. A ânsia por
conscientizar a sociedade da problemática sofrida, favorece a utilização de
estratégias de comunicação alternativa ou popular como os cartazes e a
representação da via-sacra. PERUZZO esclarece que:
[acomunicação popular] é um espaço de comunicação democrática,
vinculada aos interesses dos segmentos subalternos, tanto em sua
metodologia quanto em sua forma e conteúdo. Isto evidencia-se nos
fatos de ela: significar abertura de novos canais para segmentos
sociais sem garantias de acesso aos meios massivos para expor suas
idéias e suas reivindicações, ser portadora de uma nuance
democrática por transmitir informações a partir das bases e ser
constituída pelo ambiente onde se situa e ajudar a constituí-lo.
(PERUZZO, 1998, p.126)


No outro ano a Campanha da Fraternidade utilizou como tema a
problemática do menor e as apresentações de teatro - que continuaram -
acabaram por sensibilizar a prefeitura, que entrou em contato com o grupo
para discutir suas ações voltadas para a criança e o adolescente.
Mais tarde, Fernando e o grupo de educadores que tinha se juntado à
comunidade notaram que era necessário ampliar o trabalho para os outros
meninos que moravam nas ruas. Fernando foi morar um tempo nas ruas a fim de
sentir de perto a realidade deles.
A partir dessa vivência, deparou com grandes problemas sociais que
envolviam os meninos. Com música e capoeira, (outras formas de comunicação
alternativa, mas que dessa vez mediatizavam o relacionamento dos educadores
com os meninos), os educadores que visitavam as ruas (principalmente a Rua
XV e o Largo da Ordem, no centro da cidade de Curitiba) começaram a
entender um pouco mais a filosofia das ruas.
(...) queria criar outros mecanismos que pelo menos melhorassem
a vida dessa população. Mesmo que fosse um trabalho pequeno, mas
que desse uma visibilidade para mostrar para sociedade que é
possível fazer um trabalho de resgate a baixo custo e com
crescimento e objetivo bem maior do que se encontra no próprio
poder público. (Fernando in loco)


Conflitos com a polícia, que batia nos meninos todas as vezes que os
educadores iam embora, eram corriqueiros. Nos anos de 88 e 89 a violência
chegou a tal ponto que muitos apareciam com braços quebrados e outros
sinais da violência policial. Fernando achou que não daria para continuar
trabalhando com os meninos deixando que a violência acontecesse. Eles
estavam envoltos na violência familiar, deles mesmos, da policial e da
sociedade. Conheceu o jornalista Élson Faxina, que na época trabalhava na
Cúria Metropolitana e fazia parte da Comissão de Justiça e Paz. Faxina fez
a ponte para a grande imprensa. Como tinha contatos em todos os veículos de
comunicação de massa da cidade, promoveu uma coletiva na casa do
jornalista. Fernando levou 30 meninos, inclusive os machucados. A
repercussão foi boa. Os veículos divulgaram e, a partir daí, Fernando notou
que a imprensa poderia ser aliada no trabalho com os meninos.
Tanto os educadores como Fernando eram colocados em xeque, no início
com desconfiança e pedindo coisas. Explicavam que o objetivo não era dar
coisas. Depararam-se assim com a revolta dos meninos que estavam cansados
de pedir ajuda:
"Eu já procurei ajuda de promotor, juiz, padre, bispo, freira e
ninguém quis me ajudar. Mas pode deixar, eu vou me entregar para
a polícia, com certeza vou para o CEDIT (Centro de Estudos e
Diagnósticos e Indicação de Trabalho), vou ficar lá numa boa e,
se não morrer lá, quando eu voltar, vou acabar com essa cidade!"
(MIRANDA, STOLZ, 1999, p. 8).


Foi montado o primeiro grupo de abordagem de rua que objetivava
"juntos encontrarem soluções para os problemas enfrentados nas ruas".
(MIRANDA, STOLZ, 1999, p. 16).
Esse processo, baseado no método proposto por Paulo Freire, era
demorado, pois apostava num processo educativo feito com os meninos, no
qual eles seriam os gestores de sua vontade e exercício de sair das ruas.
Durante todo o tempo do trabalho o grupo pôde servir de denunciador dos
problemas, principalmente de violência dos quais o Estado não dava conta de
resolver. Ainda assim os educadores eram cobrados freqüentemente pelos
meninos quanto a uma iniciativa concreta, como, por exemplo, quando iriam
tirá-los das ruas. Isso angustiava os educadores por não poderem trazer
soluções imediatas para o grupo. Todo o trabalho feito com os meninos era
desenvolvido com a ajuda deles, pois tomava-se o cuidado de não se tornar
assistencialista. Como destacado no capítulo anterior, organizações
assistencialistas nascem da ação da elite em prover o que falta ao menos
assistido. Nesse caso os educadores envolvidos com projeto da Comunidade
Profeta Elias ou faziam parte dela ou era da redondeza o que esclarece que
não faziam parte do que pode-se nomear como elite. Assim, datas festivas
como Natal e Páscoa eram comemoradas nas ruas com o auxílio de todos.
Juntos, os meninos corriam atrás de ingredientes para as comidas,
instrumentos musicais, etc.
Os meninos na rua passaram a visitar a Comunidade Profeta Elias,
sendo bem recebidos pelas famílias e pelos outros meninos. Todas as
atividades, espontâneas ou não, eram acompanhadas de discussões reflexivas
sobre as famílias, porque elas se dissolvem e quem são os integrantes das
famílias dos meninos quando estão na rua. A necessidade de se unirem aos
semelhantes para buscar alternativas foi aparecendo cada vez mais forte. É
útil aqui, para esclarecer o nascimento do grupo dos meninos de Quatro
Pinheiros como movimento social, adotar a reflexão de TOURAINE sobre a
criação de um movimento social.
A noção de movimento social só é útil se permitir pôr em evidência
a existência dum tipo muito particular de ação coletiva, aquele
tipo pelo qual uma categoria social, sempre particular, questiona
uma forma de dominação social simultaneamente particular e social,
invocando contra ela valores e orientação gerais da sociedade, que
ela partilha com seu adversário, para privar este de legitimidade.
(TOURAINE, 1998, p. 113)


Em 1987 foi feita uma passeata pelos meninos e meninas de rua com
objetivo de conscientizar a sociedade quanto ao seu papel no futuro desses
marginalizados. Mais de 250 meninos e meninas participaram.
Com a crise econômica no país, que motivou ainda mais fortemente o
êxodo rural, em 1990 o número de meninos perambulando nas ruas de Curitiba
subiu para 518, sendo que 323 lá moravam. Dentro da pesquisa que motivou a
chegada a esses números foram perguntados também o que eles desejavam para
vida deles. A resposta desembocou na chácara. Queriam um lugar longe das
drogas e outros tipos de violência, onde poderiam estudar, comer, brincar,
trabalhar, ter uma maior convivência com a natureza, animais enfim, ter uma
vida normal (MIRANDA, STOLZ, 1999: 30). Assim, em 1991 a Chácara Pe.
Eduardo Michelis foi comprada com a doação principal da Congregação das
Irmãs da Divina Providência. A Fundação Educacional Meninos e Meninas de
Rua Profeta Elias é fundada um pouco depois, no dia 26 de junho de 1991.
A Fundação é uma entidade não-governamental e sem fins
lucrativos. Sua finalidade "é dar assistência e educação
integral às crianças e adolescentes das classes populares,
principalmente os de rua de Curitiba e Região Metropolitana, num
processo participativo, libertador e integrador, que os faça
agentes de sua promoção". (MIRANDA, STOLZ, 1999, p. 30).


Os educadores da chácara desenvolvem o plano pedagógico no ano de
fundação e continuam os trabalhos de abordagem de rua convidando os meninos
que quisessem participar da comunidade. A proposta é livre. Vai para a
chácara quem quer e pode-se sair o momento que for. E voltar. E os
educadores com Fernando vão trilhando esses passos do menino em conjunto
com ele.
Outro profissional da comunicação entra em contato com o trabalho da
chácara. A jornalista Teresa Urban aproxima autoridades e pessoas
formadoras de opinião pública, além dos veículos de comunicação
propriamente ditos, do projeto da Chácara de Quatro Pinheiros. Teresa
motiva ainda a publicação dos dois livros: "A vida na rua e a rua na vida",
que explicita a proposta pedagógica da Chácara e "Histórias de Nossas Vidas
– Os Meninos de Quatro Pinheiros" que traz histórias contadas pelos
próprios meninos sobre suas vivências. Os livros fazem sucesso e divulgam a
proposta da Chácara a um número maior de pessoas e entidades, inclusive,
internacionais.
Os contatos com outras entidades, nacionais e internacionais, entre
elas o Movimento Fé e Alegria, Associação das Escolas Católicas, MAIS –
Movimento de Autodesenvolvimento, Intercâmbio e Solidariedade, CEFURIA –
Centro de Formação Urbana e Rural Irmã Araújo, Movimento Nacional dos
Meninos e Meninas de Rua, ABAI – Associação Brasileira de Amparo a
Infância, entre outros foram se estreitando. Mais pessoas foram se juntando
e aderindo à proposta. Através da ABAI o contato com organizações
internacionais se estreitou. Dezenas de voluntários de mais de 10 países já
passaram pela Chácara. Ana Schmid, psicóloga suíça, fundou em seu país a
"Associação Os Amigos das Crianças de Rua do Brasil" para alavancar
recursos para a Chácara. Lá, mais de mil doadores compraram a idéia e a
proposta da chácara. Todos os anos dezenas de alemães, que podem optar por
trocar o serviço militar de um ano pelo mesmo tempo de voluntariado em
países em desenvolvimento, se candidatam a vir para a Chácara. A demanda é
tanta que existe uma casa para os voluntários. A casa abriga pelo menos
cinco pessoas dentre os mais de 50 profissionais que todos os anos se
colocam à disposição.


