Um Doutorando e suas dúvidas: O que escolher

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Um Doutorando e suas dúvidas: O que escolher? Estou numa dúvida cruel entre uma caneca de chocolate quente... ou... uma cerveja estupidamente gelada...

CENA I Nada contra o sol... Nada contra os trópicos... mas... a neve, o frio e os dias nublados são os melhores para o estudo. Vivi boa parte de minha vida nas serras dos órgãos circulando entre Petrópolis, Teresópolis e Friburgo. Não havia ainda aquecimento global. Na Cidade Imperial era comum o frio, a neblina e a insistente chuva miúda. A friagem da serra nos prendia em casa olhando pela vidraça a chuva pulverizada umedecendo as folhagens da mata atlântica. À tarde uma boa caneca de chocolate duma receita italiana nos reconfortava, e à noite “superávamos” a friagem do dia com uma boa taça de conhaque aquecido. Esses longos dias invernais e as monótonas e úmidas noites nos faziam naturalmente introspectivos, muitas vezes transitando em ruas de paralelepípedos umedecidos e envoltos em pesados casacos com o capuz à cabeça e a mãos nos bolsos. Perdíamo-nos em pensamentos íntimos e introspectivos favorecidos pelos agasalhos pesados, pelo cachecol em torno do pescoço e pela toca na cabeça. Sintetizando... protegidos pelas vidraças de nossa casa, envolvido por agasalhos pesados, aquecidos no corpo e na alma por uma bebida quente nos tornávamos, repito, introspectivos, ou numa linguagem acadêmica, pensadores...

CENA II Trópicos... sol... calor... cores... roupas leves e poucas. Sentidos ativados. Cores estonteantes invadem nossos olhos como o fizeram com o holandês Debret lá nos tempos coloniais fazendo com que deixasse de lado em suas telas as cinzentas cores do velho mundo para exuberantes cores de nossas terras. À beira mar o vento fustiga nossas faces. O mar azul ondula e as palmeiras farfalham ao sabor do vento. Pessoas descontraídas batem papos inconsequentes sorvendo com olhos semicerrados suas cervejas geladíssimas... a vida se enche de burburinho, de risadas, de sensualidade que mareja nos olhares entre machos e fêmeas... Prevalecem os sentidos, as sensações, a extroversão... não dá para pensar... e só viver... intensamente...

Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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CENA III 19 anos. Sentado junto da janela do 4º. Andar da universidade. As luzes acesas não conseguem fazer concorrência com a luz do sol lá fora. O professor... o professor com um velho compêndio entre as mãos fala alguma coisa sobre suseranos, senhores feudais, servidão... aos 19 anos essas coisas parecem distantes, desencarnadas, fora de minha realidade. Sei apenas que tudo aquilo vai entrar na prova. Com a carteira escolar junto da janela do clássico e solene prédio do Sion ouço longe e vagamente a fala do professor enquanto meus olhos, meu coração e minha mente se extasiam com límpido céu azul de junho sem qualquer ponto de nuvem. Como o céu pode ser tão azul? Lá em cima, tão longe, um jato quase invisível deixa um risco de fumaça branca. Será vapor?... sei lá... alguns pássaros entrecortam o céu... são livres... podem voar... estão lá fora... minhas narinas sorvem o ar puro, húmido e frio da manhã. Lá longe o professor fala, agora sobre o jus prima nocte do mundo medieval. Alguns colegas emboçam risos sacanas trocando olhares... o ambiente se energiza. Com a cabeça colada na vidraça continuo os meus devaneios. Como o tempo demora a passar... os minutos parecem eternidade... feiras medievais... nascente burguesia... recolho-me dentro de mim cerrando levemente os olhos... a fala do professor continua cada vez mais distante... a imaginação agora corre livremente totalmente desconectada do entorno material e espiritual da sala... meu corpo é prisioneiro da sala, do relógio, da lista de chamada... mas, minha alma corre livre ao sol, sob o inebriante céu azul, nas campinas, nas matas, junto das fontes vejo-me nadando em rios empedrados que descem a serra. As quedas d’água massageiam minhas costas. Bate a campainha.

