UM DEUS NA ENCRUZILHADA ENTRE DOIS POVOS

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL – UFRGS Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH Departamento de Antropologia Antropologia da Religião – HUM 05029

UM DEUS NA ENCRUZILHADA ENTRE DOIS POVOS Um breve ensaio sobre a Assembleia de Deus e a imigração haitiana para Porto Alegre

Pedro Luiz Vianna Osorio – 00263196

Professor Marcelo Tadvald Porto Alegre, janeiro de 2017

1.

“DOBRO A ESQUINA E JÁ SOU OUTRO QUEM CAMINHA” Esta monografia trata da “1ere Eglise Haitienne Assemblee de Dieu”, ou apenas Eglise,

localizada na Avenida Baltazar de Oliveira Garcia, número 1549, no bairro Passo das Pedras de Porto Alegre e de minhas experiências nos cultos que acompanhei. Trata-se de uma filial da Igreja Assembleia de Deus cujo objetivo é pregar para os imigrantes haitianos residentes na cidade e a quaisquer pessoas que desejem se congregar. Metodologicamente falando, assisti e participei de cultos e relato minhas experiências, à luz da interpretação geertziana, em que “situar-nos, um negócio enervante que só é bem-sucedido parcialmente, [...] consiste a pesquisa etnográfica como experiência pessoal” (1989, p. 10), realizando um espécie de “descrição densa” dos acontecimentos testemunhados. O presente trabalho necessita de duas notas introdutórias: a primeira, trata do contexto da Assembleia de Deus brasileira, a partir do sociólogo Paul Freston (1996), e a segunda, foca na imigração haitiana para o Brasil, tendo o artigo de Antônio Tadeu Ribeiro de Oliveira, publicado em 2015, como principal referência. Ambas serão esclarecidas no início do desenvolvimento do mesmo, onde também constará os relatos de campo. A relevância do seguinte texto se dá pelo fato de enquadrar-se no contexto mais amplo tanto da imigração haitiana para o Brasil, em especial para Porto Alegre, quanto no da Assembleia de Deus em nosso país. Sobre o contexto da imigração, pouca produção acadêmica foi encontrada, sendo que nenhuma aborda a capital gaúcha e arredores. A história e o caráter missioneiro da instituição assembleiana ajudam a supor os motivos pelos quais essa congregação foi criada com um objetivo tão específico no lugar geográfico em que se encontra. Estou ciente das debilidades que este trabalho apresenta, em especial no que toca ao objeto de estudo. Por minha falta de conhecimento na língua francesa, oficial no Haiti devido à sua colonização e falada pelos imigrantes junto com o créole, não pude manter contato direto com os fiéis da congregação, não sendo eu capaz de acessar suas experiências pessoais antes e depois da imigração fora da Eglise. Essa questão se mantém em aberto e o objeto de estudo, como qualquer outro, não foi esgotado, por este ser composto de pessoas com vidas em andamento, logo, em contínuo movimento e mudança.

2.

UM DEUS NA ENCRUZILHADA ENTRE DOIS POVOS

2.1.

O Povo de Deus A Assembleia de Deus (AD), instituição protestante de matriz neopentecostal, tem sua

primeira igreja brasileira fundada em 1911 por Gunnar Vingren e Daniel Berg, suecos que “se uniram pelo ideal missionário” e vieram para o Pará sem sustento garantido e impulsionados por uma profecia a eles revelada nos Estados Unidos. Contrariando o eixo Rio-São Paulo, centro socioeconômico brasileiro até os dias atuais, a Igreja fundada pelos suecos pode prosperar junto a pessoas simples, facilitando o crescimento da então “Missão de Fé Apostólica”, futura AD em 1917 (FRESTON, p. 80-81). De inspiração batista americana e nascida de uma cisma com uma batista de Belém, “a AD foi produto do esforço missionário de um grupo pequeno e marginalizado de um país ainda relativamente pobre [a Suécia]” (ibid, p. 79). Esse pequeno grupo evangélico era quase insignificante perto da igreja estatal luterana da Suécia nos fins do século XIX, mas mantinha contatos com os EUA da época. Por volta de 1930, já reconhecida, porém apenas no Norte e Nordeste do Brasil, a AD então rompe os laços com os diversos missionários suecos que já estavam aqui e recebe desses vários templos e igrejas sob seu domínio. Já em expansão depois de quase 20 anos, a AD muda sua sede para o Rio de Janeiro no mesmo ano, mas mantém o caráter anterior, missionário e focado nas comunidades simples, que ajuda a instituição a se expandir por todos os Estados brasileiros nos anos seguintes. Para os relatos desta monografia, é importante, sobre a AD, ter em mente que a mesma “é uma complexa teia de redes compostas de igrejas-mães e igrejas e congregações dependentes” (ibid., p. 86). Assim, a “1ere Eglise Haitienne”, nessa teia, é vinculada à matriz da Rua General Neto, no bairro Moinhos de Vento, também em Porto Alegre. Além disso, “não há um abismo entre clero e laicato” (ibid., p. 87), posição histórica do protestantismo – que abomina a hierarquia interna, em especial da Igreja Católica, um dos motivos que influenciaram no movimento da Reforma – e que se torna visível quando os fiéis assumem o púlpito da congregação em questão. 2.2.

