Um diálogo sobre a transferência

June 13, 2017 | Autor: Wilson Franco | Categoria: Clinical Psychology, Psychoanalysis, Psychoanalytic Theory, Psicología clínica, Psicanálise
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Um diálogo sobre a transferência

Wilson Franco e Paulo Beer 1. Intro: Queremos que haja um diálogo. Diálogos, no entanto, são coisa difícil em psicanálise, posto que trombamos sempre, onde o esperamos e onde não o esperamos, com dissimetrias e verticalizações, inscritas e escapando ao que nomeamos como transferência. De alguma forma parece que dialogar sobre transferência é um ofício impossível: falando-se em transferência invoca-se o jogo de poder que funda a escuta psicanalítica e põe a coisa, a peste psicanalítica para funcionar – não que aí nada se passe, passa-se muito, mas não é de diálogo que se trata. Será possível um diálogo sobre a transferência? Começamos, como de hábito, com Freud. Em 1912 Freud afirma, em seu texto sobre a dinâmica da transferência, que a transferência opera como um clichê. Obviamente não se refere aqui ao uso adjetivo de clichê, referente a ideias óbvias e gastas: refere-se à origem do termo, que remonta à imprensa pré-digital, quando os conteúdos de cada página de jornal ou livro eram montadas em uma pesada placa de metal, letra a letra, montando um estereótipo que era então batido sobre a folha de papel para imprimir (no sentido literal, original) o conteúdo; a imprensa baseada no clichê e no estereótipo é a herdeira da tipografia de Gutenberg. A metáfora freudiana é clara e precisa: a transferência é a repetição estereotipada de padrões criados anteriormente. Temos, no entanto, uma consideração importante a manter em vista: o trabalho da superfície que recebe. Isso porque no caso da história da imprensa pressupõe-se que os estereótipos serão sempre batidos sobre papel em branco e liso, coisa que não pode em absoluto ser tomada como óbvia em relação ao clichê em operação na clínica psicanalítica (a transferência). Sabemos que Freud tinha em mente, à época, argumentos em defesa da suposta “lisura” do analista como superfície recipiente do clichê – para ele o psicanalista deveria operar como um cirurgião no encontro clínico, mantendo sua atenção flutuante e não depositando no encontro clínico nada senão aquilo que se afigura pertinente à condução do caso. Essa imagem, do analista-cirurgião como figura neutra e isenta, diz respeito evidentemente aos interesses de Freud de manter a psicanálise no âmbito das ciências da

natureza e distante de qualquer associação a atividades humanísticas, filosóficas, especulativas, associações que atrapalhariam o desenvolvimento da psicanálise enquanto movimento (no entendimento dele). Não precisamos compartilhar, hoje, das pretensões ou preocupações estratégicas de Freud quanto ao movimento psicanalítico e, livres dessas marcas, podemos dizer sem grande preocupação ou alarde que o psicanalista não é como a folha em branco; muito pelo contrário, por sinal: faz bastante sentido imaginar que a efetividade clinica da psicanálise diz respeito justamente ao fato de o psicanalista não operar como folha em branco, impor sobre o clichê algumas deformações e desvios, de forma que o conteúdo repetido resulte estranho, inesperado, surpreendente. Derrida afirma, em “Mal de arquivo”, que as metáforas usadas por Freud para explicar o psiquismo agem sobre o psiquismo ele mesmo, ao mesmo tempo em que as máquinas do tempo de Freud definiam a teorização a respeito delas, em um processo que parece alimentar a si mesmo; “Que Freud não tenha conhecido o computador muda alguma coisa? E onde situar o momento da repressão ou do recalcamento nestes novos modelos de registro e de impressão”, questiona-se Derrida (2001, p.40), lembrando da imagem veiculada por Freud através do bloco mágico. Vemos, no entanto, que as tecnologias mudaram de lá para cá – mudaram, mesmo, em relação às máquinas que Derrida usava; que tipo de implicação isso traz para a teorização da clínica e dos processos que nela ocorrem? Esse texto é uma conversa, uma proposta de construção sobre essa questão a partir de uma metáfora e do uso da metáfora como espaço de construção. De fato, nesse sentido podemos entender algumas indicações de Freud de que a transferência não poderia ser reduzida à pura repetição. Haveria uma possibilidade, à primeira vista até um pouco contraditória, de uma repetição “sublimatória”, que permitiria justamente que aquilo que se repete fosse modificado. Ora, se se modifica, deixa de ser uma simples repetição, outra máquina se faz necessária.