3.2 – O problema



A grande maioria dos meninos que estão na Chácara possui família,
segundo dados estatísticos dos próprios educadores. A problemática dos
meninos parte, em grande número dos casos, de famílias desestruturadas, que
possuem a existência da figura do padrasto ou madrasta usando comumente de
violência nas relações intra-familiares, além de serem comuns os casos de
alcoolismo e drogadição dentro de casa.

"Morava no Parolin. Meu pai foi visitar a minha madrasta e
fiquei com o meu tio e a minha tia que usavam muita droga e eu
não gostava. Daí ficava nervoso e eles batiam em mim e no meu
irmão".
Aí eu falei que chega dessa vida, pulei a janela e fui para rua.
Nunca mais voltei para casa. E a minha mãe mora no Capanema.
Tenho um irmão aqui e mais quatro. Uma irmã mora com a minha mãe
e dois com a minha vó." (Danilo Ferreira da Silva - in loco)

"Morava no centro. Fiquei três anos na rua. Com cinco já
trabalhava. Vendia doce. Nos pontos de ônibus.Aí eu já tinha
dois irmãos mais velhos que já moravam na rua, por causa da
violência do pai, né. Eu era criança gostava de jogar videogame.
Ai eu gastava o dinheiro no fliperama de vez em quando. Aí
chegava em casa e apanhava bastante, de fio de luz, essas coisas
assim. Daí não agüentava. Comecei a ficar um dia, dois dias.
Ficava na frente da Pão Real [panificadora já fechada,
localizada nas esquinas da rua 24 de maio e da Dr. Pedrosa, no
centro de Curitiba] . Ficava pedindo esse dinheiro para poder
voltar para casa. Tinha vezes que eu ficava dois dias até
conseguir. Aí quando eu chegava, apanhava a mesma coisa. Aí
acabei ficando na rua. Um irmão morreu, no Parolin foi buscar
droga e um piá matou ele. E um estava dormindo e tacaram fogo
nele. Queimou tudo as costas. Tem um irmão aqui agora." (Julio -
in loco).


"Minha vida na família era muito ruim, eu chegava em casa de
tarde e eles não me deixavam entrar em casa. Tinha uma
construção abandonada do lado, eu dormia dentro de um guarda-
roupa velho com os cachorros. Na minha vila me ensinaram a
cheirar cola e cheirinho. Um dia, eu saí de casa". (História de
nossas vidas: os Meninos de Quatro Pinheiros, Curitiba, 1999, p.
25)


Pode-se, através desses dados, supor que o problema não é dos meninos
ou, não são os meninos. É da sociedade, com sua estrutura que isola os
excluídos não dando chance de sobrevivência. As famílias, que eram para ser
núcleos acolhedores, acabam por forçar a saída de seus membros numa questão
de sobrevivência. É a lei do cada um por si. Essa realidade mostra-se muito
mais dura para as meninas de rua:
"Mas tem que ver que quando a miséria vem é para o menino e para
a menina. Mas no nosso sistema capitalista a menina trabalha
mais, é mais ocupada que o menino. A mãe vai trabalhar, a menina
com oito ou nove anos substitui a mãe em casa. A sociedade a
mantém mais em casa. Mas vai em grande número para as ruas. Só
que as que vão para as ruas já perderam tudo o que tinham, mais
que o menino. É bem mais custoso ter uma metodologia com elas.
Até as congregações optam pelos meninos que pelas meninas. Na
hora de fazer abordagem era muito triste porque chegava a noite
tinha abrigo para os meninos e não tinha para as meninas. Elas
tinham que ficar na rua porque não tinha lugar para elas. Hoje
mudou muito. Quando a gente ia para imprensa brigava e discutia
pensando nessas coisas." (Fernando – in loco)


Além das famílias colocarem seus filhos para fora de casa direta ou
indiretamente, os programas promovidos pelo Estado mostram-se
insatisfatórios em gerir a educação desses meninos:
"Na rua eu comecei a roubar. Os piás me ensinaram a cheirar
cola, aprendi a fumar cigarro. Aí eu fui para o CEDIT. Lá os
piás me batiam muito". (História de nossas vidas: os Meninos de
Quatro Pinheiros, Curitiba, 1999, p. 37)


"Eu e meus irmãos fomos para um projeto chamado ABAM [Associação
Blumenauense de Amparo aos Menores]. Eu estudava e brincava, mas
trabalhava como um escravo. Cinco ou seis horas de trabalho e 30
minutos para brincar. Aonde eu ia meu irmão ia junto comigo.
Ficamos dois anos lá. Minha mãe me tirou de lá". (História de
nossas vidas: os meninos de Quatro Pinheiros, Curitiba, 1999, p.
53)


Com o tempo, Fernando e os educadores concluíram que um trabalho com
as famílias era extremamente necessário a fim de aproximar os meninos de
suas famílias e de desenvolver um processo preventivo dentro de núcleo
familiar a fim de evitar que mais crianças fossem para as ruas.





3.3 - A proposta




A proposta pedagógica da Chácara Pe. Eduardo Michelis é baseada na
participação dos meninos em todas as tarefas, em momentos reflexivos sobre
as ações e sobre seus anseios. Tudo é pautado pela discussão em grupo.
Inclusive a decisão de construir novas casas na chácara passa por uma
discussão com os meninos, depois com os educadores, levando-se em conta a
opinião dos meninos. São pesquisadas as experiências de outras entidades e
depois se pede apoio técnico a profissionais habilitados, como os
engenheiros, ligados à chácara. A pedagogia de Paulo Freire que instaura na
ação dialógica a base da educação libertadora, sem dominação é muito
utilizada: "(...) Não há o diálogo verdadeiro se não há nos seus sujeitos
um pensar verdadeiro. Pensar crítico, Pensar que, não aceitando a dicotomia
mundo-homens, reconhece entre eles uma inquebrantável
solidariedade".(FREIRE, 1987, p.82)
Com o aumento da demanda de meninos querendo morar na chácara, foi
necessário estabelecer critérios para os novos moradores. Assim os próprios
meninos definiram as situações prioritárias:
- o futuro morador da chácara deve apresentar dependência muito
grande das drogas;
- ter vivência de muitos anos na rua;
- se for feita uma escolha de menino a ser inserido e esse menino
não quiser vir num primeiro momento e depois mudar de idéia, não
será aceito pelos meninos e terá que aguardar nova oportunidade
de vaga. (MIRANDA, STOLZ, 1999, p. 42).


