Um despertador acre, como o sol sobre o olho

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Um despertador acre, como o sol sobre o olho Ao professor e amigo Luis Eduardo, por sua generosidade em me apresentar à poética camusiana e, sobretudo, pelas provocações, tanto em sala de aula quanto nos bares da vida, que me contaminaram com o “vírus da reflexão”. “Não me peça que eu lhe faça/ Uma canção como se deve/ Correta, branca, suave/ Muita limpa, muito leve/ Sons, palavras, são navalhas./ E eu não posso cantar como convém/ Sem querer ferir ninguém.” (Belchior, Apenas um rapaz latino-americano) Por Breno S. Amorim.

1. Como pontua Warat, em seu “Literasofia”, Borges sabia que na primeira frase de seus contos tinha que estar encerrado já todo seu conteúdo potencial. De tal modo, iniciamos este texto com a seguinte frase, em paráfrase a Henry Miller: uma única coisa interessa-nos vitalmente agora, a saber: registrar tudo quanto vai omitido nos livros ditos jurídicos. Para tanto, é-nos indispensável lançar mão da literatura, aproveitando, assim, da sua maior característica: a de dizer tudo até o fim. De sorte que, para esclarecer de antemão, estas linhas não se nos apresentam como “discurso crítico”, posto que nossos “críticos oficiais” não possuem este vigor de levar as palavras até as últimas consequências – quer seja por ingenuidade, quer por autoproteção. Dentro do “mundo enodoado do direito”, a guerra, que explode nas ruas, é deliberadamente dissimulada. Os juristas, par excellence, caracterizam-se, em termo sociológicos, como funcionalistas. Isto é, sob o viés do controle institucionalizado, dentro do direito, vigora a perspectiva liberal-funcionalista. Desse modo, somos levados a expressões pueris, tais quais: “coesão social”; “comportamentos desviantes”; “diminuição dos conflitos”; “convívio pacífico”; “interesse de todos os cidadãos em usufruir uma vida social ordenada” e tudo o mais que provoca ininterruptos bocejos nos seres mais insones. Para os nossos “doutores”, pois, o conflito é

olvidado ou, quando o percebem, mantêm-no como disfunção social – é dizer, uma doença passível de cura. Lado outro, a perspectiva da teoria do conflito, como não suscetível de convivência com a supramencionada, é liminarmente rejeitada. Ora, consultemos esses nossos compêndios – os quais resistem retesados apenas pela quantidade de páginas -, a grande maioria fala em paz, ordem, interesse geral etc., tal qual um poeta romântico deita, sobre o papel, versos, estrofes à sua musa. Caso estivessem dispostos a “abrir portas e janelas” (como no filme argentino), perceberiam o que anota Ana Lucia Sabadell [1], ao falar sobre tal perspectiva. No âmago da teoria do conflito, observa-se uma percepção escancarada, tão cara ao poeta Blake. Aqui, portanto, indaga-se “o que se controla”; “quem é o controlador?”; “para que se controla?” [2] e, ousamos acrescentar: para quem se controla? Em seu Manual, Sabadell afirma: “o controle social denota uma preocupação em condicionar as pessoas para aceitarem a distribuição desigual dos recursos sociais, apresentando a ordem social como ‘justa’ e intimidando quem a coloca em dúvida”. Ora, resta claro a impossibilidade de um controle social democrático, haja vista que as regras sociais não contabilizam a vontade da parte de parte alguma. No entanto, de maneira a evitar cair no que um amigo - Adão, professor de matemática - alerta, ao falar de seus colegas matemáticos como aqueles que anunciam o velho como algo novo, é preciso anunciar uma “obviedade ululante”: não há, aqui, novidade alguma. O que há, ao revés, é o brado de quem quer mostrar o que está escancarado – ou todos veem o descoberto? -, o reverbero de quem insiste: por que dormem, senhores estáticos? Por que não devotam seus ouvidos ao poeta João Cabral de Melo Neto, de modo a captarem os versos dedicados a Graciliano Ramos? Sim, ouçam-no: “quem padece sono de morto/ e precisa um despertador/ acre, como o sol sobre o olho...”. Prossigamos. Em nosso socorro, a literatura. O livro é o “Estado de Sítio”, de Albert Camus. O arquétipo de jurista, sabemos, apresenta algumas peculiaridades inusitadas. Interior a este modelo, temos, como representante, a personagem Nada. Quando do anúncio da guerra, esta personagem mostra-se altiva, irônica e escarnecedora diante daqueles que a declaram, os Oficiais. Assim, ao ouvir do Oficial que todos estão perturbando a ordem pública, Nada responde, em tom jocoso: “a guarda civil tem sorte. Tem ideias simples”. Todavia, ele, o homem que nada deseja (contrariando Nietzsche), face ao grande acontecimento (a dominação da peste), passa de “cético” a partícipe. Entre nós, nada difere. Os nossos críticos institucionalizados, frente à possibilidade de se transvestirem em “pele dos dominadores”, refestelam-se com suas insaciáveis sedes de poder. O silêncio tem seu preço, decerto. E, no momento em que alcança determinado escopo, a “não palavra” faz transparecer o grande vazio da “palavra” de outrora. Perguntemos, pois: questionase em favor de quê? Até quando?