O Povo Imigrado Após o terremoto de 2010, que devastou boa parte do Haiti e deixou mais de 200 mil

mortos, a situação do Haiti tendeu à piora, mesmo em relação à sua situação anterior. Problemas

que vão de instabilidade política à falta d’água potável ainda são correntes no país (OLIVEIRA, p 138). Nessa conjuntura crítica para a sobrevivência do ser humano, muitos dos filhos e filhas desse país decidiram por se mudar para o nosso, em busca de oportunidades para uma vida melhor através da migração. A maioria desses imigrantes, sem números precisos, entra por meios indocumentados no Brasil, vindos pela América Central e pisando aqui primeiro no Acre ou no Amazonas. Vêm com o futuro incerto e confiando nos coyotes1 que auxiliam a travessia. Segundo Oliveira, “o objetivo dos migrantes é alcançar as regiões do país com maior oferta de trabalho” (ibid., p. 143). O caminho é perigoso e as pessoas sujeitas à um sem número de risco, de doenças à deportação. As áreas visadas por esses imigrantes é o Sudeste e o Sul brasileiros, por serem áreas ditas de maiores riquezas e oportunidades. Sendo o Brasil um país sem uma clara legislação quanto à essas pessoas que aqui entram em busca de dias melhores, o poder político pouco tem de bases para agir quanto a isso. O governo do Acre possuía um abrigo em Brasileia, na fronteira com a Bolívia, mas que foi fechado e reaberto em Rio Branco, a capital do Estado. Ao que nos indica o autor, não foi um empreendimento de êxito, então “o governo do Acre, unilateralmente e de forma desrespeitosa e indigna, passou a colocar os imigrantes em ônibus e manda-los para a cidade de São Paulo” (ibid., 146). Outro problema que sofrem os haitianos (e os imigrantes negros em geral) é o racismo. Já intrínseco em nossa sociedade atual, sendo possível ser visualizado das mais inocentes conversas de bar até entrevistas de emprego em multinacionais, esse preconceito se expande para os imigrantes. Por causa de sua pele escura, muito são vistos com maus olhos, em especial os que trabalham com vendas irregulares em espaços públicos, o que é bem documentado pela área central de Porto Alegre. Como nem todos os brasileiros são a senhora de Londrina2, esse é mais um desafio a ser encarado pelos haitianos que aqui chegam. Patrícia Martuscelli, em um artigo de 2014 para a Revista Mundorama, diz que O Brasil não está preparado para abordar os fluxos migratórios mistos de uma maneira que garanta a dignidade da pessoa humana, no entanto, essa é mais

1

Agentes que facilitam a travessia clandestina pois conhecem os caminhos e/ou agentes de fronteira e agem mediante pagamento. Procurados por muitos imigrantes em busca de melhores condições em um país que não aceita sua entrada. A migração mexicana para os EUA é um exemplo clássico. 2 Episódio em que uma senhora pede desculpas à um imigrante senegalês após esse ser chamado de “macaco”

uma chance de o país provar que está realmente comprometido com seu discurso internacional de defesa e respeito dos direitos humanos

Por causa da mesma falta de legislação, fica o poder público descomprometido de incluir os imigrantes na sociedade e no mercado de trabalho. Assim sendo, Aqui cabe destacar o trabalho dos grupos religiosos no acolhimento dessas pessoas: contando com a solidariedade da sociedade e de outros imigrantes foi o principal suporte aos imigrantes, uma vez que o poder público não estava preparado para tratar a situação (OLIVEIRA, p. 146)

O autor não expande esse ponto em específico para além desta afirmação, nem foram encontradas produções acadêmicas sobre o assunto que correspondessem ao interesse deste trabalho. Assim, é a proposta observar aqui o quanto possível a encruzilhada onde se encontram a Assembleia de Deus e os imigrantes do Haiti através da congregação do bairro Passos das Pedras em Porto Alegre. 2.3.