Outro foco de trabalho é estimular o contato dos meninos com as
famílias. Além de vários encontros realizados por ano, dos quais fazem
parte dos festejos de datas comemorativas, os pais possuem algumas
responsabilidades de tarefas e mesmo de contribuir para a educação do
filho. Fernando deixa claro que os meninos não são da Chácara, mas sim das
famílias:
.
"Nosso trabalho também está voltado para o retorno às famílias.
A gente fez uma parceria com a paróquia do Cabral, que tem um
grupo de casais. Cada casal assumiu uma família dos meninos. Aí
visita uma vez por mês. Mas não para julgar e sim para observar
se os filhos estão estudando se as famílias estão trabalhando.
Assim se eles precisam de documentos para trabalhar essas
famílias auxiliam.
Durante o ano fazemos vários encontros para trabalhar auto-
estima, violência, convivência e profissionalização. A família
precisa passar aqui na chácara para colaborar na educação dos
seus filhos". (Fernando – in loco)


Não há limite de idade para ficar na Chácara. Fernando, brincando,
diz que espera que eles não fiquem muito porque "de abrigo, a chácara pode
acabar se transformando em asilo". Na verdade, sua preocupação no momento
consiste em fornecer a esses meninos uma forma de sustento – e por isso a
atenção em se fortalecer os cursos profissionalizantes – para que, quando
saiam, tenham sua vida encaminhada podendo, assim, contribuir no orçamento
de casa. Alguns meninos que lá moraram por estarem em situação de rua, hoje
são educadores dos menores na própria Chácara.
Um outro motivo que faz com que não se defina momento para a saída é
o exemplo que os maiores "bem encaminhados" podem dar aos menores e assim
apressar sua recuperação. Julio Cesar de Oliveira, 19 anos, um dos mais
antigos que ainda mora na chácara é o primeiro a fazer faculdade. Passou em
três vestibulares: Faculdades Santa Cruz, Tuiuti e PUC-PR. Recebeu bolsa da
PUC-PR e está cursando Letras–Inglês à noite. A pedagogia do exemplo
funciona. William Gomes da Silva, 17 anos, quer seguir os passos do amigo e
vai tentar Letras-Espanhol. FREIRE defende que "ensinar exige a
corporeificação das palavras pelo exemplo. (...) Pensar certo é fazer
certo.(...) Não há pensar certo fora de uma prática testemunhal que o re-
diz em lugar de desdizê-lo." (FREIRE, 1996, p.38)
A rotina na Chácara não é rígida. Todos estudam - os mais novos na
casa vão entrar no supletivo – e possuem duas horas de trabalho diário
exercendo as tarefas em casa, cuidando da criação ou da manutenção da
Chácara. O uso da violência ou mesmo a quebra das 8 regras estipuladas
para a boa convivência são punidas com um tempo maior de trabalho – para
refletir sobre a atitude – e resolvidas com um diálogo mediado por um
educador.
O envolvimento com drogas é presença constante no passado dos
meninos. Por esse motivo escolheu-se um lugar distante. Os meninos podem ir
e vir no momento que assim quiserem. Assim, a distância dos grandes centros
de vendas de drogas faz com que o menino que está em crise de abstinência
tenha que andar um pouco mais do que o normal para chegar a elas. No meio
do caminho, há a possibilidade de pensar melhor e desistir. E, por esse
motivo, na Chácara são proibidos cigarros e bebidas.
A participação em eventos na comunidade local também é
estimulada. Assim como são freqüentes as formas de comunicação alternativa
como as a apresentações teatrais, visitas e encontros. Na Campanha da
Fraternidade desse ano, em que o tema é o idoso, já foram realizadas
algumas discussões e se chegou a ações práticas: os grupos vão visitar toda
sexta um idoso da comunidade e conversar com ele. A prática religiosa é
livre. Uma vez por mês há uma missa realizada na própria chácara e um
culto. Apesar da liberdade religiosa, o culto ao sobrenatural, à fé e a
mística, o pertencimento a um mundo ao mesmo tempo real e divino é sempre
estimulado.





3.4 - O caminhar atual



Atualmente a Chácara conta com um grande grupo de profissionais de
todas as áreas comprometidos com o planejamento das atividades in loco.
As abordagens de rua continuam, agora uma vez por semana, mas o
objetivo não é mais trazer os meninos para a chácara. A demanda de meninos
que querem morar na localidade é grande. Mas há um teto que já está sendo
ultrapassado. A idéia é abrigar no máximo 38, 40 meninos, mas a chácara
possui 43 moradores além dos voluntários e dos educadores. A preocupação
não é tanto física, mas qualitativa:
"Somos uns dos poucos projetos que eles querem vir. Estamos
aumentando mas a preocupação continua. Porque esse menino tem
uma identidade. Senão daqui a pouco você vira uma massa e
ninguém mais aqui é ser humano, né? A gente explica pra todo
mundo, para o juizado e tudo o mais. Eles continuam na rua".
(Fernando in loco)

A imagem que a chácara possui nos meios públicos e em organizações co-
irmãs é de uma iniciativa que deu certo. Já faz parte do banco de dados da
Unesco e teve o apoio do Unicef para publicar os livros. Mas a maior
dificuldade por que passam no momento ainda é a discriminação da própria
sociedade.
"A gente se tornou referência para a comunidade. Mas ainda assim
o menino está bem, está tranqüilo e ele ainda é tratado com
discriminação. Então você tem que fazer a sociedade apostar,
entender que são crianças que passaram por uma série de
dificuldades que tem que ter oportunidade tanto quanto qualquer
outra pessoa. Às vezes você gasta muito mais tempo em convencer
a sociedade do que fazer um trabalho com os meninos.
Infelizmente a sociedade está tão contaminada com tanta
violência que hoje se acha que não recupera menino nenhum".
(Fernando – in loco)

O trabalho com as famílias e a sua reaproximação não é empírico.
Recebe o apoio da Prof. Araci Asinelli da Luz, com formação em pedagogia,
da Universidade Federal do Paraná. Já dentre os casais da Paróquia do
Cabral, estão médicos, juízes e assistentes sociais. Assim, quando é
necessário algum auxílio profissional, este fica à mão.
O grupo de teatro "Na rua não é vida" continua fazendo apresentações
em diversas comunidades e eventos. A participação de Teresa Urban ainda
rendeu um jornal que eles mesmos produzem a cada dois meses, imprimem no
computador e entregam aos visitantes.
Pensando no futuro dos meninos que saem da Chácara, Fernando fechou
um convênio com um grupo de empresários. Os mesmos que estão financiando a
construção do novo alojamento. Os meninos que fizerem 18 anos e tiverem
concluído o Segundo Grau terão mercado de trabalho garantido. Isso mostra
que organizações do Terceiro Setor como a Chácara de Quatro Pinheiros
comumente firmam convênios com o Segundo Setor, ou o chamado setor
produtivo para desenvolver suas estratégias. Essa é uma prova de que se
antes existia algum antagonismo ou mesmo conflitos em relação às duas
esferas sociais – civil e produtiva -, hoje esse posicionamento deve ser
revisto. Alguns meninos já voltaram para casa e estão trabalhando. Outros,
mesmo trabalhando, ainda moram na Chácara.
A influência dos estrangeiros tem trazido bons frutos tanto para os
meninos quanto para os voluntários. Os meninos motivaram-se a aprender
inglês para poder se comunicar melhor com os voluntários. Vários meninos
falam inglês atualmente. Já os voluntários levaram para suas casas uma
vivência inédita. É comum os educadores receberem, por intermédio de e-mail
ou de outros voluntários, mensagens de pais de voluntários de outros países
agradecendo a oportunidade dada ao filho.
"Tem empresários que vêm aqui e passam o dia. Tem famílias que
tem os filhos com problemas com drogas para ver aqui. Os meninos
que vêm de fora, os pais vêm agradecer. Aqui o meu filho
aprendeu a ser gente. Lá ele só estudava tinha tudo pronto não
agradecia nada. E aqui ele teve que lutar pela vida tanto quanto
os meninos. Porque eles são do primeiro mundo, mas a proposta de
vida é para os meninos daqui. Então todos têm que colaborar".
(Fernando – in loco)

A Chácara mantém contato também com organizações formadas para
divulgar notícias do setor. Entre essas organizações está a Ciranda em
Curitiba.
Para a imprensa, a Chácara de Quatro Pinheiros hoje é fonte freqüente
para matérias que envolvem violência familiar e menores de rua. No próximo
capítulo serão analisados os motivos pelos quais chegou-se a esse tipo de
relacionamento com os meios de comunicação de massa.
Com a visão geral do caminhar da Chácara podemos traçar alguns
panoramas de classificação quanto a sua origem para, mais à frente,
analisar sua relação com a comunicação. A princípio, por ser
institucionalizada como fundação e estar voltada aos cuidados com crianças
e adolescentes em situação de rua, a primeira tentativa é de compararmos
com as caritativas. Mas sua origem, construída a partir de pessoas
envolvidas, num primeiro momento em movimentos sociais reivindicatórios, e
sua proposta pedagógica ser baseada no exercício do pensamento crítico e na
politização, sugere que seja uma organização cidadã. A definição final e
por nós acatada deriva do tipo social de seus integrantes: não são pessoas
da elite fazendo algo pelos mais necessitados, mas sim pessoas oriundas da
base construindo um novo espaço e reivindicando seu direito à cidadania.