2. O clichê-monstro Trabalhemos, posto o problema, em torno de uma metáfora; não é uma tecnologia ou gadget atual, como Derrida talvez tivesse preferido – é, ao invés disso, uma monstruosidade: um clichê-monstro. Funciona como uma espécie de máquina; nessa máquina encontram-se dois clichês, vindos de direções opostas, incidindo sobre uma massa intermediária. Os dois

clichês partiriam do analista e do paciente; a massa intermediária seria o encontro entre essas duas pessoas em uma ocasião cronológica e imaginariamente determinada; de ambos os lados atuariam disposições estereotípicas, deformando o encontro na ocasião mesma do encontro. O encontro psicanalítico, na verdade, seria justamente a deformação da massa intermediária, e teria como horizonte de partida justamente a perspectiva de uma “superação” (destruição) da massa intermediária, que possibilitaria o encontro imediato dos estereótipos; nesse processo de superação da massa intermediária os estereótipos agiriam uns sobre os outros, seus impactos violentos amortecidos (em parte) pela massa intermediária, que eventualmente cederia. Parece-me uma metáfora limitada, mas que traz a vantagem de provocar a partir de Freud e de dispor algumas das problemáticas cruciais ligadas aos fundamentos da clínica psicanalítica.

3. Considerações sobre a transferência Will: Vamos, então, tentar por essa máquina para trabalhar. Antes de mais nada, acho preciso esclarecer que a dimensão pessoal, consciente ou intencional de paciente e analista fazem parte da massa intermediária. Isso aponta, no meu entendimento, a certa dimensão de violência formal que caracteriza o encontro psicanalítico, dimensão que se caracteriza pela definição que Luís Cláudio Figueiredo dá da transferência: tratar-se-ia de “um enclave na vida civilizada”. Do lado de lá da vida civilizada, no meu entendimento, estariam o inconsciente em todos seus determinantes, incluindo aí o que de “vida selvagem” existe nele, mas no próprio gesto de instalação do enclave opera algo – algo de violento, algo de libertador, algo de terapêutico (não excludentes, não superponíveis). Quando, na metáfora que propus, os dois clichês batem(-se) “amassando” a massa intermediária, trata-se aí de um vínculo terapêutico estranho ao pacto imaginário e à alienação de si na “vida civilizada”: no encontro analítico seremos receptivos ao selvagem em nós (Sexta-feira não será batizado, não será chamado de Sexta-feira, não trabalhará para Crusoé e terá sua história incrustrada na carne da ilha). Outro aspecto importante de ressaltar é que a dimensão estereotípica que parte do analista implica em certo uso da teoria imbricado em uma disposição transferencial que parte do analista – as duas coisas se misturam, no meu entendimento necessariamente (Munhoz, 2015). Assim temos que há uma transferência vinda do analista, e que é uma disposição a priori, independente das disposições relacionais e marcadas pelo vínculo paciente-analista. É claro que um analista minimamente competente saberá articular essa disposição a priori com uma escuta qualificada e uma abertura ao impacto transferencial que vem do lado de lá, mas

isso não nega o fato dessa disposição transferencial a priori. Além do mais há ocasiões, pela minha experiência, em que essa disposição inicial por parte do analista se deve a determinantes transferenciais cruzados e oriundos da vida anímica do analista – parece-me, já me antecipo, que seria prepotência desqualificar essas disposições como sendo devidas a um analista mal qualificado; estou pensando aqui, por exemplo, em pacientes que são recebidos sob o impacto, do lado do analista, de quem os indicou, talvez por uma certa expectativa em função de admirar o encaminhador, talvez em função de antecipar que pacientes indicados por tal ou qual pessoa pagarão pouco, talvez por imaginar que o trabalho em relação a pacientes encaminhados por aquela pessoa serão “inspecionados” depois...