A Encruzilhada A igreja estudada para a realização deste trabalho está localizada no bairro Passo das

Pedras, na cidade de Porto Alegre (RS), um bairro de classe média-baixa/baixa. É de conhecimento dos habitantes da cidade e desse bairro em especial que lá se encontram muitos dos imigrantes que para cá se dirigem. Em janeiro de 2016, a cidade firmou acordo com os governos federal e estadual para implantação de um Centro de Referência e Acolhida aos Imigrantes (CRAI) no Vida Centro Humanístico, no mesmo bairro. Informações mais atualizadas sobre o mesmo não foram encontradas. A Assembleia de Deus, como vimos anteriormente, possui um caráter de busca por novos fiéis em classes mais populares, sendo que congregações de bairro são muito comuns Brasil afora. Tendo isso em vista, mais a informação que nos foi trazida por Oliveira (2014) sobre o acolhimento religioso dos imigrantes, é possível entender a Eglise nesse contexto: tanto quanto uma busca por novos fiéis, a mesma integra-os sob a mesma fé, formando um rebanho novo na cidade, unido pela origem comum de suas ovelhas. A Eglise foi inaugura em 09 de outubro de 2016, sendo uma das mais recentes da cidade. Ela conta com poucos “funcionários”, sendo três evangelistas brasileiros e um pastor haitiano, e encontra-se subordinada à igreja matriz da AD portoalegrense.

Externamente, é um edifício humilde, com a parede externa cinza com as palavras “Assemblee de Dieu Haitienne” escrito acima do portão de ferro, mas logo foi colocada uma placa com os dizeres da introdução deste trabalho em vermelho. Na área externa ainda há um pequeno pátio de piso frio. De frente para a rua há uma grade encadeada, assim como o portão de ferro que dá entrada para a congregação. Encontra-se bem em frente à uma parada de ônibus, sendo de fácil acesso na avenida em que se encontra. Na parte interna do prédio, o padrão conhecido de uma AD: cadeiras enfileiradas e um altar, onde fica o púlpito. À direita do altar há uma área com um quadro branco e instrumentos musicais – uma guitarra, um contrabaixo, um teclado e um amplificador. Atrás da parede do quadro há uma sala que não acessei, mas suponho ser uma área de serviço ou um banheiro, visto que a sala era visitada pelos fiéis durante o culto, onde passavam algum tempo antes de voltar ou traziam baldes, como veremos adiante. Mais cadeiras estão empilhadas à esquerda da entrada. À direita está um bebedouro e algumas caixas empilhadas. Entre as fileiras de cadeiras, no lugar de um tapete, o chão está pintado de uma cor diferente, um vermelho desbotado. O altar fica elevado, armado com um púlpito e uma caixa de som. À direita do púlpito, que foi trocado entre as duas primeiras visitas, estão livros – Bíblias, Harpas Cristãs e hinos – em cima de cadeiras pretas. Todas as cadeiras do recinto são de plástico, a única diferença é que as brancas, destinadas ao público, são menos resistentes do que as pretas que estão no altar. A visão para que fossem produzidos esses relatos é inspirada na noção de “transnacionalismo”, a partir da definição assinalada por Tadvald: “os processos pelos quais os imigrantes forjam e mantêm relações sociais múltiplas e imbricadas que ligam suas sociedades de origem com a atual” (p. 37). É de extrema relevância observar que a parte mais básica do Haiti se encontra na Eglise: as pessoas. Assim, a migração traz não apenas essas pessoas, mas toda a carga de vida delas até o momento. Por sua vez, a AD traz a experiência missioneira e a multiplicidade cultural inerente ao amplo espaço de influência junto ao povo brasileiro, de Norte a Sul do país. Trata-se, então, de trazer essa experiência vasta e reproduzi-la nesse espaço limitado que é a Eglise, fazendo interagir localmente as duas culturas. Como agente facilitador desse confronto, a figura do pastor haitiano Antoine é central. Sobre os cultos e rituais da Eglise e a transferência de sentido entre as partes, clero e laicato, “este jamais se realizará plenamente se não fizer sentido para o outro sujeito, no caso, a audiência” (ibid., p. 278). Assim sendo, é presumível que a escola