4 - A COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE CIVIL ORGANIZADA






As discussões acerca do poder que é disputado na sociedade quando
falamos de comunicação social são extensas e, neste trabalho não vamos nos
aprofundar nos motivos e nas forças que podem ser produzidas, mas
trataremos de algumas das conseqüências dessa disputa pelo poder que a
comunicação exprime. Falaremos aqui dos atores sociais envolvidos nessa
disputa e nas estratégias que esses atores utilizam. De início torna-se de
fundamental importância esclarecer que trataremos de três enfoques que
vários autores já fornecem para as análises sobre comunicação: a
comunicação que é processo, que existe nas relações sem ao menos nos darmos
conta; a comunicação popular ou alternativa, da qual os movimentos sociais
se utilizaram durante muito tempo e a comunicação de massa ou midiática que
é realizada por meio de grandes veículos de comunicação: jornais, emissoras
de tevês e rádios e atingem a população de forma massiva.
Alguns autores tratam ainda da significação que se quer dar
quando nomeamos a comunicação alternativa. PERUZZO, que se utiliza da
denominação "comunicação popular" para chamar a comunicação feita pelo povo
em detrimento dos grande veículos, esclarece que:
Alguns autores têm chamado a comunicação popular de alternativa
– além de muitos outros adjetivos que lhe são atribuídos como
comunitária, participativa, dialógica horizontal, usando
geralmente como sinônimos.
No Brasil a expressão "imprensa alternativa" tem recebido
conotação específica, entendendo-se por ela não o jornalismo
popular, de circulação restrita, mas os periódicos que se
tornaram uma opção de leitura crítica, em relação à grande
imprensa (...) (1998, p. 120)


Mesmo podendo incorrer à confusão acima descrita privilegiaremos a
utilização do termo alternativa para nomear as comunicações desenvolvidas
por movimentos sociais utilizando-se de meios alternativos à grande
imprensa. Exatamente por ser uma comunicação alternativa àquela formalizada
pelos grandes veículos essa denominação aqui nos cabe melhor.
Em relação à comunicação realizada pelos grandes veículos trabalha-se
aqui sobre o que estudiosos do assunto confirmam ao longo das últimas
décadas: seu poder de convencimento de massas transcende as outras
classificações de comunicação.
O crescimento e a abrangência dos Meios de Comunicação e a
informação estão, claramente, desbancando e relativizando o
controle exercido por outras instituições, como a escola, as
igrejas, a família, etc. A comunicação está forjando os novos
professores, os novos sábios, os novos mestres da verdade e da
moralidade.
As pesquisas sempre mais confirmam a força moral e política
desses meios que não agem tanto pela competência, mas pela
empatia. (GUARESCHI, 2001, p. 19)


Dessa forma, as organizações civis vêem-se, externamente, entre a
produção popular de meios alternativos para divulgar sua atividade-fim e às
relações com a grande imprensa.




4.1 - Comunicação como processo – as linguagens



A comunicação analisada do ponto de vista de processo deve ser
entendida como dependente da identidade histórica e política de seus
integrantes. Como processo, a comunicação não necessita de meios ou
veículos concretos. Ela flui de acordo com as maneiras de agir e os
posicionamentos que os atores sociais tomam.
O que se percebe então é que o tipo de comunicação tem a ver com
a configuração do ser humano. Não é difícil mostrar como nós
somos, em grande parte, o conjunto de relações que tivermos
estabelecido. O ser humano se forma, historicamente, e se
estrutura a partir das relações que vai colocando. E a
comunicação é uma relação, hoje certamente uma das relações mais
persuasivas e abrangentes. Como todas as relações, essa
comunicação pode ajudar na construção dum ser humano autônomo,
equilibrado, democrático, cooperador ou, de outra parte, dum ser
humano dependente, submisso, massificado, robotizado.
(GUARESCHI, 2001, p. 20)


PERUZZO afirma que "as investigações sobre a comunicação popular
implicam a necessidade de a teoria abarcar os processos no contexto mais
amplo em que se realizam, ou seja, devem ir além do estudo do meio
comunicativo em si mesmo, de um jornal, por exemplo, pois a dinâmica social
na qual este se insere é que vai lhe dar significados" (PERUZZO, 1998, p.
114).
É a partir dessas relações e dos significados que elas constroem que
a linguagem do discurso ideológico nasce. Esse discurso, como um código,
começa por separar os integrantes de um movimento dos seus não-integrantes.
Isso ocorre principalmente nos movimentos sociais reivindicatórios e, em
menor intensidade, nas organizações cidadãs. Nas organizações caritativas e
nas ligadas à iniciativa privada não se identifica tanto essa sectarização,
por estarem mais próximas das linguagens utilizadas pela comunicação
midiática e, conseqüentemente, da opinião pública no geral.
Com base nessa reflexão, pode-se constatar que na Chácara dos Meninos
de Quatro Pinheiros a comunicação como processo pauta-se primeiramente pela
identidade de seu coordenador, Fernando, e em segundo plano pela identidade
dos meninos, aquela mesma trazida da rua. A psicóloga suíça e voluntária,
Ana Schimid, levanta, ainda, como uma hipótese em seu estudo de doutorado
sobre processos organizacionais, a dependência da construção da identidade
da organização no formato da personalidade de seu dirigente. Assim os
processos de comunicação em Quatro Pinheiros passam, necessariamente, por
uma mediação contínua, pela identidade comunicacional do seu coordenador.








4.2 - O relacionamento histórico




A história das organizações civis e sua relação com a comunicação
deve ser pautada, neste ponto, através da classificação que fizemos dos
três tipos de organizações de acordo com sua origem: as caritativas ou
filantrópicas, as derivadas de movimentos sociais ou cidadãs e as que são
ligadas às empresas privadas.
Ao longo de sua existência, a grande imprensa brasileira esteve nas
mãos de poucos e grandes grupos econômicos ou em poder do Estado. E esse
controle dos grandes meios não foi à toa. O poder da comunicação de massas
de mover multidões contra ou a favor de determinadas causas é comprovado
por diversos cientistas sociais.
(...) podemos também afirmar que quem detém a comunicação, detém
o poder. Se é a comunicação que constrói a realidade, quem detém
a construção dessa realidade detém também o poder sobre a
existência das coisas sobre a difusão das idéias, sobre a
criação da opinião pública. (...) Quem tem a palavra constrói
identidades pessoais ou sociais. Já foram feitos estudos
interessantes sobre o que determinados povos pensam de outros
povos. Essa opinião está baseada, principalmente, nas
informações que as pessoas recebem. (...) verificou-se que a
opinião pública é preparada com informações sobre determinadas
populações de tal modo que isso pode chegar a justificar até
mesmo uma invasão de um país. (GUARESCHI, 2001, p. 15)


Assim, organizações que advieram das elites ou mesmo do âmbito
empresarial tiveram sempre livre acesso a esses veículos, pois não
colocavam em risco a forma de dominação vigente.
(...) 'Parece que os grupos governantes, os meios de comunicação
de massas, as 'novas' religiões conseguem atingir as massas com
maior eficiência e suas preocupações são de domesticá-las ou de
convencê-las a aceitar suas idéias e seus planos.', e os
defensores da democracia efetiva - político-institucional,
econômica e social – são os que enfrentam maiores obstáculos
para entendê-las e conquistá-las. (WANDERLEY apud PERUZZO, 1998
: 19)


Essa 'ordem social' originou dois reflexos: as organizações
caritativas não se utilizaram substancialmente dos meios alternativos, pois
sua relação com donos de veículos era íntima. Invariavelmente suas
coordenações figuravam nas colunas sociais dos jornais e revistas. Nos
mesmos moldes, as fundações ligadas às empresas herdam delas o
profissionalismo voltado para a assessoria de imprensa, tendo na mídia seu
sempre parceiro. Essa relação mais 'fácil' pauta-se por uma relação de
troca. A empresa, originária da organização civil investe freqüentemente em
publicidade pagando por isso. Dessa forma a organização civil ligada a essa
empresa usufrui um relacionamento estreito com o meio de comunicação
firmado anteriormente a sua criação. Como exemplo disso podemos citar O
Boticário e a Fundação o Boticário. O primeiro investe em publicidade e
abre caminho nas relações com o meio de comunicação de massa para o segundo
divulgar suas atividades.
O segundo reflexo é um desenvolvimento sem igual da comunicação por
meios alternativos nos movimentos sociais. A falta de espaço na mídia
formal faz com que essas organizações desenvolvam um tipo de comunicação
muito peculiar, com o objetivo de, ao mesmo tempo, conscientizar a
sociedade e num segundo momento em antagonismo a tudo que vinha do controle
exercido pela grande mídia.
Esse cenário se intensifica no regime militar que, além de controlar
mais fortemente as mídias massivas, reage coercitivamente às iniciativas de
expressão alternativa dos movimentos sociais. Dessa forma, paralela à cisão
política e social, tendo de um lado o povo e seus movimentos e de outro a
elite-mercado e o Estado, aparece a cisão na comunicação: de um lado a
massiva, controladora, feita pelos grandes meios de comunicação de massa e
de outro a alternativa, popular, democrática, feita pelo povo.
Os meios de comunicação de massa, (...): estão nas mãos da
burguesia; orientam-se pela unidirecionalidade e verticalidade;
privilegiam os objetivos e a ideologia das classes dominantes;
criam hábitos de consumo por meio da persuasão; ocultam ou
desvirtuam a realidade, distorcem os fatos; despolitizam o
receptor; desmobilizam interesses das classes subalternas;
impedem o acesso, o diálogo e a participação da sociedade no que
se refere a decisões relativas a programação e mensagens;
apropriam fragmentos da cultura popular; detêm a tecnologia e
são economicamente estáveis.
Os meios comunitários, (...) estariam ligados "a cultura
popular, que desempenharia um papel de 'cultura de resistência'
(ao capitalismo, à ideologia dominante, à cultura oficial),
(...) para tanto, sua produção estaria desvinculada do
maquiavelismo da cultura de massa. Seria pura em sua criação,
ousada em seu conteúdo e permaneceria imaculada na divulgação e
recepção". (PERUZZO, 1998, p. 134)