Paulo: Além disso, existe um ponto de frequente desencontro, que diz respeito justamente às expectativas e objetivos do processo de análise em si. Um analista não se dispõe a receber um paciente por um acaso, há colocado, nessa disponibilidade, uma série de a priori que dizem respeito a questões extremamente íntimas, dado que se trata de uma práxis de valor privilegiado em sua vida. Por outro lado, não é raro se deparar com afirmações de analistas que indicam que o paciente chega para uma análise com uma demanda que encobre o real motivo de sua ida, e que ele desconhece, de fato, a serventia daquele tratamento; mas, ainda assim, vai. Entretanto, é interessante que, para que uma afirmação dessas possa ser construída, é necessário supor que se sabe algo a mais, o analista sabe algo que o analisante não sabe sobre ele mesmo, suposição de saber que se engancha justamente na experiência e na transmissão, ou seja, categorias largamente habitadas pela noção de transferência. Temos aí uma duplicidade: o caráter transferencial aponta tanto para construções anteriores realizadas a partir de outros atendimentos, como também para a centralidade da psicanálise como método de tratamento vivido, pelo analista, enquanto analisante. Nesse sentido, vemos que a história do analista em relação ao dispositivo ocupa um importante lugar na definição das condições de possibilidade dessa relação, em outras palavras, a transferência se dá, por um lado, a partir da transferência do analista com a psicanálise.

Will: Sem dúvida, mas aí eu vejo operando a relação do analista com seu analista, a imaginarização que produz a partir de suas leituras psicanalíticas, sua relação fantasmática com a psicanálise e esse tipo de coisa, não é? Se é assim, o que temos de mais provocativo na metáfora é a ideia que a “formação” do analista em seu sentido mais técnico é, em tudo que importa, amplamente influenciada, “formada” mesmo, por disposições alheias à consciência e ao controle (disposições inconscientes). Não acho em absoluto que esses conteúdos (o clichê

que parte do analista) sejam inacessíveis ou imutáveis: acho que eles mudam conforme o paciente e conforme as circunstâncias e acho que a “formação” oferecida em instituições e mesmo a partir do contato do candidato a analista com elementos formativos em psicanálise de alguma forma impactam lá também – mas o contrário é mais frequente e mais decisivo. Ou seja: acho que a atuação do psicanalista é amplamente decidida por elementos não técnicos e pouco acessíveis à “formação” em seu sentido mais usual. Mas – sendo um pouco menos relativista e esotérico – acho que experiências como uma análise pessoal, uma supervisão e mesmo estudo impactam, de alguma forma, sobre a atividade clínica do analista – a grande questão nesse ponto é que em psicanálise essa “preparação” está à mercê de elementos muito pouco controláveis e muito pouco estáveis, de forma geral.