bíblica seja conduzida em francês por um haitiano da hierarquia asembleiana: é um espaço com mais fiéis, vindos, acredito, em grande parte por livre e espontânea vontade, é justamente o momento em que é de suma importância que a Palavra de Deus se faça ouvida. Por essa mesma razão, a presença ou ausência do pastor Antoine Alcindor, talvez possa ser explicado o número menor de fiéis em cultos da semana. Sobre o número reduzido de fiéis durante a semana face à escola bíblica, duas hipóteses podem ser formuladas: i) o horário de verão brasileiro propicia mais horas de trabalho para os imigrantes (a exemplo daqueles da volta do Mercado Público e Rodoviária), logo, ir à Eglise pode significar uma perda de dinheiro, que é não é de se jogar fora, visto a situação em que se encontram os haitianos e os motivos de sua migração; e ii) a ausência do pastor Antoine pode não despertar tanto o interesse da maioria dos fiéis, pois, apesar de que os evangelistas da Eglise estejam compromissado, um culto não inteligível pode não ser o mais atrativo. Para a verificação dessas duas hipóteses, são necessárias conversas e trocas com os fiéis, método o qual não estou capacitado a praticar e deixa estas questões em aberto. 2.4.

Relatos da encruzilhada Agora que temos o contexto de encruzilhada que a Eglise representa delineado, tratemos

então de dar vida a esse quadro, inserindo aí as personagens constituintes da vida ritual da mesma. Os próximos relatos são referentes às três visitas realizadas na congregação, cada um com suas particularidades e semelhanças, e têm papel central neste. Sobre estes relatos, “seguramente a minha leitura a respeito deles não cobrirá toda a complexidade ali inerente” (TADVALD, p. 252), pois pessoas diferentes tem visões diferentes do mesmo objeto. Tadvald escreve sobre cultos da Igreja Universal do Reino de Deus na Argentina, com milhares de fiéis. Eu estou em uma pequena igreja onde posso ver todas as pessoas. Vale ressaltar que, mesmo tendo um número menor de indivíduos, a complexidade continua constante e muito do escapa à meus olhos talvez não escape à outros.No caso desses rituais, muitas coisas podem ter passadas desapercebidas pelo meu olhar, por isso estimulo ao leitor e a leitora a refazer os estudos, usando os mesmos relatos ou criando seus próprios, tendo em vista que a literatura sobre a encruzilhada, num sentido mais amplo, é bastante escassa, sendo a imigração e o cruzamento das instituições aqui apresentadas um fenômeno recente. Os relatos seguintes referem-se às três visitas realizadas para este trabalho de campo. Foram realizados em 15 de dezembro de 2016, 07 e 10 de janeiro de 2017. 2.4.1. Primeira visita