No final dos anos 70, com gradual abertura do regime militar e o
crescente caminhar para um regime democrático surgiram organizações que
focaram suas atividades em fornecer informações concretas sobre números
estatísticos e sobre a real situação econômica e social brasileira. O IBASE
– Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, foi uma das
organizações criadas com o objetivo de acabar com o monopólio informativo e
apresentar a todos os segmentos da sociedade brasileira, principalmente aos
movimentos populares, uma visão crítica e alternativa da conjuntura
nacional (GOHN, 2000, p. 96).
Os anos 80 trouxeram à tona as rusgas alimentadas durante a época do
regime militar, mas não sinalizaram uma nova postura concreta da imprensa
massiva. Elas continuaram em poder de grandes grupos econômicos que viram
neste meio, depois da ditadura, uma outra forma de controle. O Estado não
controlava mais. Era a vez do poder econômico exercer sua força. Assim, por
mais que desejassem, por meio dos jornalistas mais militantes, assumir uma
postura mais crítica, mais aberta em relação às denúncias sociais, os meios
de comunicação de massa viam que o poder econômico dos grandes anunciantes
era definitivo no momento de decidir se um determinado assunto seria
publicado ou não.
Os movimentos sociais, comumente repudiados pela grande imprensa,
acabaram por trabalhar a negação da mesma de forma muito mais ferrenha do
que se fazia ao Estado, anteriormente também inimigo. A indignação perante
a abordagem dos assuntos que envolviam esses movimentos e a intenção de
confundir a opinião pública quanto aos seus valores de luta tornaram a
relação desses movimentos com a grande imprensa se não antagônica,
extremamente distante. Para alguns integrantes de movimentos de
organizações cidadãs era impossível visualizar que um dia a grande imprensa
pudesse ser parceira desses grupos. GOHN, no estudo das ações desenvolvidas
pelo Movimento dos Sem Terra, atesta esse formato nada imparcial que a
imprensa usualmente tomou: a inovação e criatividade no modo de produção do
Sem Terra não são comunicadas pela grande imprensa, destacando apenas o
lado das ocupações de terra, caracterizando-as como invasões selvagens.
Algumas organizações e redes de informação foram sendo montadas para
suprir essa carência de informações imparciais, tentando, através de um
exercício persistente de contato com a imprensa, sensibilizar repórteres e
editores para o trabalho desenvolvido por essas organizações. Essas redes
faziam o trabalho de 'tradução' da linguagem radical utilizada nos
movimentos sociais para a linguagem 'mercadológica' utilizada pelos meios
de massa. Assim, as notícias que saíam pareciam 'não comprometidas' com a
causa, não denotavam a grandeza dos valores impingidos pelas organizações.
Tem uma frase de uma música de Chico Buarque - "a dor da gente
não sai no jornal" - que ajuda a entender um pouco essa questão.
Nem sempre o que é importante para os movimentos sociais tem
relevância na hora da edição. O discurso ético não é notícia.
Notícia é a falta de ética.(Teresa Urban in loco)

Na década de 90, a velocidade de criação de novas organizações e a
institucionalização das que já existiam não foi acompanhada por um melhor
relacionamento com a imprensa. Nota-se que as organizações ambientalistas
voltaram-se com maior rapidez para a parceria com a grande imprensa. A Eco-
92 foi um marco nesse relacionamento. Começa-se a discernir um novo modelo
de organização: as não-governamentais. Os autores começam a revisar os
conceitos de antagonismo. PERUZZO afirma que "essa postura de opor os meios
populares aos massivos sofreu uma profunda revisão nos anos 90, não só na
área acadêmica, mas também no âmbito das organizações envolvidas com a
comunicação popular, em função das mudanças que ocorrem na sociedade"
(PERUZZO,1998, p. 128).
O discurso antagônico sofre um abrandamento nas pesquisas e nos
trabalhos acadêmicos. Mas esse abrandamento não é notado nos movimentos
sociais. Na maioria das organizações cidadãs continua clara a dificuldade
de se colocar algo referente às suas práticas na mídia massiva.


E a gente foi aprendendo assim. Que tinha uma imprensa que só
servia aos poderosos. Que infelizmente a imprensa só divulga se
acontece uma tragédia aqui. Se tem uma prática um trabalho bom
eles não divulgam.(...) Eu lembro uma vez eu fui fazer uma
matéria e eles não publicaram porque foi há muitos anos e eu
falei de reforma agrária. (Fernando in loco)

Atualmente o relacionamento dos movimentos sociais com a grande
imprensa parece mais estreito. Com o nascimento de várias organizações
ligadas às empresas privadas, os assuntos relativos ao 'Terceiro Setor' têm
entrado mais nas pautas dos veículos, talvez por acompanharem o fluxo de
notícias do próprio setor privado.
Há que se reconhecer o grande poder da mídia e sua manipulação,
prioritariamente, a serviço dos interesses das classes
dominantes, mas nem por isso ela deixa de dar a sua contribuição
ao conjunto da sociedade. Quando quer, divulga campanhas e
programas educativos e outros de elevado interesse público.
Os veículos de comunicação massiva não são necessariamente
"perversos" com relação aos interesses populares. (PERUZZO,
1998, p. 131)


"A imprensa continua sendo dos poderosos e os movimentos sociais
continuam garimpando espaço. A imprensa constrói, diariamente
uma vitrine da realidade e o espaço que os movimentos ocupam nos
noticiários corresponde ao espaço que têm na sociedade e não à
importância que deveria ter. Acho até que a disputa por espaço é
feroz e a relevância dos assuntos é diretamente proporcional à
importância que têm no conjunto dos interesses econômicos e
políticos. Tornar a relação com os meios de comunicação mais
profissional e menos emocional é uma saída, mas não vai garantir
o espaço sonhado por cada um dos grupos". (Teresa Urban in loco)




4.3 - Comunicação alternativa



O intuito de conscientizar a sociedade e uni-la ao redor de suas
bandeiras e reivindicações fez com que os movimentos sociais criassem
formatos de comunicação alternativos à grande imprensa. Aqui é importante
ressaltar que tiveram esse posicionamento somente as organizações hoje
denominadas organizações cidadãs, pois as caritativas e as ligadas a
empresas privadas já tinham seus espaços formalizados nos grandes veículos
através de influências pessoais no primeiro formato de organização e
através de um trabalho profissional de assessoria de imprensa já
sedimentado pelas suas empresas – mães no segundo formato.
A comunicação alternativa, chamada de popular por muitos autores, se
pautava, a princípio, pela escassez de recursos financeiros dessas
organizações para produzir materiais informativos - jornais, outdoors,
spots para rádios e tevê, para pagar espaços nos grandes veículos e num
segundo momento, para contratar profissionais especializados em
comunicação. Assim, o afã de conscientizar a sociedade despolitizada acabou
criando meios alternativos de comunicação e transformou os integrantes dos
movimentos em comunicadores empíricos. O que era para ser um processo
técnico-profissional de produção de informação transformou-se em espaço de
liberdade de discussão democrática e desenvolvimento de aptidões.
(...) criaram-se "instrumentos alternativos" dos setores
populares não sujeitos ao controle governamental ou empresarial
direto. Era uma comunicação vinculada à prática de movimentos
coletivos, retratando momentos de um processo democrático
inerente aos tipos, às formas e aos conteúdos dos veículos,
diferentes daqueles da estrutura então dominante, da chamada
grande imprensa. Nesse patamar, a nova comunicação representou
um grito, antes sufocado, de denúncia e reivindicação por
transformações, exteriorizado, sobretudo, em pequenos jornais,
boletins, alto-falantes, teatro, folhetos, volantes, vídeos,
audiovisuais, faixas, cartazes, pôsteres, cartilhas,
etc.(PERUZZO, 1998, p. 115)