Paulo: Pouco controláveis e pouco estáveis, mas ainda assim suficientes para que possamos, sob a palavra “psicanálise”, estabelecer algum tipo de identificação. É interessante como algo permanece, não idêntico ao que sempre foi, mas que, de alguma maneira, existe uma espécie de clichê cultural da psicanálise, que permite sua instalação enquanto uma práxis socialmente legítima. Temos aí, curiosamente, também o clichê em seu uso tradicional, pois me parece que essa legitimidade é largamente amparada no saber que se pode produzir e transmitir, assim como na possibilidade de circulação de experiências. Encontramos, me parece, uma dimensão necessária, como disse antes: os pacientes vêm, e continuam a vir; sem isso não há psicanálise. Esse movimento depende da capacidade de transmissão de um saber, que em algum lugar “engancha” nas pessoas. De parte do paciente existe claramente uma suposição de saber. Afinal, de que outro modo topar uma proposição tão peculiar como “falar livremente”? É claro, tal suposição só funciona amparada no sofrimento, afeto que funciona como engrenagem, motor para que o clichê se desenhe, se imprima. Mas, ao se imprimir, especialmente, ao se imprimir em um recipiente que sofre também pressão do lado oposto (retomando a ideia de massa intermediária), acaba ele mesmo sofrendo essa pressão, e se modificando. Desse modo, podemos pensar a dimensão da transferência que escapa da repetição: existe nela, e isso é a raiz do tratamento psicanalítico, a possibilidade de que o clichê se modifique, que a repetição se flexibilize, e que o sujeito possa viver de outro modo. No entanto, não devemos considerar essas mudanças somente do lado do paciente. Se retomarmos o que foi até agora construído, vemos que a relação transferencial vai mudando, ao longo de um processo, a relação do analista com a própria psicanálise, como se a cada pressão resultante do encontro dos clichês com a massa intermediária os dois clichês se modificassem um pouco, mesmo que muito pouco. O próximo encontro já é de clichês

modificados, e não somente pelos encontros entre os dois em questão, mas por todos os encontros que de algum modo influem nos componentes dos clichês. No limite, a relação do analisante com sua análise está em constante mutação, assim como a do analista com a psicanálise.

Will: Com certeza. É como se fossem placas tectônicas incidindo uma sobre a outra, um trabalho de eras (embora a temporalidade em psicanálise não seja cronologicamente previsível, nem no sentido de que é rápido nem de que é lento; ainda assim parece-me importante salientar o “muito pouco” de sua afirmação para sinalizar a não-diretividade do processo, como se se pudesse atribuir a isso certa co-determinação). Por sinal, a fantasia que aponta para a superação/destruição da massa intermediária na metáfora do clichê-monstro dá notícia de um viés regressivo, potencialmente simbiótico, como destino anunciado no vínculo (não me parece, no entanto, que essa imagem imponha ao clínico que considere a clínica como fundamentada na regressão, já que a imagem desponta no horizonte mas não se impõe como perspectiva de trabalho intencional por parte do analista; opera mais como uma certa dimensão de empuxo, um ímpeto selvagem fundamentando o vínculo). Fiquei interessado na sua última frase: a relação do analisante com a análise e do analista com a psicanálise estão em constante mutação; interessou-me até sua instalação topográfica desse movimento mutante “no limite” do processo (da coisa). Fiquei interessado porque remeteu-me a uma série de coisas: primeiro à definição da psicanálise como “peste”, óbvio; segundo à colocação de Pontalis de que a psicanálise opera sempre (no limite, na verdade) a partir das bordas, como se fosse animada por um espírito nômade (ou cigano); em terceiro lugar remeteu-me à ideia de que a massa intermediária da metáfora do clichêmonstro pudesse ser uma massa mesmo, massa de macarrão, massa de pizza – e isso me fez pensar que essa mutação constante seria própria ao processo, mas seria determinada por forças centrípetas que não são tão mutáveis (mutantes) assim. A menos que – e a hipótese me agrada – a massa intermediária impusesse aos clichês um potencial de deslocamento, uma movimentação tectônica vinda do centro (ou seria da borda?); diria, derridianamente, que a problemática desmonta a linguagem usual, torna-a cacofônica – pense, por exemplo, na seguinte explicação: “no fundo, no limite; mas na verdade, no centro, de onde sai a borda, que desloca o fundo, que é a base”. Acho preciso, mas é monstruoso do ponto de vista imaginário. E nisso tudo o que me fascina – o que me fascina na metáfora mesma, inclusive – é que o estranho, que no meu entendimento é a alma do negócio (da coisa, do troço) psicanalítico passa a ser absolutamente decisivo e opera em plena potência; e a partir daí parece-me possível pensar a psicanálise no sentido mais estrito, que seria pensar a coisa ou o troço

psicanalítico, e não pensar metapsicologia, ou pensar políticas de formação, ou pensar a semiologia e a terapêutica psicanalítica. A esse respeito, por sinal, acho que talvez seja oportuno suplementar uma breve vinheta clínica. Posso?