Cheguei na congregação e estava fechada. Temi que tivesse sido desativada. Isso era por volta das 19h30. Esperava conversar com algum responsável pela mesma, mas, depois de vários minutos sem aparecer ninguém, perguntei para a senhora que mora ao lado se a Igreja estava em funcionamento. Na rápida conversa, ela me disse que eles estavam sempre ali e às vezes “faziam muito barulho”. Agradeci e voltei para a escadinha de entrada para esperar alguém. Perto das 19h50, um senhor, em torno dos 60 anos, calvo, de bigode, bem vestido e carregando uma Bíblia e uma chave se aproximou da congregação. Esse senhor me cumprimentou e abriu a portinha de metal da grade, e depois o portão da Igreja. Só então tomei a iniciativa de seguir esse senhor que não lembro o nome. Ao entrar, depositei minha mochila num canto à esquerda. Aquele senhor foi até o altar e ficou arrumando algumas coisas. Nisso, entra um casal na igreja. O senhor estava de terno e sua esposa com um saia, mangas compridas e cabelo atado atrás. Ela ficou perto do bebedouro a noite toda até a hora de sair. Os dois homens ficaram nos arredores do altar. Fui até lá. Quem conversou comigo primeiro foi o senhor de bigode. Expliquei para ele o motivo de minha ida até lá. Ele confundiu antropologia com teologia. Ao longo das próximas horas, constatei que o homem devia ser proveniente de classes populares. A confusão que comentei e a simplicidade com que falava me indicaram isso. Não sei porque razão ele perguntou se eu queria tocar os instrumentos. Minha palheta estava guardada na camiseta. Acho que ele percebeu minha tatuagem no pulso esquerdo, um pequeno violão. Não lembro bem como nossa conversa prosseguiu, mas foi ele quem me disse que no horário de verão provavelmente viria menos gente, pois os haitianos estariam trabalhando até mais tarde. Na mesma hora, lembrei das pessoas que ficam nos arredores da Rodoviária e do Mercado Público, fazendo parte da cidade de Porto Alegre de uns anos para cá. Saindo dali, fui ao altar onde se encontrava a outra figura vestida à caráter. Seu nome é Irineu. Perguntei se ele era o pregador da igreja e recebi uma resposta negativa. Perguntei se seria o senhor de bigode, quando vi esse mesmo dizendo que ter de ser um dos dois. Por que isso? A resposta veio logo: o responsável pela igreja, pastor Antoine, não vem sempre. Acontece que ele é haitiano. O que aconteceu no fim é que ambos os senhores pregaram. No lugar de me dar informações sobre a igreja e seus fiéis, seu Irineu ficou falando sobre como é bom aceitar Jesus Cristo e que até São Pedro já o negou. Usou meu nome para tentar

me trazer para perto. Como ele citou e referenciou a Bíblia mais de uma vez, imagino eu que, comparando com o senhor de bigode, seu Irineu deve ser mais culto e estudado nos assuntos da igreja. Seu modo de falar também é diferente e mais rebuscado, pronunciando corretamente as palavras. Isso mais o fato de que ele e sua esposa chegaram de carro, enquanto o outro veio a pé. Além disso, seu Irineu estava de gravata e mais bem arrumado, com um terno aparentemente mais novo. Ambos me disseram que eu era bem-vindo, e assim fui sentar junto à minha mochila esperando o início do ritual. Eis que, perto das 20h20, começam a chegar outras pessoas, haitianos em sua maioria e duas senhoras vestidas tal qual a esposa de seu Irineu. Os dois homens decidem que é hora de dar início ao culto. O mesmo, no geral, não tinha um tema, e as pessoas foram chegando aos poucos. Homens, mulheres, mães com crianças de colo, todos com aquela tez negra característica dos imigrantes em questão, e duas senhoras brasileiras vestidas “à caráter”, com saias jeans, camisas de manga comprida e os cabelos atados no estilo “rabo de cavalo”. O culto começou com seu Irineu falando, enquanto o senhor de bigode balbuciava palavras de fé numa cadeira mais no fundo do altar. O culto está sendo ministrado em português, e minha dúvida é se o rebanho daquele pastor entende o que está sendo pregado. Talvez o pastor Antoine faça sua fala em francês ou em crioulo-haitiano. Não lembro das palavras ditas, mas quando seu Irineu pediu para que fossem recolhidas as doações, o homem na porta, haitiano, prontamente obedeceu. Eu, ao contrário dos outros, não contribuí. Dalí um tempo, seu Irineu chama até o púlpito uma das brasileiras, que vai até lá e começa a entoar hinos em português. Um haitiano sentado duas ou três fileiras na minha frente a acompanha com uma flauta doce. Logo, ela fala coisas do Senhor de desce do altar. Seu Irineu chama agora uma haitiana e logo senta no canto novamente. Por volta dessa hora, chega um homem haitiano e senta ao meu lado. Enquanto a mulher no púlpito cantava, ele cantava ainda mais fervorosamente, e logo foi buscar um livro de hinos para acompanhar. Vendo que eu estava quieto, ele dividiu seu livro comigo, mas eu lhe disse que não falava francês. Nisso ele aponta para mim o hino que estava sendo cantado. Eu não entendia as palavras ali escritas, mas tentei cantar mesmo assim. A criança na minha frente devia ter uns dois anos. No lugar de cantar, ela brincava com uma boneca e com a cadeira. O homem do meu lado brincava com ela uma vez ou outra. Mais