Como alternativa à comunicação de massas, a comunicação popular
acabou por se tornar, aos poucos, antagônica a essa e a negar em maior ou
menor grau as técnicas, meios, linguagens e formatos utilizados nos grande
meios. Ela nasce do conflito, da não adequação a modelos pré-concebidos da
sociedade. Ela é democrática, conscientizadora, participativa, do povo,
feita pelo povo.
A comunicação popular é entendida como a das classes
subalternas, realizada num processo de luta de classes. Nesse
caso ela é vista como oposta ao modelo massivo em poder das
classes dominantes, o qual é encarado como impositivo, alienante
ou pervertedor dos interesses populares. A primeira
representaria o lado "bom", "puro" e transformador, enquanto a
segunda encarnaria a manipulação e o controle da sociedade pelas
classes hegemônicas. (PERUZZO, 1998, p. 127)

A comunidade Profeta Elias na Vila Lindóia e, mais tarde, Os Meninos
de Quatro Pinheiros utilizaram-se de formatos e meios típicos da
comunicação alternativa para exprimir seus problemas, trabalhar a
conscientização da sociedade contra a discriminação aos meninos e se
posicionar frente às tendências políticas. As peças teatrais, cartazes,
presépio, via-sacra, músicas, passeatas são ricos exemplos de algumas
estratégias de comunicação dos meninos. Atente-se ainda para a inserção da
proposta pedagógica da Chácara na construção dessas iniciativas. Os meninos
eram os propositores e atores principais dessas iniciativas comunicativas.
A comunicação alternativa era o eixo que exprimia a dor sentida na rua e no
abandono.
A dor, o conflito, aqui, legitima a comunicação alternativa ou
popular. Ela ultrapassa os meios em si para situar-se nas relações diárias
e confundir-se com a comunicação como processo.
(...) Durante muito tempo, falar de comunicação significou
falar de meios, canais, mensagens. Agora, falar de comunicação
popular implica falar de cultura, relação. E necessita, para
tanto, da interdisciplinaridade em seu sentido mais profundo.
Trazer a comunicação popular para o espaço da cultura fez
introduzir a dimensão do conflito (...) histórico do qual o
popular se define enquanto movimento de resistência (...) E,
conseqüentemente, a idéia de ação, de práxis. A comunicação
popular é uma prática em conflito (...).(BERGER apud PERUZZO,
1998, p. 113)


Essa transcendência da comunicação popular dos meios utilizados para
as relações em si leva a alguns problemas no momento em que o processo se
utiliza do discurso ideológico para comunicar sem focalizar no
público/sociedade que irá recebê-lo. Daí surgem alguns empecilhos. Num
primeiro momento a comunicação volta-se somente para o interior dos
movimentos. Mesmo tendo o objetivo de conscientizar a população
despolitizada, só é entendida pelos seus integrantes voltando-se para os
mesmos. Como diz FAXINA, a comunicação popular, de forma especial a
impressa e a radiofônica, tem sido séria demais. Talvez devido ao afã de
conscientizar a qualquer custo e rapidamente, esses meios dedicam-se a
transmitir discursos abstratos, prepotentes, panfletário ou doutrinários.
Trata-se de uma visão de comunicação pouco afeita ao universo cultural de
seu próprio público. O que está em questão parece ser mais o objetivo da
entidade ou pessoas responsáveis pelo meio do que a vida o bem-estar, do
público destinatário (FAXINA, 2001, p. 101).
PERUZZO remete ao repúdio à mídia massiva a utilização de um tom
sério demais na comunicação popular. Segundo ela, os movimentos não abrem
espaço para amenidades, para o entretenimento, para o lúdico, fornecendo
pouco valor a esses artifícios que poderiam estimular uma maior
participação e uma aceitação mais rápida do público em geral.
Se por um lado essa forma particular de se posicionar afasta-se da
maneira como os meios de comunicação de massa utilizam-se da linguagem e
por conseqüência da percepção fácil da sociedade, por outro a comunicação
alternativa abre espaços privilegiados, como que completando as informações
pela grande imprensa fornecidas. Ela funciona como o outro lado da questão
e não compete com os grandes veículos. VIÁ (1983, p. 96) afirma que em todo
sistema há diferentes níveis culturais e por isso os meios de massa não são
suficientes para uma mudança de conduta na sociedade. Esses meios não são
geradores de mudança, mas sim aceleradores do processo. Podemos apontar,
assim, que uma forma ideal de relação que pode ser delineada é aquela na
qual a comunicação de massa e a alternativa se completem; uma trazendo os
fatos e a outra a construção crítica dos fatos. A década de 90, mesmo tendo
demonstrado uma relação ainda distante dos movimentos com os meios de
comunicação de massa, pode ter iniciado o processo no qual a comunicação
alternativa é vista como um complemento à midiática.
Na prática os meios de comunicação popular, apesar de sua
importância e de seu significado político, não chegam a colocar-
se como forças superadoras dos meios massivos. Os dois são
complementares e não excludentes. Os grandes veículos por um
lado fazem-se necessários e importantes no campo do divertimento
e da informação, por exemplo, mas não conseguem suprir todas as
necessidades em nível de comunidades e de movimentos sociais
organizados. (PERUZZO, 1998, p. 130)


Um outro ângulo de análise que podemos utilizar e que perpassa a
história de relação entre os dois formatos comunicacionais é o que
estabelece um trampolim da comunicação alternativa para a de massa. Uma
passeata, ou uma apresentação de teatro, pode funcionar como pauta para
grandes veículos. Podemos utilizar o próprio Movimento Sem Terra como
exemplo já histórico de mobilizações que eram noticiadas na grande imprensa
– mesmo que de forma parcial. Mais recentemente podemos colocar as
estratégias utilizadas pelos Meninos de Quatro Pinheiros como os teatros,
construções de presépios e passeatas que acabaram servindo de pauta para os
veículos regionais e assim tendo uma visibilidade maior (ver anexos). As
relações da Chácara com a grande imprensa serão analisadas mais à frente.











4.4 - Relações com a imprensa




É inegável o poder de convencimento que a mídia possui na sociedade.
Mesmo com o advento da globalização e o nascimento de outras fontes de
informação com ao Internet, a televisão, o rádio e o jornal continuam a ser
os controladores do pensamento social. Sua hegemonia é menor com a
liberação das rádios comunitárias e com a proliferação de meios impressos
criados para analisar o papel da própria imprensa, mas ainda assim a
política de concessões remete o poder a uma classe restrita à dos
dominantes. Mesmo frente ao fervilhamento dos movimentos sociais e
organizações, à abertura democrática da expressão, a grande mídia sofre o
ranço deixado pela ditadura e pelo poderio desmedido das elites.
(...) a comunicação tem sido utilizada muito mais para legitimar
e manter uma ordem social caracterizada pela exploração das
maiorias, pela verticalidade e o autoritarismo das relações,
pela demagogia e o apelo às emoções fáceis. O potencial
verdadeiro da comunicação está ainda longe de ter sido
aproveitado para apoiar o surgimento de uma nova civilização e
de um homem novo.(BORDENAVE, 1983, p. 31)

GUARESCHI (2001, p. 20), um dos mais críticos autores que estudam o
poder dos meios de comunicação de massa, sustenta, no final da década de
90, o papel ainda controlador da mídia massiva. Para ele, a tarefa
principal da comunicação de massas é universalizar os interesses das
classes hegemônicas, de forma sutil, cativante, cotidiana através da
sugestão, persuasão, imitação e percepção subliminar. MILLS (apud VIÁ,
1983, p. 53) confirma essa postura afirmando que são instrumentos cada vez
mais importantes de poder para a elite das ordens institucionais
dominantes.
Além de ainda controlado pelas massas dominantes – e a serviço
destas, os veículos de comunicação de massa na atualidade passam a ser
construtores e legitimadores dos fatos. A globalização e a infinidade de
oferta de informações por diversos meios fez com que nos distanciássemos do
local, do próximo e palpável para voltar à atenção ao de fora, de longe. Os
veículos que nos trazem os fatos globais acabam por se tornar a única fonte
de informação do que acontece lá fora e sua informação, a verdadeira, a
real. Essa crença nos mesmos se tornou cotidiana na sociedade que os meios
de massa passam a legitimar a existência do fato.
Não seria exagero dizer que a comunicação constrói a realidade.
Num mundo todo permeado de comunicação – um mundo de sinais –
num mundo todo teleinformatizado, a única realidade passa a ser
a representação da realidade – um mundo simbólico, imaterial.
(...) A conclusão a que chegamos é a de que uma coisa existe, ou
deixa de existir, à medida que é comunicada, veiculada. É por
isso, conseqüentemente, que a comunicação é duplamente poderosa:
tanto porque pode criar realidades, como porque pode deixar que
existam pelo fato de serem silenciadas. (GUARESCHI, 2001, p. 14)