Paulo: claro, seria ótimo! Mas deixe-me fazer somente um pequeno comentário. Essa questão do estranho é, sem dúvida, extremamente interessante (e sedutora). Concordo com você nisso, é aí que se coloca o troço psicanalítico, embora nós tentemos, a todo o momento, fazer borda a isso, tentar conseguir alguma definição, seja por meio da metapsicologia, da institucionalização, ou seja lá o que for. Essas atividades têm, a meu ver, uma dupla função: a de transmissão (que tratei mais cedo, como condição de existência), e a de diminuição da angústia: afinal, esse troço é cativante, mas causa certa vertigem. No entanto, há um traço bastante peculiar no modo como Freud escrevia, e que tentamos manter em nossos textos, que é o lugar do estranho, mesmo com todas as tentativas de circunscrição que empenhamos. Acredito que, em grande parte, esse lugar resta preservado pelo grande teor narrativo dos textos psicanalíticos (em especial, os casos clínicos). Essa narratividade permite inúmeros retornos ao texto: reinterpretações, acentuação de partes antes negligenciadas, novas articulações, e mesmo descobertas! Vide, por exemplo, o modo como Lacan retoma o caso Dora em “Intervenção sobre a transferência”, extraindo consequências não trabalhadas por Freud meio século depois. Isso, a meu ver, é potencializado por essa peculiaridade da transmissão da psicanálise, a qual não deixa de ser incômoda, por não se adequar a certos ideais de construção epistêmica, como Freud já se queixava no caso Elisabeth. Bem, vamos ao caso!

4. Caso 1 Will: É frequente que, quando vou à sala de espera chamar um paciente novo, tenha já em mente uma espécie de “expectativa”, uma organização de fantasias a respeito de porte, postura e características que refletem, reverberam e amplificam os elementos da comunicação inicial (por telefone, e-mail, como for); no caso de P, no entanto, não tinha expectativa nenhuma – como se estivesse distraído, quase ausente, fui chamá-la e, ao menos que tenha notícia, não tinha expectativa nenhuma. Isso, curiosamente, não impediu que o primeiro contato fosse impactante: o ar da sala ficou mais denso, taciturno mesmo; ela falava pouco, pensava muito, e em seu relato não trazia nenhum elemento a respeito de sua vida “imaginária” – nada sobre a profissão, a

família, os afazeres cotidianos, absolutamente nada. Ao cabo de algum tempo de estranhamento uma imagem me organizou minimamente: lembrei-me da famosa entrevista concedida por Clarice Lispector a Júlio Lerner e veiculada pela TV Cultura e essa imagem de alguma forma me ofereceu guarida. Foi uma entrevista densa, tensa, difícil; a cada colocação dela, a cada silêncio, a cada momento impunham-se ideias, pensamentos, imagens, colocações, e eu tentava em meio a tudo aquilo manter-me atento, disponível, escutando, atendendo. Travou-se em mim uma verdadeira batalha conforme eu tentava evitar uma postura excessivamente intelectualista, sobrevivendo todavia à gravidade que as palavras assumiam, reconhecendo ao fundo daquele ar pesado um sofrimento atroz, sofrimento que no entanto não clamava e não toleraria apoio ou condescendência. Isso não se manteve assim: com o desenrolar das sessões foram-se insinuando outros vieses determinando nosso encontro, mudando a atmosfera, a pressão, a linguagem mesma circulando entre nós – como, por sinal, você sinalizou na sua intervenção a respeito do suposto saber. O que me fez pensar nessa vinheta foi a clareza com que me parece desenhar-se aí a interveniência dos elementos decisivos do “clichê-monstro”: meu clichê, o clichê dela, a massa entre nós e sua responsividade à pressão desenhada entre nós.