tarde ele fora chamado para cantar alguns hinos. Quando isso aconteceu, o homem da flauta doce levantou para tocar junto. Ele tocava bem, tendo uma familiaridade notável com o instrumento. Quem assume o microfone agora é o senhor de bigode. Aqui ocorre a confusão lá do início. O grande problema de me chamar Pedro é que, quando vou a um lugar cristão, sou associado a São Pedro. O senhor de bigode fez o mesmo. Na nossa conversa antes do culto, ele confundiu “antropologia” com “teologia”. Por causa dessa confusão, ele achou que eu estava querendo me converter. No que ele disse isso e apontou para mim, todo mundo virou. Ele completou a fala dizendo algo do tipo “cumprimentemos o Pedro e que ele seja bem-vindo”. Todo mundo veio apertar minha mão, um por um, e me dar as boas-vindas. Nunca me senti tão bem recebido em lugar nenhum. Lá pelas 21h20 o culto acabou. Expliquei para o senhor de bigode a confusão. Ele disse que estava tudo bem e que a porta estaria aberta sempre que eu precisasse ou quisesse. Me despedi de todos e fui embora. Não cheguei a ver a Igreja sendo fechada. 2.4.2. Segunda visita – Escola Bíblica Cheguei na igreja naquele dia às 8h45. Dois imigrantes entraram no ônibus junto comigo e eu imaginei que deveriam estar indo para a escola dominical, pois estavam muito bem arrumados: camisas sociais, uma rosa e uma azul, calças e sapatos. Acontece que seguiram adiante no ônibus e desci sozinho. A temperatura é de quase 30°C e eu usava bermuda, chinela e camiseta. Fui informado na última vez que a escola bíblica começava às 9h. Me informaram errado, começou às 8h30. Chego lá e encontro a igreja lotada de fiéis. Num espaço para cerca de 60 pessoas, estão presentes pelo menos umas 40, sendo apenas 4 mulheres, uma das quais chegou às 9h30. Sento na primeira cadeira disponível que vejo, perto de onde estava na última vez. A escola está sendo ministrada em francês por um homem negro, próximo dos 40 anos. Vi pela primeira vez o Pastor Antoine. Ele usava terno com um suéter listrado por baixo, e eu apenas imagino o calor que ele devia estar sentindo. Ainda sobre a vestimenta dos fiéis, essa foi uma coisa que marcou mais do que o número enorme dos que compareceram. Perto de 30°C num domingo de manhã e todas aquelas pessoas estão trajadas como meus colegas do ônibus: calça, camisa e sapatos. Alguns usam blazers e as mulheres estão de saia. Todos eles carregam um maço de folhas e uma bíblia na mão, incluindo

o pastor Antoine. Percebi que o mesmo recitava o que estava nas folhas e todos ouviam atentamente. Mesmo sem ter conhecimentos de francês, percebi que a aula era sobre batismo. Isso porque o pastor Antoine às vezes falava em português carregado de sotaque. Atrás de mim, um brasileiro batizado na católica. Ele questionou o pastor Antoine sobre o por que ele ter sido batizado ainda criança e só com água só na testa. Apesar do pastor Antoine falar um pouco de português, quem conversou com o homem foi outro brasileiro, que sentava na frente do bebedouro. Seu nome é Ivan. Aqui eu aprendi uma coisa nova: para os evangélicos, o batismo deve ser feito por livre e espontânea vontade tendo todo o corpo submergido em água, conforme Matheus 3:13-17. Obtendo sua resposta, o homem, que não estava vestido à caráter, levantou e foi embora. Me causou certo estranhamento, mas não percebi o mesmo ao meu redor. Chegam mais três fiéis e sentam na mesma fila que eu, mas do outro lado do corredor. Sou a única pessoa branca, além do Ivan e do senhor de bigode, cujo nome agora sei que é Ozil. No que os homens chegam, o pastor Antoine lhes distribui a matéria da aula. Ele me olha e diz que está em francês. “Não tem problema”, digo eu pegando uma folha. Meu chute estava certo: o título da aula é “Le Baptême d’Eau” (“O batismo da água”, tradução livre). Daqui em diante, fico sentado. A aula prossegue de modo a fazer inveja na universidade. Os fiéis/alunos perguntam e interagem com o pregador/professor sem medo e, alguns, como o homem com uma cena do Mickey em sua camisa, até faziam piadas. Não entendi uma palavra do que ele disse, mas muitos se puseram a rir depois de sua fala. A discussão gira em torno de “se é necessário que o batismo seja feito em um rio ou se pode ser em qualquer lugar em que o corpo fique totalmente submerso” – o pastor Antoine traduziu a discussão. A segunda hipótese é a mais aceita. Perto das 9h30 a última mulher chega e eu levanto, caso ela deseje sentar ali. No que fico um tempo em pé, uma mão decide por me convocar para sentar ao seu lado. É o seu Ozil, o senhor de bigode, que me chama. Eu, que não o tinha visto até então, sento ao seu lado. Seu Ivan me deu uma bíblia para acompanhar o culto logo depois de o pastor Antoine tem me dado os papéis. Percebo que a Bíblia que comigo conservo possui alguns papeis dentro. É uma folha com os horários das igrejas da ADPoA e uma caderneta de tradução de crioulo-haitiano para português, chamada “Ann Pale Potigé”. Folheando essa caderneta, vejo que é do Governo Dilma, tal qual aqueles guias de viagem com expressões traduzidas. Essa é uma mistura de francês, português e crioulo-haitiano.