A instantaneidade das informações fornecidas pelos grandes veículos
colabora com essa legitimação. O "agora está acontecendo e estou vendo" não
deixa dúvidas de que o veículo está realmente transmitindo o real.
(...) os principais acontecimentos podem ser vistos quase em
todo o mundo.(...) Um repórter observou que a comunicação na
guerra do Golfo e na invasão do Panamá tinha criado um "sistema
instantâneo de informações", em que a CNN obtinha melhores
informações sobre o inimigo do que os chefes do estado-maior
norte-americano. Mesmo a Casa Branca estava obtendo suas
informações pela CNN, não pela CIA. Em resposta a uma pergunta
de Jane Pauley, o senador John Warner, da Virgínia, disse:
"minha fonte de informações é a mesma que a sua". Ao que ela
comentou: "que idéia assustadora, senador" (CORRADO, 1994, p. 3)


Não há como negar que a imprensa hoje tem o poder de fazer existir ou
não as organizações e suas atividades para a sociedade. A Pastoral da
Criança, entidade presente em mais de 3.500 municípios brasileiros, possui
estrutura de comunicação formatada em rede e alimenta constantemente suas
mais de 130 mil líderes comunitárias com material informativo esclarecedor.
Ainda assim, suas ações e iniciativas passam pela legitimação dos veículos
de comunicação para se afirmarem nas comunidades, como vemos nos
depoimentos coletados na pesquisa realizada por FAXINA:
"Depois que foi divulgado na televisão melhorou muito o nosso
serviço. Porque às vezes a mãe não acreditava na líder. Hoje
elas acreditam mais. Quando a gente chega elas mesmo já falam
que viu isso na televisão." (Terezinha – MG) (FAXINA, 2001, p.
234)


"Enquanto não passa na televisão, o povo não acredita muito.
Depois que passa na televisão é rápido que eles começam a
acreditar".(Alzira – PA) (FAXINA, 2001, p. 235)


FAXINA conclui que a questão da dupla realidade – uma virtual e outra
física – reaparece aqui quando eles dizem que vendo na televisão o povo
acredita naquilo que eles já faziam antes. (FAXINA, 2001, p. 236) Em outras
palavras, o que aparece nesses depoimentos é que já não basta existir; para
que as próprias pessoas da comunidade acreditem no que vêem é importante a
legitimação por parte dos meios de comunicação.
Nota-se que a questão de estar nas mãos da elite ainda afasta os
movimentos sociais e organizações cidadãs da imprensa. Mas por outro lado a
legitimação da existência dos movimentos, obrigatória atualmente, faz com
que timidamente tracem-se passos em direção a uma relação mais estreita dos
movimentos com os meios de massa. Esse caminhar é normalmente pautado pelo
conflito social. É necessário "precisar" utilizar-se do poder dessa
imprensa de massa para alcançar seus objetivos mais próximos para que essa
aproximação se concretize. Invariavelmente essa experiência se dá por meio
de um profissional da área, que por um lado milita nos movimentos e por
outro trabalha com os meios de massa no dia-a-dia. Esse profissional abraça
os dois tipos de linguagens e é capaz de construir uma ponte entre a
imprensa e o movimento. Os Meninos de Quatro Pinheiros tiveram a influência
de dois jornalistas militantes nas suas iniciativas de comunicação de
massa: Élson Faxina e Teresa Urban.
Conheci o Faxina nas favelas, ele trabalhava na Cúria
[Metropolitana]. Aí veio nos ajudar falando sobre os meios de
comunicação. Aí teve um período que tinha muita violência, né?
Mas muita mesmo. Então a gente achou que não poderia estar
intervindo numa ação dessas se você deixasse que a violência
ocorresse de braços cruzados. Aí a gente começou a fazer o
contato com imprensa.
O Faxina fez uma coletiva e pediu para levar os meninos. Foram
uns 30 meninos na casa do jornalista. Num desses encontros tinha
um menino que participou do filme do pixote. Mas também foi
assassinado aqui em Curitiba. E a imprensa conversou, fez a
matéria.(...) (Fernando – in loco)




Vê-se que a busca de ajuda nos meios de massa foi provocada por uma
situação de conflito nas ruas. A violência nas ruas precisava da
legitimação da imprensa para se tornar real aos olhos da sociedade e, por
conseguinte, ações concretas fossem implementadas. Outra situação crítica
que se tornou ponto de convergência com a imprensa foi num outro momento de
angústia. Um dos meninos estava muito doente e, por não ter documentos, não
foi aceito numa instituição hospitalar. Fernando buscou seus contatos na
imprensa, levou-a junto ao hospital e conseguiu o atendimento para o
menino.
Fernando é claro quanto a o seu posicionamento conceitual em relação
à imprensa:
(...) a gente achou que estar convertendo a imprensa, trazendo a
imprensa para nosso lado para estar divulgando não só ações de
violência, mas também mostrando o lado bom da coisa. E a gente
começou e foi muito feliz assim nos trabalhos porque a gente já
tinha uma boa organização. Porque a imprensa que vinha divulgar
os trabalhos se tornava um grande aliado. (Fernando – in loco)



Os Meninos de Quatro Pinheiros passaram a ser fonte de material
quando o assunto era menor de rua. No início, eram mais arredios e não
queriam receber a imprensa na chácara. Mas, aos poucos, baseado na proposta
pedagógica de se discutir tudo o que vai ser dito, Fernando utilizou-se da
vinda da imprensa para trabalhar aspectos de comunicação com cidadania nos
meninos. Ele descreve uma das primeiras visitas feitas por Dulcinéia
Novaes, da retransmissora Globo em Curitiba:
Eu lembro que uma vez veio a Globo para uma matéria para o
jornal Nacional - veio a Dulcinéia - e era bem no começo e os
meninos não queriam falar. Aí a gente fez uma gincana para
trabalhar "como funcionam os meios de comunicação". E daí a
gente fez vários grupos e cada grupo iria elaborar quatro
perguntas que a imprensa poderia perguntar para eles e eles
iriam responder. Aí gerou uma discussão muito boa, os grupos
falaram e tudo o mais. Quando chegou a Dulcinéia um dos meninos
pegou o microfone da mão dela e disse: nós queremos conversar
com a senhora primeiro. Aí ela olhou pro microfone e perguntou:
o que aconteceu aqui? Aí eu respondi: a gente se prepara, né,
Dulcinéia...E assim, foram algumas coisas que a gente foi
preparando nos meninos para que eles não tivessem essa reação.
Então a gente trabalha muito dentro do campo da cidadania com os
meninos. A gente transforma isso num processo pedagógico.
(Fernando – in loco)


Os contatos com a imprensa foram se intensificando e hoje os Meninos
de Quatro Pinheiros são pauta para muitas matérias veiculadas na mídia.
Esse processo fez a Chácara passar a existir nacionalmente provocando
visitas de pessoas de outros estados que querem conhecer a proposta e
multiplicá-la em suas localidades, motivou a vinda de voluntários para
trabalhar na chácara e, principalmente, trabalhou a auto-estima tanto dos
meninos quanto da comunidade estabelecida ao redor da chácara.
Mas mesmo tendo bons frutos em termos de divulgação, a atitude tomada
pelos meninos perante repórteres e jornalistas ainda é de distância. A
linguagem utilizada pela imprensa, por mais convivência que tenha tido com
os Meninos da Chácara, não se alterou. Termos como "assaltante" e "viciado"
são utilizados com freqüência nas matérias para denotar a mudança de vida
dos meninos. O senso crítico bem afiado dos meninos enxerga essas
armadilhas para sua imagem:
"Já assisti passar na tv. É legal, mas tem umas partes que não.
É que quando você vai onde você morava e tinha gente que não
sabia que você era de rua e fica sabendo aí fica ruim, né?
(Israel Polidoro in loco)


"A imprensa é boa e ruim. É bom porque mostra o trabalho do
Fernando e da gente e daí vêem que a gente precisa de ajuda. É
ruim porque às vezes eles inventam e aumentam coisas. Falam que
roubou, matou." (Anderson Amaral, in loco)


Eles ressaltam também como um agravante o freqüente não compromisso
com a informação verdadeira. A rotina de uma redação exige do profissional
que as matérias sejam redigidas em tempo recorde, mas isso não é
justificativa para informações serem distorcidas.


"De um lado é bom: eles já divulgam o trabalho e muitas pessoas
entendem e partir dessa reportagem acabam ajudando, e por outro
lado é ruim porque eles colocam coisas diferentes no jornal que
a gente não falou".
Porque muita gente não conhece e através das reportagens o
pessoal conhece mais a chácara e o trabalho e diminui o
preconceito. Nem todos os meninos que moram na rua são ruins..."
(Julio – in loco)



As relações que as organizações cidadãs estão desenvolvendo
atualmente com a grande imprensa são pautadas – em menor grau, isto é claro
- pela relação de confronto sedimentada nas décadas 70-80. Em maior grau vê-
se ainda a diferença entre as linguagens utilizadas nas organizações que
herdaram o discurso ideológico e a falta de profissionalização dos
movimentos sociais e a imprensa que utiliza o discurso do mercado não
imputando valor às mensagens. Essas distorções de linguagens ainda são os
principais fatores de distanciamento da grande imprensa dos movimentos.