Paulo: Chamou-me a atenção o “peso” da primeira entrevista, e o modo como parece que as coisas começaram a caminhar com menos atrito no desenrolar das sessões. Será que isso não diz sobre a constituição da massa intermediária? Reconheço esse andar menos ágil em diversos “primeiros encontros” com pacientes, principalmente com aqueles em relação aos quais, como no caso que você relatou, pouco havia construído antes do encontro. Lembra-me aquela expressão futebolística de dois times que se “estudam” ao início de uma partida, uma espécie de desconforto que se supera com um pouco de vivência, com o reconhecimento de certas características do outro. Isso não significa, contudo, que realmente estamos em contato direto com aquilo que o outro realmente é, de modo que a imagem de uma massa intermediária me parece bastante oportuna. Talvez isso que eu antes disse como reconhecimento de características do outro seja justamente o estabelecimento das possibilidades de suposição sobre o outro, a partir do qual não só podemos criar essa pessoa com quem acreditamos nos relacionar, mas também possibilitamos a impressão de nosso clichê. Desse modo, existe uma atualização das suposições que ocorre no confronto com essa massa intermediária, e que é necessária para que o processo comece. Não me é raro escutar, em primeiras entrevistas, algo como “ah, você é daqueles que falam.”. Sempre me soa um tanto estranho, por um lado pelo fato de que já ouvi isso após falar

não mais do que duas ou três palavras, mas também por desconhecer completamente a referência à qual estou sendo comparado. Não conseguiria descrever os inúmeros efeitos que essa fala me causa, que passam por desde a curiosidade sobre experiências passadas do paciente com a psicanálise (o que rapidamente eu transformo em uma pergunta a ser feita assim que possível), por uma espécie de reflexão sobre as minhas experiências com psicanálise, e, o que nos importa mais claramente aqui, pelo questionamento da razão que leva o paciente a me fazer essa afirmação naquele momento. Seria uma demanda? Seria já um traço transferencial? Ele diz isso com alívio? Enfim, qualquer que seja a resposta que eu possa construir no momento, é inegável que essa fala estabelece um “meio de campo”, um espaço onde ambos podem depositar suas suposições sobre o que irá acontecer ali.

Will: acho que sim – mas esse meio de campo é como o daqueles times que tocam a bola como quem não quer nada e, de repente, em três ou quatro toques estão já na cara do gol, ou seja: times em que a “agressão” e a superação de um esquema de defesas se passa em instantes (como o Barcelona do auge da geração comandada pelo Guardiola). Nesse sentido retomaria aquilo que você disse a respeito da vinheta a respeito de eu não ter criado uma imagem da pessoa, porque acho, por mais esotérico e místico que isso possa parecer, que eu não criei uma imagem dela já em função de um jogo transferencial, recebi-a na sala de espera como se estivesse aéreo, mas atribuo isso ao encontro com ela e não a algum elemento meu intervindo no encontro. Acho, então, que a psicanálise opera como esses times que parecem estar sempre “estudando” o adversário, mas que na verdade estão jogando – o jogo é esse mesmo, não é momento prévio. Isso diferencia a psicanálise de outras estratégias clínicas em que se separa o momento de “estudar o caso” do momento de “intervir”, e também diferencia de estratégias clínicas em que o clínico está jogando “no ataque” ou “na defensiva”; havendo, como há, estilos clínicos mais ou menos agressivos e mais ou menos “ativos” (levianamente falando) entre psicanalistas, esses estilos não dizem respeito ao ritmo do tratamento ou ao andamento da análise ou da cura. Acho que a grande diferença entre o que estamos tratando aqui e o futebol é que no futebol fica muito claro esse jogo competitivo em que a vitória de um implica a derrota do outro enquanto, no caso da transferência, isso me parece um pouco mais confuso e incerto. Não diria que não há confronto, nem que não há vitória e derrota, mas essa dimensão de jogo de poder e de confrontação é claramente complicada por uma fundação “selvagem” e “impensável” do encontro; acho que na psicanálise não há espaço para diplomacia, para cordialidade, para hipocrisia: o analista pode ser mais ou menos falante (mais ou menos “italiano”), mais ou menos rude ou o que for, isso não tem relação com o que no encontro