CENA IV Muitos anos depois. Alguns cursos superiores feitos. Especializações. Mestrado. Estou de novo em sala me doutorando. Tornei-me incialmente professor de Segundo Grau e depois do Ensino Superior. Vi-me em tantos alunos olhando pela vidraça sonhando com o mundo lá fora, enfastiado consultando o relógio que não anda. Alguns cochilavam outros se desconectavam das aulas embaladas por devaneios juvenis. Ficava zangado com eles... só por fora... afinal eles nada mais eram do que eu nos meus 19 anos... Agora cá estava aqui por escolha e opção voltando a ser aluno. Andei ensaiando algumas pesquisas e até andei me apaixonando com elas. Nada de amor tórrido... mas “certo” amor. Ao longo dos anos estudei e ensinei autores clássicos, modernos e contemporâneos. Ensinei História politica e Econômica, Filosofia, Educação e tantas outras coisas. Passando por tantos autores, sobretudo europeus, nunca me saiu da cabeça a caneca de chocolate das frias tardes e Petrópolis e das manhãs ensolaradas tocando nossos sentidos. Falando para alunos sobre Kant, Descartes, Bordieu, Engels, Marx sinto que eles estão pensando na praia no seu próximo jogo de futebol e numa boa cerveja estupidamente gelada.

Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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EPÍLOGO

Seria ingênuo ignorar todo patrimônio cultural que nos foi legado pela nublada Europa. O pensamento deles é inevitavelmente “nublado” (amargurado) sob a ótica do Velho Mundo. Kant, Hegel, Marx e todos os outros deram respostas para situações concretas da vida da Europa. No mundo acadêmico muitas vezes me sinto usando roupas de inverno em plenos trópicos. Roupas de inverno são bonitas e elegantes, mas, simplesmente, inadequadas nos trópicos. São roupas fora de lugar. Muitas pesquisas de nossa comunidade acadêmica se voltam com volúpia para autores clássicos da Europa. São mestres. São referenciais. Devem ser conhecidos. São caminhos pelos quais se deve passar. Gastar energia, porém com autores que não impactam em nossa realidade tropical, que não possuem efetivo eco nestas terras d’além-mar é algo de inócuo com cheiro de academicismo pedante. Já foram pensados e esgotados ad nauseam por pensadores de dentro e fora da Europa. Muitas pesquisas tem o sabor de alimento requentado enquanto se voltam para o que o que já foi descoberto, raramente um pesquisador autóctone consegue desvendar algo de novo. Gastamos muita energia pesquisando aquilo que já foi pesquisado. Não se pode ignorar o patrimônio cultural dos que nos antecederam. Devemos conhecê-los. É salutar que em nosso meio alguns os pesquisem porque esse conhecimento é suporte para que construamos novos conhecimentos. É fundamental – sem xenofobismo – que empenhemos as melhores de nossas forças acadêmicas para pesquisas que voltem para nosso contexto, com produções que tenham eco e incidam em nossa realidade, mentalidade e cultura. A velha Europa, tal como existiu até agora, está se desconfigurando com a invasão dos “bárbaros do sul”. Ela, enquanto cultura está se dissolvendo. Velhos nobres empobrecem, ainda que mantenham a posse de palácios, que mal conseguem sustentar. A cultura ocidental deve por demais à Europa. Não mais, porém devemos ficar atrelados a ela. Não a ignoramos como referencial de nossa cultura. O pensamento europeu, porém deve perder a centralidade em nossos meios acadêmicos, ocupando o espaço de referência e contribuição, apenas. Nos trópicos temos que produzir conhecimento/resposta para os nossos desafios. A construção de nossa recente cultura de apenas 500 anos possui luz suficiente para ter vida própria e até contribuir para cultura de outros povos. A produção acadêmica de nossas universidades deve ter a nossa cara. Nossa “experiência tropical” nos dá estofo para produzirmos saber com nossa marca sem que tenhamos que esmolar a aprovação de críticos do velho continente. Paulo Freire, à guisa de exemplo, oferece uma contribuição impar à educação do mundo, uma visão construída em nossas terras. Sem desprezar, diminuir ou ignorar o grandioso patrimônio cultural da humanidade, temos que ter consciência que possuímos uma cultura aberta que acolheu e mesclou sem muito pudor cultural elementos europeus, africanos, asiáticos e ameríndios. Não somos Europa, África, Ásia. Somos uma nova química que misturou e em alguns casos fundiu elementos tão díspares. Aprendemos com o velho mundo, mas temos nosso caminho. Os dias e os “pensamentos nublados” não fazem parte do nosso universo. A produção do conhecimento em nossas academias deve ser de nosso universo. Apesar da globalização o sol tropical continua sendo só dos trópicos. Desculpem-me os sisudos mestres das verdades europeias. Quero alunos despertos em nossas aulas cuidando e zelando do que é seu e do que diz respeito às suas vidas. Desculpem-me mais uma vez, mas entre a caneca de chocolate e a cerveja, fico com a cerveja. Estupidamente gelada... Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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