4.5 - O profissional de comunicação na organização – seu papel




A análise voltada para o enfoque no posicionamento do profissional de
comunicação pode ser o motivador de novos estudos referentes à comunicação
nas organizações. O papel que o comunicador toma como seu na sociedade é
voltado muitas vezes par a mediação social. SOARES esclarece isso:
Se para boa parte dos pesquisadores e cientistas sociais, todo
comunicador é um mediador, a consciência sobre esse papel junto aos
profissionais surgiu e ganhou dimensões públicas, apenas com o
aparecimento das Organizações Não Governamentais e suas bem-
sucedidas intervenções na sociedade, como reconhecimento do papel
social das empresas e suas relações com o meio ambiente e,
finalmente, com o entendimento da educação como processo
comunicacional. (SOARES in DIDONÉ, 1995, p.107)


No momento vamos nos ater aos papéis decisivos que os dois
comunicadores envolvidos nas atividades de Quatro Pinheiros tiveram em
relação à sua comunicação com os grandes meios ou a sua divulgação através
da comunicação alternativa.
A importância da influência dos dois profissionais de jornalismo na
comunicação de Quatro Pinheiros é fundamental para traçar os motivos que
levaram a fundação a se comunicar de forma alternativa com a comunidade
próxima e com a grande imprensa para atingir a opinião pública como um
todo.
Herdeira que é dos movimentos dos anos 70, como vimos em sua
história, Quatro Pinheiros, através de seu coordenador, educadores e dos
próprios meninos, detinha um formato de linguagem voltado para valores,
ideologias e reivindicações sociais. Transformar essa linha de expressão em
notícia ou mesmo em veículos como livros e jornais era um desafio para quem
não conhecia as formas que a linguagem utilizada pelo mercado toma. Para
abarcar algumas conquistas era preciso "aparecer". Élson Faxina deu sua
colaboração em 1984, quando ministrou uma palestra para os Meninos da
Comunidade Profeta Elias explicando a lógica que permeia os veículos de
grande imprensa. Teresa Urban, em 1994, impulsionou dois projetos: a edição
dos dois livros.
"Acho que, por ser jornalista, era fácil pensar num jornal.
Vejo, agora, que o jornalzinho funcionava como uma espécie de
'cartão de visita' dos meninos, que sentiam muito orgulho do
trabalho. O conteúdo do jornal reflete um pouco isso, uma vez
que foi mudando de tom. No princípio, era muito olhar o passado,
falar das dificuldades na família e na rua. Como o passar do
tempo e a consolidação da experiência da chácara, os relatos
mudaram, abordando as conquistas feitas (o trabalho na horta, a
escola, a organização das festas, o futebol, o aprendizado de
convívio, etc)" (Teresa Urban)


A assessoria mesmo que informal desses dois profissionais deu o
empurrão necessário para que a Chácara dos Meninos de Quatro Pinheiros
fizesse sua caminhada em direção aos meios de comunicação de massa e à
divulgação de suas conquistas.
(...) Procuro o pessoal da Ciranda ou eu mesmo entro em contato
com os jornalistas que passaram por aqui. A gente tem procurado
a imprensa hoje muito mais para divulgar o trabalho. No começo
foi por uma necessidade de mostrar a realidade de sensibilizar
as pessoas. Hoje são os eventos: encontros com as famílias,
viagem para fora que eles foram. Coisas que acho importante, eu
ligo. Não no sentido de aparecer o trabalho da chácara, mas para
mostrar para a sociedade que é possível resgatar e incentivar
outras pessoas. Isso tem ajudado muito as entidades a conhecer o
trabalho e aproveitar um pouco da nossa experiência. (Fernando –
in loco)








5 - CONCLUSÃO



A dinâmica que envolve as relações sociais e os processos de
comunicação tem sofrido mudanças definitivas e que trazem à tona das
discussões, muitas vezes, os conflitos vividos entre as diversas esferas
sociais. O que se pode notar é que mesmo com mudanças sensíveis dos papéis
e posicionamentos da "sociedade civil, da sociedade política e da sociedade
econômica" (SIMIONATTO, 1995, p.70) na última década, as relações entre
essas esferas ainda se pautam por certa desconfiança, pois, por mais que os
anos de grande confrontos de interesses estejam ficando para trás, o
traçado do caminhar doas movimentos sociais e ONGs ainda guarda algumas
características de comunicação das últimas décadas.
O Estado tornou-se parceiro de peso da sociedade civil, o mercado,
por intermédio de empresários que visam maiores lucros através do bem-estar
da comunidade, inaugura a responsabilidade social. E ainda que se tenha
caminhado um longo trecho em direção ao resgate social das minorias
brasileiras – que de minorias nada têm – uma infinidade de atitudes,
posicionamentos, lutas e ações estão no porvir. Enquanto existir o conflito
social que pode ser traduzido pela pobreza ou pela exclusão do poder
decisório, existirão os movimentos sociais e as organizações da sociedade
civil, principalmente as cidadãs. Porque elas são filhas do conflito.
Nascem dele e nutrem suas atividades e lutas a partir dele. Na década de 70
o Estado era ditatorial e as teorias dos movimentos sociais moviam-se
contra as arbitrariedades governamentais. Na década de 80, os movimentos
articulam-se para uma maior organização, em algumas situações em nível
nacional. Na década de 90 a parceria com o Estado, a fim de formar frentes
temáticas para ocupar as lacunas dos serviços sociais, torna-se concreta.
A reflexão aqui motivada mostra que outras mudanças relacionais e de
processos de comunicação pode estar sendo desenvolvidas. O que esperar
deste início de século? Haverá uma fusão do Estado, agora ocupado por
representantes dos antigos movimentos sociais com as organizações
mobilizadas em todo o país?
O que for hipotetizado agora não deixará de ser prognóstico volúvel.
Mas é certo que maiores transformações serão presenciadas, tanto no âmbito
político quanto social. A elite brasileira ainda parece perplexa e
anestesiada com as mudanças no quadro estatal. Como se pautará seu
posicionamento daqui a algum tempo?
Os meios de comunicação de massa, nas últimas décadas, atenderam de
forma muito lenta os anseios das organizações civis. Ainda é tímida e
pontual a participação dos movimentos sociais nas pautas de jornais, tevês
e rádios. Mas isso não impede que organizações como a Chácara de Quatro
Pinheiros invertam a relação de confronto entre imprensa e sociedade civil
instituído na década de 70 e se utilizem do poder contido nos meios de
comunicação para promover suas causas.
As relações poderão ter outros atores e talvez outras formatações. O
conflito, o mesmo que criou os movimentos sociais, aproxima as organizações
cidadãs da grande imprensa. Os movimentos e organizações tendem a buscar
uma maior profissionalização na área de relacionamento com a imprensa para
aumentar suas chances de conquistar espaço e credibilidade na comunidade,
tendo suas reivindicações sociais mais rapidamente aceitas.
Resta-nos perguntar que posicionamento a grande imprensa tomará,
continuando a estar sob o controle dos grupos econômicos dominantes – os
mesmos que governavam o país - nessa nova organização política brasileira.
A questão é como se configurarão as relações de quem domina o meio de
comunicação com a ideologia de esquerda do poder decisório do Estado.
A análise, mesmo que parcial deste trabalho, mostra-nos a permanência
do conflito em nossa sociedade. Este é criadouro tanto de movimentos
sociais articulados e participativos quanto de caminhadas destes mesmos
movimentos em busca da grande imprensa. O conflito pautou a existência dos
movimentos sociais e da relação destes com a imprensa. Um dos próximos
pontos que devem ser analisados num futuro próximo é se a ausência de
conflito fará com que os movimentos deixem de se relacionar com a imprensa
ou se essa relação tende a ser mais estreita coma a falta de confrontos
sociais.




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TOURAINE, Alain. Poderemos viver juntos? Iguais e diferentes. Trad. Jaime
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VIÁ, Sarah Chucid da. Opinião Pública – Técnicas de formação e problemas de
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Entrevistas
Anderson do Amaral
Danilo Ferreira da Silva
Élson Faxina
Fernando Francisco de Góis
Julio Cesar de Oliveira
Teresa Urban
-----------------------
[1] Dado retirado de
www.rits.org.br/rits_mapa_areas%20do%20site.htm.Terceirosetor?informação
[2] Segundo Paulo Freire, em Pedagogia do Oprimido, Rio de Janeiro, 1987,
editora Paz e Terra, os aspectos que se constituem o que se chama de
pedagogia do oprimido é aquela que tem que ser forjada com ele e não para
ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua
humanidade. ( 1987 : 32)
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