Aprendemos com Warat, “o fragmento é uma escritura livre, que salta como um arlequim efervescente de tema em tema, como faz em questão de segundos nosso pensamento” [3]. Este texto, portanto, é um fragmento, um grande lapidarium. Destarte, seguimos sem linearidade alguma. Cansados como estamos dessas enfadonhas “leituras jurídicas”, preferimos a pena que segue por caminhos tortuosos, enfrentando as sinuosidades que surgem e pululam. Há, dentro do direito, um medo letárgico cuja paralisação alcança até mesmo os que não se beneficiam com a estaticidade do pensamento, de postura. Que os refestelados, as “classes obesas” [4] optem pelo conforto, é bastante compreensível! Por outro lado, o que não se faz plausível é a languidez, a prostração que reverencia aqueles que cospem em nossas próprias faces. No diapasão de Alain Badiou, em sua obra “O século” [5], “o que imobiliza o indivíduo, o que faz sua impotência, é o medo. Não tanto o medo da repressão e da dor quanto o medo de já não ser o pouco que se é, de não ter o pouco que se tem”. Ora, qual o temor mor do nosso espécime de jurista? Respondemos: o medo de não ser o que é (em seu lugar de exercício) e o medo de perder o poder que se tem. No entanto, é, dentro dessa estrutura, que os legisladores e, consequentemente, doutrinadores falam em “sujeito”, ou melhor, “sujeito de direito”. De sorte que, tomando a liberdade de ignorar o tratamento jurídico que se dá a tal signo, continuamos com a preleção de Badiou: “para que o indivíduo se torne sujeito, é preciso que supere o medo, o ‘medo inato das cadeias’, certamente, mas mais ainda o medo de perder toda a identidade, de ficar despossuído das rotinas do lugar e do tempo, da vida ‘regrada e revista’”. Ao furtar-se disso, o jurista transforma a ideia de sujeito em alguém que se sujeita a algo, um assujeitado, portanto.

Um parêntese A repetição das palavras, para quem leu Kafka, ou melhor, para quem o leu a partir de Kundera, é sempre proposital, deliberada, posto que, “se repetimos uma palavra, é porque esta é importante, porque queremos fazer ressoar, no espaço de um parágrafo, de uma página, sua sonoridade, assim como seu significado” [6]. É o que o autor chama de “a arte da repetição”. Assim, é que os signos “medo” e “jurista” vão repetidos, sem prejuízo.