opera – porque diz respeito à dimensão do analista que é “massa”, não é o clichê. Então acho que se o analista fala bastante ou não, falta bastante ou não, faz bastante falta ou não (pensando no futebol, inicialmente) acho que é secundário em relação ao que no encontro clínico incide a partir do clichê, e que é irredutível a esses traços de caráter, personalidade e mesmo de estilo. No caso da P, por exemplo, o peso na sessão operava a despeito de meus traços de estilo, era um rastro de uma coisa outra que vinha “do porão” (se o porão é meu ou dela ou dos dois não vou poder nunca responder, acho). De qualquer maneira peguei-me aqui pensando que com tudo que falamos você certamente terá pensado em alguma vinheta ou caso de sua experiência, seria bom se pudéssemos por as mãos também nessa massa; vamos?

Paulo: Pensei justamente em um caso que toca isso que você acabou de dizer, sobre a soberania do encontro sobre os clichês, que vai de encontro ao que eu havia dito sobre a importância das suposições. De fato, as suposições já são o jogo em si, não se trata de nenhum tipo de aquecimento, ou de “tocar luvas” do boxe. O primeiro paciente que atendi (como acompanhante terapêutico) era usuário de um CAPS. Meu atendimento entrava como parte integrante de seu tratamento naquela instituição, e ele me havia sido encaminhado pela equipe responsável por ele. Descobri isso em uma reunião com os profissionais do CAPS, na qual me expuseram a escolha deles (de me encaminhar aquele paciente), e ao mesmo tempo disseram que não sabiam quando os encontros seriam possíveis pois o paciente estava internado, e não sabiam se eu poderia visitálo. Continuei, então, frequentando essas reuniões, num processo que durou mais de dois meses antes que eu tivesse um encontro com o próprio paciente (a instituição em que ele estava internado não autorizou minha visita). Durante esse tempo, fui aos poucos construindo uma imagem desta pessoa, reunindo relatos que me eram contados – e minhas fantasias, é claro. Sabia a história de sua família, seu histórico no CAPS, alguns de seus interesses, tinha até algumas indicações de sua aparência. Já havia até começado a pensar em possibilidades de como encaminhar o tratamento. No entanto, em nosso primeiro encontro, as coisas mudaram um pouco. Encontramo-nos no CAPS e resolvemos sair para dar uma volta. Assim que pisamos o pé fora, ele vira pra mim e pergunta “Por que eu tenho que tomar remédio?”. Eu sabia que ele tinha uma questão com a medicação, mas como não sou psiquiatra, não tinha imaginado que ele dirigiria essa problemática a mim. Sem saber o que fazer, perguntei a ele por que ele achava que tinha. Não fiz isso com nenhum intuito retórico ou qualquer intencionalidade de que ele refletisse sobre aquilo, foi somente a única coisa que me ocorreu, uma vez que eu

realmente não sabia, e queria ouvi-lo. E ele falou, por mais de uma hora, sobre suas questões com medicação. Me contou coisas absolutamente novas, e mesmo que algumas delas eu já houvesse ouvido antes, elas assumiram, ali, um sentido completamente diferente. De fato, uma massa intermediária se estabeleceu, massa que continha essa minha ignorância, e o valor daquilo que ele tinha a dizer. Isso não só estabeleceu um ponto de partida do processo, como deu outro sentido a tudo o que já havia sido construído antes, sem o encontro.

Will: Vinheta precisa, preciosa, perfeita para a ocasião; a mim parece que ela tensiona e põe em movimento tudo que trouxemos aqui. Acho que o melhor modo de encerrarmos esse texto é aqui mesmo, deixando que o diálogo siga seu rumo na vida, clínica ou não, do leitor, e na minha, e na sua.

REFERÊNCIAS: Derrida, J. (2001): Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará. Freud, S. (1912): A dinâmica da transferência, in: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. Munhoz, C. (2015): A relação entre o psicanalista e suas teorias. São Paulo: Escuta.

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