Pelas 9h44, o pastor Antoine encerra sua aula pela metade e passa a distribuir uns papeizinhos azuis. Pelo que eu entendi do que seu Ozil me falou, são para aqueles que desejam ser batizados. Ás 10h começa o culto, tal qual descrevi na visita anterior, mas dessa vez, até onde vi, só o pastor Antoine e o seu Ivan presidiram, cada qual em seu idioma. Saí da igreja perto das 10h30, não sem antes descobrir que seu Ivan tem uma ONG chamada algo como “Projeto Família Haiti-Brasil” e ao que tudo indica, ele dá aulas/cultos sobre o Brasil para os haitianos imigrantes. O próximo culto pretendo que seja este, mas tal desejo não se realizou e nem achei informações sobre essa ONG. 2.4.3. Terceira visita – Crossroads Choveu. Era perto das 10h10 quando saí de casa na chuva indo em direção à congregação. Chego por volta das 19h50. Ouço um som estranho e desarmônico vindo lá de dentro, fora de ritmo e sem precisão. Perto do quadro branco, há um homem brasileiro presumivelmente nos seus 50 anos tocando violão. Vou entrando, para fugir da chuva. Seu Ozil para seus afazeres para me cumprimentar. Ele estava separando doações que chegaram para os imigrantes. As sacolas de roupa enchem toda a parede traseira à esquerda do portão de entrada. Mais tarde fiquei sabendo que vieram da cidade de Guaíba diretamente para eles. O som desafinado do violão continuava a encher o local. Me aproximei, secretamente planejando afiná-lo, pois o som já começava a me incomodar um pouco. O músico era um homem humilde e sorridente, e se podia ver a inocência em seus olhos enquanto tocava aqueles acordes indecifráveis, como se estivesse diante de uma grande plateia. Seu Irineu, que estava no altar, se aproximou e perguntou se eu tocava teclado, ao que eu fiz o que sempre faço quanto àqueles que perguntam: neguei, mas pedi o violão ao homem, que prontamente me entregou. Era um violão novo, mas totalmente fora de afinação. Enquanto eu tentava deixa-lo audível, vi que os instrumentos haviam desaparecido de seus lugares, só restando o teclado. 20h. Chega uma irmã haitiana. O culto começa com apenas dois fiéis e eu. Aos poucos chegam mais, mas esse encontro não teve mais do que dez pessoas. Quem pregou no culto hoje foi seu Ozil, depois de terminar de separar as roupas. Lá fora ainda chove, cada vez mais forte. O culto segue o das últimas vezes: pregações, hinos, haitianos e brasileiros dividindo o altar com os pregadores. Nada de novo, se não fosse a música que hoje preenche o edifício. O