2. Kundera, em “Os testamentos traídos”, fala-nos de um “mundo extremamente apoético”, onde o homem não é senão um instrumento de forças extra-humanas: da burocracia, da técnica, da História. Como pertencente a este mundo, o jurista, via de regra, contribui para a sua permanência, porque teme, porque receia o brotar de um mundo extremamente poético. Não é

novidade, o nosso jurista representa o Pedro, da música “Meu amigo Pedro”, de Raul Seixas. É ele quem vai para o seu trabalho todo dia, sempre com o mesmo terno, “sem saber se é bom ou se é ruim”. Eles – o jurista e Pedro, ou melhor, o jurista Pedro -, receiam o “novo”, pois, para a sua ocorrência, é necessário sofrimento, ruptura; e eles, satisfeitíssimos, não querem romper com o estabelecido. O jurista teme a transformação porque ele próprio é incapaz de, na linha de Nietzsche [7], ter clareza a respeito de si mesmo. Conquanto, mais uma vez, Kundera nos ensina: “Em Tolstói, o homem é tanto mais ele mesmo, é tanto mais indivíduo quanto mais tem a força, a fantasia, a inteligência de se transformar”. Ora, mas, para transformar-se, o jurista necessita ler Kafka e confrontar a ideia que ele tem, por exemplo, acerca do tribunal e do processo. E, convenhamos, reconhecer que este é sempre um ato absoluto - isto quer dizer: diz respeito não a um ato isolado, um crime determinado (um roubo, uma violação), mas à personalidade do acusado em seu conjunto -, ao passo em que aquele “é uma força porque julga e que julga porque é força”; é-lhe por demais pesaroso – bem sabemos. Em conclusão, conclamamos o jurista a abandonar o estado de “sonolento acordado” (Camus), de modo a atentar para a assertiva do Juiz, personagem de “Estado de Sítio”: “se o crime tornase lei, ele deixa de ser crime”. É com este entendimento, com esta percepção, que o jurista, sabedor do funcionamento do direito – tal qual se nos apresenta -, poderá permitir, a este, o olhar para aqueles que vivem “sem isto e sem aquilo” (valendo-nos da expressão de Miller). É preciso, senhores, escutar a Mulher do Juiz (letras maiúsculas porque personagens) que, ao ouvir deste – “tenho a lei a meu lado. É dela que tirarei meu repouso” -, disse-lhe: “Pois eu cuspo sobre tua lei. (...) O direito, ouves bem, está do lado dos que sofrem, dos que gemem, dos que esperam. Ele não está, ele não pode estar com aqueles que calculam e acumulam”. Diogo, em “Estado de sítio”, não cedeu, é preciso que não cedam, igualmente: a peste, meus caros, não maculam os que não têm medo. Por último, deixo-lhes com Bergman, em “A fonte da donzela”: “Veja como é a fumaça, trêmula pelo teto como se estivesse com medo. Mas ela só precisa do ar e, lá fora, ela tem todo o espaço para si. Mas ela não sabe disso, por isso fica aqui, trêmula, presa sob o telhado. Acontece o mesmo com o homem. Ele treme como uma folha ao vento pelas coisas que sabe e que não sabe”. [1] Sabadell, Ana Lucia. Manual de sociologia jurídica: introdução a uma leitura do direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. [2] Idem, p. 118. [3] Warat, Luis Alberto. “Literasofia” in Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Coordenadores: Orides

Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. [4] Santos, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: BestBolso, 2011. [5] Badiou, Alain. O século. Tradução: Carlos F. da Silveira. SP: Ideias & Letras, 2007. [6] Kundera, Milan. Os testamentos traídos: ensaios. Tradução: Teresa B. C. da Fonseca Maria Luiza N. Silveira. Rio de Janeiro, 1994. [7] Nietzsche, Friedrich Wilhelm. Ecce Homo: de como a gente se torna o que a gente é. Tradução: Marcelo Backes. RS: L&PM, 2013.

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