senhor do violão, Dirceu, faz questão de acompanhar os cantos. Era o mesmo som do início do relato, acompanhado pela voz gasta pela idade de seu Ozil. No próximo canto, seu Irineu assume os teclados. Pensei que ele tinha domínio do instrumento, mas estava errado. Cada um dos três homens tocava algo diferente, sendo que ouvidos não acostumados com música de pessoas inexperientes poderiam se sentir totalmente incomodados. De início foi minha reação, mas lembrando que eu também já fui um iniciante na música, relaxei e tentei entender a situação o melhor possível. Os fiéis acompanhavam em francês, louvando com fervor e adicionando mais vozes ao conjunto desafinado. Seu Ozil está ciente das debilidades técnicas do conjunto, “mas o que importa é a sinceridade” com que estão cantando. Essa sinceridade é possível de ser vista em cada um que lá se encontra, naquela mistura de pessoas cujas origens são bastante distintas. Alguns minutos mais tarde, durante a pregação a chuva aumenta e invade a igreja. Não é pela porta, mas pelo teto: uma goteira se forma à direita do altar. Uma irmã imigrante, muito bem vestida para a ocasião, levanta-se e vai em busca de um balde, o qual coloca ali, no meio da congregação, embaixo das gotas. Esse balde nos acompanha até o final, quando é recolhido e guardado. Até então, eu não havia prestado atenção no teto da igreja, e foi essa cena que me fez olhar para cima. O PVC do forro não era novo e estava sinuoso. Temi que mais água entrasse pelo teto e molhasse o chão, mas isso não aconteceu. O culto prosseguiu. Pregações e músicas em português e francês, sempre acompanhadas por Dirceu e seu violão. O copo do bebedouro foi quebrado, fazendo pouco alarde e não impedindo que o Senhor fosse louvado. Goteira marcando o compasso da música. Chuva fazendo a ambientação e pintando o cenário de fundo. A microfonia é constante na música. O culto aproxima-se do fim. Seu Ozil dá boas-vindas a Dirceu, novo ali, e novamente anuncia que eu pretendo me converter. Ele avisa que as roupas são doações e que todos deveriam pegar alguma e levar para casa. Aquele ritual de boas-vindas se repete e todas se cumprimentam novamente, tal qual da primeira vez que fui lá. Agora já sou “de casa”, como seu Ozil comenta. Seu Irineu termina o culto fazendo uma oração e todos, exceto eu, se aproximam para recebe-la. Logo depois, vejo-o guardando o violão, que, ao que parece, pertence à congregação, não a Dirceu. A noite termina com os fiéis imigrantes olhando e escolhendo as roupas doadas. Me aproximo de seu Ozil para advertir-lhe de novo que não pretendo me converter. Seu engajamento com aquelas sacolas de roupa, abrindo-as para pessoas que nem falam o mesmo

idioma e espalhando as roupas sobre aquelas cadeiras de plástico para que essas pessoas, sempre presentes, possam pegar alguma, me faz apenas me despedir e apertar a mão do pregador. Saio da igreja com sentimentos confusos, uma mistura de tristeza, empatia, alegria e outras coisas. Minha pergunta nesse momento é porque essas pessoas não tem um lugar mais apropriado para louvar o Senhor, enquanto outros templos mais bem localizados são também mais bem cuidados. Talvez aquela goteira seja Suas lágrimas pelo rebanho, tão humilde e simples, mas com muita sinceridade nos olhos, corações e fé.

3.

NO FIM DA ESTRADA Nos três relatos apresentados, foi possível ter uma visão geral das atividades básicas da

Eglise, não se diferenciando muito de outras AD, a não ser em seu público mais específico. Talvez seja o objetivo final o aumento do rebanho, mas mesmo assim acredito que o trabalho realizado junto aos imigrantes seja de suma importância e de profunda sinceridade. Foi possível notar uma certa unidade entre os participantes da congregação, é interessante que lá dentro eles se conheçam e se contatem, mesmo que pelos mais curtos momentos. Na Eglise, é possível observar a mistura de dois mundos diferentes. Corroborando com a afirmação anteriormente citada de Oliveira (2014), o apoio, mesmo que modesto, da AD em prol dos imigrantes haitianos é notável. As roupas doadas certamente serão bem aproveitadas, visto o grande interesse do rebanho nas mesmas. Vindas de Guaíba, fica evidente que os imigrantes não são uma questão totalmente localizada, que outras partes têm noção da existência dessas pessoas e trabalham para que fique claro que elas não são invisíveis. A expansão dessa pesquisa pode resultar um dos vários meios de se estudar a imigração haitiana para o Brasil e as motivações da AD. É um terreno fértil, visto que o fenômeno migratório é recente e a Eglise ainda mais. É importante a contínua busca de informações sobre essa população que há alguns anos colore a cidade de Porto Alegre e o Brasil.

4.

BIBLIOGRAFIA FRESTON, Paul. Breve História do Pentecostalismo Brasileiro. In.: ANTONIAZZI,

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